Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
762/09.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CONTRATO DE SUPRIMENTO
CLÁUSULA CUM VOLUERIT
PRAZO
FIXAÇÃO JUDICIAL DE PRAZO
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.243, 244, 245 CSC, 10, 777 CC, 1456 CPC
Sumário: 1. As regras do contrato de suprimento, previstas nos artigos 243.º a 245.º do Código das Sociedades Comerciais aplicam-se às sociedades anónimas por analogia.

2. A cláusula mediante a qual o devedor se compromete a restituir certa importância assim que isso lhe for solicitado pelo credor, por escrito, com oito dias de antecedência, constitui fixação de um prazo potestativo cum voluerit (quando o credor quiser).

3 - Constando tal cláusula de um contrato de suprimento, tal cláusula não dispensa o credor de instaurar acção para fixação judicial de prazo, nos termos previstos do n.º 1 dos artigos 245.º do Código das Sociedades Comerciais, 777.º, n.º 2, do Código Civil e 1456.º do Código de Processo Civil, quando pretenda a restituição da quantia emprestada e não haja consenso entre si e a devedora.

Decisão Texto Integral: I. Relatório.

a) A Autora, agora recorrida, instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, com o fim de obter a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €104.747,56 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal comercial, no montante de €71.146,61 euros, contados a partir do dia 20 de Dezembro de 2002 até à instauração da acção, ou apenas a primeira quantia indicada, se se vier a entender que os factos devem ser qualificados juridicamente não como um mútuo, mas como um suprimento à sociedade.

Referiu, para o efeito, que o seu marido, J (…), quando era sócio e administrador da Ré, emprestou a esta a quantia de 21.000.000$00, para fundo de maneio, que, no entanto, seriam utilizados para suprir dificuldades económicas da sociedade Estaleiros de (...), S. A., da qual a Ré era accionista maioritária e que então passava por dificuldades financeiras.

Na sequência da separação de pessoas e bens por mútuo consentimento e posterior partilha dos bens do casal, constituído pela Autora e seu marido, o mencionado crédito sobre a Ré foi adjudicado à Autora, a qual enviou à Ré, em 12 de Dezembro de 2002, uma carta registada com aviso de recepção, através da qual lhe solicitou o pagamento do mencionado crédito, mas sem sucesso até ao momento e, daí, o presente pedido.

A Ré contestou e referiu, em síntese, que a quantia em causa entrou de facto na conta bancária da Ré, mas nunca foi utilizada em seu proveito, mas sim em proveito da empresa E (…), S. A., da qual o marido da Autora, J (…), também era, à época, presidente do conselho de administração.

Diz ainda que o conselho de administração da Ré não deliberou no sentido de contrair o mencionado empréstimo, razão pela qual impugnou a veracidade do documento junto com a petição inicial relativo ao reconhecimento da dívida por parte dos então administradores da Ré.

Concluiu pela inexistência do crédito e pela improcedência da acção.

A Ré replicou para reafirmar que o acordo foi estabelecido entre a Ré e o seu marido e não entre este e os E (…), S. A., tendo a quantia entrado no fundo de maneio da Ré.

Sendo assim, apenas poderão surgir dúvidas quanto à natureza do contrato celebrado, ou seja, entre ter ocorrido um suprimento ou um empréstimo mercantil, consoante se entenda que a entrega do dinheiro foi feita ou não com carácter de permanência.

Relativamente à ausência de deliberação da Ré, a Autora argumentou que a deliberação consta do teor do próprio documento que juntou com a petição, o qual, muito embora não seja uma acta do conselho de administração da Ré, contém no entanto, as assinaturas da maioria dos seus membros, não sendo necessário que as deliberações constem formalmente de uma acta para poderem ser invocadas validamente por terceiros.

Por outro lado, não tendo sido estabelecida qualquer vantagem a favor de J (…), não se tornava necessária qualquer deliberação do conselho de administração para a celebração de contratos entre a Ré e os seus administradores, como resulta do disposto no artigo 397.º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais, sendo certo que, face ao disposto no artigo 408.º do mesmo código, tendo o contrato sido assinado pela maioria dos seus administradores, sempre vincularia a sociedade.

O processo seguiu a tramitação prevista na lei de processo e no final foi proferida sentença que condenou a Ré a restituir à Autora a quantia de €104.747,56 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento, tendo-se entendido, em síntese, que houve um contrato de suprimento, mas que a notificação efectuada em Dezembro de 2002 pela Autora à Ré não constituiu forma legalmente válida de interpelação desta última para restituição da quantia mutuada, por ser caso de instauração de acção para fixação judicial de prazo, que, porém, volvida praticamente uma década de recusa de pagamento por parte da Ré, já não faz hoje sentido, o que levou a que o tribunal considerasse vencidos juros de mora apenas a partir da citação para a presente acção e à taxa dos juros legais civis.

b) O presente recurso respeita a esta decisão.

A Ré recorre, em resumo, porque, em seu entender, não ocorreu no caso, nem um contrato de suprimento, nem um mútuo entre o marido da Autora e a Ré.

Sustenta esta afirmação argumentando que o dinheiro, como resulta dos factos provados, não se destinou à Ré, mas sim a pagar salários aos trabalhadores dos E (…) S. A., sendo também certo que o prazo para a devolução do dinheiro foi estipulado em menos de um ano, o que inviabiliza a qualificação do caso como contrato de suprimento.

