Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
254/09.7TBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: LIVRANÇA
AVALISTA
PACTO PREENCHIMENTO
SANEADOR
Data do Acordão: 02/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.17º, 32º, 53º, 75º, 77º DA LULL, ARTS.510º Nº1 B) E 511º CPC
Sumário: I - Os avalistas de subscritores de livranças que subscreveram pactos de preenchimento a favor da exequente e relativamente as livranças que não saíram da posse da beneficiária desse pacto de preenchimento estão no domínio das relações imediatas, relativamente à exequente.

II - O conhecimento directo do pedido na fase do despacho saneador pressupõe que estejam assentes todos os factos necessários para o efeito de acordo com as diversas soluções plausíveis das questões de direito que importa resolver.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 02 de Maio de 2009, A (…) e B (…) deduziram oposição à acção executiva sob forma comum, para pagamento de quantia certa que lhes foi movida pela Caixa de Crédito (…), CRL alegando inexequibilidade da livrança exequenda em virtude de não ter sido apresentada a protesto, que subscreveram as livranças exequendas com a garantia que as mesmas serviam de garantia, ficando na posse da instituição bancária apenas em carteira, que não lhes foi explicado o conteúdo do contrato de empréstimo, que aceitaram ser avalistas no pressuposto aceite pela exequente de que esta os avisaria logo e quando qualquer prestação deixasse de ser liquidada para permitir aos opoentes actuar junto da co-executada, levando-a ao pagamento, que a exequente transmitiu aos opoentes que a sua assinatura seria uma mera formalidade administrativa, para compor o empréstimo aos executados (…) e (…), pois esta tinha bens suficientes para garantia da quantia mutuada, que não lhes foi explicado o conteúdo e teor do contrato, bem como as penalidades pelo eventual incumprimento, nem tão pouco a implicação que teriam ao assinar um letra de câmbio.

            A oposição foi liminarmente recebida, sendo a exequente notificada para, querendo, contestar.

            A Caixa de Crédito (…), CRL contestou arguindo litigância de má fé dos opoentes, a desnecessidade da efectivação de protesto por falta de pagamento quando esteja em causa uma livrança e se vise responsabilizar os avalistas dos subscritores da livrança, os quais respondem nos mesmos termos que o aceitante, que aquando da subscrição dos títulos exequendos, os opoentes foram elucidados do teor das declarações que subscreveram e foram várias vezes interpelados para procederem ao pagamento, concluindo pela total improcedência da oposição à acção executiva.

            A 13 de Julho de 2009 foi proferida decisão final que julgou totalmente improcedente a oposição à acção executiva por três razões essenciais: a primeira por ser desnecessário o protesto por falta de pagamento para responsabilizar os avalistas de subscritores de livrança; a segunda porque ainda que a exequente se tivesse comprometido a avisar “tempestivamente” a situação de incumprimento dos subscritores, tal não exonera os opoentes da obrigação de pagamento; a terceira em virtude da restante matéria alegada pelos opoentes ser inoponível à exequente pela razão dos avalistas opoentes se acharem no domínio das relações mediatas relativamente à exequente, não tendo esta qualquer obrigação de informação do contrato subjacente à obrigação dos subscritores, não tendo também a obrigação de explicar aos avalistas a implicação da assinatura de uma livrança. 

            Inconformados com tal decisão, os opoentes interpuseram recurso de apelação concluindo as alegações da seguinte forma:

            “1. Considerou a MM.ª Juiz “A QUO” que “De facto, o avalista é responsável solidário perante o portador da letra, pelo que o avalista de qualquer responsável cartular só será quando o portador comprovar a falta de pagamento por acto formal (protesto), de acordo com o art.º 44º da LULL:

            2. Contudo, na justa medida em que o portador não perde o direito de acção contra o aceitante (ou o subscritor no caso de livrança), tal como resulta do disposto no art.º 53º da LULL, também o portador não pode opor ao avalista deste, que responde da mesma forma a excepção da falta de protesta”;

            3. Por isso, conclui a MMº Juiz “A QUO” que improcederia assim a argumentação dos aqui recorrentes.

            4. Porém, entendemos que o protesto se torna IMPERATIVO;

            5. Pois só assim serão exercidos os direitos cambiários derivados da falta de pagamento das livranças, contra os avalistas e contra os aceitantes (subscritores, no caso dos presentes autos);

            6. Já que, conforme prevê o art.º 53º da LULL, só se mantém o direito de acção contra o aceitante com a necessária prova, isto é, pelo protesto, junto dos garantes (entre os quais os avalistas) pois, houve uma recusa e pagamento.

