Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/13.4TATBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 01/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 162.º, N.º 2, DO CSC
Sumário: I - A declaração de insolvência de uma sociedade comercial, embora determine a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem, consequentemente, a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado.
II - A sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efectuado o registo do encerramento da liquidação.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


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I- Relatório

No âmbito do processo comum singular n.º141/13.4TATBU do então Tribunal Judicial de Tábua, findo o inquérito o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos A... Lda., sociedade comercial por quotas, pessoa colectiva n.º (...) , com sede social em (...) , Tábua e B... , solteiro, empresário, filho de (...) e de (...) , nascido em 21.10.19878, natural de Carregal do Sal e com última residência conhecida em Rua (...) , Oliveira do Hospital, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo art. 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (de ora em diante RGIT) na forma continuada.

Realizado o julgamento, por sentença proferida pelo Tribunal a quo foi o arguido B.... condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 4,00 (quatro euros), para um total de € 280,00 (duzentos e oitenta euros)e foi declarado extinto o procedimento criminal instaurado contra a sociedade A.... , Lda., em consequência da respectiva declaração de insolvência.


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Inconformado em parte com tal sentença, o MP dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:

“A.O Código Penal consagra no artigo 11.° a responsabilidade das pessoas coletivas, sendo que o artigo 7.° do R.G.I.T. também consagra a responsabilização destes entes; e que o artigo 127.°, n.º 1 do Código Penal consagra como causa de extinta da pessoa singular a morte; Ao apelar à similitude de situações (aplicando a mesma linha de pensamento e raciocínio) não poderemos olvidar que a extinção da pessoa coletiva (o “sistema organizativo” de que fala o Tribunal a quo) - uma criação instrumental do mundo normativo - não determina automaticamente a extinção da sua responsabilidade criminal;

B. No caso das sociedades comerciais, o substrato patrimonial e pessoal das mesmas desaparece com o termo da sua personalidade jurídica que ocorrerá apenas aquando do registo do encerramento da liquidação, conforme consta do artigo 160.°, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais;

C.   Pelo que a responsabilidade criminal das sociedades comerciais não se extingue com a declaração de insolvência, não obstante a existência de uma eventual impossibilidade factual de agir sobre a entidade criminalmente responsabilizada na execução da pena que lhe foi aplicada; e antes ainda da mesma se encontrar liquidada;

D.   Na verdade, não se pode considerar que a sociedade arguida se encontra juridicamente extinta e muito menos que a mesma já não é criminalmente responsável;

E.    Pelo que o Tribunal a quo ao considerar extinta a responsabilidade da sociedade violou os artigos 141.°, n.º 1, alínea e), 146.°, n.º 2 e 160.°, n.º 2, do C.S.C., artigos 11.°, 127.°, n.º 2 e 128.° do Código Penal e artigos 7.° e 105.° e 107.° do R.G.I.T.. e artigo 475.° do Código de Processo Penal;

F.    Neste sentido, e considerando os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, ter-se-ia de considerar que a conduta da sociedade arguida, é suscetível de ser apreciada criminalmente e, por isso, de ser julgada e apreciada em sede de julgamento;

G.   Não obstante o Tribunal a quo ter efetuado julgamento e ter fixado matéria de facto provada e não provada quanto a ambos os arguidos, a verdade é que não se pronunciou sobre a matéria de facto dada como provada, subsumindo-a criminalmente e fundamentadamente quanto à sociedade arguida, e fixando, consequentemente, pena e medida da pena;

H.   Contudo, sempre se dirá que os autos se encontram munidos de todos os elementos necessários para o Tribunal poder apreciar a responsabilidade criminal da sociedade arguida, condenando-a e fixando pena e medida da pena, desde logo considerando-se os seguintes elementos: certidão comercial, informação quanto aos pagamentos efetuados, certidão do processo de insolvência, as declarações remetidas, bem como toda a prova testemunhal, sendo ainda de considerar os pontos da matéria de facto dada como provada;

I.     Sendo que ao não o ter feito, verifica-se uma contradição entre a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e a matéria de facto dada como provada e não provada: consubstanciando tal, um erro de julgamento que se traduz numa contradição entre a prova produzida em julgamento e os factos considerados provados e não provados, logo, um erro notório na apreciação dessa prova;

J. Nestes termos teremos sempre que concluir que a Sentença violou, também, o disposto no artigo 127.° do C.P.P. e nos artigos 7.° e 107.°, n.ºs. 1 e 2 e 105.° n.ºs. 1, 4, 5 e 7 todos do R.G.I.T..