Argumenta que na hipótese de ter existido um contrato de suprimento, resulta manifesto da matéria de facto não ter sido fixado um prazo para reembolso, o que implicava a obrigação da Autora ter recorrido previamente a uma acção de fixação judicial de prazo, não bastando uma simples notificação, pelo que, faltando este pressuposto, nunca a Ré poderia ser condenada a restituir à mencionada quantia.

Face a esta argumentação, a recorrente sustenta que há uma «…contradição notória entre a própria factualidade dada como provada e entre esta e o Direito a que a mesma foi subsumida (contradição entre a fundamentação e a decisão)», situação que implica a reforma da sentença «…por manifesto lapso na qualificação jurídica dos factos e não se ter valorado devidamente os documentos juntos ao autos…» e, se assim não se entender, a sentença «…deve ser revogada, por nulidade, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, al. b) e c) do Código de Processo Civil».

No que respeita à matéria de facto, com base nos documentos juntos aos autos e nos depoimentos das testemunhas (…) pede a modificação dos quesitos 6.º, 7.º e 8.º da base instrutória, passando a resposta a cada um deles a ser «Provado».

Em consequência destas alterações ao nível da matéria de facto, a acção deve ser julgada totalmente improcedente por se dever concluir que não estamos perante um contrato de suprimento (artigos 243.º a 245.º do Código das Sociedades Comerciais) nem de um contrato de mútuo.

A Ré concluiu, então, desta forma:

(…)

c) A Autora apresentou recurso subordinado.

Argumenta que lhe são devidos juros desde a data em que notificou a Ré, no ano de 2002, através de carta registada com aviso de recepção, para lhe devolver o dinheiro.

Sustenta que não carecia de instaurar uma acção para fixação judicial de prazo por se encontrar desde o início acordado que a devolução do dinheiro se faria quando o credor fizesse o respectivo pedido, havendo apenas a respeitar um prazo de 8 dias entre o dia do pedido e o da entrega.

Diz que o contrato deve ser qualificado como um contrato de suprimento, sendo irrelevante a existência ou ausência de um prazo fixado desde o início para a devolução do dinheiro, relevando, sim, o facto do reembolso não ter sido exigido no prazo de um ano.

Contesta também que se aplique ao caso o disposto no artigo 245.º do Código das Sociedades Comerciais quanto à obrigatoriedade de instauração de acção para fixação judicial de prazo, pois, como disse, as partes fixaram prazo para a devolução.

Sustenta ainda que a notificação que fez à Ré constitui forma suficiente para a interpelação, pelo que são devidos juros desde 12 de Dezembro de 2002.

Concluiu assim:

(…)

d) Houve contra-alegações de parte a parte.

1 - A Autora sustenta que não há base para o pedido de reforma da sentença e que esta não padece de nulidade.

Discorda da pretensão da recorrente quando esta sustenta que a matéria de facto provada é insuficiente para concluir pela existência de um contrato de suprimento, na medida em que resulta claro dos autos que J (…) emprestou o dinheiro à Ré e pretendeu reavê-lo desta, não havendo qualquer violação das normas constantes dos artigos 243.º e 245.º do Código das Sociedades Comerciais e 777.º, n.º 2, do Código Civil.

Relativamente ao destino do dinheiro argumenta que não há qualquer dúvida que o marido da Autora emprestou o dinheiro à Ré, embora esta o destinasse a pagar salários dos trabalhadores dos Estaleiros de (...), dos quais a Ré era accionista com cerca de 74% das acções, não podendo haver dúvidas de que a Ré está obrigada a devolver à Autora a quantia pedida.

Como prova para a correcção desta afirmação refere que no processo de insolvência dos E (…)S. A., a Ré reclamou créditos no montante de €77 772,24, à data de 31 de Dezembro de 2001, resultantes do facto  dos Estaleiros estarem inibidos de utilizar cheques e do pagamento a fornecedores ter sido feito pela Ré, referindo que não fazia qualquer sentido que o Sr. J (…) emprestasse o dinheiro aos Estaleiros de (...) e não à Ré, quando sabia que aquela empresa estava falida.

Relativamente ao carácter de «permanência do crédito do sócio», requisito necessário para a existência de uma contrato de suprimento, reafirmou que o que interessa é o que acontece na realidade, isto é, que passe mais de um ano sem que o crédito seja exigido, situação que ocorreu no caso dos autos.

Rebate a argumentação da Ré quanto à necessidade da Autora ter instaurado uma acção para fixação judicial do prazo, porque no contrato de suprimento foi fixado prazo quando se estipulou que «Mais declara que restituirá tal importância ao referido J (…), quando este solicitar e desde que avisada por escrito, com 8 (oito) dias de antecedência».

Quanto à alteração da matéria de facto pretendida pela recorrente diz que a maioria das testemunhas se pronunciou no sentido do Sr. J (…) ter emprestado o dinheiro à Ré e esperar que esta lho devolvesse.

(…)

2 – Contra-alegações da Ré ao recurso subordinado.

A Ré realça a inexistência de prazo para a restituição da quantia, não constituindo fixação de prazo o teor do texto onde se diz que a Ré se comprometia a restituir a importância assim que lhe fosse solicitado, pois se houvesse um prazo fixado não era necessário a Autora ter remetido a carta registada à Ré a pedir o dinheiro.

