Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1776/11.5T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
CENTRAL DE RESPONSABILIDADES DE CRÉDITO
COMUNICAÇÃO
DANOS
Data do Acordão: 01/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV - AVEIRO - JMPIC - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 204/2008 DE 14/10, ARTS. 483, 498 CC
Sumário: 1.- Decorre do DL 204/2008 de 14/10 uma obrigação dos Bancos de enviarem mensalmente ao Banco de Portugal todos os créditos e respectivas situações, sendo responsáveis pelas comunicações efectuadas, o que permite uma actualização mensal da informação constante de tal Central de Responsabilidades.

2.- O automatismo dessa comunicação e as consequências que dela nascem para o cliente impõem um reforço do cuidado e da diligência por forma a evitar o erro e as suas consequências.

3.- A responsabilidade dos Bancos derivada do mau cumprimento dessa obrigação deve ser apreciada à luz do instituto da responsabilidade civil aquiliana previsto nos artigos 483.º a 498.º, do Código Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                       

                                                                        I

F (…)  e A (…), residentes na Avenida (...), Aveiro intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo sumário, contra BANCO (…), S.A., com sede na Avenida (...), Lisboa, pedindo a condenação deste a pagar-lhes quantia não inferior a €6.000,00 (seis mil euros), a título de danos não patrimoniais, a favor de cada um dos  Autores, acrescida de juros de mora a contar da data da sentença até integral e efetivo pagamento.

Alegam, em síntese, para o efeito, que exercem a atividade de empresários, participando no capital social de algumas sociedades comerciais. Para o exercício da atividade empresarial e de gestão de sociedades comerciais, é relevante a confiança, idoneidade, reputação, seriedade, bom nome e capacidade de cumprimento das obrigações. O empresário que seja tido por incumpridor das suas obrigações tem maior dificuldade na obtenção de crédito, ou mesmo impossibilidade de tal concessão de financiamento bancário. A pessoa que tenha inscrito o seu nome na Central de Responsabilidades de Crédito (CRC), como incumpridor de obrigação a que esteja vinculado é tido junto da banca e negócios em geral como pessoa que não cumpre e, por isso, oferece risco de negócio.

A Ré, no exercício da sua atividade, como instituição de crédito, celebrou com a sociedade (…), Lda., um contrato pelo qual a primeira prestou garantia bancária até ao valor de €25.000,00, assegurando para a dita sociedade o pagamento da responsabilidade perante o senhorio, em contrato de arrendamento em que intervinha como arrendatária.

Como acessório ao referido contrato, a título de garantia foi entregue à Ré uma livrança avalizada pelos aqui Autores, sem preenchimento, assim como foi constituído penhor a favor da Ré sobre uma aplicação financeira titulada pelos  Autores, denominada de “Unidades de Participação de Capitalização Dinâmica”.

No contexto da vigência do aludido contrato, em Dezembro de 2010, a Ré não renovou a garantia bancária prestada, tendo a mesma vindo a ser acionada pelo beneficiário senhorio que lhe exigiu o seu pagamento, obrigação que a Ré cumpriu.

No mesmo mês de Dezembro de 2010 a Ré comunicou à (...) ter sido acionada e, em consequência cumprida, pela sua parte, a garantia bancária, reclamando desta sociedade o pagamento do valor por si pago como garante, mas não comunicou aos  Autores o pagamento da dita garantia, nem a interpelação feita à garantida (...) para pagamento ou, deu-lhes conta de qualquer incumprimento por parte destes.

Não obstante, nos meses de Dezembro de 2010, Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 2011, a Ré comunicou à Central de Responsabilidades de Crédito (doravante CRC) o incumprimento pelos  Autores do pagamento da sua responsabilidade como avalistas naquele sobredito contrato.

Deste modo, os nomes dos  Autores ficaram associados a uma situação de incumprimento e acessível por qualquer instituição bancária, financeira ou de consultoria.