            7. Será forçoso concluir que só havendo uma apresentação e, consequentemente recusa ou impossibilidade de pagamento pelos aceitantes (neste caso subscritor), é que se poderá responsabilizar o avalista, o garante daqueles;

            8. Sendo que a garantia dada pelos avalistas estará sempre dependente da apresentação da livrança no tempo e lugar em que a mesma é pagável;

            9. Aliás, sem essa apresentação, não houve, na realidade, de facto um pagamento, mas, também, não terá havido recusa do mesmo, condição necessária ao direito do regresso contra o avalista do subscritor.

            10. Pelo que o protesto será, pois, um acto jurídico declarativo que se destinaria a comprovar e dar conhecimento da falta de pagamento da livrança;

            11. A MM. Juiz “A QUO” deveria, assim, ter julgado procedente a excepção peremptória argumentada e defendida pelos opoentes, devendo os mesmos serem absolvidos do pedido

            12. Pois o protesto, é uma função de pressuposto de exigibilidade da livrança vencida e não paga.

            13. Não o fazendo, violou os artigos 30º, 32º, 44º e 53º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

Por outro lado

            14. Entendeu a MM.ª Juiz “A QUO” que a oposição apresentada pelos ora requerentes carece de fundamento, julgando-a improcedente;

            15. Considerou que, “Sendo certo que, na justa medida em que os executados assinaram a livrança enquanto avalistas, a sua posição perante a exequente situa-se ao nível das relações mediatas, tudo o mais alegado revela-se absolutamente irrelevante”;

            16. Entendemos que, salvo o devido respeito, tal matéria não é nem pode ser irrelevante;

            17. Tal matéria poderá conduzir à nulidade do título executivo relativa à formalidade exigível nos contratos de crédito e diz respeito a:

e) Apenas uma das livranças foi assinada nas instalações da exequente e que foi garantido aos requerentes que as mesmas livranças apenas e só poderiam servir de garantia, ficando na posse da instituição (neste caso a Caixa de Crédito), apenas e só em carteira;

f) Não foi aposto qualquer valor, data de emissão ou vencimento, bem como a taxa de juro convencionada com os devedores principais;

g) As livranças foram por avalizadas, sem lhes terem elucidado e explicado, com a necessária profundeza, o conteúdo do contrato de empréstimo e só aceitaram ser avalistas dos executados no pressuposto (aceite pela exequente) de que esta a avisaria, tempestivamente, quando e logo que qualquer prestação deixasse de se liquidada;

h) Isto para permitir aos aqui recorrentes actuar perante os co-executados, levando-os ao pagamento.

            18. Foi assim “fechada a porta” da possibilidade de produção de prova dos aqui recorrentes, nomeadamente quanto ao facto de apenas uma delas ter sido assinada nas instalações da exequente, o que conduzirá forçosamente à improcedência da execução, face às exigentes regras dos contratos de crédito.

            19. Os opoentes dispunham pois, na fase de instrução e produção de prova, da possibilidade de requerer o depoimento de parte a ter lugar em audiência de discussão e julgamento e ainda poder juntar prova documental até ao encerramento dessa audiência, pelo sempre teria de deixar correr os autos para aquela fase e não vedar tal possibilidade no saneamento dos autos.

            20. Não o fazendo violou os artigos 512º, nº 1, 523º, nº 2, 552º, 563º e 652º, nº 3, al. a), do Código de Processo Civil, assim como o art.º 352º do Código Civil.”

            A coroar estas conclusões, os recorrentes pedem que seja “dado provimento ao recurso interposto, tudo de acordo com as conclusões anteriores, revogando-se a decisão que julgou procedente da excepção peremptória da prescrição”.

            A Caixa de Crédito (…), CRL contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso dos opoentes.

