Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3459/11.7TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: PERFILHAÇÃO
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
ASSISTENTE
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T. J. DE VISEU 2º J. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1846, 1859, 1860 CC, 26, 326 CPC
Sumário: 1. Numa acção em que se encontra formulado pelo perfilhante quer pedido de impugnação da perfilhação, quer da anulação da perfilhação, está em causa o mesmo e único objectivo de invalidar a perfilhação, pelo que, apenas o perfilhado tem interesse directo em contradizer nessa acção (cf. art. 30, nº1 do n.C.P.Civil), pois que apenas ele e o perfilhante são sujeitos da relação de filiação que se estabeleceu e que se pretende destruir com a acção ajuizada, isto é, é unicamente o perfilhado que sofre o prejuízo que lhe advém da procedência da acção.

2. E podendo a mãe do perfilhado ter interesse em contradizer no particular do pedido de anulação por erro ou coacção (com fundamento em factualidade que lhe está a ser imputada), sem embargo esse interesse não é igual ao do perfilhado, cujo prejuízo da procedência da acção é precisamente o de ficar sem a paternidade estabelecida, donde, por não ter a mãe do perfilhado interesse directo em contradizer, correspondentemente não tem legitimidade passiva nessa acção.

3. Assim, apenas é de reconhecer à mãe do perfilhado – e como tutela para o seu interesse dependente na acção – a possibilidade de intervir como assistente (cf. art. 326º do n.C.P.Civil), precisamente para “auxiliar” na defesa do R. menor seu filho, atento o seu interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a este.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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1 – RELATÓRIO

A (…) interpôs acção declarativa com processo comum, que designou de “anulação de perfilhação”, contra E (…), tendo em vista a anulação de perfilhação feita pelo mesmo do menor D (…), filho desta, tendo como base alegada coacção moral por parte da Ré para que ele A. assumisse a paternidade do dito menor.

Foi deduzida contestação pela Ré, em que para além da dedução da excepção de incompetência internacional do tribunal português para dirimir o litígio, a mesma, em síntese, sustentou que tinha sido o A. que num acto de amor quisera perfilhar o menor D (…), apesar de saber que o mesmo não era seu filho biológico nem podia ser, porque no período de concepção não estiveram A. e Ré juntos, prosseguiu sustentando a litigância de má fé por parte do A., e concluiu pugnando pela improcedência da acção por não provada, ou pela procedência das excepções invocadas, devendo ter lugar a sua absolvição do pedido.

O A, replicou, sustentando a improcedência da excepção de incompetência internacional, a procedência da excepção de ineptidão da contestação quanto à questão da litigância de má fé, ou caso assim se não entenda, este julgado totalmente improcedente por não provado.

Em despacho judicial na sequência proferido (cf. fls. 45), a Exma. Juíza do processo ordenou a citação do Ministério Público em representação do menor D (…) na medida em que este, sendo menor de idade, não havia deduzido contestação, nem por ele a sua representante legal.

E em subsequente despacho (cf. fls. 46), adiantou que se lhe afigurava que a relação material controvertida nos autos apenas dizia respeito ao Autor (enquanto perfilhante) e ao réu D (…) (enquanto perfilhado), sendo por isso a Ré E (…) parte ilegítima na demanda (causa de absolvição da instância), donde ter ordenado a notificação das partes para no prazo de 10 dias se pronunciarem quanto a tal. Na 2ª parte desse mesmo despacho, sustentando que se divisava na petição a intenção por parte do A. de não apenas invocar a anulabilidade da perfilhação, mas também de a impugnar, ordenou a notificação do A. para esclarecer se pretendia ou não impugnar a dita perfilhação (nos termos do art. 1859º do C.Civil), sendo que na afirmativa, devia então alegar adequadamente a competente matéria de facto, e deduzir o correspondente pedido.

Dando cumprimento a este despacho, o A. veio a apresentar um “articulado” a “impugnar a perfilhação” em referência (cf. fls. 48-51 destes autos/ fls. 146-148 dos autos principais), o qual concluiu com a formulação de correspondente pedido, a saber: (I) declarar-se que o Réu D (…) não é filho do autor; (II) ordenar-se a retificação do assento de nascimento, retirando o Autor como pai, bem assim eliminando-se o apelido “(…)” do nome do menor.