Apenas em Maio de 2011 a Ré comunicou à Autora mulher a situação de incumprimento da obrigada (...) e a consequente responsabilidade subsidiária dos avalistas, aqui  Autores, nunca chegando a fazê-lo ao Autor marido.

Ademais, a Ré nunca preencheu ou apresentou a pagamento a livrança avalizada pelos  Autores, sendo certo que, de imediato e no mês de Maio de 2011 aquando da interpelação da Autora mulher, os  Autores regularizaram o incumprimento junto da Ré, altura em que esta fez cessar a comunicação de incumprimento à referida Central de Responsabilidades de Crédito.

De acordo com a instrução n.º 21/2008, a Ré estava obrigada a comunicar previamente aos avalistas/fiadores (aqui Autores) a constituição da sua responsabilidade naquela qualidade de garantes, antes de comunicar o incumprimento à Central de Responsabilidades de Crédito, o que não fez.

Na verdade, os Autores, só em Fevereiro de 2011, foram alertados de que os seus nomes se encontravam inscritos junto da referida Central de Responsabilidades de Crédito com indicação de que tinham incumprido as suas obrigações para com a Ré, após terem sido informados da recusa do banco B... em conceder-lhes crédito, recusa esta que teve na sua origem aquela inscrição.

Na mesma altura, pelo mesmo motivo, os Autores receberam do banco C...a recusa na concessão de crédito no valor de €15.000,00. Poucos dias depois, no mesmo mês de Fevereiro, pelos mesmos motivos, a Ré mulher foi confrontada com a impossibilidade de utilização do seu cartão de crédito.

Perante o sucedido, os Autores tiveram de justificar a alegada situação de incumprimento junto das instituições bancárias em causa, no sentido de repor o crédito, prestígio, bom nome e confiança que até ali detinham.

O incumprimento da Ré configura um ilícito que causou aos Autores danos não patrimoniais, que merecem ser compensados com uma quantia não inferior a €6.000,00.

A Ré contestou, negando o incumprimento da obrigação aduzida pelos Autores e esclarecendo que os  Autores foram informados, na qualidade de avalistas, de acordo com os procedimentos habituais do acionamento da garantia e do respetivo cumprimento da mesma.

Como não pagaram, a Ré teve de comunicar o incumprimento à Central de Responsabilidades de Crédito. Os efeitos desta comunicação vieram a cessar com a regularização por banda dos Autores, em Maio de 2011, na sequência duma segunda interpelação que lhes foi dirigida pela Ré em 5 de Maio de 2011.

Terminou, pedindo que a ação seja julgada improcedente, por não ter atuado de forma ilícita e culposamente.

Realizou-se a audiência de julgamento após o que foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, e, em consequência, condenou a Ré Banco (…), S.A. a pagar a cada um dos Autores F (…) e A (…), a quantia de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da presente data até integral e efetivo pagamento.

Inconformado com tal decisão veio o Réu recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

Contra-alegaram os  Autores, pugnando pela manutenção do decidido.

                                                                        II

É a seguinte a factualidade julgada provada pelo tribunal a quo:

1. A pessoa coletiva “ D..., Lda.” é uma sociedade por quotas, com sede no Edifício (...), Ílhavo, que se dedica à promoção de investimentos imobiliários, nomeadamente, construção, compra, venda e administração de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim com o capital social de 200.000,00, distribuído por cinco quotas, uma de €140.000,00, pertencente a E..., S.A.; e as outras quatro de € 15.000,00, cada uma, pertencentes a (…) (que corresponde à alínea A) dos Factos Assentes).

2. A pessoa coletiva “ E..., S.A.” é uma sociedade anónima, com sede no Edifício (...), Ílhavo, fazendo parte do conselho de administração (…) (que corresponde à alínea B) dos Factos Assentes).

3. A pessoa coletiva “ F..., Lda.” é uma sociedade por quotas, com sede na Rua (...), Aveiro, de que são sócios (…) (que corresponde à alínea C) dos Factos Assentes).

