Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
460/12.7T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
REQUISITOS
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV ILHAVO JMPIC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.381º Nº1 DO CPC
Sumário: I – São requisitos da providência cautelar não especificada: probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris); fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora); adequação da providência à situação de lesão iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar e não existência de providência específica que acautele aquele direito;

II – O risco de deterioração ou perda de um veículo automóvel objecto de um contrato de aluguer sem condutor é um risco normal do próprio contrato, que tem a sua contrapartida na indemnização por incumprimento contratual convencionada em cláusula contratual;

III – A requerente, para o êxito da providência cautelar não especificada, teria de alegar factos e não meras conjecturas de onde pudesse concluir-se que o locatário, que não procedeu à devolução do veículo uma vez caducado o contrato, tornou impossível ou assaz difícil o ressarcimento dos prejuízos à locadora, em consequência da demora na entrega da viatura que continua a utilizar ou que era seu intento dissipá-la.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            “A..., SA” deduziu procedimento cautelar comum, requerendo providência cautelar não especificada de apreensão de veículo automóvel e respectivos documentos contra B..., para tanto alegando, ter celebrado, em 2 de Maio de 2005, com o requerido um contrato de aluguer de veículo sem condutor, tendo como objecto o veículo automóvel de matrícula ...ZR, o qual se obrigou a pagar à requerente 48 alugueres/serviços mensais e sucessivos, no valor de € 318,88 cada, que deixou de pagar, caducando o contrato em Fevereiro de 2009, em vão tendo solicitado o pagamento e a restituição do veículo locado e porque se trata de um bem com vida económica limitada e cujo uso acentua a sua rápida desvalorização, face ao incumprimento contratual, é de presumir que o requerido negligencie a manutenção do veículo ou o abandone, sendo que o incumprimento é só por si revelador da incapacidade económica do requerido de vir indemnizar os danos, havendo, em suma, fundado receio de a requerente sofrer lesão grave e dificilmente reparável no seu direito sobre a viatura até propositura e pendência da acção de condenação para sua restituição.

            O requerimento foi liminarmente indeferido, por manifesta improcedência do pedido, com fundamento em que a factualidade alegada não configura, para a requerente, uma situação de fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, como o exige o n.º 1 do art.º 381.º do CPC.

            Com efeito, não é bastante para preencher esse pressuposto que a requerente esteja privada do veículo desde Julho de 2007 e que o requerido continue no seu uso.

Porque a privação do uso se reporta já a essa data e só em Outubro de 2012 foi alegada a existência de lesão grave dificilmente reparável, não se verifica, por isso, seriedade e actualidade da ameaça que possa justificar a necessidade de intervenção cautelar, nem o periculum in mora.

Inconformada, recorreu a requerente, apresentando alegações que rematou com as seguintes conclusões:

a) – A providência requerida é o único meio tutelar que permite salvaguardar e impedir a lesão maior do direito da apelante – o direito de propriedade sobre o veículo;

b) – Foi celebrado entre as partes um contrato denominado contrato de aluguer de veículo sem condutor e de gestão de veículo pelo período de 48 meses, no qual a recorrente cedeu o gozo do veículo ao requerido mediante o pagamento de uma renda mensal;

c) – O requerido não cumpriu os termos do contrato, ou seja, deixou de pagar as rendas acordadas, não obstante continuar a deter o veículo e a dele usufruir, contrato que caducou por ter atingido o período de locação contratualizado;

d) – De onde resulta evidente a lesão grave e de difícil reparação que a lei exige, no direito da apelante, designadamente tendo em conta o comportamento do requerido que continua a circular com o veículo e a usufruir dos direitos do veículo, apesar de ter deixado de pagar as rendas devidas;

e) – Não dá qualquer resposta ou satisfação às várias solicitações que lhe foram sendo feitas para devolver o veículo, impossibilitando, dessa forma, a apelante de lhe dar o destino que melhor se adeqúe aos seus interesses;