Por sua vez, a Ré apresentou articulado “mantendo” a sua legitimidade (cf. fls. 51).

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Foi na sequência de todo este processado que veio a proferido despacho saneador, no qual como “questão prévia”, a Exma. Juíza de 1ª instância começou por proferir o seguinte despacho: “Nos termos do disposto no artigo 273º, nº 2, CPC, admito a ampliação do pedido operada pelo autor no seu requerimento de fls. 146 a 148.”

Na continuidade desse despacho de saneamento (e condensação) do processo, ao apreciar-se o pressuposto processual da legitimidade das partes, foi perfilhado o entendimento de que a Ré E (…) era parte ilegítima, não obstante o facto de se abordar na acção a vida privada da mesma, na medida em que “o critério de determinação da legitimidade das partes não se afere pelo interesse subjectivo destas, mas antes pela relação material controvertida oferecida pelo autor”, termos em que se concluiu da seguinte forma:

“Assim sendo, declaro a ré E (…) parte ilegítima na presente acção, pelo que decido absolvê-la da instância.

Custas da acção, nesta parte (que se fixa em 20/100), pelo autor - artigo 446º, nº 1 e 2, CPC.”

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Inconformada, apresentou a Ré recurso de apelação contra esse despacho de absolvição da instância, cuja alegação finalizou com as seguintes conclusões:

«1- O Recorrente intentou acção de anulação de perfilhação, invocando coacção moral por parte da Recorrente

2- Visto tal acusação a Recorrente é parte legítima na demanda

3- O nosso ordenamento jurídico prevê em tais acções que a mãe do menor seja demandada na acção

4- Tal como os parâmetros que tecem a legitimidade das partes aplicam-se e preenchem-se no caso concreto

Crê-se violado o disposto no art.1846º, CC e art. 26º CPC

Termos em que,

Dando provimento ao presente recurso e mantendo-se a legitimidade da Recorrente crê que seja reposta a Justiça ao caso»

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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso que importa conhecer, cumpre apreciar e decidir sobre tal.

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            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

- do acerto da decisão de absolvição da instância da Ré fundamentada na sua alegada ilegitimidade para a acção.

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a considerar são os decorrentes do relatório supra.

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da decisão de absolvição da instância da Ré fundamentada na sua alegada ilegitimidade para a acção.

Aduziu-se para fundamentar o despacho recorrido, decisivamente, que “na presente acção, que é proposta pelo perfilhante, são sujeitos da relação material controvertida apenas o próprio perfilhante (autor) e o perfilhado (do lado passivo), não detendo qualquer outra pessoa interesse idêntico ao destes na causa, como referem Pires de Lima e Antunes Varela”.

De referir que, ao invés, sustenta enfaticamente a Ré nas suas alegações, além do mais, que “No nosso entender, quando o objecto do litígio diz directamente respeito a uma determinada pessoa, será essa a parte legítima na acção.

Se o Recorrido acusa a Recorrente de coacção, não pode ser absolvida por ilegitimidade processual, pois é parte legítima na acção, é contra ela que a acção deve

ser intentada, como de facto foi, para obter o seu direito a defesa e ao contraditório.

Não podem ser alegados factos contra uma determinada pessoa e mantê-la a margem de todo o processado quando esta é acusada de coacção.

Caso contrário, a essência do alegado pelo Recorrente e a essência do processo

não pode ser tomado em conta, sendo nesse caso a acção improcedente na medida em que a parte legítima para responder pelos factos imputados não é parte na acção.”

            Que dizer?

