Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1058/09.2TBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: BENFEITORIA
ACESSÃO
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS COMUNS
Data do Acordão: 10/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.216, 1273, 1316, 1317, 1325, 1724, 1726, 1733 CC
Sumário: 1.- Todas as benfeitorias são despesas, feitas para conservar ou melhorar uma coisa (benfeitorias necessárias ou úteis) ou apenas para recreio do benfeitorizante (benfeitorias voluptuárias).

2. - Tendo os cônjuges, enquanto casados sob o regime de comunhão de adquiridos, construído uma moradia num terreno pertencente ao património próprio de um deles, essa construção constitui uma benfeitoria útil e não pode basear a aquisição da propriedade do prédio por acessão a favor do casal.

3.- As benfeitorias, pelo menos algumas delas, como essa construção de moradia, podem ser encaradas sob a perspectiva de coisas e sob a perspectiva de despesas.

4. - O valor das despesas materiais feitas pelo casal com a dita construção da moradia é um bem comum do casal, nos termos dos artigos 1724º al. b) e 1733º/2 do Código Civil.

5. - Esse valor deve ser relacionado como crédito do património comum do casal.

6. - O prédio urbano resultante da construção da moradia no terreno pertencente a um dos cônjuges não integra os bens adquiridos a que se refere o artigo 1724º do CC e não é bem comum do casal.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTA RELAÇÃO DE COIMBRA O SEGUINTE:

I – Relatório:
Em inventário subsequente ao divórcio e no qual são interessados os ex-cônjuges H (…) e A (…) (sendo este o cabeça de casal), este veio apresentar o requerimento de 17.11.09 dizendo que os únicos bens comuns são móveis e já foram partilhados extraprocessualmente, pelo que não há lugar a inventário.
Em resposta, a interessada H (…) veio dizer a fls. 63 e 64 que, além do mais, faltou relacionar o prédio urbano que identificou. Alegou, designadamente, que foi construída uma casa durante o casamento, mediante empréstimo contraído por ambos os cônjuges, em prédio rústico que fora doado ao cabeça de casal pelos pais dele, tendo a construção da casa de habitação terminado em finais de 1998 e sido inscrita na matriz em 12.01.1999 e tendo sido o armazém construído posteriormente mediante novo empréstimo bancário ao ex-casal. Concluiu que deve o referido imóvel ser relacionado como bem comum e que devem ainda ser relacionados como passivo os dois empréstimos.
Notificado, o cabeça-de-casal veio alegar que o imóvel não constitui um bem comum e, quando muito, corresponderá a benfeitorias feitas no prédio rústico inscrito na matriz sob o art. x...secção P, da freguesia da ..., que foi doado ao cabeça-de-casal no estado de solteiro pelos seus pais (…) cuja aquisição foi registada a seu favor em 19.05.1995 sob o nº y.../110570, inscrição G-3. O cabeça-de-casal aceita que foi contraído um empréstimo no qual figuram ambos como sujeitos passivos, mas refere que é ele quem tem assumido na íntegra o seu pagamento, e aceita também relacionar tal valor como passivo.
A interessada, através de requerimento, veio admitir que o prédio urbano identificou foi construído sobre um imóvel pertencente ao cabeça de casal, embora continue a pugnar pela sua inserção na relação de bens como bem comum, adquirido por acessão.
Foi essa questão decidida por despacho, que concluiu de direito: «sem prejuízo de à relação de bens deverem ser levadas as benfeitorias correspondentes a todas as obras realizadas no prédio, como um direito de crédito (embora descritas na sua materialidade e não apenas pelo seu valor), improcede nesta parte da reclamação de bens, quanto ao dever de relacionar o referido prédio urbano». Depois de no despacho de 05.07.2010 ter decidido que «Uma vez que a interessada reclamante não justificou a reclamação do seu relacionamento apenas neste momento, é a mesma condenada em 2 UCs de multa, nos termos do disposto no artigo 1348.º, n.º 6 do CPC», veio a 1ª instância, no despacho de 24 de Agosto de 2011, a respeito da mesma reclamação, condenar a reclamante novamente «em multa que se fixa em 2 UC».

