Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/20.6GDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO PENAL
DOLO
DOLO DO TIPO
ELEMENTO INTELECTUAL OU COGNITIVO DO DOLO
ELEMENTO VOLITIVO DO DOLO
ELEMENTO EMOCIONAL DO DOLO
ACUSAÇÃO NULA
CONSEQUÊNCIA DA ACUSAÇÃO NULA
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTIGOS 13.º E 16.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 358.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – A estrutura acusatória do processo penal português impõe que o objecto do processo seja fixado, com rigor e a precisão adequados, em determinados momentos processuais, designadamente na acusação.

II – O dolo do tipo é comummente definido, na sua forma mais simplificada, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.

III – O elemento intelectual ou cognitivo do dolo respeita ao conhecimento do tipo de ilícito e implica a previsão ou representação, por parte do agente, dos elementos constitutivos do tipo objectivo do ilícito, ou seja, o conhecimento ou representação “dos elementos de facto ou de direito de um tipo de crime”, nos termos do nº 1 do artigo 16.º do Código Penal.

IV – O elemento volitivo do dolo relaciona-se com a vontade de realizar um ilícito-típico, ou seja, após conhecer os elementos típicos do crime o agente toma voluntariamente a decisão de realizar o tipo de ilícito, por acção ou omissão. 

V – A nossa doutrina exige, ainda, do agente um momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo, uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo.

VI – A descrição do conhecimento da proibição legal na acusação só é exigível nos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, por isso, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito, fazendo-se sentir que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social.

VII – A insuficiência da descrição dos elementos subjectivos dos crimes imputados não pode ser integrada em julgamento, com recurso ao disposto no artigo 358.º do C.P.P., e torna a acusação manifestamente infundada.

Decisão Texto Integral:
Acórdão da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I -  Relatório

1.1.  Os assistentes AA e BB interpuseram recurso do despacho … que rejeitou a acusação particular quanto aos crimes de injúria e de alteração de marcos, considerando-a nessa parte manifestamente infundada.

1.2. No recurso em apreciação os assistentes apresentaram as seguintes conclusões:

2. Os recorrentes discordam da interpretação do tribunal a quo do disposto nos arts. 285.º, 283.º, n.º 3, 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, als. b) e c) do CPP, arts. 181.º, 216.º do CP.

3. Com efeito, a acusação particular descreve fatos e define concretamente os dispositivos legais que a fundamentam.

4. A acusação contém as indicações tendentes a identificação de tempo e fatual que permitem a defesa por parte dos Arguidos, reunindo todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de injúrias.

5. A acusação não enferma de qualquer nulidade pelo que deveria ter sido recebida …

1.3. O Ministério Público junto ao tribunal a quo respondeu ao recurso concluindo

Assiste razão aos recorrentes quando afirmam que a acusação particular contem os seus elementos objectivos (factos e normas jurídicas) … é omissa quanto ao elemento subjetivo (dolo) referente aos crimes de injúrias e de alteração de marcos.

1.4. … o Exm.º Procurador Geral Adjunto concordou com os recorrentes …

***

II -  Fundamentação de Facto

A - Despacho sob recurso (transcrição do despacho na parte que agora importa):

Rejeita-se parcialmente a acusação particular deduzida pelos assistentes AA e BB, uma vez que não estão reunidos na acusação particular todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de injúrias e de alteração de marcos …

*

B - Acusação particular parcialmente rejeitada pelo tribunal a quo:

“1º- Em 11 de Maio de 2020, no lugar de ..., perto da Rua ... …

2º - Abeirando-se do local, viram os assistentes que o arguido CC, munido de máquina havia retirado um marco que dividia as propriedades destes, estando a colocar nele um poste de cimento que ainda está no local e que foi verificado pela GNR que se deslocou ao local, poste esse colocado em prejuízo da propriedade dos assistentes, com intenção de alterar a área das propriedades.

4º - Nisto, os arguidos CC e DD, em discurso repetido, foram dizendo dirigindo-se aos ofendidos AA e BB para ‘tomar conta da mulher dele, que ela anda a portar-se mal’ ‘o teu carro é visto numa habitação à noite e tu sabes bem o que ela lá vai fazer’ querendo com isto insinuar que ela é infiel ao marido.

5º - Mais disse o denunciado CC que o ofendido AA é um ladrão, que ‘roubas de dia e de noite’.

6º - E afirmando ainda que a ofendida BB ‘és uma égua, uma fraca’.