Nestes termos e nos demais de Direito deve a Sentença em crise ser revogada, na parte em que determina a extinção da responsabilidade criminal da sociedade arguida “ A.... Lda.”, e, consequentemente, substituída por outra que aprecie a responsabilidade da sociedade comercial arguida, procedendo-se a julgamento - caso se revele para tanto necessário, com a fixação da matéria de facto que considere provada e não provada referentes a esta arguida, e julgando de facto e de direito a causa -, com a determinação da sua condenação e consequentemente da pena e da medida da pena (ou absolvição), julgando o recurso ora interposto procedente e alterando a Decisão proferida pelo Tribunal a quo, com as demais e ulteriores consequências legais.”


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Não houve resposta.

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O recurso foi admitido por despacho constante de fls. 447.

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Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pelo provimento do recurso, por entender que “ … a personalidade jurídica das sociedades comerciais não se extingue com a declaração e insolvência, com base em disposições legais do Código das Sociedades Comerciais (v.g. o art.° 146°, n.º 2). Assim sendo, até poderemos considerar que afastado fica o paralelismo que se pretenda fazer com o disposto no art.° 127°, n.° 1 do C. P., na medida em que a personalidade jurídica da pessoa colectiva permanece para além da declaração de insolvência até ao encerramento da sua liquidação.

Neste momento sim, também por lei especial expressa é declarada a extinção da pessoa colectiva (art.° 160°, n.º 2 do Cód. Soc. Com.) e só a partir deste momento se poderá considerar a extinção da responsabilidade penal.”


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Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência pelo que cumpre conhecer.

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II- Fundamentação

1. É o seguinte o teor da sentença na parte que interessa ao objecto do recurso (transcrição):

«3.4.1. Questão Prévia – Extinção da Responsabilidade Criminal de A.... , Lda.

A. A sociedade arguida nos presentes autos percorreu um processo de declaração de insolvência, ingressando em fase de liquidação do respectivo activo (cfr. Factos Provados 22.)).

Existindo declaração de situação de insolvência, a que acresce o respectivo ingresso em processo de liquidação, entendemos que o tribunal se confronta com um problema de subsistência da responsabilidade criminal – uma vez que se verifica o desaparecimento do centro de imputação da responsabilidade penal – num circunstancialismos em que subsiste a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas, conferida pelo estatuto da personalidade e quando apenas à extinção desta última se associa, a extinção da responsabilidade por crime (cfr. art. 127.º/1, primeira parte, do CP, quando refere a morte do agente do crime).

B. Ora, quanto ao problema com que se confronta estes autos, é de sublinhar que existe divisão entre doutrina e jurisprudência sobre o problema de a extinção da pessoa colectiva produzir, ou não, a extinção da responsabilidade penal por equiparação à morte da pessoa física (v.g., sociedades, aquando do encerramento da liquidação – cfr. art. 160.º/2 do CSC; no sentido de que existirá extinção da responsabilidade, com a extinção da personalidade jurídica, cfr. JORGE DOS REIS BRAVO, Direito Penal dos Entes Colectivos, Ensaio sobre a Punibilidade de Pessoas Colectivas e Entidades Equiparadas, Coimbra Editora, 2008, pp. 375-378; no sentido de que não existe, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02.05.2006 no Proc. 394/06-1, Acórdão para Fixação de Jurisprudência 5/2006, ambos in www.dgsi.pt) mas, na nossa perspectiva, o problema (este e aquele com se conexiona, com que nos confrontamos in casu) terá de ser abordado articulando a teleologia do quadro normativo, da função económico-social que o instituto desempenha, maxime como instrumento de política criminal e, outrossim, considerando a base fundante da responsabilização criminal de entidades empresariais.

