Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
152/14.2GAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: OMISSÃO DE DISPOSITIVO
INIMPUTABILIDADE
SUSPENSÃO DA MEDIDA DE INTERNAMENTO DE INTERNAMENTO
PEDIDO CÍVEL
EQUIDADE
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARTS. 71.º, 374.º, 379.º, DO CPP; ARTS. 20.º, 40.º, 91.º, 98.º E 129.º, DO CP; ARTS. 483.º E 489.º, DO CC.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 71.º, 374.º, 379.º, DO CPP; ARTS. 20.º, 40.º, 91.º, 98.º E 129.º, DO CP; ARTS. 483.º E 489.º, DO CC.
Sumário: I - O tribunal a quo, no dispositivo, relativamente à acusação limitou-se a declarar a arguida inimputável, nos termos do art. 20.º, do CP, em razão de anomalia psíquica, impondo-lhe ao abrigo do disposto nos artigos 40.º, 91.º, n.º 1, e 98.º, n.ºs 1, 3 e 4, do CP, a medida de internamento por um período mínimo de um ano, suspensa na sua execução, mediante regras de conduta.

II - Nos termos do art. 374.º, n.º 3, al. b), do CPP, a sentença deveria, relativamente à matéria da acusação submetida à apreciação do tribunal, conter a decisão absolutória, sob pena de ser nula, de acordo com o disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

III - Sendo a medida de segurança de internamento, uma privação da liberdade do arguido, o cumprimento efectivo, privando-o da convivência em sociedade, só deve ser decretado, como último recurso, à semelhança do que acontece com a pena de prisão, como resulta da leitura do art. 98.º, n.º 1, do CP.

IV - A matéria relativa à aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade, isto é, uma medida de segurança não deve ser aplicada quando outras medidas menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente, conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, pág. 446.

V - O tribunal de julgamento tem o poder-dever de suspender a medida de segurança de internamento se for razoavelmente de esperar que assim se atinge a finalidade pretendida, isto é, a protecção dos bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade, curado no que se refere à eliminação da perigosidade.

VI - Não existindo ninguém que estivesse obrigado à vigilância tutelar da arguida de modo a poder ser responsabilizado pelos prejuízos causados à recorrente, o tribunal a quo ponderou se à assistente assistia o direito a indemnização com base no critério da equidade, ao abrigo do art. 489.º, do CC, tendo concluído pela negativa, com o fundamento de que resultou provado que a arguida não tem bens nem rendimentos, e que as condutas da mesma não são particularmente graves.

VII - O tribunal deve recorrer à equidade desde que se mostrem reunidos os pressupostos previstos neste artigo e com ela se consiga o equilíbrio justo e adequado na protecção dos interesses da vítima que deve ter em linha de conta, já que visa a sua protecção, sem por em causa a subsistência da arguida inimputável.

Decisão Texto Integral:


Processo comum com intervenção do tribunal singularda Comarca de COIMBRA- Instância Local de Montemor-o-Velho–Secção de Competência Genérica – Juiz 1.


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Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório

No processo supra identificado foi deduzida acusação contra a arguida, A... , solteira, sem profissão, nascida em 31/7/1985, natural da freguesia da (...) , Coimbra, filha de (...) e de (...) , residente na (...) , Montemor-o-Velho, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. respectivamente, pelos artigos. 143.º n.º1 e 191.º, ambos do Código Penal (CP).


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A assistente B... deduziu ainda acusação contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, n.º, 1. do CP.

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A assistente deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, pedindo a condenação da mesma a pagar-lhe a quantia de € 2.999,77, acrescida de juros de mora á taxa legal, contados desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência da conduta da arguida.

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O CHUC, EPE, deduziu pedido de reembolso contra a arguida, pedindo a condenação da mesma a pagar-lhe a quantia de € 117,07, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

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A arguida apresentou contestação escrita oferecendo o merecimento dos autos, e alegando que sofre de esquizofrenia, doença que lhe provoca descompensações súbitas e inesperadas, as quais estão na origem de alguns episódios mais violentos, e pediu a sua absolvição quanto aos pedidos de indemnização civil, alegando para tanto que não cometeu os crimes de que vem acusada.

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Ao abrigo do disposto nos arts. 159.º e 160.º do Código de Processo Penal (CPP), foi determinada a realização de perícia médico-legal psiquiátrica e sobre a personalidade da arguida, com vista à avaliação da sua personalidade, perigosidade, grau de socialização, inimputabilidade ou grau de imputabilidade.

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O tribunal decidiu:

1. Ao abrigo do disposto no artigo 20.º, do CP, declarar a arguida inimputável, em razão de anomalia psíquica.

2. Ao abrigo do disposto nos artigos 40.º, 91.º, n.º 1, e 98.º, nºs 1, 3 e 4 do Código Penal, impor à arguida a medida de internamento por um período mínimo de um ano, suspensa na sua execução, mediante as seguintes regras de conduta:

a) Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar as consultas com a periodicidade que lhe for exigida, seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados.

b) Aceitar a “vigilância tutelar” e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for ordenado.

3. Julgar improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente contra a arguida e, consequentemente, absolveu a mesma do pedido.

4. Julgar improcedente o pedido de reembolso deduzido pelo CHUC- EPE, contra a arguida e, consequentemente, absolveu a mesma do pedido.


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Inconformada recorreu a assistente B... , o qual pugna pela modificação da sentença recorrida, devendo ser substituída por outra que determine o cumprimento da medida de internamento sentenciada, bem como julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela recorrente, a qual formula, as seguintes conclusões:

«1.º - O Tribunal de primeira instância proferiu sentença decidindo declarar a arguida inimputável, impondo-lhe a medida de internamento por um período mínimo de um ano, suspensa na sua- execução, absolvendo-a do pedido de indemnização civil deduzido pelaassistente.

2.° - Não pode contudo a assistente B... conformar-se com a douta decisão proferida, quer pela suspensão da execução da medida de internamento, quer pela absolvição do pedido de indemnização civil.