Importa desde logo ter presente que face à fundamentação substantiva que o A. havia apresentado como causa de pedir para a sua pretensão, a Exma. Juíza a quo proferiu um despacho-convite ao A., para ulteriormente, face ao acolhimento dado por este, começar no despacho-saneador por admitir uma “ampliação do pedido”

Por via de tal, passaram a existir na acção dois pedidos, a saber, o de anulação da perfilhação (cf. art. 1860º do C.Civil) e o de impugnação da perfilhação (cf. art. 1859º do C.Civil), sendo certo que a melhor doutrina[2] entende que se justifica plenamente que os pedidos co-existam numa mesma acção, isto é, admite-se a possibilidade de se cumularem os dois meios de reagir, para se obter o mesmo resultado prático, que é o de invalidar a perfilhação[3], pois que o esforço probatório não apresenta a mesma dificuldade numa e noutra acção, com aquela primeira (anulação) a configurar-se como modo mais eficaz de tutelar o interesse legítimo do perfilhante (relativamente à impugnação).[4]

Sem embargo, cremos que se justifica ainda que na acção seja feita uma hierarquização desses dois pedidos entre si, sob a forma de “subsidiariedade” (cf. art. 554º do n.C.P.Civil), pois que o A. visa apenas conseguir a procedência de uma só das pretensões que se encontram formuladas – face ao que a outra/restante até ficará prejudicada – quando é certo que na “cumulação de pedidos” strictu sensu (cf. art. 555º do n.C.P.Civil)) o autor quer conseguir ao mesmo tempo a procedência quanto a todas as pretensões formuladas, situação de “cumulação” esta que no caso ajuizado não corresponde a qualquer interesse processual legítimo ou sequer tem justificação, sendo até equívoca, senão mesmo ilegal.

Nesta medida, cremos que terá o A. que “esclarecer “ a situação, “escolhendo” qual desses pedidos quer deduzir a título principal, passando o outro/restante a pedido subsidiário…

            Dito isto, o que temos em termos de legitimidade?

Consabidamente, a legitimidade das partes constitui um pressuposto processual – requisito de que depende dever o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, concedendo ou denegando a providência judiciária requerida – cuja falta consubstancia uma excepção dilatória conducente à absolvição da instância nos termos das disposições conjugadas dos arts. 576º, nº 2, 577º, al.e), e 578º do n.C.P.Civil.

E, como pressuposto processual, traduz-se em o processo dever correr perante os sujeitos que, em relação à providência requerida, possam ser os efectivos destinatários dos seus efeitos, isto é, da tutela jurisdicional.

Daí que a legitimidade não seja uma qualidade das partes (...) mas uma certa posição delas em face da relação material controvertida que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual.[5]

O artigo 26º do C.P.Civil[6] define a legitimidade processual através da titularidade do interesse em litígio – será parte legítima como autor quem tiver interesse directo em demandar, e como réu, quem tiver interesse directo em contradizer (nºs 1 e 2). Assim, a legitimidade do autor afere-se pela utilidade derivada da procedência da acção e a legitimidade do réu pelo prejuízo que dessa mesma procedência advenha. O mesmo é dizer que o autor é parte legítima sempre que procedência da acção (previsivelmente) lhe venha a conferir (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade, e o réu é parte legítima sempre que se vislumbre que tal procedência lhe venha a causar (para si e não para outrem, também) uma desvantagem.[7]

O nº 3 da citada disposição fixa uma regra supletiva para determinação da legitimidade segundo a qual, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito de legitimidade os sujeitos da relação material controvertida tal como a configura o autor.

Ora é por assim ser que, em nosso entender e com o devido respeito, o despacho recorrido decidiu acertadamente, nada havendo que censurar ao mesmo.

É que, na medida em que está subjacente e pressuposto na decisão da Exma. Juíza a quo ser o objectivo já anteriormente referido – quer da impugnação da perfilhação, quer da anulação da perfilhação – invalidar a perfilhação, obviamente que apenas o perfilhado tem interesse directo em contradizer na acção, pois que apenas ele e o perfilhante são sujeitos da relação de filiação que se estabeleceu e que se pretende destruir com a acção ajuizada, isto é, é unicamente o perfilhado que sofre o prejuízo que lhe advém da procedência da acção.[8]

Pois que é isto que verdadeiramente releva e importa neste particular!