E quanto ao requisito do carácter de «permanência do empréstimo por mais de um ano» para efeitos da existência de um contrato de suprimento, reafirma que este requisito se afere não ao longo do tempo, com o sustenta a Autora, mas no momento em que o contrato é celebrado, sendo inequívoco que na altura em que o contrato foi feito o empréstimo podia ser exigido nos dias imediatos, sendo necessário respeitar apenas o lapso de oito dias de pré-aviso.

E como não houve fixação de prazo torna-se necessária a instauração de uma acção para fixação do prazo, sendo certo que a carta remetida pela Ré não fixou qualquer prazo, pois pede a restituição da quantia «logo que possível».

Por fim, opõem-se à pretensão da Autora no sentido de lhe serem devidos juros à taxa comercial, porque a petição, bem como a matéria de facto provada, são omissas quanto à contabilização de juros comerciais.

II. Objecto dos recursos.

O objecto dos recursos consiste nas questões que a seguir se elencam.

a) Recurso principal.

1 – As primeiras questões a analisar são as processuais, relativas às nulidades de sentença (a questão da reforma da sentença foi dirigida ao juiz da 1.ª instância, que analisou a respectiva matéria e se pronunciou negativamente – fls. 615 e 616).

Invocam-se as nulidades de sentença nos termos do artigo 668.º, n.º 1, als. b) e c) do Código de Processo Civil, por esta não especificar os fundamentos de facto da decisão nela contida e por existir uma «…contradição notória entre a própria factualidade dada como provada e entre esta e o Direito a que a mesma foi subsumida (contradição entre a fundamentação e a decisão)».

2 – Em segundo lugar, analisar-se-á a alteração pretendida da matéria de facto, relativamente aos quesitos 6.º, 7.º e 8.º da base instrutória, que a recorrente entende deverem ser declarados «provados».

3 – Por fim, verificar-se-á a alegação da Ré no sentido de que nem houve um contrato de suprimento, nem de mútuo, quer face aos factos dados como provados na sentença, quer aos factos que possam resultar provados em sede do presente recurso.

Ver-se-á se se justifica a revogação da sentença recorrida e a improcedência da acção, por não se encontrar qualificada da forma devida e correcta toda a matéria factual provada e, por isso, a sentença ter infringido os artigos 243.º a 245.º (sobretudo o n.º 1 deste último artigo) do Código das Sociedades Comerciais, bem como o disposto no art. 777.º, n.º 2, do Código Civil, para o qual remete.

b) Recurso subordinado

Analisar-se-á a questão de saber se o vencimento dos juros ocorre a partir de 12 de Dezembro de 2002, calculados à taxa legal comercial, o que passa por ponderar a questão de saber se foi convencionado um prazo para o reembolso como sustenta a Autora ou inexiste prazo, como pretende a Ré; se era necessário intentar acção especial para fixação de prazo judicial e se a carta com aviso de recepção enviada pela Autora à Ré constituiu um meio adequado e legal de interpelação.

III. Fundamentação.

a) Nulidades de sentença.

Vejamos as nulidades de sentença.

Invocam-se as nulidades de sentença previstas no artigo 668.º, n.º 1, als. b) e c) do Código de Processo Civil, sustentando-se que a sentença não especifica os fundamentos de facto da decisão nela contida e por existir uma «…contradição notória entre a própria factualidade dada como provada e entre esta e o Direito a que a mesma foi subsumida (contradição entre a fundamentação e a decisão)».

Não ocorrem estas nulidades.

1 - O artigo 668.º do Código de Processo Civil, na al. b) do seu n.º 1, dispõe que a sentença é nula «Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Trata-se de um vício de natureza processual que respeita, por conseguinte, à observância das formalidades dos actos processuais, não de um vício sediado no direito substantivo aplicável ao caso.

Por conseguinte, esta nulidade processual tem a ver com a forma prescrita na lei processual, mas não directamente com a matéria substantiva de que trata o processo.

Daí que esta falta de fundamentação da sentença, seja quanto à matéria de facto ou de direito, se refira à sua omissão em relação à questão em apreço e não à sua maior ou menor valia do ponto de vista do direito aplicável ao caso.

Com efeito, relativamente à qualidade da fundamentação jurídica da sentença a lei processual colocou à disposição da parte o recurso e é em sede de recurso que esta matéria é apreciada.

Como ensinou o Prof. Alberto dos Reis, referindo-se a esta matéria, «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2 do art. 668.º» ([1]).

Não se verifica, pelo exposto, a apontada nulidade.

2 - Passando à outra modalidade de nulidade de sentença.

O artigo 668.º do Código de Processo Civil, na al. c) do seu n.º 1, dispõe que a sentença é nula «Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão».

Continuando com os ensinamentos do Prof. Alberto dos Reis, «Quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão. Como pode considerar-se justificada uma decisão que colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia?». Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando «…os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» ([2]).

Ora, lendo a sentença, verifica-se que a decisão que veio a ser tomada era aquela que o leitor ditaria após a leitura dos fundamentos, o que mostra não existir a apontada nulidade.

b) Alteração da matéria de facto.

(…)

c) Matéria de facto.