3.° - No que se refere ao internamento da arguida, a medida foi-lhe imposta por um período mínimo de um ano.

4.º - Porém, tal medida foi suspensa na sua execução.

5.º - Com o devido respeito, e salvo melhor opinião, tal suspensão não deveria ter ocorrido.

6.º - Conclui-se na fundamentação da douta sentença pela perigosidade da arguida, em virtude da mesma ser pessoa de quem se espera, se nada for feito e dadas as características da sua doença mental, o cometimento no futuro, de outros factos ilícito-típicos da mesma espécie ou natureza.

7.º - No mesmo sentido, na avaliação clínica e parecer psiquiátrico-forense constantes no relatório de perícia psiquiátrica médico-legal, é recomendado que se recorra se necessário numa primeira fase ao seu internamento, visando influenciar positivamente o prognóstico do caso e, igualmente, prevenir o seu eventual envolvimento em outros ilícitos típicos, isto porque a arguida padece de doença bipolar, e quer em fase maníaca quer em fase depressiva, isto é, em fase de descompensação, está incapacitada de perceber o alcance dos seus actos e de se determinar.

8.º - Ora, a existência de um conflito latente com a assistente B... , sendo esta sua vizinha e com quem inevitavelmente se irá cruzar amiúde, poderá levar a arguida, em fase de descompensação, a praticar acções violentas como as que se julgaram nos autos, a que de resto já esteve em vias de se concretizar, pese embora tal factualidade não conste dos autos.

9.º - A suspensão da execução da medida de internamento só pode ter lugar se for razoavelmente de esperar que através dela se alcança a finalidade da protecção de bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade e eliminação da sua perigosidade.

10.º - No caso vertente, salvo melhor opinião está em crer a assistente que a mera pendência do processo não é suficiente para levar a arguida a modificar a sua atitude, abstendo-se de praticar novos actos ilícitos e aceitar ser tratada, que a liberte da perigosidade eminente que oferece para a assistente, atento o referido na perícia médico-legal que recomenda o internamento numa fase inicial, motivo porque pugna pela execução da condenação, ao invés da sua suspensão.

11.º - Assim, salvo o devido respeito, não se verificam no caso dos autos quaisquer circunstâncias de que se possa concluir que através da suspensão da execução da medida de internamento possam alcançar-se as finalidades desta.

12.º - Pelo que, ao decretar tal suspensão, a douta decisão ora recorrida violou o disposto no artigo 98.º, n.º 1, do Código Penal.

13.º - Quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, foi o mesmo julgado improcedente, sendo a arguida absolvida do pedido.

14.º - Também aqui, e com o devido respeito, a decisão deveria ter sido de sentido inverso.

15.º - Com efeito, resultou provado que a arguida praticou os factos pelos quais vinha acusada, pois com o seu comportamento preencheu a tipicidade objectiva dos crimes de ofensas à integridade física simples, de introdução em lugar vedado ao público, e de injúria, previsto e punidos, respectivamente, pelos artigos 143.° n.º 1, 191.º, e 181.º, n.º l, todos do Código Penal.

16.º - Conforme exarado na sentença do Tribunal a quo, verifica-se a ocorrência dos pressupostos do dever de indemnizar: acto ilícito praticado pela arguida e nexo de casualidade adequada entre o facto ilícito e o dano.

17.º - Não existindo ninguém que estivesse obrigado à vigilância tutelar da arguida que pudesse ser responsabilizado pelo prejuízo causado à ora recorrente, verificou o Tribunal a quo se teria a assistente direito a indemnização com base no critério da equidade previsto no art.489.°, do Código Civil.

18.º - E entendeu que não, por concluir que resultou provado que a arguida não tem bens nem rendimentos, e que as condutas da mesma não são particularmente graves.

19.º - Ora, salvo o devido respeito, não pode a arguida partilhar deste entendimento.

20.º - Entre as razões de equidade avulta a necessidade do lesado e a possibilidade do inimputável, conforme assertivamente é afirmado na douta decisão ora recorrida, e que fundamenta o julgamento, pelas conclusões a que chega relativamente a essas duas questões.

21.º - Contudo, em nenhum dos pontos da matéria provada, se refere a não existência de bens titulados pela arguida, ou que a arbitragem de uma indemnização civil à ora requerente, privaria a pessoa não imputável dos alimentos necessários.

22.º - E não refere, o motivo do escrutínio de tais questões nunca haverem sido, conforme se infere da matéria provada, uma questão cujo mérito tivesse sido apreciado.

23.º - Aliás, pelo conhecimento dos autos, o que se pode concluir é por uma situação económica da ora requerente que merece apoios sociais, traduzida no apoio judiciário de que beneficiou, podendo igualmente beneficiar de outros, como o rendimento social de inserção.

24.º - Em termos doutrinários, cita o Tribunal a quo Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Vol. I, pág.557) quando nos ensina: porque o agente tenha bens por onde responder, porque o lesado tenha ficado em situação económica difícil situação económica, porque seja avultado o montante do prejuízo, porque seja particularmente grave a conduta do agente ou séria a violação cometida.

25.º - Em face de tal, entende a ora recorrente, que no caso sub judice, salvo melhor opinião, não se concluir dos autos quer a inexistência de bens por parte da arguida por onde responder, quer a situação económica em que ficou, a lesada.

26.º - Podemos sim concluir pela conduta particularmente grave da arguida, na medida em que os factos que praticou ofendem bens que estão sob tutela jurídica, constando do catálogo dos crimes.

27.º - E quanto ao montante do prejuízo, reputa-o a recorrente de avultado, na medida em que apenas a soma dos valores constante na matéria de facto, não considerando os danos não patrimoniais, ascende a valores que representam mais do que os seus rendimentos de um mês inteiro.