C. No que tange às projecções positivas onde buscar a solução para o problema sub iudicio, uma vez que o RGIT não estabelece qualquer norma específica sobre factos-fundamentos de extinção da responsabilidade criminal, serve-nos aqui a disciplina que verte do Código Penal (cfr. art. 3.º, al. a) do RGIT), sendo de sublinhar, antes de mais, que entre as causas de extinção da responsabilidade não se inclui a extinção da pessoa colectiva (cfr. art. 127.º/1 do CP), sendo pela mobilização de um juízo de equiparação entre a morte da pessoa física e a extinção da pessoa colectiva que centralmente se pugna pela produção do inerente efeito (cfr. JORGE DOS REIS BRAVO, op. loc. cit, pp. 375-378): à perda de personalidade jurídica se associa a extinção da responsabilidade, por se pretender que aqui radica a perda do referente individual da pena – o próprio agente da imputação.

Mas se por aqui se inicia a discussão sobre a matéria, desde logo se tem o problema por deslocalizado: a existência de personalidade jurídica não é, de forma nenhuma, o elemento fundamental que esta parte da doutrina pretende que seja no âmbito da responsabilização criminal de entidades empresariais, já que no corpo normativo da imputação penal a entes colectivos não se estabelece como requisito a existência de personalidade, antes se assimilando no quadro legal todas as organizações que, localizadas no escopo teleológico da norma, permitam identificar os caracteres que impõem a realização de uma pretensão punitiva, possuam elas personalidade ou não (cfr. art. 11.º/2 do CP e art. 7.º/1 do RGIT).

O art. 7.º/5 do RGIT, como o art. 11.º/11 do CP, expressamente prevê as fórmulas de execução da sanção penal sobre entidades desprovidas de personalidade (designadamente, estabelecimentos estáveis) e mesmo o art. 127.º/2 do CP, inserido sistematicamente nas causas de extinção do procedimento por crime, estabelece que o património da entidade empresarial responderá pelas multas em que aquela “for condenada” nos casos em que tenha sido extinta, não associando a esta circunstância a extinção dos termos do processo criminal em curso.

Aqui temos um primeiro elemento que impõe se tenha este argumento por desconstruído: se a atribuição de personalidade não é requisito de Lei para o exercício de acção penal sobre uma entidade, se esta a possuir e subsequentemente a perder, não se vê motivo para entender que esse exercício punitivo esteja por precludido e, com especial incidência no caso sub iudicio, estendendo este entendimento, temos que não é adequado concluir que, porque o ente empresarial possui vida jurídica, subsiste a sua responsabilidade criminal.

D. Posto isto e aprofundando a questão, diremos que a responsabilidade criminal das entidades empresariais (onde se inclui a responsabilização penal das pessoas colectivas) constitui uma poderosa ferramenta de direito criminal dirigida à perseguição do fenómeno delinquencial que tenha por manus, exclusiva ou predominante, as organizações empresariais, tendo naturalmente emergido, por esse motivo, no domínio do direito penal secundário, maxime do delito económico e tributário (cfr. sobre este assunto, TERESA QUINTELA BRITO, Fundamento da Responsabilidade Criminal de Entes Colectivos, Articulação com a Responsabilidade Individual, Coimbra Editora, 2012, pp. 201-225).

Se relativamente aos executores do crime (gerentes, directos ou administradores, pessoas humanas, portanto), a respectiva incriminação pessoal sempre se mostrou possível por gozarem do estatuto de pessoa humana pressuposta pelo direito das sanções éticas (cfr. arts. 11.º/1 e 12.º do CP e art. 27.º da CRP), a existência de uma organização de meios, física ou jurídica, onde se centra um núcleo de interesses que constitui a peça de charneira na formulação de uma vontade desvaliosa à luz dos princípios ético-axiológicos protegidos pelo direito do crime, fundamentou, no percurso histórico e numa abordagem centrada no princípio da culpa, a edificação de um ordenamento que permitisse a sua perseguição.