9º - E no envolvimento da discussão, munido de uma enxada e levantando-a no ar, o arguido CC disse para o assistente AA ‘levas com o sacho pela cabeça abaixo’, ameaçando o AA e provocando neste medo e temor.

9º - Acresce que no dia 10 de Maio de 2020 o mesmo denunciado CC alertou de forma falsa a GNR ..., afirmando que o ofendido AA estaria infetado com Coronavírus.

10º - A GNR deslocou-se aa residência do AA e tentaram impedir que este fizesse a sua vida normal, ameaçando o ofendido com prisão caso ele saísse de casa.

11º - O denunciado CC criou temor e receio não sabendo o ofendido a quem mais terá o CC espalhado tal mentira.

12º - Bem sabendo que tal era falso – e que a gravidade da sua mentira poderia ser enorme.

13º - Em 24/10/2020 …

14º - Voltou o denunciado a proferir as expressões que o AA ‘é um ladrão’, ‘toma conta da tua mulher, vê bem o que ela anda a fazer quando não estás cá…’.

15º - Sabendo os assistentes que o Arguido CC e Arguida DD, espalham na aldeia as mesmas expressões e comentários de conotação pejorativa que dirigiram aqui aos assistentes.

16º- Tanto que também o arguido CC em Maio ou Junho desse ano de 2020, quando estava presente a Mãe da Assistente BB, em voz alta e dirigindo-se a BB disse ‘cabra de merda, puta do caralho, andas por ai de noite sem meu irmão saber’.

17º - Os arguidos agiram de modo livre, voluntário e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas, ora descritas eram proibidas e punidas por Lei Criminal, querendo-a mesmo assim.

Cometeram, assim, os arguidos, como autores materiais:

- O arguido CC, crime de alteração de marcos previsto e punido pelo artigo 216º do código penal.

- os arguidos CC e DD, três crimes de injúria p.e.p pelo art. 181º do Código Penal

- os arguidos CC e DD, um crime de difamação, p.e.p pelo art. 180º do Código Penal”.

***

III -  Fundamentação de Direito

Apreciando e decidindo

a) …

b) A principal questão a apreciar nesta instância de recurso, prende-se em saber se a acusação particular omite factos atinentes aos elementos subjectivos e objectivos dos crimes de injúria e alteração de marcos …

c) É pacificamente aceite, na doutrina e jurisprudência, que a estrutura acusatória do processo penal português impõe que o objecto do processo seja fixado, com rigor e a precisão adequados, em determinados momentos processuais, designadamente, no caso que agora nos importa, na acusação; as divergências manifestam-se apenas quanto às consequências processuais da omissão dessa articulação, as quais  estiveram na origem  ao Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro … que fixou  jurisprudência no sentido de que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”. 

d) Relativamente aos elementos objectivos dos crimes, o despacho recorrido não refere quais os elementos em falta, limitando-se, de forma puramente conclusiva, a considerar os mesmos como omitidos da acusação particular; neste campo, concordamos com o Ministério Público (tanto junto a tribunal a quo como junto a este tribunal da Relação) no sentido de que não se verifica tal omissão.

e) Resta apreciar se os elementos subjectivos do tipo dos crimes de injuria e alteração de marcos constam da acusação particular.

Nos termos do art 13º do Cód. Penal “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.”

O dolo do tipo é comummente definido, na sua forma mais simplificada como “conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito;

A primeira componente do dolo - o conhecimento do tipo de ilícito (elemento intelectual ou cognitivo) - implica a previsão ou representação, por parte do agente, dos elementos constitutivos do tipo objectivo do ilícito; implica o conhecimento ou representação “dos elementos de facto ou de direito de um tipo de crime” – cfr. art 16º Cód. Penal.

A segunda componente do dolo, relaciona-se com a vontade de realizar um ilícito-típico (elemento volitivo); após conhecer os elementos típicos do crime, o agente toma voluntariamente a decisão de realizar o tipo de ilícito (por acção ou omissão). 

A nossa doutrina, distingue ainda entre dolo do tipo (de ilícito) e o dolo enquanto pertencente ao tipo de culpa, exigindo ainda do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo, contidos no conhecimento e vontade de realização; “uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas» (…) ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo; uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal (…) - Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, p. 488 e ss, ed. Coimbra e “Jornadas de Direito Criminal”, CEJ, 1983, págs. 57 e 58; A punição por facto doloso só se justifica por um elemento que pertence ao tipo de culpa quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal” - M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, pág. 118/119, comentário n.º 15 ao art 14º, 2014, ed. Almedina.

f) Os crimes imputados ao arguido na acusação particular são os de injúria e de alteração de marcos, com previsão respectivamente no art 181º e 216º do Cód. Penal, os quais apenas prevêem que possam ser cometidos com dolo, e já não por negligência.

g) Feitos estes considerandos, passemos então finalmente à análise do caso sob recurso, avaliando a acusação de forma a apurar se a mesma descreve os elementos acima enunciados nos quais se desdobra o dolo.