1 – J (…), por cheque datado de 12 de Abril de 2001, emitido à ordem da Ré, entregou-lhe a quantia de 21.000.000$00 – al. A) dos factos assentes.

2 - Tal quantia deu entrada na conta da Ré e foi por esta utilizada – al. A) dos factos assentes.

3 - A 12 de Dezembro de 2002, a Autora enviou uma carta registada com aviso de recepção à Ré, através da qual solicitou que o pagamento da aludida quantia fosse efectuado logo que possível – al. A) dos factos assentes.

4 – J (…), cônjuge da ora Autora, deu de empréstimo à Ré a quantia de 21.000.000$00 (€ 104.747,56), que esta utilizou para o pagamento de salários dos trabalhadores da sociedade «Estaleiros (…), S. A.», de que aquela (Ré) era accionista maioritária, tendo-se a mesma (Ré) comprometido a restituir tal importância assim que lhe fosse solicitado, por escrito, com 8 (oito) dias de antecedência – resposta aos quesitos 1.º, 2.º e 3.º.

5 - O documento n.º 2 da petição inicial foi assinado pelos três membros executivos do conselho de administração da Ré – resposta ao quesito 4.º.

6 - A sociedade «Estaleiros (…), S. A.», encontrava-se, por aquela altura, em situação de inibição de emissão de cheques – resposta ao quesito 5.º.

7 – J (…) era, à data, sócio da Ré e presidente do conselho de administração da mesma – certidão da Conservatória do Registo Comercial de fls. 242 e ss.

8 - Por escritura realizada no dia 8 de Novembro de 2002, no Cartório Notarial de Águeda procedeu-se, por força de separação de pessoas e bens, por mútuo consentimento, à partilha de bens do casal J (…) e a ora autora, mediante a qual foi adjudicada a esta última a verba n.º 28 ali descrita, relativa a «empréstimo de €104.747,56 euros, que o casal emprestou à sociedade “N (…)S.A.”, com sede no (...)de Aveiro, matriculada na Conservatória do Registo Comercial (…)» – certidão da escritura pública de partilha junta a fls. 69 e seguintes.

d) Apreciação das restantes questões objecto do recurso.

Vejamos, como sustenta a Ré recorrente, se se justifica a revogação da sentença recorrida e a improcedência da acção, por não se encontrar qualificada da forma devida e correcta toda a matéria factual provada, uma vez que não houve nem contrato de suprimento, nem de mútuo, sendo certo que tratando-se de um suprimento, sempre a Autora deveria ter lançado mão previamente de uma acção para fixação judicial de prazo.

1- Se bem se compreendeu argumentação da recorrente esta sustenta que no caso não houve qualquer negócio com a Ré, tendo esta servido apenas de correia de transmissão do dinheiro destinado aos Estaleiros de (...).

Não assiste razão à Ré como já resulta do antes dito e que se afigura desnecessário repetir integralmente.

A matéria de facto mostra que houve intenção do Sr. J (…) no sentido de entregar os 21000 contos à Ré, para esta pagar depois os salários dos Estaleiros de (…), S. A., e de que houve também uma decisão dos representantes legais da Ré no sentido de receberem essas quantias para tal fim.

Não ocorre nenhum vício nesta operação do ponto de vista jurídico.

Isto não configura um contrato ferido de nulidade por simulação, na medida em que não se vislumbra, como se disse, qualquer intuito de enganar terceiros, como é típico da simulação (cfr. artigo 240.º do Código Civil).

A quantia em causa poderia ter tido outra proveniência, como, por exemplo, um empréstimo bancário contraído pela Ré, pois sendo a Ré a maior accionista dos mencionados Estaleiros tinha interesse em que os salários dos trabalhadores desta empresa fossem pagos, para evitar eventuais questões laborais susceptíveis de se repercutirem negativamente na laboração da empresa, pelo que, pagando a Ré esses salários, tal pagamento surgiria inclusive como uma assunção de dívida (artigo 595.º do Código Civil) e até mesmo como um suprimento, caso o pagamento do crédito da Ré fosse diferido no tempo e tivesse carácter de permanência (parte final do n.º 1, do artigo 243.º do Código das Sociedades Comerciais).

Afigura-se, por conseguinte, que a argumentação da Ré no sentido de qualificar a entrega da quantia em causa e respectivo recebimento por parte da Ré como um acto sem efeitos jurídicos, não sendo nem um empréstimo ou mútuo, nem um suprimento, não encontra fundamento na realidade, nem na lei.

Cumpre, por conseguinte, verificar se estamos ou perante um contrato de suprimento ou um mútuo, pois não se vislumbram outras alternativas.

Vejamos então.

Antes de prosseguir cumpre referir que muito embora o contrato de suprimento se encontre no Capítulo do Código das Sociedades Comerciais onde se encontram disciplinadas as sociedades por quotas, as respectivas disposições aplicam-se às sociedades anónimas.

Com efeito, os suprimentos dos sócios à sociedade constituem uma forma de financiamento desta e as vantagens que daí resultam para os accionistas são as mesmas que militam a favor dos sócios nas sociedades por quotas, não se vislumbrando razões para impedir que nas sociedades anónimas os accionistas não possam conceder suprimentos à respectiva sociedade.

Não sendo esta uma questão controvertida nos autos, será analisada, mas com singeleza.