4. O Banco de Portugal administra uma base de dados conhecida por Central de Responsabilidades de Crédito onde os bancos e entidades financeiras reportam, designadamente, situações de incumprimento dos seus clientes ou contrapartes (que corresponde à alínea D) dos Factos Assentes).

5. Essa base de dados é consultada pelas instituições financeiras portuguesas em geral para avaliação do risco de incumprimento de clientes ou das partes consigo contratantes (que corresponde à alínea E) dos Factos Assentes).

6. A Ré tem a natureza de instituição de crédito (que corresponde à alínea F dos Factos Assentes).

7. Entre a Ré e a sociedade comercial com a firma “(…) Lda.”, foi celebrado um contrato pelo qual a Ré prestou garantia bancária até ao valor de €25.440,00, garantindo o pagamento da responsabilidade decorrente para a dita (...) perante o senhorio em contrato de arrendamento de que intervinha como arrendatária (que corresponde à alínea G) dos Factos Assentes).

8. Como acessório ao referido contrato de garantia firmado entre a (...) e a Ré, a título de garantia foi entregue à Ré uma livrança avalizada pelos aqui Autores, sem preenchimento (que corresponde à alínea H) dos Factos Assentes).

9. E foi constituído penhor a favor da Ré sobre uma aplicação financeira titulada pelos  Autores, denominada “Unidades de Participação de Capitalização Dinâmica” (que corresponde à alínea I) dos Factos Assentes).

10. Em Dezembro de 2010 a Ré não renovou a garantia bancária prestada, tendo a mesma vindo a ser acionada pelo beneficiário senhorio que lhe exigiu o seu pagamento (que corresponde à alínea J) dos Factos Assentes).

11. Obrigação que a Ré cumpriu ( que corresponde à alínea L) dos Factos Assentes).

12. No mesmo mês de Dezembro de 2010 a Ré comunicou à dita (...) ter sido acionada e cumprida a garantia bancária, reclamando desta sociedade o pagamento do valor por si pago como garante (que corresponde à alínea M) dos Factos Assentes).

13-A (novo facto 13-A) - Nos meses de Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 2011, a Ré comunicou à Central de Responsabilidades de Crédito, o incumprimento pelos Autores do pagamento da sua responsabilidade. (que corresponde à alínea N) dos Factos Assentes). [este facto não consta enunciado no elenco dos factos provados, na sentença, cremos que, por lapso, mas a sua inclusão impõe-se, ainda que no presente momento, nos termos do art. 662 nº 1 b) do novo CPC, pois que, resultou do despacho proferido em 12-03-2012, a fls. 130, o qual incidiu sobre a reclamação à seleção da matéria de facto]

13. Em Maio de 2011 a Ré fez cessar a comunicação de incumprimento dos  Autores acima indicada, que havia centralizado à Central de Responsabilidades de Crédito (que corresponde à alínea O) dos Factos Assentes).

14. Até pelo menos 31 de Dezembro de 2010, a Ré não comunicou, por escrito, aos  Autores o pagamento da garantia bancária (corresponde à resposta dada ao facto 1º da base instrutória).

15. Até pelo menos 31 de Dezembro de 2010, a Ré não comunicou, por escrito, aos  Autores que havia interpelado para pagamento a sociedade (...) (corresponde à resposta dada ao facto 2º da base instrutória).

16. A Ré comunicou à Central de Responsabilidades de Crédito o incumprimento pelos  Autores do pagamento da sua responsabilidade como avalistas naquele sobredito contrato de garantia, encontrando-se tal informação disponível a 31 de Dezembro de 2010 (corresponde à resposta dada ao facto 3º da base instrutória).

17. Os nomes dos Autores ficaram, desta forma, associados a situação de incumprimento e acessível por qualquer instituição bancária e/ou financeira (corresponde à resposta dada ao facto 4º da base instrutória).