            Inexistindo qualquer obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso e colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir

As questões a decidir, delimitadas pelas conclusões do recurso da recorrente (artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nºs 1 e 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, quando for caso disso e observado que seja o artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, são as seguintes:

- da necessidade do portador de livrança proceder a protesto por falta de pagamento do subscritor da livrança para ter direito de acção contra o avalista do subscritor;

- da pertinência e procedência da factualidade aduzida pelos opoentes geradora de nulidade dos títulos exequendos, por inobservância das formalidades dos contratos de créditos, no entender dos opoentes.

3. Fundamentos de facto constantes da decisão sob censura expurgados das referências probatórias e resultantes dos documentos particulares oferecidos pela exequente com a sua contestação e que não foram impugnados pelos opoentes


3.1

            A Caixa de Crédito (…), CRL é portadora de dois impressos uniformizados destinados a servir como livrança, em que figura como beneficiária[1] e subscritos por (…) e (…),

            - o primeiro no valor de 17.233,36 €, datado de 29/01/2007 e com data de vencimento de 16/02/2009;

            - o segundo no valor de 24.821,54 €[2], datado de 03/06/2008 e com data de vencimento de 16/02/2009.


3.2

            No verso do documento referido em 3.1, no montante de € 17.233,36 encontram-se apostas sob os dizeres “dou o meu aval ao subscritor”, as assinaturas “(…) e “(…)” e no verso do documento referido em 3.1, no montante de € 24.821,54 encontram-se apostas sob os dizeres “dou o meu aval aos subscritores”, as assinaturas “(…)” e “(…)”.

3.3

            Com data de 29 de Janeiro de 2007, (…), (…), (…) e (…), estes dois últimos na qualidade de avalistas, subscreveram um documento intitulado “Declaração” no qual se acha exarado o seguinte:

Em garantia do cumprimento das obrigações ou responsabilidades assumidas no contrato de crédito Nº 56037832167 de 29/01/07, e/ou dele emergentes, junto remetemos uma livrança por nós subscrita, em branco, a favor da CAIXA DE CRÉDITO (…), CRL, ou a favor da Caixa de Crédito (…) que esta designar, ficando V. Exas., autorizados a preenchê-la, fixando-lhe a data, o vencimento, que poderá ser mesmo à vista, quando e como entenderem, o montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer despesas, sempre que deixemos de cumprir qualquer das obrigações emergentes deste contrato.

O(s) avalista(s) da livrança de caução acima identificado(s) dão o seu acordo às estipulações deste contrato, pelo que, em confirmação, assinam também a presente declaração.”


3.4

            Com data de 03 de Junho de 2008, (…), (…), (…) e (…), estes dois últimos na qualidade de avalistas, subscreveram um documento intitulado “Declaração” no qual se acha exarado o seguinte:

Em garantia do cumprimento das obrigações ou responsabilidades assumidas no contrato de crédito Nº 59059108582 de 03/06/2008, e/ou dele emergentes, junto remetemos uma livrança por nós subscrita, em branco, a favor da CAIXA DE CRÉDITO (…), CRL, ou a favor da Caixa de Crédito (…)que esta designar, ficando V. Exas., autorizados a preenchê-la, fixando-lhe a data, o vencimento, que poderá ser mesmo à vista, quando e como entenderem, o montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer despesas, sempre que deixemos de cumprir qualquer das obrigações emergentes deste contrato.

O(s) avalista(s) da livrança de caução acima identificado(s) dão o seu acordo às estipulações deste contrato, pelo que, em confirmação, assinam também a presente declaração.”