Apenas se dirá que a questão que se coloca consiste apenas em determinar o fundamento jurídico que permite aplicar o regime do contrato de suprimento às sociedades anónimas e que se entende ser a aplicação por analogia.

A analogia, como resulta do disposto no artigo 10.º do Código Civil ([3]), baseia-se no argumento de que existe uma lacuna quer na regulamentação geral do Código das Sociedades Comerciais, quer na parte especialmente dedicada às restantes sociedades, incluindo as sociedades anónimas, no que respeita à disciplina de eventuais empréstimos feitos pelos accionistas à sociedade.

Entende-se que se justifica nas sociedades anónima um tratamento nesta matéria semelhante ao dos suprimentos nas sociedades por quotas, mas dentro de certos limites.

Com efeito, atendendo à função desempenhada pelo contrato de suprimento, que é a de financiar a sociedade, apenas se admite a analogia em relação a accionistas que detenham pelo menos 10% do capital social, porque, como argumenta Raul Ventura, é apenas a partir desta proporção que se «…exprime o interesse societário ou empresarial do accionista, para o efeito de contratos de suprimento» ([4]).

Ignora-se este facto, isto é, se o primitivo credor era titular de pelos menos 10% do capital social, pois a certidão do registo comercial de fls. 205 e seguintes não revela estes dados, mas, considerando o disposto no artigo 516.º do Código de Processo Civil, cumpria à Autora fazer a prova de que tinha percentagem inferior a 10%, para beneficiar do regime do mútuo, sendo no âmbito deste contrato que se move o pedido principal que formulou, pelo que tudo se passa, em termos processuais, como se o marido da Autora tivesse, à data do suprimento, pelo menos 10% das acções da Ré ([5]).

Decide-se, pois, este ponto, no sentido de que se aplica ao caso dos autos, por analogia, o disposto nos artigos 243.º a 245.º do Código das Sociedades Comerciais.  

Prosseguindo.

O artigo 243.º do Código das Sociedades Comerciais define o contrato de suprimento no seu n.º 1 da seguinte forma:

«Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência».

Nos n.º 2 e 3 deste artigo indicam-se índices do conceito de permanência, que são os seguintes:

«Constitui índice do carácter de permanência a estipulação de um prazo de reembolso superior a um ano, quer tal estipulação seja contemporânea da constituição do crédito quer seja posterior a esta. No caso de diferimento do vencimento de um crédito, computa-se nesse prazo o tempo decorrido desde a constituição do crédito até ao negócio de diferimento» - n.º 2.

E «É igualmente índice do carácter de permanência a não utilização da faculdade de exigir o reembolso devido pela sociedade durante um ano, contado da constituição do crédito, quer não tenha sido estipulado prazo, quer tenha sido convencionado prazo inferior; tratando-se de lucros distribuídos e não levantados, o prazo de um ano conta-se da data da deliberação que aprovou a distribuição» - n.º 3.

Face a este texto e como se assinala nos autos, o «carácter de permanência» do mútuo constitui, digamos, a diferença específica que permite distinguir o suprimento do empréstimo ou mútuo concedidos pelo sócio.

Quanto ao conceito carácter de permanência, o mesmo centra-se na existência de um prazo superior a um ano para o reembolso do crédito.

Mas constituem também índices de permanência, como resulta do disposto no n.º 3, os casos em que não foi estipulado de início qualquer prazo para o reembolso ou foi estabelecido, inclusive, um prazo inferior a um ano, mas, o objecto do empréstimo permaneceu de facto no património da sociedade sem ter sido exigido pelo prazo de um ano.

Como refere o Prof. Raul Ventura, o que conta é a duração de facto do empréstimo por um período mínimo de um ano ([6]), independentemente de ter sido estipulado ou não um prazo ou um prazo por tempo inferior.

No caso dos autos, verifica-se o carácter de permanência exigido para a qualificação da situação negocial em causa como contrato de suprimento, pois, a Autora só exigiu o reembolso do crédito decorridos 18 meses.

Sendo patente o carácter de permanência, como é, então a entrega do dinheiro tem de ser qualificada como suprimento, salvo se os factos mostrarem que, apesar do decurso desse prazo, não se trata de um suprimento.

A este respeito, e porque o regime do mútuo é mais favorável ao sócio, do ponto de vista do reembolso, o n.º 4 do artigo 243.º, do Código das Sociedades Comerciais permite que os sócios possam ilidir a presunção no sentido de existir um contrato de suprimento «…demonstrando que o diferimento de créditos corresponde a circunstâncias relativas a negócios celebrados com a sociedade, independentemente da qualidade de sócio».

Ou seja, apesar de existir um empréstimo com duração superior a um ano, o sócio é admitido a provar que o empréstimo não constitui, apesar disso, um suprimento porque a sua concessão não foi determinada pelo facto de ele ser sócio, pois se não fosse sócio teria disponibilizado, da mesma forma, a quantia em causa.

Sucede, porém, que os factos provados não mostram que se tratou de um empréstimo feito por alguém cuja qualidade de sócio tivesse sido irrelevante para a sua existência.

Aliás, se tal qualidade de sócio não tivesse sido determinante para o empréstimo, provavelmente tinha sido estabelecida uma taxa de juro como contrapartida do empréstimo e isso não ocorreu.

Ainda nas palavras de Raul Ventura, produzidas no comentário ao artigo 243.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, «O preceituado nos arts. 243.º a 245.º é imperativo.