Lida a acusação particular em causa, constata-se que, ao nível do elemento subjetivo, o único facto onde se descrevem os elementos subjectivos do tipo do crime de injúria e o crime de alteração de marcos é o facto n. 17, no qual se lê que “Os arguidos agiram de modo livre, voluntário e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas, ora descritas eram proibidas e punidas por Lei Criminal, querendo-a mesmo assim”.

A frase acima transcrita, no segmento “Os arguidos agiram de modo livre, voluntário” descreve de forma suficiente que aqueles  podiam agir de outro modo, ou seja, que lhes era facultada a possibilidade de agir de acordo com o direito; relata que os arguidos puderam determinar a sua acção, optando por o fazer; a expressão “agiram de forma livre e conscientemente”, permite afastar a existência  de causas de exclusão da culpa, assim se afirmando a liberdade do agente do crime na actuação contra o direito;  descreve que a sua resolução em dizer as frases consideradas injuriosas ou em alterar o local do marcos resultou da sua capacidade de autodeterminação. 

… a mesma frase, no trecho “bem sabendo que as suas condutas, ora descritas eram proibidas e punidas por Lei Criminal, querendo-a mesmo assim” permite integrar a questão do conhecimento da proibição legal, ainda que a mesma será apenas exigível “em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contraordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo  - cfr. citado Acórdão Uniformizador nº 1/2015, ponto 10.2.3.1.

No caso, a generalidade das pessoas saberá que proferir expressões injuriosas contra outrem, ofensivas da sua honra ou bom nome, assim como alterar ou arrancar marco é um comportamento proibido por lei; de todo o modo, como se referiu, não restam dúvidas que o elemento do tipo subjetivo se mostra preenchido nesta parte.

h) Mas a acusação particular já é omissa quanto ao conhecimento dos elementos do tipo (elemento intelectual); como acima mencionámos, o que o elemento intelectual exige é o conhecimento do sentido ou significado correspondente ao tipo de ilícito dos diversos elementos materiais e normativos que o compõem.

No caso, nenhuma frase se refere ao conhecimento por parte do arguido relativamente a estes elementos; assim seria imprescindível que a acusação adoptasse uma expressão como “o arguido sabia que as expressões por si proferidas eram susceptíveis de atingir a honra e a consideração dos Assistentes”, ou expressão similar. 

Assim como relativamente ao crime de alteração de marcos seria necessário que a mesma acusação contivesse uma frase da qual resultasse o conhecimento dos elementos materiais e normativos do tipo; era assim imprescindível que a mesma peça processual contivesse uma expressão como “o arguido sabia que o marco dividia as propriedades do arguido e dos assistentes, sabendo que com a deslocação do marco alterava ilegitimamente para si a área das mesmas propriedades, em prejuízo dos assistentes”.

Note-se que, quanto ao crime de difamação, os assistentes lograram integrar o referido elemento intelectual do dolo, ao escreverem no art 12º “bem sabendo (o arguido) que tal era falso” (a informação prestada à GNR no sentido de que o assistente estaria infectado com uma doença contagiosa); o mesmo não sucede relativamente aos outros 2 crimes.

j) Face à insuficiência da descrição dos elementos subjectivos na acusação, e atenta a doutrina do Acórdão Uniformizador nº 1/2015 acima citado, relativamente à qual  não divergimos, não poderá ser integrada a matéria em falta em julgamento, designadamente com recurso ao disposto no art. 358º do Cód. Processo Penal, o que torna a acusação manifestamente infundada, já que os factos nela descritos não constituíam os crimes imputados ao arguido, pelo que bem andou o tribunal a quo  ao decidir rejeitar essa peça processual com base no disposto nos art.s 283º, n.º 3, al. b), e 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d) do Cód. Processo Penal -  cfr. acórdão  desta Relação de Coimbra, de 23-8-2018, processo n.º 373/15.0JACBR.C1,  e o acórdão  desta Relação de Coimbra de 15-5-2019, processo n.º 267/16.2T9PMS.

*

IV - Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente o recurso interposto …

Custas pelos recorrentes com mínimo de taxa de justiça.

Coimbra, 22 de Fevereiro de 2023

João Novais

Rui Pedro Lima

Jorge Jacob