28.º - Ora, existindo contradição entre o que é dado como provado e o que é referido como fundamentação da douta decisão, salvo melhor e mais sabia opinião estamos perante uma insuficiência da matéria de facto, quer no que diz respeito às necessidades da arguida quer da assistente, para fundamentar a douta decisão proferida.

29.º - Estamos portanto perante uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al.) b, do Código de Processo Penal, o que vem a traduzir-se, salvo o devido respeito, numa violação do disposto no artigo 489.°, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil».


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Notificados os sujeitos processuais, nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, responderam a arguida e o Ministério Público.

A arguida, sustenta, em síntese, que o recurso não merece provimento, por não se justificar o internamento da arguida e não estarem reunidos os requisitos para a condenar no pedido de indemnização cível.

O Ministério Publico pronunciou-se no sentido de que se mostram reunidos os pressupostos para determinar a suspensão da execução do internamento sujeito às regras de conduta e obrigações impostas, podendo desta forma alcançar-se a finalidade pretendida.


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Nesta instância, os autos tiveram vista da Ex.ma Senhora Procuradora-geral Adjunta, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, a qual, emitiu douto parecer no sentido de que acompanhava integralmente a posição do Ministério Público na 1.ª instância.

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Notificados os sujeitos processuais para os termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP não houve respostas.

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Foi cumprido o art. 418.º, do CPP, e uma vez colhidos os vistos legais, indo os autos à conferência, cumpre decidir.

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Vejamos pois a factualidade apurada pelo tribunal:

Factos provados:

«1. No dia 30 de Abril de 2014, cerca das 19.00 horas, a arguida deslocou-se à residência da assistente B... , situa na (...), Montemor-o-Velho.

2. Ali chegada, a arguida abriu o portão de acesso ao pátio daquela residência e introduziu-se no seu interior, sem que para tanto tivesse obtido o consentimento dos seus donos.

3. Já no interior daquele pátio, a arguida dirigiu-se à assistente B... e dirigindo-se à mesma, de viva voz, por várias vezes chamou-lhe “puta”.

4. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida, colocou as duas mãos no pescoço da assistente e apertou-o.

5. Ato contínuo, a arguida desferiu vários murros na assistente, que a atingiram em várias partes do corpo.

6. Em consequência da conduta da arguida descrita em 4. e 5., a assistente sofreu as seguintes lesões:

Na Face:

- Equimose arroxeada na região bucal direita, medindo 1 cm de diâmetro.

- Equimose arroxeada na região pré-auricular esquerda, medindo 1 cm de eixo maior por 5 milímetros de eixo menor.

- Equimose arroxeada na região correspondente ao ramo ascendente da mandíbula à esquerda medindo 4 cm de eixo maior por 2cm de eixo menor.

No pescoço:

- Escoriação oblíqua ínfero-medialmente na face lateral esquerda, medindo 5 cm de comprimento;

No membro superior direito:

- Equimose arroxeada com orla amarelada no terço distal da face lateral do braço direito, medindo 3 cm de eixo maior por 1,5 cm de eixo menor;

- Pontuado hemorrágico no terço distal da face posterior do antebraço medindo 4cm de eixo maior por 1,5cm de eixo menor;

- Duas equimoses arroxeadas na metade medial do dorso da mão, a maior medindo 3,5 cm de diâmetro e a menor medindo 2,5cm de eixo maior por 7 milímetros de eixo menor;

No membro superior esquerdo:

- Várias equimoses arroxeadas na metade lateral da face dorsal da mão a maior medindo 4,5 cm de eixo maior por 2 cm de eixo menor e a menor medindo 5 milímetro de diâmetro.

7. As referidas lesões determinaram para a assistente um período de doença de 19 dias, com 9 dias de afectação da capacidade de trabalho geral.

8. Ao proferir a expressão supra referidas em 3., a arguida ofendeu a assistente na sua honra, consideração, bom nome e dignidade.

9. Ao actuar da forma supra descrita em 4. e 5., a arguida molestou o corpo e a saúde da assistente.

10. Em consequência da actuação da arguida supra descrita em 3., a assistente sentiu vergonha e vexame, e irritação.

11. Em consequência da conduta da arguida supra referida em 4. e 5., assistente deslocou-se aos CHUC, no dia 30.04.2013, onde foi clinicamente assistida e medicada.

12. Em consequência das condutas da arguida, a assistente deslocou-se aos CHUC, IML, posto médico da sua área de residência e posto da GNR de Montemor-o-Velho, a fim de efectuar consultas, exames médicos e prestar depoimento, e pagou taxas moderadoras.

13. Nessas deslocações, e taxas moderadoras, a arguida despendeu a quantia de € 78,65.

14. No período de doença, a assistente sofreu muitas dores, e mal estar físico.

15. Com a sua conduta a arguida estragou os óculos da assistente, de forma irrecuperável, tendo a mesma despendido na aquisição de uns novos, a quantia de € 298,67.

16. A arguida foi submetida a perícia psiquiátrica médico-legal em cujo relatório sob a epígrafe Avaliação Clínica e Parecer Psiquiátrico-Forense se exarou:

“… a examinada tem vindo a evidenciar sintomatologia da esfera afectiva/emocional compatível com o diagnóstico de Perturbação bipolar, actualmente em remissão, enquadrável na rubrica F31.7 da (…) CID 10 …

Um tal quadro psicopatológico (doença bipolar) corresponde em psiquiatria à noção de alterações cíclicas de humor e da vitalidade, em regra periódicas mas não previsíveis, quer no sentido depressivo com, entre outros sintomas, tristeza, abatimento, descrença em si próprio, autodepreciação e isolamento social, quer no sentido hipomaníaco/maníaco, com euforia, excitação psicomotora, ideias de grandiosidade, excesso de autoconfiança e alterações do sono, intercaladas por períodos, mais ou menos longos, de ausência de sintomas, com recuperação dos níveis de funcionamento normal pré-mórbido.

Quer em fase de mania, quer em fase de depressão e por motivos que se compreendem opostos, os indivíduos portadores deste tipo de patologia tendem a desvalorizar o significado e as consequências dos seus vínculos sociais, profissionais ou outros.