A qualificação do contrato como de suprimento efectua-se automaticamente desde que se constituam de facto os respectivos elementos. A disciplina legal do contrato de suprimento decorre directa e necessariamente da qualificação efectuada. Dessa disciplina, uma parte respeita à protecção dos credores e, portanto, não está ao alcance da sociedade, nem individualmente dos sócios, derrogá-la. O recurso ao tribunal para fixação de prazo de reembolso dos suprimentos é uma providência de protecção da sociedade, último meio de solução de eventuais conflitos, que os sócios não podem afastar.

Com a imperatividade destes preceitos não podem ser confundidas questões de natureza diversa, que possivelmente conduzam à não aplicação do disposto no art. 245.º, n.º 1, estipulando prazo para o reembolso dos suprimentos. Para evitar a qualificação do contrato como de suprimento, o único meio é produzir declarações de vontade que não se enquadrem na figura legal desse contrato; para isso, pode concorrer a ilisão das presunções, que a própria lei estabelece» (sublinhado do relator).

Conclui-se, por conseguinte, na ausência de factos que indiciem o contrário, que estamos face a um contrato de suprimento.

Coloca-se, portanto, a questão de saber se a Ré estava ou não estava obrigada a instaurar previamente uma acção judicial para fixação de prazo, nos termos previstos no artigo 1456.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que «Quando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indicará o prazo que repute adequado».

Com efeito o n.º 1 do artigo 245.º do Código das Sociedades Comerciais tem a seguinte redacção:

«Não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 777.º do Código Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá, porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações».

A Autora sustenta que foi estipulado prazo, pois no contrato ficou escrito que a Ré se comprometeu a restituir tal importância assim que lhe fosse solicitado por escrito com oito dias de antecedência.

A pergunta que se coloca então consiste em saber se esta cláusula equivalerá à fixação de um prazo.

Antes de avançar cumpre verificar o que se deve entender por «prazo».

Nas palavras do C. A. Mota Pinto, «Chama-se prazo ao período de tempo que decorre entre a realização do negócio e a ocorrência do termo, embora se possam atribuir outros sentidos àquela expressão» ([7]).

Parece assim que aquilo que releva para que exista um prazo é o quid que o constitui, isto é, um dia que estabelece o começo, seguido de um espaço de tempo finito, o prazo propriamente dito, e, por fim, um termo, que coincide com o último dia do prazo.

Ora, no caso dos autos, tudo isto parece ocorrer: houve um dia para o começo e há outro para o termo, existindo entre ambos um espaço temporal.

Porém, verifica-se que a duração do espaço intermédio entre o primeiro dia e o último dia, ficou dependente da vontade do credor, pois, nos termos do contrato, é o credor quem fixa o último dia e quando quiser (cum voluerit).

Como referiu Cabral de Moncada, é perfeitamente admissível «…o “termo” potestativo, correspondente ao conceito da condição do mesmo género. Isto é: o termo tanto pode ficar assinalado num contrato com referência a um acontecimento ou data objectivamente determinados (chamemos-lhe causal), como pode ser deixado à vontade e arbítrio de qualquer das partes, inclusivamente do devedor; o vínculo jurídico existe neste último caso independentemente da vontade do obrigado, dependendo apenas deste a fixação do termo» ([8]).

Aparentemente se se concluísse, no nosso caso, pela necessidade da acção judicial para fixação do prazo, isso pareceria equivaler à supressão da mencionada cláusula contratual, sem o consentimento do credor, contra o disposto no n.º 1 do artigo 406.º do Código Civil, o que parece mostrar a incoerência da exigência da mencionada acção.

Porém, apesar do que fica exposto a favor da conclusão de que existiu um prazo, na realidade esta cláusula não se distingue de um clausulado contratual em que não tivesse sido marcado qualquer prazo (obrigação pura), pois, neste caso, nos termos do n.º 1, do artigo 777.º, do Código Civil, «Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela».

Ora, se na ausência de marcação de prazo o credor pode exigir a prestação a todo o tempo, como prescreve o n.º 1, do artigo 777.º do Código Civil, então tal situação em nada se distingue da cláusula em análise, segundo a qual «a Ré se comprometeu a restituir tal importância assim que lhe fosse solicitado por escrito com oito dias de antecedência».

Verdadeiramente o que há a mais na aludida cláusula, em termos substanciais, é um prazo de oito dias, mas este prazo de oito dias, dada a sua exiguidade, é um elemento secundário e irrelevante na economia do caso concreto dos autos, pois o que verdadeiramente releva é a liberdade que o credor tem de pedir o reembolso quando quiser.

Afigura-se, pois, face ao exposto, que no contrato em questão, podendo o credor exigir o pagamento a qualquer altura, isso resolve-se, no fim de contas, numa obrigação sem prazo, pois também nestas o credor pode exigir a prestação a qualquer altura.

Aliás, o acerto desta equiparação sai corroborado pelo facto de, perante a cláusula em questão, a própria Ré devedora ter, sem dúvida, o direito previsto no n.º 3 do artigo 777.º do Código Civil, («Se a determinação do prazo for deixada ao credor e este não usar da faculdade que lhe foi concedida, compete ao tribunal fixar o prazo, a requerimento do devedor»), de se desonerar da obrigação para com a credora solicitando ao tribunal a fixação de prazo para o vencimento da prestação a favor da Autora.

