Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
330/12.9TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: FALTA DE CONTESTAÇÃO
COMINAÇÃO
IMPROCEDÊNCIA MANIFESTA
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA, 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 2.º DO DL 259/98, DE 1 DE SETEMBRO, DL 329-A/95 E ART.º 20.º DO DL 133/2009, DE 2 DE JULHO
Jurisprudência Nacional: AUJ N.º 7/2009
Sumário: I. O art.º 2.º do DL 259/98, de 1 de Setembro não repristinou o princípio do cominatório pleno que caracterizou o nosso sistema processual até à reforma introduzida pelo DL 329-A/95.
II. A manifesta improcedência de que o juiz pode e deve conhecer antes de proferir a decisão condenatória (implícita na atribuição de força executiva à petição inicial) pode manifestar-se na circunstância da pretensão deduzida contrariar jurisprudência uniformizada.

III. A doutrina fixada nos AUJ mantém-se válida para as decisões proferidas no domínio da mesma legislação que incidam sobre a mesma questão fundamental de direito, o que ocorre quando, variando embora a legislação, subsista a identidade de princípios.

IV. O art.º 20.º do DL 133/2009, de 2 de Julho não introduziu qualquer alteração relevante ao quadro jurídico considerado pelo AUJ n.º 7/2009.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

A..., S.A., antes denominadoB..., S.A, sociedade anónima, com sede na ... Lisboa

veio instaurar contra

C..., divorciado, residente na ...Coimbra, e , solteira, maior, residente no ..., Eiras, acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, pedindo a final a condenação solidária dos RR a pagar-lhe a importância de € 11.027,87, acrescida de € 500,43 de juros vencidos até 31 de Janeiro de 2012, e de € 20,02 de imposto de selo sobre os juros vencidos, e ainda os juros que sobre a dita quantia de € 1.302,72 se vencerem, à taxa anual de 21,996%, desde 1 de Fevereiro de 2012 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair, e ainda os juros que sobre a dita quantia de € 9.725,15 se vencerem, à taxa anual de 17,890%, desde 1 de Fevereiro de 2012 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair, tudo acrescido do pagamento das custas, procuradoria e mais legal.

Em fundamento alegou, em síntese útil, que:

- no exercício da sua actividade comercial, concedeu aos réus crédito directo sob a forma de contrato de mútuo, no dia 14 de Agosto de 2009, assim tendo emprestado aos referidos réus a importância de € 2.199,80 euros;

 - nos termos desse contrato, os réus obrigaram-se a pagar a importância acima referida e respectivos juros, comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio de seguro de vida em 36 (trinta e seis) prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira em 15 de Setembro de 2009, e as seguintes nos dias 15 dos meses subsequentes;

- também ficou acordado que, na falta de pagamento de três ou mais prestações na data do respectivo vencimento, as demais prestações vencer-se-iam imediatamente, cada uma no valor de € 81,42;

- em caso de mora, sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada - 17,996% -, acrescida de quatro pontos percentuais;

- os réus, porém, não pagaram a 21.ª prestação, vencida a 15.05.2011, sendo assim devedores à autora da quantia referente à 21ª. prestação e seguintes, a que acrescem os juros, incluindo a cláusula penal referida, e ainda o imposto de selo, à taxa de 4% ao ano;

- a autora emprestou ainda aos réus, através de contrato datado de 2 de Outubro de 2007, sob a forma de mútuo para, de acordo com informação prestada pelos mutuários, adquirirem uma viatura, a importância de € 12.374,48;

- nos termos desse contrato, os réus obrigaram-se a pagar a importância acima referida e respectivos juros, comissão de gestão, despesas de transferência de propriedade, imposto de selo de abertura de crédito e o prémio de seguro de vida em 84 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 15 de Novembro de 2007, e as seguintes nos dias 15 dos meses subsequentes;

- também ficou acordado que, na falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento, as demais prestações ficavam vencidas imediatamente, cada uma no valor de € 239,09;

- em caso de mora, sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada -13,890%-, acrescida de quatro pontos percentuais;

- os réus, porém, não pagaram a 43.ª prestação, vencida a 15.05.2011, sendo assim devedores à autora da quantia referente à 43ª. prestação e seguintes, a que acrescem os juros, incluindo a cláusula penal referida, e ainda o imposto de selo, à taxa de 4% ao ano, imposto de selo;