A examinada, à data da prática dos factos, aparentemente encontrava-se em fase maníaca da sua doença (com perda do juízo crítico – insight), com elação do humor, irritabilidade, aumento de energia com diminuição da necessidade de sono, não cumprindo, aliás, qualquer tratamento psicofarmacêutico, facto que do ponto de vista psiquiátrico-forense,justifica, plenamente, que se invoque a figura da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.

A examinada actualmente não apresenta sintomatologia maniforme, facto para o qual terá contribuído, certamente, o regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico (psicofarmacológico e psicoterapêutico), de que tem vindo a beneficiar e que importa recomendar (recorrendo se necessário numa primeira fase ao seu internamento), visando influenciar positivamente o prognóstico do caso e, igualmente, prevenir o seu eventual envolvimento em outros ilícitos típicos da mesma natureza ou gravidade dos que ora vem indiciada”.

17. Nas conclusões do referido relatório pericial, consigna-se:

“1. A examinada padece de uma Perturbação bipolar, actualmente em remissão (F31.7 da CID-10).

2.Do ponto de vista psiquiátrico-forense, um tal quadro psicopatológico em fase de descompensação maníaca à data da prática dos factos, justifica plenamente que se invoque a figura da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.

3.É recomendável que possa continuar a beneficiar de um regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico, visando influenciar positivamente o prognóstico do caso, bem como excluir a sua eventual perigosidade social”.

18. A arguida não exerce, nem nunca exerceu actividade profissional remunerada, sendo sustentada pelos pais, com quem reside.

19. A arguida não tem antecedentes criminais.


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Factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevo par a decisão e, nomeadamente que:

1. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de ofender a assistente na sua honra, consideração, bom nome e dignidade, com perfeito conhecimento e consciência da conotação negativa da expressão que lhe dirigiu.

2. A arguida agiu com o intuito assumido e levado a cabo de forma livre, voluntária e consciente, de molestar a assistente no seu corpo e saúde.

3. Ao entrar no pátio da residência da assistente sem o consentimento dos seus donos, agiu a arguida livre, voluntária e conscientemente.

4. A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

5. Em deslocações e transportes que efectuou por via da actuação da arguida, a assistente despendeu a quantia de € 122,50.

6. Em consultas médicas que efectuou por via da actuação da arguida, a assistente despendeu a quantia de € 75,00.


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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questões a decidir no âmbito da motivação do recurso:

a) Apreciar se deve ser determinado o cumprimento efectivo da medida de internamento.

b) Apreciar se a arguida deve ser condenada no pedido de indemnização civil formulado.

Apreciando:

a) Do cumprimento efectivo da medida de internamento.

A arguida A... , vinha acusada da prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 43.º n.º1, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, n.º, 1 todos do CP.

O Ministério Público acusou a arguida pelos três crimes acima mencionados, descrevendo os factos não só de ordem objectiva como subjectiva, tendo em vista a aplicação de uma pena.

A arguida submetida a primeiro interrogatório em 20706/2014 (fls. 43 e 44) declarou não querer prestar declarações, mas na mesma diligência também declarou não se opor à aplicação de pena em processo sumaríssimo e não se opor à desistência de queixa, tendo-lhe sido aplicada a meda de coacção de prestação de TIR (fls. 39).

A assistente opôs-se à suspensão provisória do processo e à tramitação na forma sumaríssima (fls. 63).

Porém, relativamente à responsabilidade criminal, depois de proferido despacho de recebimento da acusação, a arguida em contestação suscitou a sua inimputabilidade e alegando sofrer de “esquizofrenia”, faz apelo à “gravidade da situação clínica”, o que está na “origem de alguns episódios violentos”.

O tribunal a quo reage a tal contestação notificando-a para informar se os problemas de saúde a incapacitavam de avaliar a prática dos seus actos e de se determinar livremente e se assim pretendia invocar a sua inimputabilidade, conforme despacho de fls. 156.

A arguida responde pugnando pela sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída.

Na sequência o tribunal a quo ordena a perícia medico-legal psiquiátrica.

Decorreu a audiência de julgamento em 11/6/2015, que decorreu com produção normal da prova oferecida nos autos, sem incidentes a registar, na qual foram ouvidas em declarações a arguida e a assistente e tomado o depoimentos às quatro testemunhas da acusação e às quatro testemunhas de defesa, tendo sido suspensa por não ter sido junta a perícia medico-legal ordenada, conforme acta de fls. 199 a 214.

Uma vez junta a perícia medico-legal psiquiátrica de fls. 211 a 214 dos autos, consta da mesma que a arguida sofre de doença bipolar e que à data dos factos estava em fase maníaca da sua doença bipolar, concluindo pela inimputabilidade.

Concluída a audiência de julgamento em 2/7/2015 (fls. 216 e 217, com alegações veio a ser proferida sentença em 9/7/2015, conforme consta de fls. 220 a 227.

O tribunal a quo no dispositivo, relativamente à acusação limitou-se a declarar a arguida inimputável, nos termos do art. 20.º, do CP, em razão de anomalia psíquica, impondo-lhe ao abrigo do disposto nos artigos 40.º, 91.º, n.º 1, e 98.º, nºs 1, 3 e 4 do Código Penal, a medida de internamento por um período mínimo de um ano, suspensa na sua execução, mediante as seguintes regras de conduta:

a) Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar as consultas com a periodicidade que lhe for exigida, seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados.

b) Aceitar a “vigilância tutelar” e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for ordenado.

Em bom rigor o tribunal a quo, no dispositivo, deveria ter começado por absolver a arguida dos crimes que lhe são imputados e depois declarar a arguida inimputável.

A arguida vinha acusada da prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 43.º n.º1, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, n.º, 1 todos do CP.

O tribunal deu como não provados os elementos subjectivos dos referidos crimes, como consta dos factos 1 a 4, dados como não provados.