18. A Ré, apenas em Maio de 2011, mediante missiva de folhas 39, comunicou, por escrito, à Autora mulher a situação de incumprimento da obrigada (...) e a consequente responsabilidade subsidiária dos avalistas aqui Autores (corresponde à resposta dada ao facto 5º da base instrutória).

19.A Ré nunca fez igual comunicação ao Autor marido (corresponde à resposta dada ao facto 6º da base instrutória).

20. A Ré não preencheu ou apresentou a pagamento a livrança avalizada pelos  Autores (corresponde à resposta dada ao facto 7º da base instrutória).

21. Os  Autores regularizaram o incumprimento junto da Ré (corresponde à resposta dada ao facto 8º da base instrutória).

22. Em Fevereiro de 2011, os  Autores receberam do banco C...a recusa na concessão de crédito no valor de €15.000,00 que ali haviam peticionado (corresponde à resposta dada ao facto 12º da base instrutória).

23. Tal recusa deveu-se ao facto de os Autores constarem inscritos junto da Central de Responsabilidades de Crédito como incumpridores de obrigação perante a Ré, conforme explicação dada pelo gerente da agência bancária de Aveiro daquele banco (corresponde à resposta dada ao facto 13º da base instrutória).

24. Poucos dias depois, no mesmo mês de Fevereiro de 2011, a Ré mulher foi confrontada com a impossibilidade de concretizar determinada operação com o seu cartão de crédito (corresponde à resposta dada ao facto 14º da base instrutória).

25. Contactado o Banco Best, entidade emitente de tal cartão, recebeu o esclarecimento de que a referida impossibilidade decorria da circunstância de estar em vigor junto da Central de Responsabilidades de Crédito um registo de incidente relativo a crédito vencido e não cumprido junto da Ré (corresponde à resposta dada ao facto 15º da base instrutória).

26. Os Autores tiveram de se explicar junto das instituições bancárias acima identificadas e justificar a alegada situação de incumprimento, com vista a tentarem repor o crédito, prestígio, bom nome e confiança junto dos bancos com que trabalham (corresponde à resposta dada ao facto 16º da base instrutória).

27. Os  Autores são pessoas conhecidas na cidade de Aveiro e em várias instituições bancárias, nomeadamente nas suas agências de Aveiro e de Ílhavo (corresponde à resposta dada ao facto 17º da base instrutória).

28. Os  Autores possuem boa reputação e crédito (corresponde à resposta dada ao facto 18º da base instrutória).

29. No exercício das suas profissões trabalham diariamente com várias instituições de crédito, onde a sua confiança, seriedade e idoneidade são importantes para o seu normal giro de crédito e comercial (corresponde à resposta dada ao facto 19º da base instrutória).

30. Os  Autores sentiram-se profundamente vexados, envergonhados e humilhados pelo facto de lhes ter sido imputado incumprimento bancário que não tinham em falta (corresponde à resposta dada ao facto 20º da base instrutória).

31. Tal sentimento intensificou-se pela circunstância de tal incumprimento ter sido publicitado pela sua inscrição junto da Central de Responsabilidades de Crédito, com acesso e conhecimento a toda e qualquer entidade bancária ou financeira do País (corresponde à resposta dada ao facto 21º da base instrutória).

32. Até hoje, a Ré não apresentou desculpas aos Autores, nem se retratou (corresponde à resposta dada ao facto 22º da base instrutória).

                                                                        III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 684º nº 3 do VCPC/art. 635 nº 3 do NCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 660º nº 2 /art.608 in fine), são as seguintes as questões a decidir:

I - Da impugnação da matéria de facto

II - Da qualificação do instituto da responsabilidade civil aplicável ao caso como “responsabilidade civil não contratual”  e não “contratual”

III - Da verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

I - Impugnação da matéria de facto

(…)

Improcede, por isso tal impugnação do recurso.

II - Saber se a conduta da Ré se enquadra no domínio da responsabilidade contratual ou, antes, no domínio da responsabilidade civil extracontratual

Os apelados alicerçaram a sua pretensão na responsabilidade civil extracontratual (artºs 88 a 90 da petição inicial).

