Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2911/11.9TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
RECUSA
ENTREGA BEM

Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA, COIMBRA, JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 828.º DO CPC
Sumário: 1. O adquirente de bens através da venda executiva pode requerer a entrega do bem contra o detentor na própria execução, devendo a entrega ser deferida, sem mais.
2. Na verdade, o adquirente já beneficia, é detentor, do título de transmissão, o qual é suficiente para promover/requer a entrega do bem.

3. Assim, se o anterior proprietário/detentor de um imóvel, vendido no âmbito de um processo de execução, se recusar a entregá-lo, basta investir o adquirente na respectiva posse, tendo por base o título de transmissão, sendo desnecessário intentar uma nova execução para entrega de coisa certa.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

No decurso da execução para pagamento de quantia certa que “ A... , SARL, move a “ B... , L.da” e a C... e D... , já todos identificados nos autos, foi penhorado e posteriormente, vendido, à exequente, um imóvel, correspondente à “fracção autónoma, designada pela letra B, destinado a habitação, de tipologia T3, com uma garagem no anexo, a da esquerda, sendo a primeira a contar do norte, sito na Rua (...) , na freguesia de (...) , no concelho da (...) , registada sob o artigo matricial n.º (...) , actualmente inscrita sob o art.º (...) da Freguesia de (...) e descrita na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o artigo (...) , cf. Título de Transmissão, datado de 15 de Outubro de 2015, junto a fl.s 37 e 38, aqui dado por integralmente reproduzido.

Conforme decisão que se acha junta, por cópia, de fl.s 44 a 47, proferida em 28 de Abril de 2017, aqui dada por reproduzida, a aqui recorrente E.... , também, já identificada nos autos, suscitou a nulidade da venda que originou a emissão do título de transmissão, a favor da exequente, acima já referido, na qual se julgou improcedente, a arguida nulidade da mencionada venda.

No prosseguimento dos autos, foi proferido o despacho de fl.s 3 (aqui recorrido), que se passa a transcrever:

“Optando-se pela tese interpretativa defendida por JOSÉ LEBRE DE FREITAS [“A Acção Executiva”, 6.º Edição, páginas 420 a 422], segundo a qual estamos perante um mero incidente de entrega de coisa certa enxertado na execução comum para pagamento de quantia certa, sem necessidade de uma junção sucessiva de uma nova execução para entrega de coisa certa [como defende RUI PINTO, “Manual da Execução e Despejo”, 1.ª Edição, páginas 930 a 932)], determina-se a entrega do imóvel à adquirente nos termos previstos nos art.os 828.º, 861.º/1/2/6, e 863.º/3/4/5, todos do CPC.

Notifique.

Notifique o(a) Sr.(a) Agente de Execução.

[Despacho sobre peças processuais com:

Data 05-12-2017/Referência 3794257/Processo Electrónico]

Atentos os fundamentos invocados, nos termos e para os efeitos previstos nos art.os 767.º/1 e 757.º/4 CPC, determina-se que os actos indispensáveis para a entrega do imóvel vendido à Adquirente, incluindo arrombamento, se necessário, tenham lugar com o auxílio das autoridades policiais.

Notifique.

Notifique o(a) Sr.(a) Agente de Execução.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a interveniente E... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 16), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

I - O presente Recurso de Apelação vem interposto do Douto Despacho de flhs..., Ref. (...) , proferido em 12 de Dezembro de 2017, pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, que julgou desnecessário que a Exequente/Adquirente, ora Apelada, diligencie sucessiva e nova execução para entrega de coisa certa.

II - Através de requerimento ao processo, foi solicitado pela MI Agente de Execução, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 757.º e 767.º, ambos do CPC, autorização a recurso ao auxílio da força policial, assim como, caso venha a ser necessário, a autorização para arrombamento de portas.

III - Na sequência do requerido, foi proferido o Despacho ora recorrido, nos termos do qual fosse a Exequente investida na posse do imóvel que lhe foi adjudicado em venda judicial, com o recurso às forças da autoridade pública, incluindo o arrombamento.