Ora, nos termos do art. 374.º, n.º 3, al. b), do CPP, a sentença deveria, relativamente à matéria da acusação submetida à apreciação do tribunal, conter a decisão absolutória.

A sentença que não contiver no dispositivo a menção obrigatória de condenação ou absolvição é nula, de acordo com o disposto no art. 379.º, n.º1, al. a), do CPP.

Porém, não constando a absolvição do dispositivo, cumpre-nos oficiosamente suprir tal nulidade, por força do art. 379.º, n.º 2, do CPP, cuja absolvição é uma mera decorrência da matéria de facto dada como provada.

Face à perícia psiquiátrica de fls. 211 a 214 a arguida foi considerada portadora de doença bipolar, a qual estava em fase maníaca daquela doença, o que a levou a não ter domínio dos factos que lhe são imputados na acusação e por isso declarada inimputável.

Não se discute neste segmento do recurso a inimputabilidade da arguida, nem a medida de internamento aplicada, mas apenas a suspensão.

Infirma o art. 91.º, n.º 1, do CP o seguinte:

«Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalias psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».

 São pressupostos de imposição da medida de segurança de internamento do agente declarado inimputável em virtude de anomalia psíquica:

a) a prática por parte do agente declarado inimputável de um facto ilícito típico grave;

b) a perigosidade criminal do agente.

É pacífico nos autos que a arguida praticou os três ilícitos típicos, é inimputável e praticou os factos em virtude da sua doença mental, pois provou-se que os ilícitos por ela perpetrados estão relacionados com a sua doença mental.

Uma vez verificada a inimputabilidade da arguida, o seu internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança depende exclusivamente de uma averiguação conclusiva no sentido de, em virtude da anomalia psíquica, haver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

No caso concreto da arguida, tendo em conta a perícia médico-legal dos autos de fls. 211 a 214, que não mereceu quaisquer reservas aos intervenientes processuais, transparece de forma notória que a mesma sofre de doença mental crónica, compatível com o diagnóstico de perturbação bipolar, enquadrável na rubrica F31.7 da CID 10, sendo que tal quadro psicopatológico (doença bipolar) corresponde em psiquiatria à noção de alterações cíclicas de humor e da vitalidade, em regra periódicas mas não previsíveis, quer no sentido depressivo com, entre outros sintomas, tristeza, abatimento, descrença em si próprio, autodepreciação e isolamento social, quer no sentido hipomaníaco/maníaco, com euforia, excitação psicomotora, ideias de grandiosidade, excesso de autoconfiança e alterações do sono, intercaladas por períodos, mais ou menos longos, de ausência de sintomas, com recuperação dos níveis de funcionamento normal pré-mórbido.

Porém, também se depreende da mesma perícia médico-legal que a arguida actualmente não apresenta sintomatologia maniforme, o que se deve ao facto de vir a ser acompanhada sob o ponto de vista médico-psiquiátrico (psicofarmacológico e psicoterapêutico), acompanhamento que deve ser dirigido tendo em conta a doença de que padece, o que vem acontecendo e que importa continuar, o que permite prevenir a prática de ilícitos típicos da mesma natureza.

Agora, importa também aferir se se justifica o internamento efectivo da arguida.

O tribunal a quo suspendeu a execução da medida de internamento, por entender que a mesma desempenha os fins que se pretendem alcançar, desde que a arguida se submeta a tratamento médico psiquiátrico, frequente as consultas com a periodicidade que lhe for exigida, seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados e ainda aceite a “vigilância tutelar” e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for ordenado.

Ora, a este respeito o art. 98.º, n.º 1, do CP, diz o seguinte:

«1 - O tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida.

2 - No caso previsto no n.º 2 do artigo 91.º, a suspensão só pode ter lugar verificadas as condições aí enunciadas.

3 - A decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados.

4 - O agente a quem for suspensa a execução do internamento é colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53.º e 54.º

(…)».

No caso dos autos cremos que foi bem ponderada a suspensão da medida de internamento, pois sendo a medida de segurança ou medida de internamento, uma privação da liberdade do arguido, o cumprimento efectivo, privando-o da convivência em sociedade, só deve ser decretado, como último recurso, á semelhança do que acontece com a pena de prisão, como resulta da leitura do art. 98.º, n.º 1, do CP.

Aliás, como bem anota Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2.ª Ed. UCE, pág. 335, em anotação ao artigo 94:

“A suspensão da execução da medida do internamento está para o inimputável, como a suspensão da execução da pena de prisão está para o imputável”.

O mesmo autor continua a desenvolver o mesmo sentido em anotação ao artigo 98, in ob. cit., pág. 340:

“A suspensão da execução do internamento pode ser determinada pelo tribunal de julgamento logo na sentença, constituindo uma verdadeira medida de segurança substitutiva da medida de internamento…

O critério para a suspensão da execução do internamento consiste na adequação da liberdade do internado com a necessidade de prevenção especial positiva e negativa do agente (nas palavras de Eduardo Correia, “o inimputável perigoso – e perigoso nos termos naturalmente do art. 123.º (actual artigo 91.º) - pode ser com êxito tratado através do regime ambulatório, sem ser dentro de estabelecimento fechado”.

A matéria relativa à aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade, isto é, uma medida de segurança não deve ser aplicada quando outras medidas menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente, conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, pág. 446.

Na aplicação de medida de segurança de internamento devemos ter também em conta os princípios da legalidade, da proporcionalidade, da igualdade e da jurisdicionalidade, quer na aplicação, quer na execução.

Nas palavras de Taipa de Carvalho, in Direito Penal, 2.ª Ed. Coimbra Editora, pág. 85”A medida de segurança de internamento constitui, obviamente, uma forte restrição do direito fundamental à liberdade, direito que merece a mesma protecção constitucional e jurídico-penal que é reconhecida ao imputável”.    