            4. Fundamentos de direito
                4.1 “A livrança contém:
            1. A palavra «livrança» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redacção desse título;
            2. A promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada;
            3. A época do pagamento;
            4. A indicação do lugar em que se deve efectuar o pagamento;
            5. O nome da pessoa ou à ordem de quem deve ser paga;
            6. A indicação da data e do lugar onde a livrança é passada;
            7. A assinatura de quem passa a livrança (subscritor)” (artigo 75º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).
            “O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzirá efeito como livrança, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes.
            A livrança em que se não indique a época de pagamento será considerada pagável à vista.
            Na falta de indicação especial, o lugar onde o escrito foi passado considera-se como sendo o lugar do pagamento e, ao mesmo tempo, o lugar do domicílio do subscritor da livrança.
            A livrança que não contenha indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado ao lado do nome do subscritor” (artigo 76º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).
            “São aplicáveis às livranças, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras e respeitantes a:
            Endosso (arts. 11º a 20º);
            Vencimento (arts. 33º a 37º;
            Pagamento (arts. 38º a 42º);
            Direito de acção por falta de pagamento (arts. 43º a 50º e 52º a 54º);
            Pagamento por intervenção (arts. 55º e 59º a 63º);
            Cópias (arts. 67º e 68º);
            Alterações (art. 69º);
            Prescrição (arts. 70º e 71º);
            Dias feriados, contagem de prazos e interdição de dias de perdão (arts. 72º a 74º);
            São igualmente aplicáveis às livranças as disposições relativas às letras pagáveis no domicílio de terceiro ou numa localidade diversa da do domicílio do sacado (arts. 4º e 27º), a estipulação de juros (art. 5º), as divergências nas indicações da quantia a pagar (art. 6º), as consequências da aposição de uma assinatura nas condições indicadas no artigo 7º, as da assinatura de uma pessoa que age sem poderes ou excedendo os seus poderes (art. 8º) e a letra em branco (art. 10º).

            São também aplicáveis às livranças as disposições relativas ao aval (arts. 30º a 32º); no caso previsto na última alínea do artigo 31º, se o aval não indicar a pessoa por quem é dado, entender-se-á ser pelo subscritor da livrança” (artigo 77º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).

            “O pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval” (artigo 30º, 1º §, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).

            “O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

            A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

            Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra” (artigo 32º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).

            “Depois de expirados os prazos fixados:

                        para a apresentação de uma letra à vista ou a certo termos de vista;

                        para se fazer o protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento;

                        para a apresentação a pagamento no caso da cláusula sem «despesas»;

o portador perdeu os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante” (artigo 53º, 1º §, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).

            Apesar da doutrina não ser unânime[3], a jurisprudência publicada tem-se nos últimos anos encaminhado uniforme e reiteradamente no sentido da desnecessidade de protesto para efectivação da responsabilização do avalista do aceitante e do avalista do subscritor[4].

            Vimos já que ao avalista do subscritor de uma livrança são aplicáveis as regras do aval nas letras (último parágrafo do artigo 77º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).

            De acordo com o disposto no artigo 32º, § 1º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”, sendo a obrigação do avalista substancialmente autónoma e dependente formalmente da obrigação garantida (artigo 32º, § 2º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).

            Ora, no caso da falta de protesto por falta de pagamento, o portador de uma letra ou livrança só perde o seu direito de acção contra os endossantes, contra o sacador (obviamente apenas no caso da letra, já que na livrança não há sacador) e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante da letra ou do subscritor da livrança que é legalmente equiparado ao aceitante (artigo 53º, § 1º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, aplicável às livranças por força do disposto no artigo 77º, § 1º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças).

            Por isso, se o dador de aval a favor do subscritor da livrança responde da mesma forma que a pessoa cuja obrigação cambiária garante, se a responsabilidade da pessoa cuja obrigação é garantida não depende da efectivação do protesto por falta de pagamento, forçosa é a conclusão de que é desnecessário o protesto por falta de pagamento para que a obrigação do avalista do subscritor de livrança seja exigível.

            Assim, pelo exposto, conclui-se que improcede a excepção de inexigibilidade da obrigação exequente derivada da falta de protesto por falta de pagamento dos títulos exequendos, por se tratar de uma formalidade desnecessária para o exercício do direito do beneficiário dos títulos exequendos.

            4.2 A segunda questão a decidir neste recurso prende-se com a pertinência e relevância da restante factualidade articulada pelos opoentes para firmar a sua oposição à acção executiva.

A decisão sob censura foi proferida na fase do despacho saneador, sem que se tenha iniciado a fase processual da instrução.

            O conhecimento directo do pedido em tal fase processual é viável sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (artigo 510º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil).

            Na nossa perspectiva, o normativo que se acaba de citar deve ser conjugado com o disposto no artigo 511º, nº 1, do Código de Processo Civil e de acordo com o qual a selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa, deve ser efectuada tendo em atenção as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Neste termos, afigura-se-nos que o conhecimento directo do pedido na fase da prolação do despacho saneador apenas é lícito se a factualidade assente for suficiente tendo em conta as diversas soluções plausíveis da questão de direito.

