Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
88/17.5T9OLR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JC GENÉRICA DE OLEIROS)
Texto Integral: S
Meio Processual: ESCUSA DE JUIZ
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: I – Na definição do Prof. Castro Mendes, a independência dos juízes é a situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros factores que não os juridicamente adequados a conduzir à legalidade, à justiça da mesma decisão.

II – O princípio do juiz natural só poderá ser afastado quando outros princípios ou regras de igual ou maior dignidade o ponham em causa, como sucede quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função.

III – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

A..., Juiz de Direito, a exercer funções como titular do Juízo de Competência Genérica de Oleiros, veio pedir escusa de intervir no processo comum singular que correm termos sob o nº 88/17.5T9OLRA-A, ao abrigo do disposto no art 43º nº 1 e 4, 44 e 45 do CPP.
Invoca para tanto, que:
1. Os arguidos, B... e C... , foram acusados nos presentes autos pela prática, em co-autoria, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.ºs 2 e 4, do Código Penal;
2. Crimes esses praticados, nos termos da acusação, contra os filhos menores de ambos, D... e E... , nascidos, respectivamente, em 19.07.2002 e 6.06.2005;
3. Os factos que sustentam a acusação pública correspondem, no essencial, aos factos que estiveram na base do procedimento urgente que culminou na retirada coerciva dos referidos menores, aos seus pais, ora arguidos, no âmbito do processo de promoção e protecção (PPP), que corre termos neste Tribunal sob o nº 131/17.8T8OLR, o qual abrangeu também os restantes filhos dos arguidos;
4. No âmbito do referido PPP, e na sequência da medida urgente de acolhimento residencial dos menores supra indicados, assim como dos restantes irmãos, o Juiz signatário proferiu, em 29.09.2017, decisão judicial que ratificou o acolhimento residencial de urgência, tendo aplicado, a título cautelar, a medida provisória de acolhimento residencial;
5. Nessa mesma decisão, o Juiz signatário declarou aberta a instrução do processo judicial de promoção e protecção;
 6. No âmbito da instrução do PPP, além da decisão judicial referida em 4, o Juiz signatário proferiu, no que por ora importa, os seguintes despachos:
- Despacho de 03.10.2017, ref. 29358538, que indeferiu requerimento dos progenitores, ora arguidos, para revogação da medida aplicada;
- Despacho de 25.10.2017, ref. 29445996, que indeferiu requerimento dos progenitores, ora arguidos, para visita aos menores acolhidos;
- Despacho de 31.10.2017, ref. 29469247, que indeferiu requerimento dos progenitores, também no seguimento do requerimento de visitas aos menores acolhidos;
7. Também, no âmbito da instrução do PPP, o Tribunal procedeu à audição dos menores de idade D... e E... , ofendidos nos presentes autos, dos próprios arguidos, dos pais dos arguidos e de outras testemunhas relevantes para o objecto do PPP;
8. Na sequência das diligências de instrução do PPP, foi proferido o despacho de 09.11.2017, ref. 29496696, que, no mais, consignou o estado da respectiva fase processual;
9. Em consequência da intervenção do juiz signatário no âmbito do PPP, o Magistrado Judicial veio a formar uma convicção sólida, ainda que perfunctória, acerca dos actos praticados pelos progenitores, ora arguidos, contra os filhos menores, dois deles ofendidos no âmbito dos presentes autos, sendo que tais actos inscrevem-se, em larga medida, no objecto do presente processo penal, conforme delineado na acusação pública;
Portanto, o signatário, entende que caso decidisse intervir neste processo, a sua intervenção poderia ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