f) – Por outro lado, é do conhecimento geral que os veículos automóveis estão sujeitos a uma rápida depreciação comercial e deterioração pelo mero decurso do tempo, podendo facilmente ser ocultado, a que acresce o risco sério de em face do veículo se encontrar em circulação a apelante vir a ser responsável pelas consequências devidas de eventual sinistro automóvel em que o veículo possa ser envolvido;

g) – É, pois, legítimo fazer-se um juízo com alguma certeza e probabilidade séria de que a situação em exame consubstancia uma lesão grave e de difícil reparação do direito que assiste à recorrente de se ver restituída do bem que lhe pertence em exclusivo e que está inibida de exercer;

h) – A providência em apreço é a mais adequada para os fins pretendidos, atento o disposto no art.º 381.º do CPC, face à situação de lesão iminente e inexistência de providência específica que acautele o seu direito de ser restituída à posse do veículo em causa, pelo que o recurso deve ser julgado procedente e revogada a decisão recorrida.

            Não houve lugar a resposta.

            Foram dispensados os vistos dada a simplicidade da questão.

            Cumpre decidir, havendo que apreciar:

            - Se concorre o pressuposto do procedimento cautelar comum não especificado de apreensão de veículo automóvel, do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da requerente sobre o veículo automóvel locado pela requerente ao requerido.


*

            2. Fundamentação

            2. 1. De facto

            A factualidade relevante para julgamento do recurso é aquela que no precedente relatório se enunciou e para onde se remete.


*

            2. 2. De direito

            Dispõe o art.º 381.º, n.º 1, do CPC que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado” e o art.º 387.º do mesmo diploma legal que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (n.º 1) e “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (n.º 2).

            São, assim, requisitos de uma providência cautelar não especificada:
a) – Probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris);

b) – Fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora);
c) – Adequação da providência à situação de lesão iminente;
d) – Não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar;
e) – Não existência de providência específica que acautele aquele direito.

            Entre esses pressupostos, a decisão recorrida desde logo entendeu não preenchido o requisito do “fundado receio”, por falta de alegação da factualidade que pudesse integrá-lo.        

            Com acerto o fez.

            Pese embora alguma similitude com as situações de procedimentos cautelares como tal legalmente previstos e onde são prevalecentes os interesses dos requerentes credores sobre os dos requeridos, como o procedimento cautelar de apreensão de veículo pelo credor hipotecário ou titular do registo de reserva de propriedade regulado pelo DL n.º 74/75, de 12.12 (art.ºs 15.º a 23.º), ou a providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo de bem locado (ALD) a que se reporta o DL n.º 149/95, de 24.6 (art.º 21.º), o DL n.º 354/86, de 23.10, que define o regime jurídico do aluguer de veículo automóvel sem condutor, aqui aplicável, não foi sensível à tutela cautelar do incumprimento contratual e não devolução pelo locatário do veículo subsequentemente à caducidade ou resolução do contrato.

            Limitou-se a indicar, por um lado, ser lícito à empresa de aluguer recusar o aluguer desde que o cliente não ofereça garantias de idoneidade (art.º 17.º, n.º 3) e ser igualmente lícito à empresa de aluguer sem condutor retirar ao locatário o veículo alugado no termos do contrato, bem como rescindir o contrato, nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais (idem, n.º 4).

            Do exposto decorre que a requerente, ao formular o pedido de apreensão imediata do veículo automóvel e respectivos documentos, cedido ao requerido em regime de aluguer sem condutor, com base na caducidade do contrato, por falta de pagamento das rendas desde Julho de 2007, não estava dispensada de alegar (para depois provar) factos que pudessem integrar aquele requisito do fundado receio de lesão grave e difícil reparação.

             Com efeito, para se alcançar a conclusão de que o receio é fundado, impunha-se a alegação de factos que permitissem afirmar com objectividade e distanciamento a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.

            Como salienta Abrantes Geraldes[1], não bastam simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes em apreciação ligeira da realidade, embora, de acordo com as circunstâncias, nada obste a que a providência seja decretada quando se esteja perante simples ameaças, ainda não materializadas, advindas do requerido, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efectivas lesões.