- instados pela autora para pagarem a importância em dívida e respectivos juros, os réus fizeram a entrega àquela do mencionado veículo adquirido, de modo a que a autora diligenciasse pela sua venda e, em consequência, creditasse o valor dessa venda por conta da dívida, ficando os demandados de pagar-lhe o saldo do que viesse a ficar em débito;

- a 29 de Novembro de 2011, a autora procedeu à venda do veículo citado pelo preço de € 1.330,14, tendo esse valor sido abatido no valor da dívida dos réus, que ficaram devedores do remanescente de capital, no montante de € 9.725,15 euros, a que acrescem os juros e imposto de selo.
*

Citados pessoalmente, nenhum dos RR ofereceu oposição, vindo a ser proferida sentença que, na parcial procedência do pedido formulado, condenou solidariamente os RR no pagamento à autora:

- no que respeita ao crédito firmado em 14.08.2009, da quantia de € 81,42 (oitenta e um euros e quarenta e dois cêntimos), correspondente à 21.ª prestação, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, desde a data de vencimento dessa prestação até integral pagamento, à taxa de juro contratual acordada, acrescida de 4 pontos percentuais, mais o respectivo imposto de selo, à taxa de 4%, e da quantia que vier a ser liquidada, através de incidente de liquidação previsto no art.º 378.º, do CPC, referente ao capital correspondente às prestações 22.ª a 36.ª, excluindo-se de tais prestações a parte correspondente a juros remuneratórios, imposto e seguros, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, desde 15.05.2011 até integral pagamento, à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de 4 pontos percentuais, mais o respectivo imposto de selo, à taxa de 4%, no mais tendo absolvido os RR do pedido;
- no que respeita ao crédito firmado em 02.10.2007, da quantia de € 239,09 (duzentos e trinta e nove euros e nove cêntimos) - correspondente à 43.ª prestação, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, desde a data de vencimento dessa prestação até integral pagamento, à taxa de juro contratual acordada, acrescida de 4 pontos percentuais, mais o respectivo imposto de selo, à taxa de 4% e da quantia que vier a ser liquidada, através de incidente de liquidação previsto no art.º. 378.º do CPC, referente ao capital correspondente às prestações 44.ª a 84.ª, deduzido o montante de € 1.330,14 (mil, trezentos e trinta euros e catorze cêntimos) (relativo à venda do veículo dos réus pela autora), excluindo-se ainda de tais prestações a parte correspondente a juros remuneratórios, imposto e seguros, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, desde 15.05.2011 até integral pagamento, à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de 4 pontos percentuais, mais o respectivo imposto de selo, à taxa de 4%, no mais tendo absolvido os réus do pedido.

Inconformada com o decidido, veio a autora interpor tempestivo recurso e, tendo apresentado alegações, delas extraiu as seguintes conclusões:
1. À matéria de facto dada como provada nos autos impõe-se acrescentar a matéria de facto referida na parte final do art.º 8.º da petição inicial e o que consta das cartas juntas aos autos como respectivos documentos 4 e 5.
2. A sentença recorrida violou, atenta a matéria de facto provada nos autos, o disposto no art.º 20.º do DL 133/2009, de 2/6, isto com referência ao contrato de 12 de Janeiro de 2011[1] referido nos autos.
3. O acórdão do STJ n.º 7/2009 não é lei no país e, aliás, é inaplicável a sua orientação aos contratos celebrados após a entrada em vigor do dito DL 133/2009, de 2 de Junho, cujo art.º 33.º, n.º 1, al. a), expressamente revogou o DL 359/91, de 21/9.
4. O dito acórdão não é, aliás, assento.
5. O art.º 2.º do Código Civil foi revogado pelo n.º 2 do art.º 4.º do DL 239-A/95, de 12/12.
6. Atenta também a natureza do processo em causa -processo especial- e o facto de os RR, regularmente citados, não terem contestado, deveria o Sr. juiz “a quo” ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo, nem podendo assim pronunciar-se sobre quaisquer outras questões, face ao disposto no art.º 2.º do regime aprovado pelo DL 259/98, de 1 de Setembro, preceito que a sentença recorrida violou.

Com tais fundamentos pretende a revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que condene os RR na totalidade do pedido, tal como formulado na petição inicial.