Concluímos deste modo que o tribunal de julgamento tem o poder-dever de suspender a medida de segurança de internamento se for razoavelmente de esperar que assim se atinge a finalidade pretendida, isto é, a protecção dos bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade, curado no que se refere à eliminação da perigosidade.   

Só atenta a gravidade dos factos cometidos e se as condições de vida do agente não forem de molde a antever uma evolução clínica positiva e inexistindo condições para poder ser acompanhado em regime ambulatório, a medida de interna­mento aplicada não será de suspender na sua execução - Ac. do TRC 23/1172011 – Proc. 88/10.6JAGRD.C1, in www.dgsi.pt/jtrc.

No caso dos autos, como resulta da perícia medico-psiquiátrica e da matéria de facto constante dos pontos 16 17, não se justifica o cumprimento efectivo da medida de segurança de internamento.

A arguida tem vindo a evidenciar sintomatologia da esfera afectiva/emocional compatível com o diagnóstico de perturbação bipolar, actualmente em remissão.

À data da prática dos factos, encontrava-se em fase maníaca da sua doença (com perda do juízo crítico – insight), com elação do humor, irritabilidade, aumento de energia com diminuição da necessidade de sono, não cumprindo, aliás, qualquer tratamento psicofarmacêutico, facto que do ponto de vista psiquiátrico-forense,justifica o estado de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.

À data da perícia não apresentava sintomatologia maniforme, devido ao regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico (psicofarmacológico e psicoterapêutico).

A própria perícia medico-psiquiátrica recomenda a continuação de regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico, visando influenciar positivamente o prognóstico do caso, bem como excluir a sua eventual perigosidade social.

Em última análise poderíamos questionar a legitimidade e interesse em agir da assistente para recorrer.

A legitimidade e interesse em agir não devem ser vistos de forma abstracta, mas em função do caso concreto em análise.

No caso dos autos somos de opinião que tal direito de recorrer da suspensão da medida de segurança, suspensa na sua execução, se atentarmos os interesses que se pretendem proteger com os crimes imputados na acusação pública e particular á arguida.

Se não vejamos.

À arguida são imputados os crimes de ofensa à integridade física simples, introdução em lugar vedado ao público, e de injúria, os dois primeiros de natureza semi-pública e o último de natureza particular, visando-se com a incriminação proteger a integridade física, a reserva da vida priva e a honra, no caso concreto, da ofendida B... , que para defender tais interesses lhe foi concedida a faculdade de se constituir como assistente.

Ora, de acordo com o disposto no art. 68.º, n.º 1, al. a), do CPP, podem constituir-se como assistentes no processo penal, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis espacialmente proteger com a incriminação.

E uma vez constituídos os ofendidos como assistentes cabe-lhes em especial interporem recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, conforme lhe confere o art. 69.º, n.º 2, al. c), do CPP.

Ora, a assistente teve papel activo nos autos, deduziu acusação pelo crime de natureza particular e acompanhou a acusação do Ministério Público relativamente aos crimes semi-públicos, aguardando como fim da justiça, a ressocialização da arguida e, sob o seu ponto de vista, a protecção dos valores que foram postos em causa pela sua conduta.

A arguida praticou os factos que objectivamente preenchem os elementos constitutivos dos tipos de ilícitos que lhe vinham imputados, isto é molestou fisicamente a ofendida, introduziu-se na sua casa sem o seu consentimento e ofendeu a sua honra e consideração.   

Em consequência da inimputabilidade da arguida, foi a mesma absolvida dos crimes e do pedido cível, tendo-lhe sido aplicada a medida de segurança de internamento, suspensa na sua execução, mediante a obrigação de se submetera tratamento médico psiquiátrico, com frequência de consultas com a periodicidade que lhe for exigida, seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados e aceitar a “vigilância tutelar” e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for ordenado.

A assistente viu não só o seu património diminuído, como não foi compensada pelos danos não patrimoniais sofridos.

Por outro lado, não lhe será indiferente a aplicação da medida de internamento, condições de cumprimento e suspensão da mesma, uma vez que a arguida dada a sua inimputabilidade poderá a vir praticar actos idênticos, pondo em causa novamente os mesmos valores violados.

A aplicação da medida de internamento tem em vista acautelar, proteger e curar a arguida, mas também proteger a sociedade e em concreto as vítimas visadas pelos inimputáveis, de acordo com a perigosidade.

E o perigo existe, dada a relação de vizinhança existente entre a arguida e assistente.

A medida de segurança de internamento só será adequada, quando proteger devidamente o inimputável e a vítima.

Por isso, não desconhecendo a discussão jurisprudencial, entendemos que assiste, no caso concreto, o direito da assistente, vítima de factos que objectivamente integram o tipo de ilícito de ofensa à integridade física, introdução de lugar vedado ao público e injúria, de recorrer da medida de internamento, designadamente da sua suspensão.

A assistente, enquanto ofendida dos crimes atrás referidos, tem por isso legitimidade para recorrer a fim de questionar a adequação da medida de internamento, dada a absolvição da arguida e a declaração de inimputabilidade, designadamente a sua suspensão, condicionada a obrigações por forma a controlar a sua perigosidade(Sobre legitimidade do assistente em recorrer da pena ou medida de segurança vejam-se o Ac. do STJ de 1/3/2006 – Proc. n.º 113/06-3.ª Secção e de 23/10/1997 – Proc. 96P807, in www.dgsi.pt/jstj e AUJ n.º 8/99 – DR 185, 1.ª Série, de 10/8/1999, que fixou jurisprudência de que o assistente tem legitimidade para recorrer “sempre que mostre em concreto um próprio interesse em agir”).

Face ao que deixamos exposto, concluímos mostrarem-se reunidos os requisitos legais para que, nos termos dos art. 40.º, 91.º, n.º 1, e 98.º, nºs 1, 3 e 4 do CP, o tribunal a quo tenha determinado a medida de segurança de internamento, suspensa na sua execução, mediante as regras de conduta impostas.