Que a mãe do perfilhado possa ter interesse em contradizer no particular do pedido de anulação por erro ou coacção (com fundamento em factualidade que lhe está a ser imputada), não se contraria, sem embargo de que esse interesse não é igual ao do perfilhado, cujo prejuízo da procedência da acção é precisamente o de ficar sem a paternidade estabelecida.

Donde, não tem a mãe do perfilhado e aqui recorrente interesse directo em contradizer…

Nesta linha de entendimento, apenas reconhecemos à mãe do perfilhado, aqui recorrente – e como tutela para o seu interesse dependente na acção[9] – a possibilidade de intervir como assistente (cf. art. 326º do n.C.P.Civil[10]), precisamente para “auxiliar” na defesa do R. menor seu filho, atento o seu interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a este.

Intervenção esta que ainda pode vir a ter lugar, por ser admissível a todo o tempo, sem embargo de a Ré/recorrente “ter de aceitar o processo no estado em que se encontrar”, tudo tal como preceituado no art. 327º, nº1 do mesmo n.C.P.Civil.

Improcede assim totalmente o suscitado pela Ré/recorrente quanto a esta questão, sem necessidade de maiores considerações.

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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Numa acção em que se encontra formulado pelo perfilhante quer pedido de impugnação da perfilhação, quer da anulação da perfilhação, está em causa o mesmo e único objectivo de invalidar a perfilhação, pelo que, apenas o perfilhado tem interesse directo em contradizer nessa acção (cf. art. 30, nº1 do n.C.P.Civil), pois que apenas ele e o perfilhante são sujeitos da relação de filiação que se estabeleceu e que se pretende destruir com a acção ajuizada, isto é, é unicamente o perfilhado que sofre o prejuízo que lhe advém da procedência da acção.

II – E podendo a mãe do perfilhado ter interesse em contradizer no particular do pedido de anulação por erro ou coacção (com fundamento em factualidade que lhe está a ser imputada), sem embargo esse interesse não é igual ao do perfilhado, cujo prejuízo da procedência da acção é precisamente o de ficar sem a paternidade estabelecida, donde, por não ter a mãe do perfilhado interesse directo em contradizer, correspondentemente não tem legitimidade passiva nessa acção.

III – Assim, apenas é de reconhecer à mãe do perfilhado – e como tutela para o seu interesse dependente na acção – a possibilidade de intervir como assistente (cf. art. 326º do n.C.P.Civil), precisamente para “auxiliar” na defesa do R. menor seu filho, atento o seu interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a este.                                                                    *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acorda-se a final em julgar totalmente improcedente a apelação deduzida pela Ré E (…), mantendo a decisão da sua absolvição da instância por ilegitimidade.

Custas do recurso pela Ré/recorrente.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2014

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Maria José Guerra

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Desª Maria José Guerra
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Assim FERREIRA PINTO, in “Filiação Natural”, Livª Almedina, Coimbra, 1983, a págs. 279 e GUILHERME DE OLIVEIRA, in “Estabelecimento da Filiação”, Livª Almedina, Coimbra, 1979, a págs. 139. 
[3] Cf. TOMÁS OLIVEIRA E SILVA, in “Filiação - Constituição e Extinção do Respectivo Vínculo”, Livª Almedina, Coimbra, 1989, a págs. 244-245.
[4] Cf. mais desenvolvidamente sobre esta última questão, a obra e local citados em segundo lugar na nota supra.
[5] Assim MANUEL DE ANDRADE, in “Noções Elementares de processo Civil”, 1979, a págs. 83. 
[6] Que tem correspondência no art. 30º do n.C.P.C..
[7] Cf. ALBERTO DOS REIS, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, a págs. 84.
[8] Neste sentido, cf. FERREIRA PINTO in obra pré-citada, a págs. 275-277 e 286. 
[9] Interesse que é dependente – na definição de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, a págs. 269 – com o sentido “de partilhar ou não partilhar o poder paternal como o perfilhante (art. 335.º do Cód. Proc. Civil)”.
[10] Correspondente ao art. 335º do C.P.Civil revogado.