Não houve contra-alegações.
*

Sabido que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, como resulta do preceituado nos art.ºs 684 n.º 3 e 685.º-A do CPC, as questões que este tribunal de recurso foi chamado a resolver são as seguintes:

i. se deve proceder a requerida alteração da matéria de facto, aditando-se ao elenco dos assentes o alegado pela autora em 8.º da petição inicial;

ii. se o Tribunal “a quo” se devia ter limitado a conferir força executiva à petição inicial, estando-lhe vedado entrar na apreciação do mérito da pretensão formulada, assim tendo violado o disposto no artigo 2.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei 259/98, de 1 de Setembro;

iii. se o AUJ n.º 7/2009 e a orientação nele consagrada são inaplicáveis ao contrato  celebrados após a entrada em vigor do dito Decreto-Lei 133/2009, de 2 de Junho, tendo sido violado o disposto no art.º 20.º deste diploma.
*

i. Pretende o recorrente seja alterada a matéria de facto, em ordem a contemplar o por si alegado no art.º 8.º da petição, com o seguinte teor: “Os referidos RR, das prestações referidas, não pagaram a 21.ª prestação e seguintes, num total de 16, vencida a primeira em 15 de Maio de 2011, vencendo-se então todas do montante de cada uma de € 81,42, conforme cartas que o Autor dirigiu aos RR”.

A propósito do alegado, considerou o Tribunal como provado o que, desde já se adianta, afigura correcto, que “Os réus, porém, não pagaram a 21.ª prestação, vencida a 15.05.2011, liquidando-se, então, todas as demais prestações e resolvendo-se o contrato de mútuo desde a data desse vencimento”.

Com efeito, se é certo que os RR não deduziram oposição, não tendo impugnando os documentos juntos sob os n.ºs 4 e 5, para que remetia o aludido artigo da base instrutória, não é menos certo que não é porque a autora diz que se encontram vencidas todas as prestações, tendo cada uma um determinado montante, que assim passa a ser.

Por outro lado, podendo considerar-se como assente o envio das missivas com o conteúdo assinalado, daí não se retira quanto pretende a recorrente no sentido de ficar por definitivamente assente serem os RR devedores nos termos que lhe foram comunicados. De todo o modo, porque se trata da interpelação, determina-se a alteração da factualidade assente, em ordem a nela incluir que pela autora foram enviadas aos RR as cartas cujas cópias foram juntas como docs. n.ºs 4 e 5, delas se extraindo o conteúdo relevante.

                                                       *

II- Fundamentação

De facto

Agora estabilizada a matéria de facto, são os seguintes os factos a considerar:

1. A autora é uma instituição de crédito.

2. No exercício da sua actividade comercial, a autora concedeu aos réus crédito directo sob a forma de contrato de mútuo, no dia 14 de Agosto de 2009, tendo, assim, emprestado aos referidos réus a importância de € 2.199,80 euros.

3. Nos termos desse contrato, os réus obrigaram-se a pagar a importância acima referida e respectivos juros, comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio de seguro de vida em 36 (trinta e seis) prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 15 de Setembro de 2009 e as seguintes nos dias 15 dos meses subsequentes.

4. Também ficou acordado que, na falta de pagamento de três ou mais prestações na data do respectivo vencimento, as demais prestações ficavam vencidas imediatamente; cada uma possui o valor de € 81,42 euros.

5. E ainda que, em caso de mora, sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada -17,996%-, acrescida de quatro pontos percentuais.

6. Os réus, porém, não pagaram a 21.ª prestação, vencida a 15.05.2011, liquidando-se, então, todas as demais prestações e resolvendo-se o contrato de mútuo desde a data desse vencimento.

7. A autora dirigiu a cada um dos RR, para as moradas constantes do acordo celebrado, a carta cujas cópias consta de fls. 33 e 34 dos autos, com o seguinte teor:

“Ref.: contrato n.º 922161

Apesar de todas as diligências e insistentes contactos já ocorridos, continua V. Ex.ª sem pagar as importâncias em dívida do contrato em referência.

Encontram-se ao presente em débito 3 ou mais prestações sucessivas, ou seja, as prestações nºs 21, vencida em 15/5/2011, 22, vencida em 15/6/2011, 23, vencida em 15/7/2011, 24, vencida em 15/8/2011, 25, vencida em 15/9/2011, 26, vencida em 15/10/2011.