Inconformada, veio a interessada recorrer de apelação, concluindo a sua alegação:
A.- A recorrente vem recorrer dos despachos proferidos pelo Tribunal a quo com a referência 1622983, nos termos e para os efeitos do artigo 691º, n.º2 alínea c) e m), do Código de Processo Civil,
B.- O recurso vem interposto da decisão que considerou que as construções edificadas sobre o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo x..., Secção P, correspondente hoje também à inscrição na matriz do artigo w..., é um bem próprio, pelo facto de a casa terem sido implantadas em terreno que era exclusivamente do cabeça de casal considerando-as benfeitorias efectuadas pelo casal; bem como da decisão que condenou pela segunda vez a apelante em 2 UC.
C.- Decidiu o tribunal a quo, que as construções edificadas sobre o prédio rústico composto por duas parcelas, uma de cultura arvense e outra de olival, com a área de 0.346000 ha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o nº. y.../110570 – freguesia de ..., Tomar, que adquiriu antes do casamento por doação, é um bem próprio, são benfeitorias efectuadas pelo ex-casal, pelo facto de a casa ter sido implantada em terreno que era exclusivamente do cabeça de casal.
D.- Salvo melhor opinião o Tribunal “a quo” não fez uma correcta interpretação da factualidade carreada já aos autos, tão pouco melhor enquadramento jurídico, senão vejamos…
E.- Com efeito se é certo que está provado que ambos os membros do casal contribuíram, quer pela contratação de financiamentos em comum, quer com a colaboração na execução de trabalhos ou de contratação de trabalhadores, não é menos certo que está indiscutivelmente assente que o prédio rústico onde foi construída a moradia e anexo era da exclusiva propriedade do cabeça de casal.
(As “conclusões” F a J limitam-se a transcrever os factos dados como provados e portanto não são verdadeiras conclusões, no sentido do artigo 685º-A/1 e 2 do CPC).
K.- Da factualidade que dispomos, podemos concluir com segurança que antes do casamento de ambos, apenas existia o prédio rústico pertença do cabeça de casal e em 12 de Janeiro de 1999, foi inscrito a casa de habitação, e a sua inscrição na matriz urbana sob o artigo w... da freguesia de ..., Tomar e não descrito na conservatória.
L.- Donde só pode concluir-se que o mesmo foi construído, por ambos, na constância do casamento em terreno próprio do recorrido. Importa saber se o prédio urbano construído pela recorrente e recorrido, na constância do casamento, com trabalho e financiamentos obtidos por ambos é um bem próprio do cônjuge que era dono do terreno ou é um bem comum.
M.- Para que a moradia fosse considerada bem próprio do recorrido, necessário se tornava que a mesma fosse considerada uma benfeitoria do pré-existente prédio rústico ou lhe adviesse por via da acessão, sendo que o art. 1340º do C.C. corresponde com alterações ao art 2306º do Código de 1867.
N.- Ora, critério distintivo deve fundar-se na finalidade e no regime jurídico de ambas as figuras: no caso de simples benfeitorias, atribui a lei ao autor delas um direito de levantamento (ius tollendi) ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada (CC, artº 1273º), não, porém, um direito de propriedade sobre a coisa, pois a benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa, conforme foi amplamente desenvolvido no corpo destas alegações.
O.- No caso de acessão, diversamente, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância, é feita, atribuindo, assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa.
P.- Do que acaba de referir-se podemos concluir com segurança que no caso não estamos nem perante uma situação de benfeitoria, nem de acessão.
Q.- Ademais, o próprio dono do terreno participou na construção e o cônjuge não proprietário não desconhecia que o prédio rústico onde estavam a construir a moradia pertencia ao outro cônjuge.
E a construção da moradia e anexo também não podem ser havidas como benfeitorias porquanto estas são apenas as obras ou intervenções que se destinam a conservar ou melhorar a coisa, no caso o prédio rústico e não já as que alteram a sua substância.
R.- Ora a construção duma moradia num prédio rústico, com posterior alteração da sua qualidade de prédio rústico para prédio urbano, altera a substância daquele e portanto não pode ser havida como benfeitoria (Menezes Leitão considerou "artificial" e "forçada" a qualificação da construção de uma casa como benfeitoria, in O Enriquecimento sem causa no Direito Civil –Cadernos de Ciência e Técnica nº 176 , p. 517, nota 68.), e como afirma Oliveira Ascensão (Direitos Reais, 4ª ed., 43), não há prédio urbano sem aderência a uma determinada porção de terreno.
S.- O prédio rústico após a implantação do prédio urbano, perde autonomia, uma vez que a sua função específica foi absorvida no novo conjunto.
T.- Com a construção da moradia o terreno deixou de ter existência jurídica autónoma, tendo ficado integrado no prédio urbano, entretanto constituído e inscrito como tal, passando o terreno e a edificação a formar uma unidade jurídica indivisível - cfr. art. 204º nº 2;
U.- Mas ainda que se qualificasse a construção da moradia como uma benfeitoria, nem assim a mesma poderia ser considerada como bem próprio do apelado porquanto como salienta Rita Lobo Xavier no estudo sobre As relações entre o Direito Comum e o direito matrimonial: «as benfeitorias realizadas em bens próprios de cônjuges casados no regime da comunhão de adquiridos devem ser qualificadas como bens comuns, por força do disposto no art.º 1733º n.º 2 do CC. Vejamos agora os factos à luz do direito matrimonial e em particular do regime jurídico da comunhão de adquiridos. De acordo com o artigo 1724.° do Código Civil, fazem parte da comunhão "o produto do trabalho dos cônjuges" e "os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados pela lei», já neste sentido salientam F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I., pp. 530 e 545.
V.- Aí se pode ler: "A lei reconheceu expressamente que o valor das benfeitorias úteis realizadas num imóvel próprio, em vez de se integrar no património próprio do cônjuge dono do prédio, é um valor do activo comum" (I. 530).