*

b) Da absolvição do pedido de indemnização civil

A assistente B... deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, pedindo a condenação da mesma a pagar-lhe a quantia de € 2.999,77, acrescida de juros de mora á taxa legal, contados desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência da conduta da arguida.

O pedido de indemnização civil foi deduzido com base na responsabilidade civil da arguida/demandada emergente de crime, ao abrigo do disposto no art. 129.º, do CP.

Aliás, segundo o princípio da adesão, o pedido de indemnização civil, fundado na prática de crime, deve ser deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, conforme dispõe o art. 71.º, do CPP.

Tanto a acusação como o pedido de indemnização civil foram formulados, com base na imputabilidade da arguida.

Quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pela assistente contra a arguida o tribunal decidiu julgá-lo improcedente, absolvendo a mesma do pedido.

Sustenta a assistente que tendo ficado provados os factos pelos quais a arguida vinha acusada, com o preenchimento da tipicidade objectiva dos crimes de ofensas à integridade física simples, de introdução em lugar vedado ao público, e de injúria, conforme exarado na sentença recorrida, verifica-se a ocorrência dos pressupostos do dever de indemnizar: acto ilícito praticado pela arguida e nexo de casualidade adequada entre o facto ilícito e o dano.

Não existindo ninguém que estivesse obrigado à vigilância tutelar da arguida de modo a poder ser responsabilizado pelos prejuízos causados à recorrente, o tribunal a quo ponderou se à assistente assistia o direito a indemnização com base no critério da equidade, ao abrigo do art. 489.°, do CC, tendo concluído pela negativa, com o fundamento de que resultou provado que a arguida não tem bens nem rendimentos, e que as condutas da mesma não são particularmente graves.

Diz a assistente que em nenhum dos pontos da matéria provada, se refere a não existência de bens titulados pela arguida, ou que a arbitragem de uma indemnização civil à ora requerente, privaria a pessoa não imputável dos alimentos necessários.

Em seu entende a sentença recorrida sofre de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al.) b, do CPP, o que se traduz em violação do disposto no artigo 489.°, n.º 1 e n.º 2, do CC.

Vejamos pois a situação dos autos, face à matéria de facto dada como provada.

Os factos 1 a 15 traduzem a conduta ilícita da arguida, os danos causados e o nexo causal entre a conduta ilícita e os danos.

Os factos 16 e 17 referem-se à inimputabilidade da arguida.

O facto 18 é o único que traduz a situação económica da arguida, do qual consta o seguinte:

«A arguida não exerce, nem nunca exerceu actividade profissional remunerada, sendo sustentada pelos pais, com quem reside».

Nos termos do art. 483.º, n.º 1, do CC, só é obrigado a indemnizar pelos danos causados aquele que agir com dolo ou mera culpa.

A arguida, sendo inimputável, não pode em princípio responder pelos danos que causou com a sua actuação, conforme decorre do art. 488.º, do CC.

Porém, uma vez reunidos todos os pressupostos de ordem objectiva da responsabilidade civil - facto ilícito, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano - sendo a demandada inimputável, o tribunal, por motivos de equidade, pode condená-la a reparar, total ou parcialmente os danos, uma vez verificados os requisitos exigidos do art. 489.º do CC.

Dispõe o art. 489.º do CC o seguinte:

«1. Se o acto causador do dano tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivos de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância.

 2. A indemnização será, todavia calculada de forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos».

Em primeira linha a lei admite a possibilidade da pessoa inimputável seja condenada a indemnizar, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância, quando razões de equidade assim o imponham.

O inimputável pode ser responsabilizado pelos danos que causar, quando os factos objectivos sejam integradores de um tipo de ilícito, justificando a sua responsabilidade como medida de protecção do lesado e não na culpa do agente(Ac. do TRC de 24/9/2008 – Proc. 512/04.7TAACB.C1, in www.dgsi.pt/jtrc).

As razões de equidade residem na justificação de haver necessidade de proteger a vítima ou lesado dos danos sofridos, desde que tal não represente um sacrifício insuportável para o inimputável.

Nestes termos, devem fundamentar o recurso à equidade a necessidade do lesado e a possibilidade do inimputável.

Antunes Varela refere que a pessoa inimputável deve ser condenada a indemnizar total ou parcialmente o lesado, no caso de não ser possível obter a reparação por parte da pessoa a quem incumbe a vigilância invocando como razões para recorrer à equidade : «porque o agente tenha bens por onde responder, porque o lesado tenha ficado em difícil situação económica, porque seja acentuada a diferença de condição económica entre um e outro, porque seja avultado o montante do prejuízo, porque seja particularmente grave a conduta do agente, porque seja bastante séria a violação cometida» - Das Obrigações em Geral, 10.ª Ed., Vol. I, pág. 564 e 565).

No caso vertente verifica-se a ocorrência dos seguintes pressupostos gerais do dever de indemnizar da arguida enquanto inimputável: facto ilícito praticado pela demandada; facto que causou danos à demandante; facto praticado em condições de ser considerado culposo, reprovável, se nas mesmas condições tivesse sido praticado por pessoas imputável; nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e o dano; reparação do dano não pode ser obtida do vigilante do inimputável.

Porém, há um último requisito que importa verificar, isto é, que a equidade justifique a responsabilidade total ou parcial da arguida, em face das circunstâncias concretas do caso, previsto no art. 489.º, n.º 2, do CC.

A este respeito devemos dizer que a obrigação de indemnizar deve ser fixada em termos de não privar o inimputável dos meios necessários aos seus alimentos ou ao cumprimento dos seus deveres legais de alimentos.

Na sentença recorrida, após ter ponderado a aplicação da equidade, esta foi afastada, com a seguinte argumentação na fundamentação jurídica:

«Com efeito, e desde logo, resulta provado que a arguida não tem bens, nem rendimentos, não exercendo, nem nunca tendo exercido qualquer actividade profissional remunerada, sendo sustentada por seus pais com quem reside».