Assim, nos termos e de harmonia com o disposto nas cláusulas das condições gerais do referido contrato, comunicamos a V. Exa. que lhe concedemos um prazo suplementar de 20 dias de calendário, a contar da data da presente carta, para proceder ao pagamento do montante das ditas prestações, acrescido dos respectivos juros, da comissão de estão em função de cada prestação em mora, tudo num total de € 884,97.

Caso até ao termo do limite do referido prazo não seja efectuado o pagamento da dita importância consideramos, nos termos expressamente acordados, vencidas todas as demais prestações por perda do benefício do prazo contratual”.

8. A autora emprestou ainda aos réus, através de contrato datado de 2 de Outubro de 2007, sob a forma de mútuo para, de acordo com informação prestada pelos mutuários, adquirirem uma viatura, a importância de € 12.374,48.

9. Nos termos desse contrato, os réus obrigaram-se a pagar a importância acima referida e respectivos juros, comissão de gestão, despesas de transferência de propriedade, imposto de selo de abertura de crédito e o prémio de seguro de vida em 84 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 15 de Novembro de 2007 e as seguintes nos dias 15 dos meses subsequentes.

10. Também ficou acordado que, na falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento, as demais prestações ficavam vencidas imediatamente, cada uma no valor de € 239,09 euros.

11. E ainda que, em caso de mora, sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada -13,890%-, acrescida de quatro pontos percentuais.

12. Os réus, porém, não pagaram a 43.ª prestação, vencida a 15.05.2011, liquidando-se, então, todas as demais prestações e considerando-se resolvido o contrato de mútuo desde a data desse vencimento.

13. Instados pela autora para pagarem a importância em dívida e respectivos juros, os réus fizeram a entrega àquela do mencionado veículo adquirido, de modo a que a autora diligenciasse pela sua venda e, em consequência, creditasse o valor dessa venda por conta da dívida, ficando os demandados de pagar-lhe o saldo do que viesse a ficar em débito;

14. A 29 de Novembro de 2011, a autora procedeu à venda do veículo citado pelo preço de € 1.330,14 euros, tendo ficado com essa quantia para si por conta da importância que os réus deviam referente ao contrato citado supra em 8.
*

De Direito

ii. Primeira questão de natureza jurídica colocada pela recorrente, e que abrange ambos os contratos, saber se ao Tribunal estava vedada a apreciação do mérito da decisão, devendo limitar-se a conferir força executiva à petição inicial, atento o disposto no artigo 2.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei 259/98, de 1 de Setembro.

É o seguinte o teor da disposição legal em referência: “Se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente”.

O regime cominatório aqui estabelecido não coincide com o cominatório pleno que caracterizou o nosso sistema processual até à reforma introduzida pelo DL 329-A/95, não operando de forma automática, antes impondo ao juiz que, antes de proferir a decisão condenatória (implícita na atribuição de força executiva à petição), verifique da não ocorrência de evidentes excepções dilatórias e que o pedido deduzido não é manifestamente improcedente[2].

Ora, a manifesta improcedência, conforme jurisprudência que se veio progressivamente consolidando, pode manifestar-se na circunstância da pretensão deduzida contrariar jurisprudência com valor reforçado, como é aqui o caso[3]. Na verdade, se a pretensão formulada pelo autor não encontra acolhimento no regime jurídico invocado, ainda que na interpretação fixada por acórdão uniformizador de jurisprudência quando o juiz decisor não encontra fundamento para dela se afastar estamos, sem dúvida, perante pedido que, de forma evidente, clara e incontroversa, não pode ser acolhido[4]. Impor diferente procedimento apenas porque o réu não contestou seria “(…) despir o julgador da sua veste de julgar. E mais, obrigá-lo a conferir força executiva a uma petição inicial, conhecendo as várias orientações jurídicas sobre o fundo da causa, e determiná-lo a chancelar uma orientação diversa da que perfilha, corresponde à prevalência da forma sobre o fundo, à revelia do rumo que assinalámos para o processo civil. Acresce que constituiria um forte elemento de insegurança jurídica determinar o julgador a decidir de modo diverso consoante estivesse em causa uma acção contestada e uma acção não contestada”[5].

Nestes termos, improcede este fundamento do recurso.
*

iii. Insurge-se ainda a recorrente contra a aplicação da doutrina do AUJ n.º 7/2009, por não ser lei no país, nem tão pouco assento, dada a revogação do art.º 2.º do CC pelo n.º 2 do art.º 4.º do DL 239-A/95, de 12 de Dezembro.