Concluir assim é considerar que a Autora antes de ter instaurado esta acção devia ter previamente lançado mão da mencionada acção para fixação judicial de prazo, como condição para obter a restituição da quantia em questão.

Na sentença sob recurso considerou-se que a Ré «…volvida quase uma década sobre a interpelação, recusa-se terminantemente a efectuar a restituição da quantia de 104.747,56€ por não reconhecer tal obrigação. Neste concreto circunstancialismo, conforme se aludiu no acórdão supra citado da Relação do Porto de 19.09.1995, não faria sentido a fixação judicial de prazo – ocorrendo recusa peremptória e definitiva, com a apontada duração temporal, seria despiciendo lançar mão, previamente, do processo de jurisdição voluntária de fixação judicial de prazo».

Não se localizou o acórdão referido, mas não se afigura procedente esta argumentação pelas seguintes razões:

É certo que contestando o devedor a existência ou a validade da relação jurídica, no âmbito da qual se situa a necessidade de fixar um prazo, poderá argumentar-se que o credor não poderá recorrer à acção judicial para fixação de prazo, na medida em que a finalidade desta acção, como se vê pelo disposto nos artigos 1456.º e 1457.º do Código de Processo Civil e n.º 2 do artigo 777.º do Código Civil, consiste apenas na fixação do prazo, residindo o desacordo das partes apenas na sua fixação, não sendo o processo próprio, ao invés, para discutir questões relativas à existência ou validade da relação jurídica de onde emerge a prestação.

Alguma jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que havendo contestação da obrigação por parte do devedor a acção de fixação judicial de prazo é inútil ([9]).

Afigura-se, porém, que não é de seguir este caminho, pelo menos em todos os casos, pois a fixação judicial de prazo, mesmo que o devedor conteste a existência ou validade da obrigação, como no caso dos autos, sempre terá a virtualidade de tornar certo que dentro do prazo fixado pelo tribunal o devedor deve efectuar uma dada prestação, no pressuposto de que é devida.

Se for necessário, mais tarde, instaurar uma acção para obter o cumprimento e, caso haja contestação da dívida, mas a acção proceda, ficar-se-á a saber que o devedor entrou em mora a partir do termo do prazo fixado pelo tribunal.

Há, por conseguinte, utilidade na mencionada acção, mesmo que não haja consenso entre as partes acerca da existência da dívida ([10]).

No caso dos autos, se já tivesse existido uma acção para fixação judicial de prazo e este tivesse já esgotado, a Ré estaria em mora desde essa data, pelo que a acção em causa terá efeito útil sempre que possa desencadear a mora do devedor.

Por outro lado, a função da acção para fixação judicial do prazo visa proteger os interesses da sociedade contra uma saída de fundos num determinado momento, com a qual poderia não estar a contar e tal facto poder-lhe-ia trazer prejuízos se fosse consentido, como, por exemplo, ficar impedida de cumprir pontualmente um contrato.

Ora, se se defender que o credor do suprimento pode exigir o reembolso do capital em qualquer altura, então são possíveis duas hipóteses opostas quanto ao tempo do reembolso.

Uma consiste em a sociedade ser obrigada a pagar de imediato, logo que feita a exigência do pagamento, o que implica a obrigação da sociedade ter em reserva a quantia indicada para entregar logo que exigida; outra, na necessidade do credor pedir a fixação judicial de prazo, justificando-se esta medida com a necessidade de harmonizar os interesses da sociedade e do sócio, procurando-se um prazo de pagamento que equilibre e sirva o melhor possível os interesses de ambas as partes.

A primeira das hipótese não é compatível com os fins do contrato de suprimento, pois se a sociedade fosse obrigada a manter em reserva o capital recebido para o entregar ao sócio logo que exigido, isso implicava que não o pudesse utilizar e, então, neste caso, o empréstimo nem fazia sequer sentido.

Por isso, a única solução viável é, na falta de acordo entre as partes, a fixação judicial do prazo de reembolso.

Sendo assim, face ao que fica exposto, o facto de uma sociedade se recusar a devolver o dinheiro, sob a justificação do credor não ter direito ao reembolso, não introduz qualquer fundamento material que implique um desvio à regra da obrigatoriedade do credor do suprimento requerer a fixação judicial do prazo para o reembolso.

Com efeito, as eventuais perturbações na vida da sociedade derivadas do reembolso imediato do capital tanto podem ocorrer na altura do pedido feito pelo sócio, como passados 10 anos sobre o mesmo pedido.

E nem se pode falar, em rigor, de uma situação abusiva por parte da sociedade, pois o sócio tem sempre a possibilidade de requerer a fixação judicial do prazo, como se disse, e impedir que a situação de recusa de pagamento da sociedade se prolongue indefinidamente no tempo, pelo menos isenta das consequência ligadas à mora.

Por conseguinte e concluindo, verifica-se que o recurso da Ré procede em parte, na medida em que, muito embora não obtenha vencimento no que respeita à sua absolvição quanto à obrigação de reembolsar a Autora da quantia em questão, procede no que respeita à exigibilidade imediata da mesma.