IV - Sucede que a Apelante, proprietária e possuidora do referido imóvel, portanto, directa e efectivamente prejudicada pela decisão recorrida, recusa-se a entregá-lo, atendendo a que o tribunal fez uma errada interpretação da lei e, particularmente, das normas que nesta fase processual se aplicam ao caso em apreço.

V - Foi entendimento do Tribunal de 1.ª Instância que estamos perante um mero incidente de entrega de coisa certa enxertada na execução comum para pagamento de quantia certa, sem necessidade de junção sucessiva de uma nova execução para entrega de coisa certa.

VI - Salvo o devido respeito por opinião diversa, não podemos concordar com tal entendimento que, mais não é que uma subversão das finalidades da acção executiva.

VII - A Exequente/Adquirente, ora Apelada, munida do respectivo título de transmissão, deveria instaurar o competente requerimento executivo para entrega de coisa certa cujo processo segue forma única (artigos 550.º, n.º 4 e 859.º e sgs., ambos do CPC).

VIII - Assim, concordamos na íntegra com RUI PINTO, quando sustenta, à luz do antigo CPC, se confere ao adquirente a possibilidade de lançar mão, contra o detentor, da execução para entrega de coisa certa, porquanto, aquele preceito apenas prevê que a entrega dos bens (e nada mais que isso) se realize em conformidade com o disposto no artigo 930.º.

IX - Deixa-se claro, que ao procedimento aqui previsto é, de imediato, aplicável o preceituado no artigo 930.º do anterior CPC (sem antes, naturalmente, haver lugar à pratica dos actos estabelecidos nos artigos 928.º e 929.º do antigo CPC, previstos para a execução de entrega de coisa certa).

X - O mesmo autor, in Manual da Execução e Despejo, Agosto 2013, 1.ª Edição, pág. 931, reforça ainda que, “se o detentor dos bens não os entregar ao adquirente, pode este instaurar execução para entrega de coisa certa, nos termos prescritos no artigo 861.º [do novo CPC], devidamente adaptados.”

XI - Portanto, por outras palavras, munido de título executivo (título de transmissão nos termos do novo CPC), deverá o Exequente/Adquirente intentar nova execução que “(…) correrá autonomamente (…).”

XII - Mais, escreve RUI PINTO, que ao proceder da forma descrita, “(…) não há aqui, em qualquer caso, uma continuação, ou prosseguimento da mesma execução ou, mesmo, uma convolação ou transformação mas, antes, uma junção sucessiva de execuções de fins diferentes.”

XIII - Posto isto, o Adquirente de bens em execução para pagamento de quantia certa deve, com base no título de transmissão referido no artigo 827.º, requerer o prosseguimento dessa execução, formulando pedido de entrega contra o detentor, nos termos prescritos no artigo 861º, o que implica, todavia, a instauração de uma nova execução para entrega de coisa certa, ao abrigo dos artigos 859.º e 860.º, ambos do CPC.

XIV - Regressando ao caso em apreço nos presentes autos, a Exequente/Adquirente, ora Apelada, pretendendo obter a entrega do bem imóvel que lhe foi adjudicado em venda judicial, deveria requerer uma execução para entrega de coisa certa, utilizando o modelo de requerimento disponibilizado electronicamente, conforme a Portaria n.º 282/2013, de 29 Agosto.

XV - Pelo exposto, decidiu assim, com o devido respeito, de forma errónea, o Mmo. Juiz a quo.

Termos em que, e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser o Douto Despacho recorrido revogado e substituído por outro que admita a pretensão da Apelante.

Assim se fazendo a costumada e sã JUSTIÇA!

Contra-alegando, a recorrente pugna pela manutenção da decisão recorrida, defendendo que a entrega do bem que adquiriu lhe deve ser feita, pelo modo ordenado no despacho recorrido, não sendo necessário, para tanto, que tenha de intentar  nova execução autónoma.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se é necessária a instauração de uma nova execução para entrega à exequente, do imóvel que esta adquiriu no âmbito da execução de que os presentes autos constituem apenso.

A matéria de facto relevante é a que consta do relatório que antecede.

Se é necessária a instauração de uma nova execução para entrega à exequente, do imóvel que esta adquiriu no âmbito da execução de que os presentes autos constituem apenso.