Por outro lado, a circunstância de ser pela via da representação das organizações de cunho empresarial que se materializa o resultado punido (desvalor de resultado) permite concluir que o principal impacto danoso sobre bens munidos de dignidade penal ocorre tendo a entidade empresarial por agente: é pela mobilização dos meios próprios da acção do ente empresarial na sua estrutura e complexidade que o resultado proibido é obtido e, consequentemente, primacialmente a este se imputa.

Da intersecção destes dois vectores emerge o húmus que sustenta o instituto da responsabilidade penal de organizações empresariais: porque o desvalor de resultado centralmente a esta se imputa; e porque se demonstra ser esta capaz de formulação de um desvalor de vontade autonomizado face às pessoas jurídicas que ao seu redor convergem e a sustentam.

Por aqui se conclui que a vida jurídica da organização empresarial é de pouco interesse para o direito do crime: interessa, sim, que se descubram estas pedras basilares que fundamentam a incriminação da entidade empresarial e que entre si enunciam uma ideia de subjectividade própria, de “complexidade própria que permita uma auto-observação (ou auto-referencialidade) e auto-diferenciação relativamente ao entorno” que lhe permitisse “uma cultura empresarial capaz de questionar a vigência do direito” (CARLOS GÓMEZ-JARA DIÉZ, La culpabilidad penal de la empresa, Marcial, Pons, 2005, pp. 245-248 apud TERESA QUINTELA BRITO, Responsabilidade Criminal de Entes Colectivos, in Direito Penal Económico e Financeiro, Coimbra Editora, 2012, p. 233), subjectividade essa que pode ficar co-envolvida na ideia de personalidade jurídica ou não.

Por inerência, a extinção da pessoa colectiva (rectius, a perda dessa vida jurídica que se tem por de fraco relevo) é indiferente à existência de responsabilidade criminal, interessando sim apurar da manutenção dos pressupostos materiais que despoletam e escoram essa responsabilidade para lá da sua extinção ou apesar dela, projectados no arquétipo de subjectividade, de representatividade ética e material, não de personalização por ficção jurídica.

Nesse pressuposto se entendeu (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência 5/2006) que a incorporação de uma pessoa colectiva noutra por operação de fusão (geradora de efeito extintivo da pessoa jurídica incorporada – cfr. art. 112.º, al. a) do CSC) não extingue a responsabilidade por contra-ordenação de que a primeira estivesse sendo alvo: perdida a personalidade colectiva mas subsistindo a organização que representava numa outra persona iuridica, a responsabilidade por ilícito de ordenação subsiste, mantendo-se intocada a possibilidade de punir a representação de meios a um desvalor de vontade e de resultado (eticamente neutros), ainda que haja ingressado numa outra esfera de titularidade (doutrina avisada que, de resto, recebeu conforto no direito positivo na redacção do art. 11.º/8 do CP, introduzido pela Lei 59/2007 de 04.09).

Podemos, pois, assentar nesta premissa: a atribuição de personalidade jurídica, por intersecção de fictioiuris, a uma organização empresarial não constitui o radical da punição, como a sua subsequente perda não preclude o exercício da mesma, centrando-se a legitimidade do exercício de acção criminal na subsistência dos caracteres essenciais que justificam a incriminação da empresa à luz do corpo normativo do direito das penas, centrado no seu substrato pessoal (as pessoas que concorrem, nas respectivas qualidades, para a formulação da vontade penalmente relevante) e patrimonial (a estrutura de meios corpóreos e incorpóreos alocados à prossecução e execução empírica dessa vontade penalmente relevante).

Também por inerência e estendendo o supra disposto a outro campo de aplicação, que aqui mais nos interessa, ainda que subsista a personalidade para o Direito, será no escrutínio da persistência desses mesmos elementos que encontraremos fundamento para a persistência e subsistência da responsabilidade do ente colectivo.

Um outro ponto digno de nota será ainda o reconhecimento de mutabilidade deste dois elementos, objectivo e subjectivo, caracterizadores da empresa, cuja subsistência dissemos por essencial para que subsista o procedimento por crime: a dinâmica da vida da empresa é um dos seus traços caracterizantes e, como tal, um dos elementos fulcrais a ter em conta na concretização prático-normativa do instituto.