Assim, nessa fase, ainda que a factualidade já assente seja suficiente para conhecer directamente do pedido, de acordo com a perspectiva jurídica do juiz do processo, deve este abster-se de tal conhecimento se acaso subsistir factualidade controvertida e outras soluções jurídicas forem plausíveis, não sendo os factos já assentes bastantes para decidir de acordo com tais outras perspectivas[5]. É que, a proceder de outro modo, podem os factos já assentes ser insuficientes para o julgamento do caso de acordo com outra perspectiva jurídica, em sede de recurso.

Esta interpretação é a que mais se coaduna com o conteúdo do direito fundamental de acesso ao direito na vertente de processo equitativo e também é a que evita retrocessos processuais causados pela necessidade ulterior de ampliação da base de facto.

            Por isso, neste momento, não há que tomar uma posição definitiva sobre o direito material aplicável, mas apenas ajuizar se além da posição jurídica seguida na decisão sob censura, outras são plausíveis. Nesta última eventualidade, se acaso os factos necessários para o conhecimento directo do pedido de acordo com tal ou tais perspectivas ainda não se mostrarem assentes, deverão os autos prosseguir os seus termos.

            Na decisão sob censura afastou-se liminarmente a relevância de tal factualidade sustentando-se que os avalistas dos subscritores das livranças exequendas se achavam no domínio das relações mediatas.

            Vejamos se assim é.

            A distinção das relações imediatas das relações mediatas efectua-se para determinar precisamente o campo de aplicação do artigo 17º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, pois que por força deste normativo, no âmbito das relações mediatas, as excepções pessoais[6] não são oponíveis ao portador mediato, a não ser que se demonstre que tal portador, ao adquirir o título cambiário, procedeu conscientemente em detrimento do devedor. A teleologia desta previsão legal é a de proteger o portador mediato do título, pondo-o ao abrigo de vícios ocorridos em relações a que é alheio, assim se fomentando a circulação cambiária.

            As relações imediatas diferenciam-se das relações mediatas, num primeiro entendimento, “pela circunstância de o portador do título ou subscritor do título de crédito estar colocado na cadeia de transmissões que sucessivamente foram ocorrendo imediatamente a seguir ao devedor accionado – ou, pelo contrário, separado dele por interpostos subscritores ou portadores, portanto, numa posição mediata em relação a tal devedor”[7].

Num entendimento mais compreensivo, menos mecânico e mais funcional da distinção entre relações imediatas e mediatas, considerar-se-á relação imediata “aquela que é anterior à transmissão da letra e, depois desta, a que se estabelecer no plano que existe entre ela e a transmissão seguinte, e assim sucessivamente: a relação imediata é a que se estabelece na mesma fase de circulação da letra”[8]. Operando-se a circulação do título cambiário mediante endosso (artigo 11º, § 1º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças), é este acto que irá determinar o corte entre as sucessivas relações, tendo o mesmo valor que o endosso o acordo de transmissão ao tomador (veja-se o artigo 11º, § 2º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças). Em termos sintéticos, afirma-se que “os sujeitos que estão numa relação imediata são aqueles que participam numa mesma convenção executiva[9], ou que, por força da lei, ficam colocados juridicamente na posição de um dos participantes nessa convenção”[10].

            No caso dos autos, os títulos exequendos não entraram em circulação e, por outro lado, os opoentes subscreveram duas declarações, de idêntico conteúdo, que corporizam autorizações de preenchimento dos títulos exequendos, determinando as obrigações garantidas por cada um dos títulos.

            Neste contexto, os opoentes são intervenientes na relação de garantia subjacente à emissão e entrega dos títulos exequendos e, achando-se estes ainda na posse da entidade a favor de quem foram emitidas as autorizações de preenchimento dos referidos títulos[11], é para nós manifesto que os avalistas dos subscritores das livranças exequendas se acham nas relações imediatas face à entidade beneficiária dos títulos exequendos.

            Assim, falece o pressuposto da decisão sob censura da ininvocabilidade de certa factualidade constante da oposição à acção executiva face à exequente em virtude dos títulos exequendos se acharem no domínio das relações mediatas.

            Apreciemos agora da pertinência da factualidade aduzida pelos opoentes para ao menos paralisar a acção executiva[12].