X.- Na página 527, estes Autores mencionam a situação em que um dos cônjuges realiza melhoramentos em terreno seu com bens que pertencem ao património comum; e aí se diz que "de acordo com a aplicação normal do artigo 1728º - que dispõe que, em geral, os bens adquiridos em virtude da titularidade de bens próprios são também próprios - a mais valia assim obtida pertencerá ao proprietário" mas que haverá que ter em conta o disposto no artigo 1733º, nº 2".
Z.- Ora, segundo esta norma, "a incomunicabilidade dos bens não abrange (...) o valor das benfeitorias úteis", pelo que parece certo que as benfeitorias úteis se comunicam.
AA.- Aliás, também PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA escrevem de forma inequívoca que "só não há comunicabilidade das benfeitorias úteis se elas forem efectuadas nos termos previstos pela alínea c) do artigo 1723º" (isto é, se forem observadas as formalidades exigidas para a sub-rogação de bens próprios nos regimes de comunhão) (cfr. Código Civil Anotado, Vol. IV, 2." edição, Coimbra Editora, p. 144, cfr. também ANTUNES VARELA, Direito da Família, cit., p. 462).
BB.-Como afirma Rita Xavier (ob cit. pag. 492), «é possível encarar a casa construída como um bem "adquirido" na constância do casamento.
CC.- O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os "ganhos" "alcançados" pelos cônjuges, todos os bens que "advierem" aos cônjuges durante o casamento que não sejam exceptuados pela lei.
DD.- Ou, nas palavras de ANTUNES VARELA (Direito da Família, vol. I, 5ª ed., Livraria Petrony, Lisboa, 1999, p. 453), fazem parte da comunhão os bens que os cônjuges "fizeram seus" na constância do casamento a título oneroso.
EE.- Assim a construção da moradia pelo casal formado por apelante e apelado, pode sem artificialismos ser integrada neste conceito de “adquirido”, na verdade a moradia e o anexo foram edificadas em terreno próprio do recorrido, cabeça de casal e actualmente constitui com o terreno uma individualidade jurídica distinta deste.
FF.- É um prédio urbano, onde o terreno deixou de ter individualidade própria, pelo que não pode pretender-se que o terreno mantém a qualidade de bem próprio e que a casa é bem comum.
GG.-Nos termos do disposto no art. 1726º, n° 1, do C. Civil, os "bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações".
HH.- Esta norma tem em vista evitar o imbróglio jurídico de um dado bem ou coisa poder, em parte, ser qualificado como comum e, em parte, como próprio de um dos cônjuges, atribuindo a tal bem uma natureza única correspondente à natureza da participação de maior valor nas entradas efectuadas para a aquisição ou construção desse bem.
II.- No caso dos autos, o terreno onde foi implantada a moradia era bem próprio do apelado, mas a moradia foi construída na pendência do casamento, sob o regime da comunhão de adquiridos, com trabalho e dinheiros comuns do casal (Art. 1724º do CC) e foram empregues na sua construção bens próprios e bens comuns.
JJ.- Não se sabe ao certo quanto custou a construção, apenas temos por referência o valor do empréstimo, mas sabe-se que o terreno foi doado – cfr. Escritura pública de doação - no entanto conforme caderneta predial, em 1989, ano em que foi determinado o valor patrimonial do terreno rústico do artigo x...da secção P e este era de 96.26€!
KK.- Actualmente a moradia, com o terreno onde está implantada, vale seguramente 125.000.00€ (cento e vinte cinco mil euros) e tem o valor patrimonial de 17.533,08 €.
LL.- Decorre daqui que a prestação dos bens comuns do casal é substancialmente superior à prestação dos bens próprios do apelado, na contribuição dada para a aquisição/construção da moradia, pelo que desse modo, e face o disposto no citado n° 1 do art. 1726º, ter-se-á de considerar a referida moradia, que hoje constitui um prédio urbano devidamente identificado e individualizado, como um bem comum.
MM.- A solução supra exposta é a que melhor corresponde às expectativas dos ex-cônjuges.
NN.- Deste modo impunha-se decidir que a moradia construída pelo ex-casal em terreno próprio do apelado e que hoje constituiu o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo w... não descrito na Conservatória do Registo Predial, é um bem comum do casal, pertence ao património conjugal, isto sem prejuízo da compensação que, por este património comum, é devida ao apelado pela deslocação patrimonial realizada com a entrada do seu bem próprio – o terreno onde foi implantada a moradia.
OO.- Porque assim não se decidiu a decisão proferida violou o disposto no artigo 1726.º do C. Civil.
PP.- Quanto à segunda questão, por despacho com a referência 1583649, datado de 05.07.2010, o Tribunal a quo proferiu despacho em que condenou a apelante em 2UC: “Uma vez que a interessada reclamante não justificou a reclamação do seu relacionamento apenas neste momento, é a mesma condenada em 2 UCs de multa, nos termos do disposto no artigo 1348.º, n.º 6 do CPC.”
QQ.- Sem qualquer outro requerimento posterior, por despacho com a referência 1622983, datado de 24 de Agosto de 2011, o Tribunal a quo, profere despacho novamente sobre a mesma matéria, dizendo para tanto o seguinte:“Fls. 63/64 […] Na parte em que a reclamante acusa a falta de novos bens, o requerimento configura uma nova reclamação de bens, a qual é admissível nos termos do art. 1348.º, n.º 6 do C.P.Civil. Porém, e uma vez que a reclamante não demonstrou que não pode efectuar tal reclamação no prazo previsto no n.º 1 do art. 1348.º do C.P.Civil, condena-se a reclamante em multa que se fixa em 2 UC.”
RR.- Ora a reclamação de fls. 63 e 64 já havia sido alvo de apreciação, termos em que a dupla tributação em custas é nula.
SS.- Deve dar-se provimento ao presente recurso e, por consequência, sempre com o devido respeito por mais douta opinião, devem as decisões objecto dos despachos recorridos ser revogados, com todas as consequências legais.
Foi entretanto proferido despacho Fls. 82 e ss onde se decidiu que:
…«na medida em que a reclamação apresentada a fls. 63-64 já havia sido objecto de apreciação (por despacho de 5 de Julho de 2010), a dupla condenação em multa é nula. Uma vez que ninguém poderá ser tributado ou multado duas vezes pelo mesmo acto, o despacho de 24 de Agosto de 2011, deverá ser considerado nulo e, consequentemente, revogado, nomeadamente na parte em que condenou a apelante em duas UC».