Consiste, pois, a questão sub judice, em saber se para a entrega de um imóvel vendido no âmbito de um processo de execução, se o anterior proprietário/detentor se recusar a entrega-lo, será necessário, como defende a recorrente, intentar uma nova execução para entrega de coisa certa ou, se para tal basta investir o adquirente na respectiva posse, tendo por base o título de transmissão.

Ora, dispõe o artigo 828.º do CPC (que reproduz o anterior 901.º, apenas com a alteração da remissão que é feita na sua parte final) que:

“O adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados.”.

Como se dá conta nas alegações e contra-alegações de recurso, o entendimento sobre o procedimento a adoptar não é uniforme na doutrina.

Assim, Lebre de Freitas, in A Acção Executiva Depois Da Reforma, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2004, a pág. 365 defende que “O art. 901 concede ao adquirente dos bens penhorados o direito de requerer o prosseguimento da execução contra quem os detenha, enxertando assim na acção executiva para pagamento de quantia certa um pedido de execução para entrega de coisa certa. Não se trata de uma acção executiva para entrega de coisa certa nem da conversão duma execução para pagamento de quantia certa para entrega de coisa certa.”.

Dando conta (nota 22) da referida pág., do diferente entendimento manifestado por Rui Pinto e Remédio Marques, que defendem que o adquirente tem de recorrer a nova acção executiva para entrega de coisa certa e Teixeira de Sousa, que manifesta a opinião de que a execução se “transforma” numa execução para entrega de coisa certa, o que acolhe desde que se tal “não significar uma verdadeira conversão (como as dos arts 931 e 934), mas apenas a utilização, não exclusiva, da instância (pendente ou extinta) para essa finalidade.”.

Também Lopes do Rego, in Comentários …, Vol. II, 2.ª edição, Almedina, 2004, a pág. 141, opina que “ao procedimento aqui previsto é, de imediato, aplicável o preceituado no artigo 930.º (sem que, como é óbvio) tivessem lugar os actos previstos nos artigos 928.º e 929.º).”.

Como já aflorado, Miguel Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, Lex, 1998, a pág. 418, defendia, na vigência do anterior CPC (artigo 901.º) que “O adquirente dos bens através da venda executiva pode requerer, utilizando como título executivo o despacho que lhe adjudicou os bens (…), o prosseguimento da execução contra o seu detentor (art.º 901.º). Como o artigo 901.º se refere ao prosseguimento da execução, o requerimento deve ser apresentado ainda na pendência desta. A execução continua, mas não como execução para pagamento; atendendo ao seu objecto, ela transforma-se numa execução para entrega de coisa certa (art.º 901.º in fine).”.

Por seu turno, Rui Pinto, in Manual da execução e Despejo, Coimbra Editora, 1.ª Edição, Agosto de 2013, a pág.s 930 e 931, defende que “se o detentor dos bens não os entregar ao adquirente, pode este instaurar uma execução para entrega de coisa certa, nos termos prescritos no artigo 930.º = art. 861.º nCPC, devidamente adaptados”.

A nível jurisprudencial o Acórdão da Relação do Porto, de 05/12/2016, Processo n.º 1631/14.7TBGDM.P1, disponível no respectivo sítio do itij, que defende a desnecessidade de instauração de uma nova execução para entrega de coisa certa e onde se cita diversa doutrina acerca da questão em apreço.

Com o devido respeito por contrária opinião, entendemos que esta é a solução que melhor se coaduna com o espírito da lei.

Se o bem já é adquirido em resultado da venda promovida num processo de execução e no artigo 828.º do CPC, se permite que o respectivo adquirente, na própria execução, requeira contra o detentor, a entrega do bem, sem mais, deve ser deferida a entrega, sem que se “volte ao princípio”; ou seja, que se exija ao adquirente que instaure uma nova execução, com as consequências daí decorrentes.

O adquirente já beneficia, é detentor, do título de transmissão, o qual é suficiente para promover/requer a entrega do bem.

Pelo que, somos de opinião, não merecer censura a decisão recorrida, a qual é, assim, de manter.

Consequentemente, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 24 de Abril de 2018.