Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1579/15.8T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
EMPRESA MUNICIPAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 212 CRP, 92 CPC, 4 ETAF, 2 CPTA, LEI Nº 62/2013 DE 26/8, 1154 CC
Sumário: Estando em causa a responsabilidade contratual, decorrente de um contrato de prestação de serviços, sujeito às regras do direito privado, entre uma empresa municipal, sociedade anónima, pessoa colectiva de direito privado, e identificados médicos, que actuavam autonomamente, por cessação daquele sem aviso prévio, a competência para o seu julgamento pertence aos tribunais judiciais e não aos administrativos.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

O Município de São Pedro do Sul, 2º Réu nos autos, vem interpor recurso do despacho que julgou materialmente competente o tribunal e apresenta as seguintes conclusões:

1. Os autores invocam, como causa de pedir, a deliberação camarária proferida em 8 de abril de 2014, que consideram ilegal por violacão do artigo 55 do decreto 15401, de 20 de abril de 1928, por ter posto fim ao contrato de prestacao de servicos medicos, originando danos que pretende ver ressarcidos e que peticionam a final.

2. Sendo pressuposto da responsabilidade civil extra contratual a ilicitude derivada daquela deliberacao, o tribunal judicial nao tem competencia para conhecer daquela ilegalidade, anulando-a ou declarando a sua nulidade, por tal competencia estar deferida aos tribunais administrativos nos termos do artigo 4, n. 1 alinea b) do ETAF e artigo 2 n. 2 alinea d) do CPTA, ainda que usasse da faculdade prevista no artigo 92.o do CPC.

3. E a admitir-se a existencia, como alegam os autores na P.I., de um contrato de prestacao de servicos medicos cujo regime substantivo está regulado por aquele decreto 15410 e pelo D.L. 142/2004, de 11 de junho, entao as questoes relativas a sua execucao, como seja a sua cessacao, estao submetidas a jurisdicao administrativa como decorre dos artigos 1, n.1 e 4, n. 1 alinea f), ambos do ETAF e, consequentemente, sao os tribunais administrativos os competentes para julgarem a presente causa, sem prejuizo da competencia dos tribunais judiciais para conhecerem da causa de pedir e do pedido contra a co-re Termalistur.

4. O douto Despacho recorrido, por ter entendimento diverso ao considerar os tribunais judiciais competentes, fez incorreta aplicacao da lei e do direito, violando aquelas normas juridicas.


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            Os autores contra-alegaram, defendendo a correção da decisão recorrida.

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                A questão a decidir é a de saber se o Tribunal Judicial é incompetente para conhecer das questões levantadas pelos Autores.

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Não foram destacados os factos provados.

Os factos a considerar são os resultantes do teor da petição e analisados infra.


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A competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal, como medida da jurisdição a si atribuída.

            Cabe às leis de orgânica judiciária definir a divisão jurisdicional do território português e estabelecer as linhas gerais da organização e da competência dos tribunais do Estado, em conformidade com a Constituição da República.

            A incompetência decorre da circunstância dos critérios legais não concederem a certo tribunal a medida de jurisdição suficiente para a apreciação da questão que lhe é colocada.

O art.40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.8 determina, residualmente, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

            É pacífico o entendimento de que a competência se determina em função da ação proposta, tanto na vertente objetiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjetiva, respeitante às partes (acórdãos do Tribunal de Conflitos em www.dgsi.pt), importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.

            A Constituição da República Portuguesa dispõe no seu art.212º, nº3:
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.”

           

A lei não define o conceito de relação jurídica administrativa.

            A jurisprudência vem-no destacando:

            “Uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.” (Acórdão do T. de Conflitos, de 20.9.2012, processo 07/12, em www.dgsi.pt.)

Mais concretamente, a Recorrente invoca a competência dos Tribunais Administrativos, delimitada pelo que dispõe o art.4°, nº1, alíneas b) e f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos das quais é atribuída competência àqueles Tribunais para a seguinte apreciação:

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

            Apesar da Recorrente chegar ainda a invocar uma responsabilidade extra contratual, que veremos ser errada, apenas a referência à alínea f) poderá estar correta, por estar em causa uma responsabilidade contratual.