A este respeito, a indignação da recorrente afigura-se, de algum modo, inconsequente, pois em lado algum se atribuiu, na decisão recorrida, tal valia ao referido acórdão. Não obstante, não sendo a jurisprudência uniformizada sequer vinculativa para os tribunais judiciais, não deixa de constituir um “precedente persuasivo”[6], revestindo natural e reforçada autoridade, considerando não só a sua proveniência, como o seu processo formativo. Deste modo, por imperativo do princípio da segurança e certeza jurídicas, tão caros ao Direito, o afastamento da doutrina assim fixada deverá assentar em razões ponderosas, alicerçando-se em fundamentação convincente e convocando novos argumentos, não debatidos nem rebatidos pelo acórdão uniformizador. E a verdade é que o recorrente não trouxe aos autos nenhum argumento que validamente coloque em causa a doutrina fixada no referido acórdão, que a 1.ª instância acolheu e que este Tribunal também não vê razão para afastar.

Questão diversa, saber se o Tribunal fez gravame à recorrente, violando o preceituado no art.º 20.º do DL Decreto-Lei 133/2009, de 2 de Junho, ao aplicar a disciplina do AUJ ao contrato celebrado em 14 de Agosto de 2009, ao qual se circunscreve esta última via de ataque à decisão proferida.

Antes de mais, impõe-se precisar que a doutrina fixada nos AUJ se mantém válida para as decisões proferidas no domínio da mesma legislação que incidam sobre a mesma questão fundamental de direito. Daí que seja sempre admissível recurso das decisões proferidas contra jurisprudência uniformizada se observado aquele duplo requisito (art.º 678.º, n.º 2, al. c) do CPC). Todavia, conforme já admitia o Prof. Alberto dos Reis[7], pode a legislação variar e subsistir identidade de princípios, propondo por isso uma “interpretação rasgada e larga da fórmula «no domínio da mesma legislação», de modo a abranger, não só o caso de interpretação e aplicação dos mesmos diplomas legais, como também o da interpretação de textos diferentes, mas que contêm regras jurídicas iguais”. Vale isto por dizer que, mantendo-se, na substância, a mesma regra de direito, permanece válida a doutrina uniformizadora.

Pois bem, de retorno ao caso que nos ocupa, constata-se que o convocado art.º 20.º do DL 133/2009 nenhum contributo trouxe em abono da pretensão da recorrente.

Epigrafado de “Não cumprimento do contrato de crédito pelo consumidor”, dispõe o citado preceito que

“1. Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes:

a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10 % do montante total do crédito;

b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato.

2. A resolução do contrato de crédito pelo credor não obsta a que este possa exigir o pagamento de eventual sanção contratual ou a indemnização, nos termos gerais.”

Conforme justamente se acentua no já citado aresto da Rel. de Lisboa de 14/6/2002 (proferido no processo n.º 1676/11.9 TJLSB) o preceito em causa “veio regular, no n.º 1 – dificultando, em benefício do devedor consumidor – as condições em que pode ocorrer a perda do benefício do prazo e a resolução do contrato de crédito, tornando obrigatória a interpelação admonitória e conversão da mora em incumprimento definitivo (…)”, nada se extraindo do seu teor no sentido preconizado pela apelante, uma vez que não introduziu qualquer alteração relevante ao quadro jurídico considerado pelo AUJ n.º 7/2009.[8]

Finalmente, defendeu a recorrente nas suas alegações que o contrato em causa sempre estaria subtraído à doutrina do AUJ, uma vez que neste expressamente se previu que as partes pudessem convencionar regime diverso do consagrado no art.º 781.º do Código Civil, em homenagem ao princípio da liberdade de estipulação (vide ponto 10. do acórdão em causa), regime legal que diz ter sido afastado no caso vertente, atento o teor do clausulado em 7.º b).

Pois bem, admitindo que tal fundamento de divergência com o decidido integra ainda a conclusão 3.ª, e fazendo reverter a dúvida em benefício da apelante, sempre se dirá que não lhe assiste, ainda aqui, razão. Na verdade, o que consta do contrato celebrado não é, nem mais, nem menos, do que a perda do benefício do prazo pelo devedor no caso de mora, regime decalcado do dito art.º 781.º, recaindo pois e claramente no âmbito da mesma questão de direito versada no AUJ, que se limitou a afirmar a -sempre assim entendida- natureza supletiva do regime consagrado no art.º 781.º.