A sentença recorrida não enquadra de imediato a conduta da Ré no instituto da responsabilidade (civil) contratual ou não contratual. O que da sentença resulta é, desde logo, uma análise de uma possível responsabilidade contratual dos apelados (Autores) que justificasse a conduta informadora da apelante (Ré) junto da Central de Responsabilidades de Crédito (CRC). Conclui a sentença pela inexistência dessa responsabilidade, por não terem os apelados violado qualquer obrigação contratual a que, como avalistas, estivessem vinculados.

E, passando depois à análise da conduta da apelante, a sentença recorrida, sem o dizer expressamente, enquadra-a no âmbito da responsabilidade civil extracontratual.

Disso é exemplo o seguinte texto que ora ressalvamos:

“Deste modo, a comunicação efetuada, no caso dos autos, pela Ré à Central de Responsabilidades de Crédito, que trata-se de uma base de dados administrada pelo Banco de Portugal, onde os bancos e as entidades financeiras reportam, designadamente situações de incumprimento dos seus clientes ou contrapartes, consubstanciou um facto ilícito. Com efeito, o Réu comunicou uma situação que, ainda, não configurava, por não preencher os requisitos legais, um verdadeiro incumprimento, quer por não ter interpelado os devedores (subsidiários), quer por não lhes ter concedido um prazo razoável para o cumprimento da obrigação.

Do exposto, decorre que a atuação da Ré ao proceder à comunicação foi sem dúvida ilícita, mas também culposa. Na verdade, a Ré, sendo uma instituição bancária, agiu, pelo menos, com falta de cuidado, ou seja, com negligência.

A obrigação de comunicação da Ré, enquanto instituição bancária que é, resulta da lei, em concreto do Regime Jurídico relativo a Central de Responsabilidades de Crédito, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 204/2008, de 14 de Outubro. (…) Há assim uma obrigação dos bancos enviarem mensalmente ao Banco de Portugal todos os créditos e respetivas situações, sendo por isso responsáveis pelas comunicações efetuadas, o que permite uma atualização mensal da informação constante de tal Central de Responsabilidade” (cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 16/10/2012, publicado in www.dgsi.pt).

Todavia, “ o facto de os bancos serem obrigados a remeter mensalmente e por via informática ao Banco de Portugal todos os créditos e a respetiva situação devidamente codificada não irresponsabiliza aqueles pela comunicação efetuada.

O automatismo dessa comunicação e as consequências que dela nascem para o cliente impõem um reforço do cuidado e da diligência por forma a evitar o erro e as suas consequências.” ( in acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/05/2011, publicado in www.dgsi.pt)”.

A responsabilidade da apelante apura-se, pois, na sentença, por via do cumprimento duma obrigação legal e não contratual, o que tem a nossa concordância.

Está em causa nestes autos uma informação comunicada ao Banco de Portugal (Central de Responsabilidades de Crédito) por parte da apelante/Ré de que os apelados/AA. eram garantes incumpridores.

Os pressupostos do dever de comunicar e a responsabilização das entidades a esse dever vinculadas, resultam do disposto no Dec-Lei nº 204/2008 de 14/10 [que estabelece o regime jurídico relativo à Central de Responsabilidades de Crédito (CRC)]  e da instrução nº 21/2008 do Banco de Portugal e, não de qualquer relação contratual, nomeadamente da relação de aval estabelecida.

É certo que, aquele que dispõe de uma livrança avalizada – o portador - deve, em relação aos avalistas proceder em respeito pelos termos definidos na relação contratual estabelecida com o subscritor, como por ex. respeitar o montante acordado, o tempo de vencimento, o local de pagamento, mas, no caso, não é isso que está em causa.