Assim sendo, no âmbito subjectivo (substrato pessoal), a mutabilidade do corpo societário ou da titularidade do estabelecimento (v. g.), não adquirem relevo para a incriminação do agente colectivo, como, agora no domínio objectivo (substrato patrimonial), a alteração da natureza ou estrutura dos capitais fixos que compõem a empresa irreleva (v.g., a venda de um prédio, a alteração de actividade ou de maquinaria, etc.).

À guisa de conclusão e em jeito de remate, concluímos que a eliminação da empresa por forma a que se percam todos os referentes que a individualizam como entidade (ou, por outras palavras, eliminando-se o conceptual de subjectividade que acima caracterizámos) permitirão ter por desaparecido o sistema organizativo que constitui o centro de imputação penal, neste quadro se assomando uma situação equiparada à morte da pessoa física patenteada no art. 127.º/1 do CP e a consequente extinção da responsabilidade por conduta penal e, isto, quer o ordenamento jurídico-civil (ou comercial) lhe atribua personalidade jurídica, quer não.

E. Regressando ao caso dos autos e recordando o que acima relatámos, estando a sociedade declarada insolvente foi desencadeado um procedimento jurisdicional de liquidação, que tem por radical a conversão de todos os capitais fixos e circulantes da empresa em disponibilidades, para alocação ao pagamento do seu universo de credores (cfr. arts. 156.º-170.º do CIRE e arts. 179.º-185.º do CPEREF).

Pela declaração de insolvência, associada ao posterior ingresso em processo de liquidação, sabemos que a empresa foi despojada do seu quadro de controlo jurídico natural, tendo existido um corte das relações de representação com o quadro de administradores e que os seus sócios foram nessa altura despojados de prerrogativas de controlo ou intervenção; sabemos ainda que os seus elementos de activo e passivo – o leque de bens e relações jurídicas caracterizantes da empresa, como entidade autónoma e própria e que a definem – foram dissolvidos e reestruturados, estando os primeiros integralmente convertidos em verbas monetárias e os segundos agregados num elenco distribuído de prioridades, apenas aguardando pagamento de acordo com um quadro jurídico próprio e que afasta a exigibilidade de outras dívidas, não-integradas nesse elenco.

O processo de liquidação, pois, conduziu à integral desmontagem da auto-referenciação do ente colectivo na dimensão subjectiva e objectiva que, hoje, se reduz a uma massa indistinta de moeda e de dívidas, sem qualquer traço que a destacasse do ambiente em que se enreda, ou, por outras palavras, que lhe conferisse qualquer elemento próprio e identificável.

De facto, a partir do momento em que o processo insolvencial ou falimentar ingressa na liquidação e numa fase de «decomposição» dos elementos integrativos e estruturais da organização para obtenção de fundos monetários, a empresa perde de imediato o seu traço essencial que constitui a premissa fundante da sua incriminação: o de constituir um ente munido de características próprias, uma entidade com actuação autónoma, passível de possuir um desvalor de conduta pessoal, de exprimir, na sua vida empresarial, uma vontade reprovável pelo Direito, autónoma e passível de censura por um prisma ético-jurídico.

A partir desse momento, a empresa passa a representar uma simples soma de elementos patrimoniais e vínculos jurídicos, activos e passivos, que se distribuem por relações jurídico-obrigacionais de acordo com um quadro de prioridade normativo, sem que nenhuma expectativa exista de, depois de decidido o início do processo de liquidação, poder vir a ingressar num inter-relacionamento social onde se pudesse manifestar a perturbação de preceitos éticos de foro criminal (a sua situação é muito mais próxima de uma massa hereditária aberta por óbito de uma pessoa singular, sobre a qual concorrem sujeitos e relações jurídicas creditícias, já não se observando um referente individual digno de registo): a pena ou o juízo incriminatório, neste ambiente circunstancial, constituem inutilidades patentes, por nenhum objectivo de política criminal representarem, uma vez que a sociedade cessou a sua inter-comunicação com a comunidade jurídica e não voltará a adquirir uma roupagem que permita identificar uma entidade destacada das suas componentes, com um animus próprio e relações materiais próprias com a sociedade humana e jurídica.