            Este preceito confere à jurisdição administrativa a competência para apreciar questões relativas a contratos:
a) Administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspectos de natureza substantiva);
b) Contratos atípicos com objeto passível de ato administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados

através da prática, pela entidade pública contratante, de um ato administrativo unilateral);
c) Contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público. (Ver Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, pág.38 e seguintes).

É fundamental agora discutir a natureza do contrato e da causa que nos são apresentados.

Os Autores, médicos, intentam a ação contra T (…), Empresa Municipal, Sociedade Anónima, e o Munícipio de São Pedro do Sul, pedindo o valor correspondente a 6 meses de honorários e aos danos morais, alegando que a 1ª Ré, em 30.4.2014, cessou abruptamente (sem aviso prévio) a relação que vinham mantendo há vários anos, no âmbito da qual aqueles prestavam cuidados médicos aos utentes das Termas de São Pedro do Sul.

Os Autores alegam que a decisão de cessação é da 1ª Ré, a pessoa que ocupa a posição correspondente no contrato que os vinculava e geria e explorava aquelas termas.

Eles alegam que a 2ª Ré tem o domínio total da 1ª Ré, tendo emitido uma deliberação sobre aquela cessação, que suporta a decisão da 1ª Ré, invocando, para a responsabilização da 2ª Ré, o disposto nos arts.491º e 501º do Código das Sociedades Comerciais.

Sendo assim, os factos essenciais alegados são o contrato (de prestação de serviços – art.1154º do Código Civil), nele estando os Autores e a 1ª Ré, a cessação deste sem aviso prévio desta e os danos decorrentes desta falta; no que respeita à 2ª Ré, a sua responsabilização decorre de ter o domínio total sobre a 1ª Ré, no âmbito dos arts. 491º e 501 do Código das Sociedades Comerciais

Ao contrário do que defende o Recorrente, a causa de pedir na ação não é a deliberação tomada pela Câmara Municipal de S. Pedro do Sul; não é ela quem dá por findo o contrato, não sendo essencial discutir a ilegalidade daquela, sendo certo que os Autores não põem em causa a validade desta deliberação.

Por sua vez, o pedido é relativo aos danos patrimoniais respeitantes aos meses em que deveria ter decorrido o aviso prévio e aos danos morais respeitantes ao  sofrimento causado pela cessação naqueles termos de uma relação duradoura, com uma imagem relevante nas Termas e nos utentes.

Este pedido não decorre da pretensa ilegalidade da deliberação da 2ª Ré.

A responsabilidade invocada da 1ª Ré é contratual.

O contrato em questão, conforme os arts.9º, nº2 e 10º, nº4, do DL 142/2004, de 11.6, invocado pelos Autores, rege-se pelas regras do direito privado. (“O director clínico é contratado e exerce as suas funções sujeito às regras do direito privado, sem prejuízo da sua autonomia técnica.” ; “A relação contratual entre o titular do estabelecimento termal, os médicos hidrologistas e os médicos de outras especialidades rege-se pelas regras do direito privado.”)

A responsabilidade do Município decorrerá da solidariedade decorrente do seu domínio total sobre a empresa municipal, no âmbito alegado dos arts. arts.491º e 501º do Código das Sociedades Comerciais. No contexto, este domínio social não é um exercício de autoridade pública sobre os Autores mas mera gestão da empresa municipal.

Em conclusão, temos um contrato sujeito às regras do direito privado, estabelecido entre médicos e uma pessoa coletiva de direito privado, para a prestação de cuidados médicos nas termas, discutindo-se a responsabilidade contratual, sendo a responsabilidade do Município apenas decorrente de ter o domínio total daquela empresa.

Não temos, portanto, uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público.

A competência para a julgar pertence ao tribunal judicial, como decidido.

Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo Recorrente.

Coimbra, 2016-04-20

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

António Carvalho Martins

Carlos Moreira