A obrigação da apelada efetuar a comunicação ao Banco de Portugal, verificados que sejam determinados pressupostos, e apenas quando verificados, resulta, não de um acordo de vontade das partes, mas antes da lei, em concreto do referido Regime Jurídico relativo a Central de Responsabilidades de Crédito, aprovado pelo DL 204/2008 de 14 de Outubro e ao qual a Ré, enquanto entidade bancária está sujeita.

Desse modo, rege o artigo 483º do Código Civil que estabelece que “aquele que, como dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Assim, a responsabilidade da apelada, a existir, decorre da violação de disposições legais destinadas a proteger os interesses de garantes, e não de termos contratuais, pelo que, terá de ser apreciada no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, como, de resto, fez e bem, a sentença recorrida.

III - Da verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

Chegados a este ponto e determinado que o regime legal aplicável é o previsto no artº 483 do C.Civil, importa analisar se estão verificados todos os pressupostos que permitem concluir que a apelante está obrigada a indemnizar os apelados.

Estabelece o artigo 1º do DL 204/2008 de 14 de Outubro:

“Artigo 1.º (Objeto)

1 - A Central de Responsabilidades de Crédito (CRC), assegurada pelo Banco de Portugal, nos termos da sua Lei Orgânica, aprovada pela Lei nº 5/98, de 31 de Janeiro, tem por objeto:

a) Centralizar as responsabilidades efetivas ou potenciais de crédito concedido por entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal ou por quaisquer outras entidades que, sob qualquer forma, concedam crédito ou realizem operações análogas; b) Divulgar a informação centralizada às entidades participantes; c) Reunir informação necessária à avaliação dos riscos envolvidos na aceitação de empréstimos bancários como garantia no âmbito de operações de política monetária e de crédito intradiário.

2 - A Central de Responsabilidades de Crédito abrange a informação recebida relativa a responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito, sob qualquer forma ou modalidade, de que sejam beneficiárias pessoas singulares ou coletivas, residentes ou não residentes em território nacional.

(…)”

Nos termos do artigo 2º:

“4 - A informação divulgada pelo Banco de Portugal, constante da Central de Responsabilidades de Crédito, é da responsabilidade das entidades que a tenham transmitido, cabendo exclusivamente a estas proceder à sua alteração ou retificação, por sua iniciativa ou a solicitação dos seus clientes, sempre que ocorram erros ou omissões”

Por sua vez, no artº 3º nº 2 prevê-se um dever de comunicação, em que, em cada mês é feita a atualização da informação pela Instituição de Crédito, que o pode retificar.

Há assim uma obrigação dos Bancos de enviarem mensalmente ao Banco de Portugal todos os créditos e respetivas situações, sendo responsáveis pelas comunicações efetuadas, o que permite uma atualização mensal da informação constante de tal Central de Responsabilidades.

Com vista a regulamentar a Central de Responsabilidades de Crédito, a Instrução nº 21/2008 do Banco de Portugal, veio determinar que:  

“1. Objeto

As entidades participantes são obrigadas a comunicar ao Banco de Portugal a informação relativa a responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito, sob qualquer forma ou modalidade, de que sejam beneficiárias pessoas singulares ou coletivas, residentes ou não residentes em território nacional, competindo ao Banco de Portugal efetuar a centralização e divulgação dessa informação”

 e ainda:

“4. Dever de informação aos devedores

a) As entidades participantes deverão, antes da celebração do contrato de crédito, informar o devedor sobre os factos suscetíveis de gerar comunicações à Central de Responsabilidades de Crédito, o que poderá ser feito no próprio contrato de crédito ou em documento anexo ao mesmo.

b) (…)

c) No caso dos garantes (fiadores ou avalistas) que sejam chamados a substituir os devedores principais no pagamento do crédito, a entidade participante deverá informá-los dessa situação e apenas deverá comunicá-los na situação de incumprimento se o pagamento do crédito não tiver sido efetuado dentro do prazo estabelecido para esse efeito” (sublinhado nosso).

São estas as disposições legais que importa ter presente no apuramento da responsabilidade da Ré.