II- Objecto do recurso e questões a solucionar:
Resolvida desse modo a questão da nulidade por dupla tributação em multa, o objecto do recurso cinge-se à decisão de mérito proferida sobre a reclamação quanto à pretensão da interessada H (…) de ser levado à relação de bens, como bem comum a partilhar, o prédio urbano em causa.
A questão essencial a solucionar consiste em saber se esse prédio urbano deve ser relacionado como bem comum a partilhar, como pretende a apelante, ou se devem ser relacionadas «as benfeitorias correspondentes a todas as obras realizadas no prédio, como um direito de crédito (embora descritas na sua materialidade e não apenas pelo seu valor)», como decidiu a 1ª instância.
Note-se que do objecto do recurso não fazem parte quaisquer questões sobre outros bens (móveis) nem sobre dívidas passivas relativas a empréstimos.

III- Fundamentos:
Vêm provados os seguintes factos:
1- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, freguesia da ..., sob o n.º y.../110570, o prédio rústico “ ...” ou “ ...”, composto por terra de cultura arvense e olival, com a área de 3.640 m2, a confrontar a norte com caminho, a sul com ..., a nascente com ... e a poente com herdeiros de ..., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º x..., Secção P;
2- Encontra-se inscrita no referido registo pela ap. 08/020894 a aquisição do prédio supra descrito a favor de A (…) c. c. M (…) no regime de comunhão geral, por compra.
3- Encontra-se inscrita no referido registo pela ap. 13/190595 a aquisição do referido prédio a favor de A (…), por doação feita por A (…) c. c. M (…);
4- À data da doação do prédio referido em 8º, A (…) era solteiro;
5- H (…)  e A (…) contraíram entre si casamento civil sem convenção antenupcial em 18 de Março de 1996;
6- O casamento foi dissolvido por divórcio em 19 de Janeiro de 2009;
7- Em 7 de Fevereiro de 1997, H (…)  e A (…) contraíram um empréstimo bancário junto do Banco no valor de 12.000.000$00  (€59.855,75), com vista à construção da casa de habitação;
8- A construção da referida casa foi feita no prédio identificado em 1), e é composta de casa de habitação de rés-do-chão com quatro divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um corredor e uma varanda, com a superfície coberta de 177 m2, um armazém com a área de 104,45 m2 e logradouro com a área de 3.358,55 m2, sito na Rua ..., freguesia da ..., concelho de Tomar, que confronta a Norte com caminho, a sul com ..., a nascente com ... e a poente com Herdeiros de ..., inscrita na respectiva matriz sob o artigo w..., com o valor patrimonial de €17.533,08.

            De direito:
A. A questão essencial a solucionar, como dissemos, consiste em saber se esse prédio urbano deve ser relacionado como bem comum a partilhar, como pretende a apelante, ou se devem ser relacionadas «as benfeitorias correspondentes a todas as obras realizadas no prédio, como um direito de crédito (embora descritas na sua materialidade e não apenas pelo seu valor)», como decidiu a 1ª instância.
Recorde-se que, no caso, o terreno era bem próprio do ex-cônjuge cabeça de casal (por o ter adquirido antes do casamento, por doação que lhe fora feita por seus pais, e por o regime de bens do casamento ser o de comunhão de adquiridos). Nesse terreno e na vigência do casamento, o casal construiu uma casa de habitação, mediante a contracção, por ambos, de empréstimo bancário. O cabeça-de-casal e a apelante divorciaram-se posteriormente, em 19.01.2009.
No inventário subsequente, o cabeça-de-casal omitiu a apresentação de relação de bens, por entender não haver bens comuns a partilhar, mas a apelante respondeu, pretendendo que, além de outros bens comuns, devia ser relacionado o prédio urbano, com base em que o casal o adquirira por acessão industrial imobiliária.
A 1ª instância, para decidir se o prédio urbano era ou não bem comum do casal, ponderou se no caso haveria que considerar-se haver acessão ou simples benfeitoria, e concluiu que se tratava de benfeitoria e que não se tratava de bem comum, «sem prejuízo de à relação de bens deverem ser levadas as benfeitorias correspondentes a todas as obras realizadas no prédio, como um direito de crédito (embora descritas na sua materialidade e não apenas pelo seu valor)».
Afigura-se-nos, adiantando a solução, que a apelante não tem razão quanto à sua pretensão de se dever considerar o prédio urbano como bem comum do casal e que há um esclarecimento a aditar-se àquela decisão. O que se passa a justificar.

B. A apelante entende (conclusão P) que a construção da casa pelo casal no terreno do cabeça de casal não é uma benfeitoria nem o caso é de acessão, mas, a haver-se como benfeitoria, deve considerar-se bem comum do casal, seja por força do disposto no art.º 1733º n.º 2 do CC (conclusão U), onde se dispõe que «a incomunicabilidade dos bens não abrange (…) o valor das benfeitorias úteis», seja por força do disposto nos artigos 1724º, 1726º/1 e 1733º/2 do CC ([1]).
É claro que o terreno onde foi construída a moradia está excluído do conceito de benfeitoria: a haver benfeitoria, o terreno é que foi benfeitorizado e a benfeitoria consistirá na obra de construção da moradia (ou nas despesas gastas na construção) nele efectuada.