Ora, não é rigorosa tal afirmação, pois a matéria de facto provada, consta apenas o seguinte:

«(…)

18. A arguida não exerce, nem nunca exerceu actividade profissional remunerada, sendo sustentada pelos pais, com quem reside.

(…)».

O tribunal a quo apenas apurou a arguida não exerce, nem nunca exerceu actividade profissional remunerada, sendo sustentada pelos pais, com quem reside.

Que não tem bens ou rendimentos não consta da matéria de facto.

 A arguida pode não exercer qualquer actividade e ser sustentada pelos pais, mas pode muito bem ter bens ou rendimentos.

Por outro lado nada se diz quanto à situação económica da assistente.

Só poderemos tomar uma posição rigorosa sobre a equidade, quando ficarem apuradas nos autos a situação económica da ofendida e da arguida.

Se atendermos às razões do funcionamento deste instituto não será justo não proteger os interesses da ofendida, não lhe atribuindo qualquer indemnização se por ventura a arguida tiver bens por onde pagar.

Por outro lado, apuraram-se os danos causados, sobre os quais só podemos fazer um juízo de grandeza, verificada a condição social e económica da ofendida.

Umas centenas de euros podem ser insignificantes, mas podem bem ser um prejuízo razoável, tudo dependendo da condição da ofendida e a sua capacidade de aquisição de bens ou rendimentos.

Porém, nada se sabe sobre a situação da ofendida.

Os factos praticados são de considerável gravidade, pois a arguida deslocou-se à residência da assistente B... , abriu o portão de acesso ao pátio daquela residência, sem autorização e introduziu-se no seu interior. Já no interior daquele pátio, dirigiu-se à assistente chamando-lhe várias vezes “puta”, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos e em ato contínuo, desferiu-lhe vários murros, atingindo-a em várias partes do corpo (factos 1 a 5 provados).

Por outro lado, também se infere da matéria de facto e designadamente do relatório de perícia do dano corporal a ofendida sofreu sequelas consideráveis resultantes da agressão de que foi alvo, pois apresentava traumatismo de natureza contundente, um período de doença de 19 dias, com 9 dias de incapacidade geral para o trabalho com alguns vestígios cicatriciais (factos 6 e 7 provados).

Os danos não patrimoniais sofridos pela lesada demandante assumem relevo que importa considerar e que nos termos do art. 496.º, nº. 2, do CC, se traduzem eventualmente num valor considerável face aos critérios ali apontados (factos 6 a 12 e 14).

Por outro lado os danos patrimoniais foram apurados nos montantes de 78,65€ e 298,67€ (factos 13 e 15).

Não podemos concluir como se fez na sentença recorrida que a assistente não ficou, em consequência da conduta da arguida, em difícil situação económica e que a conduta da arguida não são se mostra grave de modo a afastar a indemnização, pois importa averiguar factos no sentido de apurar se se mostra verificada ou não a especial exigência da reparação do dano e recorrer à equidade, para condenar a arguida, inimputável, em indemnização a favor da demandante.

Porquanto deixamos exposto a sentença recorrida não sofre em bom rigor de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, mas antes do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

Estamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando há factos importantes para a decisão que ficaram por apurar e que eventualmente poderão implicar alteração da decisão ou os factos dados como assentes, por insuficientes, não permitem a decisão proferida.

É nisto que se traduz, em palavras simples, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.410.º, n.º 2, al. a) do CPP.

 Resulta do art. 339.º, n.º 4, do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe assim se houver omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre aqueles factos e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento nos termos constantes na decisão.

Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo” através dos meios de prova disponíveis, apreciados de forma crítica e segundos os princípios da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, seriam dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2.ª Ed., pág. 737 a 739.

Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição – Cfr. entre outros os Acórdãos do STJ de 6/4/2000, in BMJ n.º 496, pág. 169 e de 13/1/1999, in BMJ n.º 483, pág. 49.

No caso dos autos importa averiguar a situação económica da arguida (designadamente se tem bens para pagar a indemnização), bem como a situação económica da assistente, de modo o tribunal poder formular um juízo adequado para concluir se deve ou não atender ao pedido de indemnização formulado nos autos, recorrendo à equidade, nos termos do art. 489.°, n.º 1 e n.º 2, do CC.

O tribunal deve recorrer à equidade desde que se mostrem reunidos os pressupostos previstos neste artigo e com ela se consiga o equilíbrio justo e adequado na protecção dos interesses da vítima que deve ter em linha de conta, já que visa a sua protecção, sem por em causa a subsistência da arguida inimputável.

Em conclusão diremos que a sentença recorrida sofre do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, por o tribunal a quo, não ter averiguada e levar à matéria de facto dada como provada a situação económica e social da arguida, designadamente se tem bens próprios, bem como a situação económica da assistente, de forma a apurar se se justifica ou não o recurso à equidade.


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III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4.ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

a)Suprindo oficiosamente a nulidade da sentença, prevista nos art. 374.º, n.º 3, al. b) e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, absolve-se a arguida de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 43.º n.º1, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, n.º, 1 todos do CP.

b) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela assistente, por a sentença recorrida sofrer de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, e, em consequência se ordena o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP, restrito ao apuramento da situação económica da arguida e da ofendida e decidir em conformidade se estão ou não reunidos os pressupostos para atribuir indemnização à assistente com recurso à equidade.

c)O reenvio do processo para novo julgamento não prejudica a produção de efeitos quanto à medida de internamento aplicada à arguida A... nos termos decididos na sentença recorrida e confirmada no presente recurso, devendo para tal, se necessário extrair-se traslado, para dar cumprimento à mesma.


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Custas pela assistente, nos termos do art. 515.º, n.º 1, al. b), do CPP, cuja taxa de justiça se fixa em 2 UCS, sem embargo do apoio judiciário.

                                                            *

NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP.

Coimbra,20 de Abril de 2016



(Inácio Monteiro - relator)


(Alice Santos - adjunta)