É junta certidão extraída dos autos de que constam:
- Despacho de acusação proferida nos presentes autos;
Do processo 131/17.8T8OLR,
- Requerimento do MP, de 29.09.2017
- Requerimento, de 02.10.2017, ref. 1418217;
 - Despacho de 03.10.2017, ref. 29358538;
 - Despacho de 25.10.2017, ref. 29445996;
 - Requerimento de 31.10.2017, ref. 1454123;
- Despacho de 31.10.2017, ref. 29469247;
- Despacho de 09.11.2017, ref. 29496696.
- Pedido de escusa;      
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Foram cumpridas as formalidades legais.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:­
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Nos termos do preceituado no art. 43°, nºs 1 e 2, do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, podendo constituir fundamento de escusa a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo, fora dos casos do art. 40°, do C. P. Penal”.
Ainda tendo em conta o n° 4, daquela citada disposição legal, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse, verificadas que sejam as condições dos nºs 1 e 2.
Com os institutos de recusa e escusa de juiz, por suspeição, pretende-se salvaguardar a independência do Julgador.
Ora, ..." É extremamente difícil definir em que consiste a independência do juiz, até por se tratar de um conceito de definição negativa, cujo âmbito é dado em forma negativa ( não estar sujeito a...) e com grande amplitude.
Porém, parece que uma das mais válidas definições foi dada pelo Prof. Castro Mendes, de que ...a independência dos juizes é a situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros factores que não os juridicamente adequados a conduzir à legalidade, à justiça da mesma decisão.
Concomitantemente, o art. 4° n° 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26/08) determina (na senda do estatuído n art. 216°, da CRP) que os juízes julgam, apenas, segundo a Constituição e a Lei; a sua independência é assegurada por um órgão privativo de gestão e disciplina da magistratura judicial.
Fazendo apelo ao já acima referenciado nº 4° do art. 43° do CPP por referência aos seus            nºs 1 e 2, pode dizer-se que a causa de escusa de um juiz reconduz-se, essencialmente, a um de dois fundamentos:
- Uma relação especial do juiz com algum dos sujeitos processuais; ou,
-   Algum especial contacto com o objecto da decisão.
            Acresce que, como se decidiu (entre outros e por todos, no Ac. da Relação de Évora, de 5/03/96, CJ, XXI, T. 2, pago 281), para o efeito de apresentação de um pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode fundadamente suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixa de ser imparcial e, injustamente, o prejudique.
            Temos, portanto que o princípio do Juiz natural só poderá ser afastado, quando outros princípios ou regras de igual ou maior dignidade, o ponham em causa, como sucede quando o Juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função. No caso vertente, a intervenção do Sr. juiz impõe-se por força do princípio do juiz natural, o que significa que a sua remoção só poderá verificar-se quando ocorram situações excepcionais nomeadamente, que levem a garantir que não oferece garantias de imparcialidade e isenção.
            Como já se referiu de acordo com o estatuído no artº 43 nº 1 do CPP para sustentar a recusa do juiz é necessário verificar-se:
            - se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;
            - e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
            Como decidiu o Ac do STJ de 14/6/2006 no proc. 1286/06.5 (cit no proc. da RP 2/07.6GAAAMT):
            “No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal.
            De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade”.
             O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.
            No caso sub judice é objectivamente justificado o receio do Sr. juiz de que a sua intervenção no processo em causa corra o risco de ser considerada suspeita atendendo á sua intervenção nos referidos autos. O Sr. Juiz já teve uma vasta intervenção nos autos, ouviu os intervenientes, tomou decisões e já formou uma convicção.
No caso vertente, a convicção do senhor juiz sobre todo este processo foi de tal forma clara, detalhada e fundamentada, que não pode deixar de colocar-se seriamente a hipótese de a convicção do senhor juiz nos presentes autos poder condicionar o seu julgamento sobre a culpabilidade dos arguidos.
Neste sentido o Ac. da REL. Évora de 18/04/2017 nº 53/17.2YREVR relatado pelo Exmo Desembargador António João Latas).
Concluímos, pois, que a concreta intervenção do senhor juiz requerente no processo em que, alegadamente, os ora arguidos praticaram o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º nºs 1 al d) e nº 2 e 4 do C.Penal, pelo qual irão agora ser julgados nos presentes autos, constitui motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade num dos seus aspectos fundamentais, qual seja o de que o juiz é imparcial se para além de “…distinto [alteridade] e distante das partes [equidistante], está constantemente disponível a pronunciar-se sobre o mérito da causa somente sobre a base da prova legitimamente adquirida”.

Por todo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em deferir o pedido de escusa do senhor juiz em funções no Juízo de Competência Genérica de Oleiros, escusando-o de intervir no julgamento a realizar no processo-crime com o nº 88/17.5T9OLRA-A que corre termos naquele mesmo tribunal.

Sem custas

Coimbra, 20 de Março de 2018

Alice Santos (relatora)

Abílio Ramalho (adjunto)