            Com também diz Alberto dos Reis[2], o receio há-de ser de tal ordem que justifique a providência requerida e só a justifica quando as circunstâncias se apresentam de modo a convencer de que está iminente a lesão do direito.

            Quanto à lesão, a gravidade e a difícil reparação são requisitos cumulativos, pelo que não merecem tutela cautelar as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, ainda que irreparáveis, bem como as lesões graves mas facilmente reparáveis, havendo que lançar-se mão de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade entre o direito cuja lesão é receada e os factos em que o receio se traduz.

            No caso dos autos, a lesão que a requerente pretende evitar, com a apreensão do veículo está relacionada com os prejuízos decorrentes da depreciação económica atenta a natureza do próprio bem, que abusivamente continua em circulação e a presunção que faz derivar do incumprimento contratual, de negligência na sua manutenção e possível abandono e de incapacidade económica para posterior indemnização dos danos causados à requerente, dia-a-dia agravados com a privação do uso.

            Quer dizer, a lesão que a requerente pretende prevenir cautelarmente advém dos prejuízos inerentes à demora da entrega do bem com a inerente consequência de não poder utilizá-lo no seu comércio, bem como no agravamento do seu estado de conservação.

            Ora, o risco dessa lesão não assume proporções de gravidade e dificuldade de reparação que justifique a imediata apreensão da viatura.

            O risco de depreciação e até o seu abandono (perda) é um risco do próprio contrato de aluguer, a que a requerente se poderia ter escusado e o facto de o requerido abusivamente manter na sua posse o veículo encontra o seu equivalente no pagamento, a título de indemnização, no pagamento correspondente aos alugueres mensais, acrescido de 50%, conforme o n.º 3 da cláusula 7.ª do contrato celebrado entre requerente e requerido (v. fls. 12).

            Daí que sempre a requerente possa ressarcir-se dos danos resultantes do incumprimento contratual.

            Quanto à hipotética responsabilidade para a requerente, emergente de ocorrência de acidente de viação com o veículo, o seu temor sempre lograria remédio no art.º 503.º, n.º 1 do CC, a partir da falta de direcção efectiva e interessada do veículo.

            Para obtenção da tutela cautelar haveria a requerente que ter concretizado que a falta de pagamento das rendas e dos prejuízos decorrentes do uso abusivo e demora da entrega e desvalorização do veículo, estava associada à inexistência de meios para o requerido solver o montante da dívida ou de que era seu intento a dissipação do veículo.

            Não as meras conjecturas, presunções ou receios subjectivos, da sua incapacidade económica.

            Aliás e como assim também assinalou o despacho recorrido, reportando-se a Julho de 2007 a privação do uso do veículo para a requerente e só volvidos mais de 5 anos vem alegar a existência de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito de propriedade, esbateu-se sobremaneira a seriedade e actualidade da ameaça, bem assim a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.

            Eis por que soçobram as conclusões recursivas.


*

            3. Resumindo e concluindo em jeito de sumário (art.º 713.º, n.º 7, do CPC)

I – São requisitos da providência cautelar não especificada: probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris); fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora); adequação da providência à situação de lesão iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar e não existência de providência específica que acautele aquele direito;

II – O risco de deterioração ou perda de um veículo automóvel objecto de um contrato de aluguer sem condutor é um risco normal do próprio contrato, que tem a sua contrapartida na indemnização por incumprimento contratual convencionada em cláusula contratual;

III – A requerente, para o êxito da providência cautelar não especificada, teria de alegar factos e não meras conjecturas de onde pudesse concluir-se que o locatário, que não procedeu à devolução do veículo uma vez caducado o contrato, tornou impossível ou assaz difícil o ressarcimento dos prejuízos à locadora, em consequência da demora na entrega da viatura que continua a utilizar ou que era seu intento dissipá-la.


*

            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pela apelante.


***

           


 Relator: Francisco Caetano

Adjuntos: António Magalhães e Ferreira Lopes


[1] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma de Processo Civil”, III, 1998, pág. 87.
[2] “Código de Processo Civil, Anot.”, I, pág. 684.