            A matéria vertida nos artigos 15º a 21º, 26º e 27º, todos da oposição, dada a subscrição pelos opoentes de duas autorizações de preenchimento pela exequente, é impertinente, na medida em que por força do disposto no artigo 378º do Código Civil, cumpria aos opoentes a alegação e subsequente prova de factos integradores da violação daquelas autorizações. De facto, neste circunstancialismo, incumbe aos dadores de autorizações de preenchimento de documentos em branco, a alegação e prova de factos integradores do desrespeito do pacto de preenchimento.

Os opoentes nem sequer alegaram que tenham sido outorgantes dos contratos de crédito que avalizaram, pelo que não existe base legal para chamar à colação as normas sobre cláusulas contratuais gerais (decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro) ou sobre o contrato de crédito ao consumo (decreto-lei nº 359/91, de 21 de Setembro, revogado pelo decreto-lei nº 133/2009, de 02 de Junho), tanto mais que se desconhece o destino dos montantes mutuados. Também não foi alegada factualidade bastante para integrar a celebração de um contrato ao domicílio (decreto-lei nº 143/2001, de 26 de Abril).

            A factualidade vertida nos artigos 22º e 23º da oposição, a provar-se, para certo entendimento doutrinal[13], poderá integrar inexigibilidade da obrigação.

            A matéria articulada nos artigos 24º e 25º da oposição, ainda que se prove, poderá quando muito constituir a exequente em responsabilidade pré-contratual, não tendo virtualidade para extinguir ou paralisar a pretensão executiva[14].

            A factualidade vazada no artigo 28º da oposição, por si só é manifestamente insuficiente para concluir pela falta de consciência de vinculação cambiária por parte dos opoentes.

É do conhecimento comum que a aposição de uma assinatura num título de crédito como uma letra ou livrança, por si só, tem aptidão para determinar uma vinculação cambiária. Para que assim não suceda, devem verificar-se circunstâncias excepcionais que carecem de ser alegadas por quem se quer prevalecer delas, como sejam, por exemplo, a não percepção de que se subscrevia uma livrança ou a existência de um défice cognitivo acentuado impossibilitador da percepção do alcance da subscrição cambiária.

            O conteúdo do artigo 29º da oposição não constitui matéria de facto, sendo uma mera conclusão jurídica.

            Pelo que antecede conclui-se que apenas a matéria vertida nos artigos 22º e 23º da oposição tem aptidão para poder paralisar a pretensão executiva. Porque a relação estabelecida entre os opoentes e a exequente se situa no âmbito das relações imediatas, a referida factualidade é oponível à exequente.

            Pelo que precede, conclui-se que a decisão de improcedência da oposição à acção executiva proferida na fase do despacho saneador não se pode manter integralmente, apenas sendo de confirmar no que respeita a desnecessidade de protesto por falta de pagamento para accionamento dos avalistas dos subscritores das livranças exequendas, devendo os autos prosseguir com selecção da factualidade assente e organização da base instrutória de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito, tendo em conta o juízo precedentemente feito sobre a pertinência da factualidade articulada em sede de oposição à acção executiva e as regras sobre a distribuição do ónus da prova.

            5. Dispositivo

            Pelo exposto, julga-se o recurso de apelação interposto por A (…)e B (…) nesta oposição à acção executiva instaurada contra a Caixa de Crédito (…) CRL, parcialmente procedente por provado e, em consequência, confirma-se a decisão sob censura no segmento da improcedência da excepção peremptória arguida pelos recorrentes e consistente na inexistência de protesto por falta de pagamento das livranças exequendas e revoga-se a decisão sob censura no que respeita a impertinência e ininvocabilidade da restante matéria da oposição, por as livranças exequendas estarem no domínio das relações mediatas, ordenando-se, consequentemente, o prosseguimento dos autos para a fase da instrução, com selecção da factualidade assente e organização da base instrutória de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito, tendo em conta o juízo precedentemente feito sobre a pertinência da factualidade articulada em sede de oposição à acção executiva e as regras sobre a distribuição do ónus da prova. Custas do recurso na proporção de metade a cargo dos opoentes e da exequente, sendo aplicável a tabela B anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