Com efeito, conforme com toda a clareza se exarou no recentíssimo aresto desta mesma Relação proferido no processo n.º 399/12.6 TZAVR.C1 em 5/12/2012, “ Não é porque a A. o diz que as coisas deixam de ser o que são (…).

 É certo que entre os pontos ou premissas nucleares – que, no dizer do próprio Acórdão, suportaram o entendimento sufragado, tido como já antes amplamente maioritário senão mesmo uniforme no Supremo Tribunal, sobre a questão objecto do recurso de revista ampliada – se encontra, com o n.º 10, o de que “as partes no âmbito da sua liberdade contratual podem convencionar, contudo, regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no art.º 781.º do C. Civil”.

O que com a enunciação dessa «premissa nuclear» se quis significar foi, seguramente, que a norma do art.º 781º do Código Civil tem natureza supletiva e não imperativa. E que, por isso, nada obsta a que as partes, no âmbito da sua liberdade contratual, convencionem outras quaisquer consequências, que não o imediato vencimento de todas as prestações, no caso de, sendo a obrigação passível de pagamento em prestações, alguma delas não ser paga.

Mas a A. não usou dessa sua liberdade contratual, antes adoptou no contrato, designadamente na al. b) da cláusula 8ª das Condições Gerais, exactamente o princípio definido no art.º 781.º do Cód. Civil”, assim se colocando naturalmente sob a alçada da doutrina do acórdão uniformizador, improcedendo este último fundamento recursivo.[9]
*

III Decisão

Atento o que fica exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo nos seus precisos termos a sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante.

                                                       *

Sumário (art.º 713.º, n.º 7 do CPC)

I. O art.º 2.º do DL 259/98, de 1 de Setembro não repristinou o princípio do cominatório pleno que caracterizou o nosso sistema processual até à reforma introduzida pelo DL 329-A/95.

II. A manifesta improcedência de que o juiz pode e deve conhecer antes de proferir a decisão condenatória (implícita na atribuição de força executiva à petição inicial) pode manifestar-se na circunstância da pretensão deduzida contrariar jurisprudência uniformizada.

III. A doutrina fixada nos AUJ mantém-se válida para as decisões proferidas no domínio da mesma legislação que incidam sobre a mesma questão fundamental de direito, o que ocorre quando, variando embora a legislação, subsista a identidade de princípios.

IV. O art.º 20.º do DL 133/2009, de 2 de Julho não introduziu qualquer alteração relevante ao quadro jurídico considerado pelo AUJ n.º 7/2009.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] Afigura-se-nos estarmos perante manifesto lapso de escrita, querendo a recorrente referir-se ao contrato celebrado em 14/8/2009.
[2] Neste preciso sentido, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pág. 932.
[3] Seguindo esta mesma orientação arestos desta Relação de Coimbra de 2/3/2010, proc. n.º 682/07.2 XXLSB.C1; de 29/6/2010, proc. n.º 6342/08.0 TBLRA.C1; de 29/5/2012, processo n.º 2715/11.9 TBACB.C1; e de 5/12/2012, proc. n.º 399/12.6 TZAVR.C1, da Rel. do Porto, acórdão de 8/6/2010, proc. n.º 2802/09.3, e da Rel de Lisboa, acórdão de 14/6/2012, proc. n.º 1676/11.9 TJLSB. L1-2, com recenseamento de numerosas decisões, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] V., sobre o conceito de manifesta improcedência aqui a considerar, de forma desenvolvida, o excelente acórdão desta Rel. de 2/3/2010, já citado.
[5] Do mesmo aresto.
[6] Ribeiro Mendes, “Os recursos no Código do Processo Civil revisto”, 1998, pág. 108.
[7] CPC anotado, vol. vi,  págs. 267 e ss.
[8] O diploma em causa veio aliás actuar em reforço da defesa do consumidor aderente, como se vê do afastamento da regra do art.º 1147.º pelo n.º 1 do art.º 19.º, tal como igualmente se faz notar no acórdão da Rel. de Lisboa que vimos acompanhando de perto.
[9] Trilhando caminho diferente mas negando, ainda assim, razão à autora quanto a este último aspecto, aresto da Rel. de Lisboa antes citado, proferido no processo n.º 1676/11.9 TJLSB.