Por outro lado, parece evidente que o prédio urbano – o todo formado pelo terreno e pelo edifício implantado – só poderá ser considerado bem comum a partilhar desde que ele tenha sido adquirido na constância do matrimónio para o património comum do casal, aquisição essa cujo título candidato será primeiramente a acessão (que a interessada inicialmente invocava e entretanto deixou cair no recurso), sem prejuízo da ponderação de preceitos específicos sobre o regime de bens como versaremos abaixo.
Cabe-nos, pois, averiguar, antes do mais, se o caso suscita a aplicação do regime das benfeitorias ou do regime da acessão, sendo certo que «jus novit curia» (art. 664º do CPC) e tal é necessário para se decidir se o preceito do artigo 1733º/2 é aplicável, como a apelante pretende através das conclusões U) a FF), bem como para se decidir se por alguma dessas vias é bem comum do casal o prédio urbano resultante da construção custeada pelo casal e efectuada no terreno de propriedade do cabeça de casal.

C. Sobre benfeitorias e acessão industrial imobiliária:
No subtítulo “Das coisas”, preceitua o Código Civil no artigo 216.º:
1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.
2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias.
3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
O nº 1 é claro. Benfeitorias são despesas realizadas numa coisa.
Mas nem todas as despesas realizadas numa coisa são benfeitorias: só são benfeitorias desde que feitas para conservar ou melhorar a coisa (benfeitorias necessárias ou úteis) ou apenas para recreio do benfeitorizante (benfeitorias voluptuárias).
Quando melhorem a coisa, tais despesas aumentam-lhe o valor.
A construção de moradia pelo casal em terreno de um dos seus membros, se for uma benfeitoria, constitui uma benfeitoria útil, pois que melhora o terreno e não visa conservá-lo.
E nem todas as despesas relacionadas com uma coisa são benfeitorias: por exemplo, não o são os impostos, os juros ou amortizações ou as despesas de frutificação (que são encargos) ou os frutos ([2]). Só despesas materiais, feitas para conservar ou melhorar a coisa, podem considerar-se benfeitorias ([3]).
As despesas que se concretizem em actos materiais de obra na coisa beneficiada são, por força do artigo 216º citado, sempre benfeitorias – cf. Quirino Soares, in CJ/STJ 1996, tomo 1, pág. 13 (ponto 3.1). Benfeitoria é um facto material, uma despesa, a que a lei associa direitos ao autor das despesas desde que ele se encontre em determinadas posições jurídicas relativamente à coisa beneficiada (posse em nome próprio – art. 1273º ss, locação – art. 1046º, comodato – art. 1138º, usufruto – 1450º do CC) -- cf. Quirino Soares, ibidem, p. 14.
Mas essas situações ou relações jurídicas não esgotam as relações jurídicas possíveis previstas na lei, ao abrigo das quais as despesas ou melhoramentos da coisa são qualificáveis ou qualificadas como benfeitorias (vejam-se os artigos 2115º e 2177º no âmbito da relação jurídica sucessória, o artigo 1411º no âmbito da compropriedade e os artigos 1723º c) e 1733º/2 no âmbito da relação jurídica matrimonial).
O Código Civil regula, nos artigos 1273º a 1275º, os efeitos da posse, facultando ao possuidor que haja realizado benfeitorias na coisa possuída o direito à indemnização pelo valor daquelas, ou o direito ao seu levantamento (jus tollendi), ou sua perda sem qualquer direito, conforme a espécie de benfeitorias e conforme outros condicionalismos aí previstos ([4]).
Assim, quando haja direito à indemnização, atende-se ao valor das despesas em que as benfeitorias consistiram. Mas quando haja o direito ao levantamento da benfeitoria, o que se levanta não é a despesa efectuada mas sim a própria coisa benfeitorizante.
O mesmo vale por dizer que as benfeitorias, pelo menos algumas delas, podem ser encaradas sob a perspectiva de valor da despesa realizada (na conservação ou na melhoria ou no recreio) ou sob a perspectiva de coisa (coisa benfeitorizante) ([5]). Já a acessão é um modo de aquisição originária do direito de propriedade – artigos 1316º e 1317º al. d).
Por outro lado, a realização de uma obra num prédio, com incorporação de materiais, pode constituir uma benfeitoria, na medida em que implica uma despesa e lhe aumenta o valor (art. 216º/3), ou pode estar na base da aquisição por acessão, desde que se verifiquem os elementos do regime da acessão (regime que consta dos artigos 1325º a 1343º). Pode colocar-se então o problema de saber qual dos regimes deve ser aplicado.
Havendo benfeitoria feita numa coisa de outrem, nos termos dos artigos 1273º a 1275º o benfeitorizante terá o direito à indemnização pelo valor daquela, ou o direito ao seu levantamento (jus tollendi), ou perdê-la-á sem qualquer direito, conforme os casos. Já o dissemos. Mas não está afastada a hipótese de serem aplicáveis outros preceitos, com diferentes soluções jurídicas.
Se o benfeitorizante não tiver o direito de indemnização nem o de levantamento, o destino da coisa (quando a benfeitoria consista na aplicação de coisa numa outra coisa) será o de pertencer ao dono da coisa beneficiada, a não ser que alguma norma dite solução diferente. Aquela solução é aplicação, segundo alguns, do princípio acessorium sequitur principale ou, segundo outros, do princípio superficies solo cedit – o direito de propriedade absorve tudo o que, por acção natural ou humana, acresce ao seu primitivo objecto – o que acontece também, segundo alguns Autores, em certos tipos de acessão, vg no art. 1339º (assim, Quirino Soares, loc. cit, p. 16 e em Cadernos de Direito Privado nº 12, pág, 3 e segs).