[1] E não como sacada como por manifesto lapso consta da factualidade fixada.
[2] E não 24.821,52 € como por manifesto lapso consta da factualidade fixada.
[3] No sentido da necessidade da efectivação do protesto por falta de pagamento para que se mantenha o direito de acção contra o avalista do aceitante vejam-se, A Natureza do Aval e a Questão da Necessidade ou não de Protesto para Accionar o Avalista do Aceitante, Almedina 1991, Paulo Sendim e Evaristo Mendes e Das Letras: Aval e Protesto, Almedina 2002, Nuno Madeira Rodrigues; em sentido oposto vejam-se, Títulos de Crédito, Almedina 2000, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, página 183; Lições de Direito Comercial, volume III, A. Ferrer Correia, com a colaboração de Paulo M. Sendim, J. M. Sampaio Cabral, António A. Caeiro e M. Ângela Coelho, Coimbra 1975, páginas 210 a 212; Lições de Direito Comercial, 2º volume, fascículo V, As Letras, 2ª parte, 3ª edição, Lisboa 1965, José Gabriel Pinto Coelho, páginas 23 a 40.
[4] Assim, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2009, relatado pelo Sr. Conselheiro Santos Bernardino, no processo nº 2366/07.2TBBRRR-A.S1, de 10 de Setembro de 2009, relatado pelo Sr. Conselheiro Lopes do Rego, no processo nº 380/09.2YFLSB, de 23 de Abril de 2009, relatado pela Sra. Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no processo nº 08B3905, de 09 de Setembro de 2008, relatado pelo Sr. Conselheiro Azevedo Ramos, no processo nº 08A1999, de 21 de Abril de 2004, relatado pelo Sr. Conselheiro Ferreira de Almeida no processo nº 04B3453 e de 13 de Fevereiro de 2003, pelo Sr. Conselheiro Ribeiro de Almeida, no processo nº 03A2211, acórdãos todos acessíveis no site do ITIJ.
[5] Neste sentido, na doutrina, veja-se, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume (2ª edição revista e ampliada), Almedina 1999, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 135 a 137 e na jurisprudência, por todos, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 2006, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Fátima Galante, no processo nº 9662/2006-6.
[6] Já assim não será no caso das excepções reais, como é o caso da falsidade da assinatura cambiária, vício oponível independentemente do título se achar nas relações imediatas ou mediatas (veja-se o artigo 7º, da Lei Uniforme Relativas às Letras e Livranças).
[7] Citação extraída de Títulos de Crédito, Almedina 2000, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, página 68.
[8] Citação extraída de Direito Comercial Português, Volume I, Coimbra Editora 2007, Filipe Cassiano dos Santos, página 276.
[9] Convenção executiva é a causa próxima do negócio cambiário é o acto pelo qual se escolhe a função do negócio cambiário em face da relação subjacente, que constitui a sua causa remota (definição extraída de Lições de Direito Comercial, volume III, A. Ferrer Correia, com a colaboração de Paulo M. Sendim, J. M. Sampaio Cabral, António A. Caeiro e M. Ângela Coelho, Coimbra 1975, página 47.
[10] Citação extraída de Direito Comercial Português, Volume I, Coimbra Editora 2007, Filipe Cassiano dos Santos, páginas 276 e 277.
[11] Sobre a utilização na prática bancária de títulos de crédito com função de garantia veja-se, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina 2000, Manuel Januário da Costa Gomes, páginas 81 a 85.
[12] Efectivamente, a defesa deduzida em sede de oposição à acção executiva pode traduzir-se na invocação de uma excepção material dilatória que não determinará a extinção do direito exequendo mas apenas conduzirá à sua paralisação. Por isso, é errónea a identificação da defesa relevante em sede de oposição à acção executiva com a obtenção de uma definitiva liberação. Na verdade, a inexigibilidade da obrigação exequenda, não se traduzindo numa definitiva liberação dessa obrigação, constitui fundamento válido de oposição à acção executiva (vejam-se os artigos 814º, alínea a) e 816º, ambos do Código de Processo Civil).
[13] Neste sentido, com considerações referidas à fiança mas transponíveis para qualquer outro negócio de garantia, veja-se, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina 2000, Manuel Januário da Costa Gomes, páginas 961 a 963.
[14] Neste sentido, com considerações referidas à fiança mas transponíveis para qualquer outro negócio de garantia, veja-se, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina 2000, Manuel Januário da Costa Gomes, página 584.