Aberta a liquidação, de resto, não é possível realizar, sequer, a ablação patrimonial representada na pena de multa que constitui a reacção criminal primária sobre pessoas colectivas no âmbito da infracção tributária, quando em respeito pela dogmática penal e insolvencial convocáveis.

De facto, em primeiro lugar, uma multa não conhece uma posição subjectiva activa – um credor –, em sentido próprio, ou seja, não existe propriamente um sujeito jurídico que goze de direito a prestação debitória (de pagar) e que se pudesse apresentar munido desse interesse perante o processo insolvencial ou falimentar de acordo com os caracteres do art. 47.º/1 do CIRE.

O traço essencial da multa é a representação de castigo, a realização de um desfalque patrimonial sobre o condenado, por forma a, por essa via, recuperar as expectativas comunitárias sobre a vigência e integridade da norma violada e, por outra parte, obter uma ressocialização da pessoa, um reposicionamento do seu comportamento endógeno e a forma como encara comandos normativos de abstenção com traços de eticidade: não existe, pois, um interesse privado digno de cobertura que capacitasse um sujeito a obter a prestação, subsistindo apenas a realização de um apelo ao condenado e o re-insuflamento da confiança da comunidade, pela materialização da sanção (cfr. art. 40.º/1 do CP).

Assim, não tem sentido que numa multa se fale de um credor que se apresenta a pagamento, não existindo sinalização subjectiva que capacitasse uma pessoa a assumir as vestes de credor no processo falimentar ou insolvencial, o que se tem por consequência do radical dogmático da pena: a questão terá que ser abordada pelo inverso, como um delinquente sobre o qual se apõe um sacrifício e, quanto a esse, não persiste ele identificável após o ingresso na fase de liquidação, como já fizemos ver.

Por outro lado, a execução criminal da pena de multa, a ser realizada no processo de insolvência, seria efectuada fora do processo-crime, no campo das relações jurídico-privatísticas e perante um tribunal civil (ou comercial), que definiria os termos e condições do pagamento, definindo a modulação por que a pena se teria por realizada sobre o condenado, actos jurisdicionais que traduzem, precisamente, o trilho judiciário da execução da pena e, por isso, a serem transportados para o processo insolvencial, representarão abrogação da proibição estatuída no art. 32.º/8 da Constituição da República, quando se considere o dispositivo do art. 470.º/1 do CPP, uma vez que radica num desaforamento ilícito da competência para a execução da pena (neste sentido, vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.10.2014 no Proc. 50/12.4IDCBR-A.C1, inédito).

De resto, lapidarmente afirmado pela melhor doutrina: “A pena de multa só pode ser tomada como instrumento (…) da política criminal quando surja (…) como autêntica pena criminal, antes que como mero «direito de crédito do Estado» – ainda que de natureza publicística – contra o condenado. Esta asserção, aparentemente trivial, revela-se a uma consideração mais próxima, como verdadeiramente essencial e prenhe de consequências práticas.” (cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Reimpressão, 2005, Coimbra Editora, p. 118).

Daqui deriva, pois, como uma daquelas consequências práticas a vedação ao aplicador da Lei da observação da pena como direito creditório no ambiente do processo insolvencial, de conteúdo patrimonial, que comportasse um tratamento a pari num concurso de credores.

F. No pressuposto de quanto se vem de dizer, perdida aquela auto-referenciação sobre o entorno (que constitui a infra-estrutura sobre a qual se edifica a responsabilidade criminal da pessoa colectiva), aquele «sentimento de si da pessoa colectiva» que a identificava, de um prisma objectivo, como organização individual, diríamos, por via de incidências que lhe são exógenas e que não ocorrem num campo de determinação de vontade, temos por sinalizada uma analogia suficiente para com o dispositivo do art. 127.º/1 do CP e com a morte do agente do crime, razão por que detectamos fundamento para a extinção da responsabilidade criminal ao abrigo desse articulado legal, por esta ordem de motivos.