D. «Dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia» -- noção dada pelo artigo 1325º.
E aqui convém fazer-se notar à apelante que quando haja, na base do regime da acessão, uma obra com aplicação de materiais de alguém em coisa alheia (vg, a construção de casa por alguém em terreno alheio sem relação jurídica entre esses sujeitos), a lei parte da consideração de duas coisas: uma coisa de alguém que se une ou incorpora noutra coisa que não é sua. O que a lei visa, no caso dos artigos 1340º e 1341º, é dar um destino unitário a essas duas coisas que passaram a formar um todo único (logo passando a formar uma só coisa) e atribuir a possibilidade de aquisição desse todo único ao dono dos materiais ou ao dono do terreno onde eles se incorporaram (ou até a possibilidade de destruição da coisa incorporada havendo má fé por parte do autor da obra).
Mas o artigo 1325º apenas dá uma noção geral e não esgota os elementos necessários para que haja aquisição por acessão.

E. No caso dos autos, a haver acessão, só poderia tratar-se de acessão industrial imobiliária, com referência aos art. 1340º ou 1341º.
Acerca de acessão industrial imobiliária, designadamente no caso em que a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora, por acção humana, outra coisa, de natureza imóvel, que lhe não pertencia, preceituam os artigos:
1340.º (Obras, sementeiras ou plantações feitas de boa fé em terreno alheio):
1. Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.
2. Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no nº 2 do artigo 1333.º.
3. Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação.
4. Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.
1341.º (Obras, sementeiras ou plantações feitas de má fé em terreno alheio):
Se a obra, sementeira ou plantação for feita de má fé, tem o dono do terreno o direito de exigir que seja desfeita e que o terreno seja restituído ao seu primitivo estado à custa do autor dela, ou, se o preferir, o direito de ficar com a obra, sementeira ou plantação pelo valor que for fixado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

O Prof. Antunes Varela elucida, na RLJ 125º/271 e seg. (nº 10), quais os elementos previsivos que compõem a modalidade de acessão retratada naquele art. 1340º:
1º- A incorporação (formação de um todo único pelo terreno e obra incorporada);
2º- A pertinência inicial dos materiais ao autor da incorporação;
3º- A natureza alheia do terreno em que é erguida a construção (ou lançada a sementeira ou feita a plantação.
4º- A boa fé do autor da incorporação.
Além disso, o artigo 1340º manda equacionar os valores económicos – o do terreno e o da obra (ou sementeira ou plantação) – para solucionar a questão de saber a quem deve ser atribuída a propriedade sobre o conjunto (terreno e obra incorporada): ou ao dono do terreno ou ao dono dos materiais. Logo, postergando o artigo 1340º a solução do princípio superficies solo cedit. Mas isso apenas no caso de o incorporador estar de boa fé.
É que se o incorporador estiver de má fé, a solução do artigo 1341º apenas confere direitos ao dono do terreno (entre eles e em alternativa o de fazer sua a coisa incorporada) e não confere qualquer direito ao autor da incorporação.
No caso, não restando dúvida de que com a construção da moradia houve incorporação e que os materiais incorporados foram custeados e pertenciam ao património comum do casal (1º e 2º requisitos), caberia pois indagar se o terreno era alheio ao casal (3º requisito) e se o casal estava de boa fé (4º requisito).
Todavia, não tem sentido averiguar da boa fé do casal, pois que não se pode afirmar que o casal desconhecia que o terreno era alheio ou que o casal foi autorizado por um membro do casal a edificar no terreno deste membro do casal.
Também não se pode legitimamente afirmar que o terreno era alheio ao casal, pois que o dono do terreno era membro do casal e ele foi co-autor da incorporação.
Logo, independentemente da dita equação dos valores económicos, o casal não pode ter adquirido o prédio urbano em causa, por acessão. O mesmo vale por dizer: o prédio urbano não é bem comum do casal com base na acessão.
Aliás, pode ainda dizer-se que a aquisição por acessão a favor do património comum do casal sempre ofenderia o princípio da imutabilidade do regime de bens (art. 1714º/1), em caso como este que não é exceptuado por lei, pois o caso não cabe nas excepções previstas nos nºs 2 e 3 desse artigo 1714º ou no artigo 1715º ou em qualquer outro. E ofenderia porque o terreno pertence ao património próprio do cabeça de casal, mas por virtude da suposta acessão transitaria para o património comum, desfalcando aquele. Adiante justificaremos que, também por força do regime de bens do casamento, o prédio urbano não pode ser considerado bem comum.