Por conseguinte, nos termos do disposto no art. 662º do Código de Processo Civil, a Ré será condenada a reconhecer a dívida e a pagá-la no prazo e termos que vierem a ser estipulados em juízo, sem prejuízo das partes poderem resolver o diferendo de forma consensual.

b) Recurso subordinado.

Este recurso respeita à questão de saber se o vencimento dos juros ocorre a partir de 12 de Dezembro de 2002, calculados à taxa legal comercial.

Na sentença a Ré foi condenada a pagar juros à taxa civil desde a citação.

Os juros devidos sempre seriam os civis, na medida em que o marido da Autora embora sendo sócio da Ré tal status não lhe conferiu a qualidade de comerciante, pois quem é comerciante é a sociedade e não o sócio ([11]), não havendo, por isso, fundamento para a exigência de juros comerciais, à taxa prevista no artigo 102.º do Código Comercial.

Seja como for, face à procedência do recurso interposto pela Ré, o recurso subordinado, considerando o seu objecto, improcede, pois a questão dos juros só se colocará quando vier a ser fixado prazo para o reembolso, mas não neste momento, por não existirem.

IV. Decisão.

Considerando o exposto:

1 - Julga-se o recurso interposto pela Ré parcialmente procedente e revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré no pagamento imediato da quantia de €104.747,56 (cento e quatro mil, setecentos e quarenta e sete euros e cinquenta e seis cêntimos) e respectivos juros.

Julga-se o recurso interposto pela Ré improcedente na restante parte, pelo que se mantém a decisão no sentido da Ré pagar à autora aquela quantia, mas no prazo e termos que vierem a ser estipulados em juízo, sem prejuízo das partes poderem resolver o diferendo de forma consensual.

Custas da acção e do recurso interposto pela Ré na proporção de 50% para cada parte.

2 - Julga-se o recurso subordinado improcedente.

Custas deste recurso pela Autora.


*

Alberto Ruço ( Relator )

Judite Pires

Carlos Gil



[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, (reimpressão), Coimbra Editora/1984, pág. 140.
[2] Ob. cit. pág. 141.

[3] O argumento por analogia consiste em inferir uma propriedade «como residindo no objecto A, devido ao facto dessa propriedade «c» existir no objecto B e sabermos que os objectos A e B têm em comum as propriedades «d, e, f, g…».

Quanto maior for o número de propriedades comuns entre os dois objectos, mais probabilidades há de eles terem em comum essa mesma propriedade «c» - cf. António Zilhão, in Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, de João Branquinho e Desidério Murcho, Lisboa: Gradiva, 2001, pág. 71.

No direito, identificado um caso como análogo a um outro, mas carecido de regulamentação jurídica, a lacuna existente quanto ao primeiro caso será preenchida pela aplicação do regime legal previsto para este último.
[4] Sociedades por Quotas, Vol. II, Almedina/1989, págs. 88. No mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-1999, C.J. (S.T.J.) ano II, tomo III, pág. 176 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-2-99, in Sociedades Comerciais, Colectânea de Jurisprudência, Edições/2009, pág. 367.
No sentido da aplicação por interpretação extensiva ver João Aveiro Pereira, O Contrato de Suprimento, Coimbra Editora/1997, pág. 117.
[5] Neste sentido o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-2-99.
[6] Refere este autor, relativamente às situações do n.º 3 do artigo 243.º do Código das Sociedades Comerciais, que «A ideia é sempre a mesma: a duração efectiva do crédito por um período de um ano, o que tanto pode suceder quando nenhum prazo foi estipulado, como quando foi convencionado um prazo inferior a um ano, mas, apesar de decorrido esse prazo, o reembolso não foi exigido» - ob. cit., Vol. II, págs. 115/116.
[7] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição actualizada, Coimbra Editora/1986, pág. 575.
[8] Lições de Direito Civil, 4.ª Edição revista, Almedina/1995, pág. 693.

[9] Neste sentido ver o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de Junho de 2008 (Canelas Brás), com referência ao n.º 0723905 (www.dgsi.pt) e muitos outros aí citados: «I- No processo de fixação judicial de prazo o tribunal deve ater-se às questões que são intrínsecas ao problema da fixação do prazo, pressupondo um desacordo das partes quanto a essa fixação, a dirimir pelo tribunal.

II - Porém, se o requerido anunciou que não aceitava a obrigação para cujo cumprimento se destinava a fixação do prazo, o tribunal deve abster-se de o fazer por inutilidade».
[10] No sentido do credor necessitar apenas de justificar o seu direito veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Março de 1984, e jurisprudência aí citada no mesmo sentido, onde se ponderou que «I – O processo de fixação judicial do prazo é um processo de jurisdição voluntária que visa o preenchimento de uma cláusula acessória do contrato, indispensável para a determinação da mora. II – Não cabem no âmbito desse processo indagação sobre a nulidade do contrato donde deriva a obrigação cujo prazo de cumprimento se pretende seja fixado» - C.J. ano IX-2-36.
[11] Como elucidou o Prof. Oliveira Ascensão, «O sócio de uma sociedade comercial não se torna por esse facto comerciante. Aquele que adquiriu acções na bolsa não alterou a sua qualificação perante o Direito Comercial. Comerciante não é o sócio, é a sociedade, que é pessoa jurídica diferente» - Direito Comercial, Parte Geral (Lições), Vol. I, Lisboa/1988, pág. 251.