Desta forma e em jeito de remate, se a simples declaração de insolvência, entendemos, não implica a perda da auto-referenciação que constitui a base dogmática da responsabilidade criminal do ente colectivo (a empresa pode prosseguir, apesar daquele estatuto jurídico, exploração de estabelecimento, inter-agindo no tecido social; pode existir regresso à actividade, por aprovação de plano insolvencial determinativo do encerramento do processo de insolvência, etc.), a situação insolvencial com posterior ingresso em processo de liquidação, sendo normativamente irreversível e eliminando globalmente a possibilidade de qualquer retorno a actividade e à inter-acção social do ente colectivo com o tráfego jurídico-social, por ter por ínsita a desagregação da subjectividade da entidade empresarial (quer possua personalidade jurídica, ou não, já que esta não é requisito da responsabilidade delitual de organizações empresariais, lembramo-lo mais uma vez), traduz a eliminação do referente em que se estriba o instituto de responsabilização da moral person, que se vê mesmo despojada de um interesse social próprio (elemento central da responsabilização do ente colectivo, por constituir a representação do seu desvalor de vontade – cfr. art. 7.º/1, in fine, do RGIT), já que os elementos que compõem o seu substrato material encontram-se juridicamente vinculados à conversão em dinheiro, para rateio por credores.

Este, para além do que mais se diz, é o ponto de charneira que sustenta a ideia de extinção da responsabilidade criminal das pessoas colectivas, em convergência com a doutrina que vem sendo acolhida, de forma consistente, na Jurisprudência no que tange a extinção da responsabilidade por ilícitos de mera ordenação, merecedora de um tratamento a pari (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 3/11/1999, 15/06/2000, 21/01/2003, 26/02/2003, 12/01/2005, 6/10/2005, 16/11/2005, 27/02/2008 e 12/03/2008, 09/02/2011 nos recursos nºs 24.046, 25.000, 01895/02, 01891/02, 1569/03, 715/05 e 524/05, 1057/07, 1053/07, 0617/10, respectivamente, todos in www.dgsi.pt).

Haverá, pois, que declarar a extinção do procedimento criminal relativamente à arguida sociedade, o que adiante se efectuará.”


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2. A única questão objecto do presente recurso consiste em saber se a declaração de insolvência de uma sociedade por quotas arguida implica a extinção do respectivo procedimento criminal.

A referida questão já foi amplamente debatida pelos tribunais superiores e actualmente solucionada de forma praticamente unânime, no sentido de que a insolvência (anteriormente falência) determina a dissolução ( art 141º, nº 1 al. e) do CSC) mas não a extinção da sociedade. Assim sendo, a declaração de insolvência de uma sociedade não é causa de extinção do respectivo procedimento criminal.

Neste sentido, entre outros, os seguintes arestos disponíveis in www.dgsi.pt:

- Ac. do STJ de 12-10-2006, proc.º n.º 0692930, Cons. Pereira Madeira;

- AcRel Coimbra, 22 de Outubro de 2014, relatora Des. Cacilda Sena;

- AcRel Guimarães, 9 de Fevereiro de 2009, relator Des Cruz Bucho;

- AcRel Évora de 2-5-2006, proc.º 394/06-1, Des Pires da Graça;

- Relação do Porto:

- Ac. de 05-03-2003, proc.º n.º 0210379, rel. Fernando Batista;

- Ac. de 28-05-2003, proc.º n.º 0310495, rel. Borges Martins;

- Ac. de 10-03-2004, proc.º n.º 0315960, rel. Borges Martins;

- Ac. de 08-07-2004, proc.º n.º 0441488, rel. Agostinho Freitas;

- Ac. de 06-10-2004, proc.º n.º 0413650, rel. André Silva;

- Ac. de 13-10-2004, proc.º n.º 0414013, rel. Fernando Monterroso;

- Ac. de 28-09-2005, proc.º n.º 0510726, rel. Alves Fernandes;

- Ac. de 21-12-2005, proc.º n.º 0416352, rel. Ângelo Morais;

- Ac. de 09-05-2007, proc.º n.º 0710903, rel. António Eleutério;

- Ac. de 27-06-2007, proc.º n.º 0742535, rel. Ernesto Nascimento;

- Ac. de 12-09-2007, proc.º n.º 0741140, rel. Pinto Monteiro;

E ainda Ac. da Rel de Coimbra 25-6-1996, Col. de Jur. Ano XXI, tomo 3, pág. 40

Atenta a extensa e referida discussão na jurisprudência, a questão já não justifica extensa fundamentação.