A diferença de regime entre a responsabilidade contratual e não contratual tem desde logo a implicação de, nesta, não se presumir a culpa do devedor, como ocorre naquela, por força do disposto no artº 799 do C.Civil.

Importa, contudo, esclarecer que, ao contrário do sugerido nas alegações da apelante,  esta inversão do ónus da prova refere-se apenas à culpa (dolo ou negligência) do devedor e não ao nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Na situação em apreço compete aos apelados provar a culpa da apelante.

Vejamos então se estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil previstos no artº 483 do C.Civil: o facto; a ilicitude; um vínculo de imputação do facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, (cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, pág. 355 ss.).

Para o efeito importa considerar a seguinte factualidade:

- No mês de Dezembro de 2010 a apelante comunicou à (...) ter sido acionada e cumprida a garantia bancária, reclamando desta sociedade o pagamento do valor por si pago como garante.

- A apelante comunicou à Central de Responsabilidades de crédito o incumprimento pelos apelados do pagamento da sua responsabilidade como avalistas naquele sobredito contrato de garantia, encontrando-se tal informação disponível a 31 de Dezembro de 2010, sendo que, até pelo menos esta data, a apelante não havia comunicado, por escrito, aos  apelados o pagamento da garantia bancária e que havia interpelado para pagamento a sociedade (...).

- A apelante, apenas em Maio de 2011, mediante missiva de folhas 39, comunicou, por escrito, à apelada mulher a situação de incumprimento da obrigada (...) e a consequente responsabilidade subsidiária dos avalistas, aqui apelados, mas nunca fez igual comunicação ao apelado marido.

- Com a comunicação acima referida, os nomes dos apelados ficaram associados a situação de incumprimento e acessível por qualquer instituição bancária e/ou financeira.

- Provou-se, ainda, que a apelante não preencheu ou apresentou a pagamento a livrança avalizada pelos  apelados.

- Mais se apurou que os apelados regularizaram o incumprimento da apelante e que em Maio de 2011 a apelante fez cessar a comunicação de incumprimento dos  apelados acima indicada, que havia dirigido à Central de Responsabilidades de Crédito.

- Em Fevereiro de 2011, os Autores receberam do banco C...a recusa na concessão de crédito no valor de €15.000,00, devido ao facto de os Autores constarem inscritos junto da Central de Responsabilidades de Crédito como incumpridores de obrigação perante a Ré.

- No mesmo mês de Fevereiro de 2011, a Ré mulher foi confrontada com a impossibilidade de concretizar determinada operação com o seu cartão de crédito decorrente da circunstância de estar em vigor junto da Central de Responsabilidades de Crédito um registo de incidente relativo a crédito vencido e não cumprido junto da Ré.

- Os Autores tiveram de se explicar junto das instituições bancárias e justificar a alegada situação de incumprimento, com vista a tentarem repor o crédito, prestígio, bom nome e confiança junto dos bancos com que  trabalham, pois que, são pessoas conhecidas na cidade de Aveiro e em várias instituições bancárias, nomeadamente nas suas agências de Aveiro e de Ílhavo, possuindo boa reputação e crédito.

-No exercício das suas profissões trabalham diariamente com várias instituições de crédito, onde a sua confiança, seriedade e idoneidade são importantes para o seu normal giro de crédito e comercial.

- Os  Autores sentiram-se profundamente vexados, envergonhados e humilhados pelo facto de lhes ter sido imputado incumprimento bancário que não tinham em falta. Sentimento que se intensificou pela circunstância de tal incumprimento ter sido publicitado pela sua inscrição junto da Central de Responsabilidades de Crédito, com acesso e conhecimento a toda e qualquer entidade bancária ou financeira do País.

Não oferece dúvidas, nem é objeto do recurso, a constatação de que estamos perante um facto voluntário do agente, no caso, numa ação, consubstanciada na prestação duma informação ou comunicação, e que essa informação foi prestada voluntariamente.