Há outro argumento jurídico, baseado no critério da existência ou inexistência de relação jurídica com a coisa beneficiada que vincule à pessoa a coisa beneficiada, para se optar pelo regime das benfeitorias ou pelo regime da acessão.
Na vigência do Código de Seabra predominava na doutrina e na jurisprudência a adopção do critério da inovação, com alteração da substância da coisa, acrescentando-a ou transformando-a, para se concluir pela aquisição por acessão, em detrimento do regime das benfeitorias.
Mesmo no âmbito do actual Código Civil tal entendimento tem, embora minoritariamente, sido defendido, como foi por exemplo no acórdão do STJ de 17.3.1998 (in RLJ 132º/246 ss). Em anotação, nessa Revista, A. Varela entendeu esse carácter inovatório como estando incluído na ideia de que as obras hão-de assumir o carácter de verdadeira incorporação no prédio e que esse requisito da incorporação «não é de modo nenhum incompatível com a inexistência jurídica do vínculo jurídico real ou pessoal do gozo prévio nesse prédio» (pág. 256).
A doutrina e a jurisprudência maioritárias têm defendido, na sequência da lição de P. Lima e A. Varela no CC Anotado, III, em anotação ao artigo 1340º, que só pode haver acessão quando as obras são feitas por quem não tinha uma relação jurídica com a coisa beneficiada, sendo aplicável o regime das benfeitorias quando tal relação exista ([6]).
Diz o acórdão do STJ de 8.2.1996, na CJ/STJ de 1996, tomo 1, pág. 80 ss: «Como vem decidindo este Supremo (cf. acórdão de 8.6.93 na CJ/STJ ano I, tomo 2, p. 146), para que ocorra o fenómeno da acessão industrial imobiliária no quadro da situação típica prevista no artigo 1340º, é necessária a exclusividade da actuação do terceiro, autor da obra, estando excluída no caso de comparticipação do proprietário do terreno, ou da pessoa relacionada juridicamente com o terreno» (pág. 81 – 2ª col.).
Seguindo esta orientação, não restam dúvidas de que a construção da moradia só pode considerar-se, no caso, como benfeitoria e não como base de aquisição por acessão. É que a obra foi feita com a comparticipação de ambos os cônjuges, um dos quais o dono do terreno, logo no âmbito da relação jurídica matrimonial.
Consequentemente, não se pode concluir que o casal tenha adquirido a propriedade do prédio por acessão e que, por essa via, o prédio seja bem comum.

F. A apelante defende que o prédio urbano deve ser considerado bem comum, nos termos do disposto no art. 1726º, n° 1, do C. Civil, porque adquirido em parte com o terreno (bem próprio do cabeça de casal) e em parte com trabalho e dinheiros comuns do casal e porque é esta última a mais valiosa das prestações.
Sabemos que os cônjuges eram casados sob o regime de comunhão de bens adquiridos e a moradia foi construída no terreno do cabeça-de-casal, na pendência do casamento, mediante empréstimo contraído por ambos os cônjuges.
Também é certo que o terreno pertence ao património próprio do cabeça-de-casal, por o ter levado para o casamento (art. 1722º/1 al. a) do CC). São considerados próprios dos cônjuges os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento, diz o preceito.
O invocado art. 1726º, nº 1, preceitua: «Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações».
Sucede que antes de se analisar este artigo devemos ter em atenção o disposto no artigo 1724.º (Bens integrados na comunhão), segundo o qual «Fazem parte da comunhão:
a) O produto do trabalho dos cônjuges;
b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei».
Diversamente do que a apelante inculca nas conclusões, onde invocou esse preceito, a al. a) refere-se aos proventos auferidos por trabalho dependente ou independente, que implique uma contrapartida ou remuneração ([7]). Tal não releva no caso presente.
A al. b) desse artigo, por sua vez, contextualizada perante os restantes preceitos aplicáveis à comunhão de adquiridos (entre os quais o art. 1733º/2), refere-se aos bens adquiridos pelos cônjuges durante o casamento, onerosamente, não exceptuados por lei ([8]).
Consideremos, pois, o disposto no artigo 1733º/2 também invocado nas conclusões da alegação quanto às benfeitorias úteis.
O artigo 1733º, depois de no nº 1 enumerar os bens que são (imperativamente) exceptuados da comunhão, preceitua no nº 2: «A incomunicabilidade dos bens não abrange os respectivos frutos nem o valor das benfeitorias úteis».
O preceituado nesse artigo, embora inserido sistematicamente no regime da comunhão geral de bens, é consensualmente considerado aplicável à comunhão de adquiridos.
Quer significar aquele nº 2 que do património comum fazem parte ainda os frutos de bens próprios ou de bens comuns e o valor das benfeitorias úteis feitas nesses bens ([9]).
Não é demais sublinhar que o 1733º/2 faz ingressar no património comum não as benfeitorias como coisas, mas sim o seu valor como despesas. Por aqui se vê que tem sentido a referência que fizemos inicialmente à dupla perspectiva sob a qual as benfeitorias, pelo menos algumas delas, podem ser encaradas: como coisas ou como despesas. E o artigo 216º faz apelo antes de mais às benfeitorias enquanto despesas, logo ao seu valor. Mas, na perspectiva da benfeitoria como coisa, que no caso de construção da moradia não pode ser retirada do terreno sem detrimento e portanto nunca poderia ser levantada, essa benfeitoria-coisa foi incorporada no terreno do cabeça-de-casal e portanto pertence a este.
Pergunta-se então se há ou não, para o efeito da al. b) do artigo 1724º, um bem adquirido onerosamente pelos cônjuges durante o casamento e que, portanto, seja bem comum do casal. A resposta é afirmativa: esse bem é o valor da benfeitoria útil, ou seja, o valor da construção da moradia.
Consequentemente, o prédio não pode ser considerado bem comum, seja por força do disposto no artigo 1724.º, seja por força do disposto no artigo 1733º/2.
Voltemos agora ao invocado art. 1726º, nº 1. Onde se preceitua que os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações, a norma visa definir a qual dos patrimónios devem ser atribuídos esses bens adquiridos com contribuição de bens provenientes de patrimónios diversos, mas adquiridos nas mesmas circunstâncias a que o artigo 1724º al. b) quer aludir. Ou seja: há-de tratar-se de bens adquiridos onerosamente, na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei.
Ora, o prédio urbano (o todo incindível edifício mais terreno e eventual logradouro – art. 204º/2), que a apelante pretende que se considere bem comum, não é um bem adquirido onerosamente na constância do matrimónio. A única relevância jurídica da construção do edifício neste inventário reside na atribuição do valor da despesa material de construção ao património comum do casal, valor esse que é bem comum a partilhar. O prédio urbano, esse, é bem próprio do cabeça-de-casal.
O bem adquirido, que integra a comunhão, é sim o valor da dita benfeitoria. E não se pode dizer que esse bem foi adquirido em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns, foi sim adquirido na totalidade com dinheiro ou bens comuns. Razão pela qual o artigo 1726º, nº 1, não é aplicável ao caso dos autos.
Pelo exposto, a sentença decidiu correctamente ao considerar que o prédio não é bem comum do casal e ao seguir o regime das benfeitorias, devendo-se relacionar como bem comum (crédito do património comum) o valor da construção enquanto benfeitoria.
Mas, também pelo exposto, deve ficar esclarecido que onde a parte decisória da sentença diz «deverem ser levadas as benfeitorias» deve entender-se «dever ser levado o valor das benfeitorias (úteis)», estas no sentido de despesas materiais. O que aliás se harmoniza com a parte dessa decisão onde se refere... «descritas na sua materialidade e não apenas pelo seu valor».