Dispõe o art 127.º, do CP, sob a epígrafe “Morte, amnistia, perdão genérico, indulto e extinção”:

“1. A responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto.

2 - No caso de extinção de pessoa coletiva ou entidade equiparada, o respetivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada.”

De notar que o art 128º do CP nem sequer alude à extinção das pessoas colectivas.

Com efeito, estabelece o referido artigo 128.º:

“1 - A morte do agente extingue tanto o procedimento criminal como a pena ou a medida de segurança.

2 - A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.

3 - O perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte.

4 - O indulto extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorável prevista na lei.”

A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação» - art 160º, nº 2 do CSC.

É pois claro e manifesto que a extinção das sociedades comerciais ocorre apenas com o registo do encerramento da liquidação.

A declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado. A sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efectuado o registo do encerramento da liquidação. [v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 9 de Fevereiro de 2009, in processo n.º 2701/08-1]

Toda a argumentação que parte da premissa de que a declaração de insolvência tem efeitos idênticos aos da morte de uma pessoa singular, ignora a norma expressa no art 160º nº 2 do CSC de que a extinção ocorre com o registo do encerramento da liquidação.

Premissa que se revela incorrecta, conforme foi demonstrado pelo Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência n.º 5/2004 (DR. I série A, n.º 144, de 21-6-2004), -cuja jurisprudência o art 11º do CP veio a consagrar -e reafirmado pelo Ac. do STJ de 12-10-2006, proc.º n.º 0692930, rel. Cons.º Pereira Madeira.

Como ensina Raul Ventura, especialista na matéria:

“A extinção da sociedade resulta da inscrição no registo do encerramento da liquidação, «mesmo entre os sócios». Não se trata, pois, de, pelo registo, tornar esse facto oponível a terceiros; mesmo entre os sócios, a sociedade mantém-se (incluindo a respectiva personalidade) até ser efectuada aquela inscrição. Na terminologia usual, o registo tem neste caso eficácia constitutiva.

O sistema estabelecido no CSC justifica-se por motivos teóricos e práticos. Por um lado, está em correspondência com o sistema estabelecido para a aquisição de personalidade pela sociedade e existência desta como tal (art. 6.°). Por outro lado, consegue-se a certeza quanto ao momento em que a sociedade se extingue e além disso evitam-se as dificuldades de a sociedade se extinguir pelo que respeita aos sócios, sem no entanto estar extinta pelo que respeita a terceiros”.

Em conclusão: a extinção do procedimento criminal instaurado contra uma sociedade comercial não se extingue com a extinção da própria sociedade operada nos termos do disposto no nº 2° do artigo 160° do Código das Sociedades Comerciais, não equivalendo tal extinção à morte prevista nos artigos 127° e 128° nº 1 ° do Código Penal.

Reportando-nos aos autos a sociedade arguida A.... , Lda. foi declarada insolvente em 30.01.2013 e, em 14.03.2013, os seus credores deliberaram, em assembleia de credores e com homologação judicial, a liquidação do seu património para rateio e pagamento - facto provado nº 21.

Assim, remetendo-se para a ampla jurisprudência disponível acima referenciada e sem necessidade de mais considerações, o presente recurso não pode deixar de ser considerado procedente.

III - DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em, concedendo provimento ao recurso, revogar a sentença na parte recorrida que declara a extinção da responsabilidade criminal da sociedade arguida “ A.... Lda.”, pelo que deve ser substituída por outra que aprecie a responsabilidade da sociedade comercial arguida, procedendo-se a julgamento - caso se revele para tanto necessário, com a fixação da matéria de facto que considere provada e não provada referentes a esta arguida.

Sem tributação.


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Coimbra, 27 de novembro de 2016


(Isabel Valongo - relatora)

(Jorge França adjunto)