Importa, sim, apurar da ilicitude, da culpa, dos danos e do nexo de causalidade entre a conduta e os danos.

A comunicação efetuada pela Ré à Central de Responsabilidades de Crédito, que trata-se de uma base de dados administrada pelo Banco de Portugal, onde os bancos e as entidades financeiras reportam, designadamente situações de incumprimento dos seus clientes ou contrapartes, consubstanciou um facto ilícito.

Com efeito, a apelante comunicou uma situação que, no momento não ocorria, pois que,  não tendo interpelado os devedores (subsidiários), nem lhes tendo concedido um prazo razoável para o cumprimento da obrigação, como impõe a Instrução do Banco de Portugal nº 21/2008, não estavam preenchidos os requisitos legais de um verdadeiro incumprimento, por parte destes.

A apelante nem sequer preencheu ou apresentou a pagamento a livrança avalizada pelos  apelados.

Como bem ponderou a 1ª instância:

“Na situação dos autos, a Ré não usou da diligência necessária e procedeu à comunicação ao Banco de Portugal, antes dos  Autores se encontrarem numa situação considerada como de incumprimento. Na verdade, em momento prévio, a Ré estava obrigada, por se tratar de obrigação sem prazo certo- por não existir prazo pré-definido para o seu cumprimento-, a interpelar os  Autores, no sentido destes procederem ao pagamento da garantia. Como decorre dos factos assentes, tal não aconteceu , só veio a ocorrer muito mais tarde, depois de efetuada a comunicação, e apenas relativamente à autora mulher, tendo sido na sequência desta interpelação, aliás, liquidada a garantia. Como assim, a Ré agiu de forma negligente e, nessa medida, encontra-se preenchido mais um dos pressupostos da responsabilidade civil, qual seja a culpa”.

Assim, a atuação da apelante ao proceder à comunicação, sem tais pressupostos, foi sem dúvida ilícita.

Mas também culposa, porquanto, a apelante, sendo uma instituição bancária agiu, pelo menos, com falta de cuidado.

A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente e pode revestir duas formas distintas, o dolo e a negligência ou mera culpa.

A precipitação da apelante foi, no mínimo, negligente.

E, provocou danos aos apelados, pois que estes, ao constarem da lista da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, passaram a ter um fator negativo de avaliação do risco na concessão de crédito, que até aí não tinham, que não era real, e que, na prática, se traduziu pela frustração de pelo menos duas operações de crédito. Além disso sentiram-se humilhados, vexados e envergonhados.

Finalmente, tem que haver um nexo causal entre o facto e o dano, ou seja, um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.

Ora, perante tal realidade factual, forçoso se mostra concluir por uma conduta ilícita e culposa que causou prejuízos aos apelados.

Reunidos estão os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que conduzem à obrigação de indemnizar.

Assim, estando os apelados incumbidos de fazer a prova de todos os factos constitutivos do seu direito, de acordo com o princípio geral do ónus da prova previsto no artº 342 nº 1 do C.P.C., a verdade é que o fizeram.

Improcedem por consequência, todas as questões do recurso.

Em suma:

- Decorre do DL 204/2008 de 14/10 uma obrigação dos Bancos de enviarem mensalmente ao Banco de Portugal todos os créditos e respetivas situações, sendo responsáveis pelas comunicações efetuadas, o que permite uma atualização mensal da informação constante de tal Central de Responsabilidades.

- O automatismo dessa comunicação e as consequências que dela nascem para o cliente impõem um reforço do cuidado e da diligência por forma a evitar o erro e as suas consequências.

- A responsabilidade dos Bancos derivada do mau cumprimento dessa obrigação deve ser apreciada à luz do instituto da responsabilidade civil aquiliana previsto nos artigos 483.º a 498.º, do Código Civil.

                                                                        IV

Termos em que, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

(Anabela Luna de Carvalho - Relatora )

 (João Moreira do Carmo)

 (José Fonte Ramos)