Em síntese final:
- Todas as benfeitorias são despesas, feitas para conservar ou melhorar uma coisa (benfeitorias necessárias ou úteis) ou apenas para recreio do benfeitorizante (benfeitorias voluptuárias).
- Tendo os cônjuges, enquanto casados sob o regime de comunhão de adquiridos, construído uma moradia num terreno pertencente ao património próprio de um deles, essa construção constitui uma benfeitoria útil e não pode basear a aquisição da propriedade do prédio por acessão a favor do casal.
- As benfeitorias, pelo menos algumas delas, como essa construção de moradia, podem ser encaradas sob a perspectiva de coisas e sob a perspectiva de despesas.
- O valor das despesas materiais feitas pelo casal com a dita construção da moradia é um bem comum do casal, nos termos dos artigos 1724º al. b) e 1733º/2 do Código Civil.
- Esse valor deve ser relacionado como crédito do património comum do casal.
- O prédio urbano resultante da construção da moradia no terreno pertencente a um dos cônjuges não integra os bens adquiridos a que se refere o artigo 1724º do CC e não é bem comum do casal.

IV- Decisão:
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão impugnada, com o esclarecimento acima descrito, e considerando-se prejudicado o conhecimento da questão referida à dupla condenação em multa.
Custas do recurso pela apelante.


Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira


[1] Doravante, os artigos sem menção de origem pertencem ao Código Civil (CC).
[2] Quirino Soares, in CJ/STJ 1996-1-11 ss (P. 13).
[3] Cf. P. Lima e A. Varela, CC Anotado, I, em nota ao artigo 216º.
[4] Todavia, pode existir benfeitoria sem que ela confira qualquer dos direitos assinalados designadamente nos artigos 1273º a 1275º do CC: refere-o Quirino Soares, ibidem, p. 13.
[5] Vd. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 5ª ed, 2007, p. 304 e nota 1. A doutrina raramente alude a essa dupla perspectiva sobre as benfeitorias.
[6] Cf., nesse sentido, acórdãos da Relação de Coimbra de 30.3.82 (CJ 1982-t.2), 31.10.89 (CJ 1982-t.4) e 24.11.98 (CJ 1982-t.5) e do S.T.J. de 31.5.83 (BMJ 327º), 8.2.96 (CJ/STJ 1996- t.1), 25.3.96 (CJ/STJ 1996- t.1) e 25.5.99 (BMJ 487º).
[7] Assim, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, I, 2003, p. 589, e Adriano M. R. de Paiva, A Comunhão de Adquiridos, Coi. Ed., 2008, p. 224.
[8] Cf. Adriano M. R. de Paiva, op cit, p. 224/225, e P. Lima e A. Varela, CC Anotado, IV, p. 428.
[9] Cf. Adriano M. R. de Paiva, op cit, p. 225; e Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op cit, p. 590/591, onde acrescentam que o preceito não refere as benfeitorias necessárias porque, incorporadas na coisa e pertencentes ao titular do bem próprio, são indispensáveis à frutificação normal, pelo que o seu valor acaba por se reproduzir nos frutos (bem comum). As voluptuárias irrelevam, por não valorizarem a coisa.