Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1485/19.7PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
AMEAÇA
TIPO OBJECTIVO
ANÚNCIO DE MAL FUTURO DEPEDENTE DA VONTADE DO AGENTE
MERO AVISO
Data do Acordão: 09/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 32.º DA CRP; ART. 153.º DO CP
Sumário:
Sumário (elaborado pelo Relator):
I. Em processo penal não existe um verdadeiro ónus probatório em sentido formal, vigorando o princípio da aquisição da prova articulado com o princípio da investigação: são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem interessar a sua origem, recaindo sobre o juiz, em última hipótese, o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente os factos em busca da verdade material.
II. Quanto ao ónus da prova em sentido material, o princípio de presunção da inocência do arguido impõe que, em caso de dúvida irremovível, a questão seja sempre decidida a favor do arguido e que da falta de prova não podem resultar consequências desfavoráveis para ele, qualquer que seja o thema probandum.
III. São três as características essenciais do conceito AMEAÇA expresso no tipo do artigo 153º do Código Penal: a) - mal; b) - futuro (não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo e a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura); c) – cuja ocorrência dependa da vontade do agente (ou apareça como dependente da vontade do agente).
IV. Se a conduta do destinatário, que se visa condicionar pela ameaça, é uma conduta inteiramente legítima, que qualquer cidadão tem o direito de adoptar livremente, consideramos inadequado dizer-se que o destinatário, como tinha a escolha de evitar tal conduta, não foi ameaçado.
V. Independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante é a possibilidade do “anúncio” que é transmitido pela ameaça provoque ou seja susceptível de provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afecte ou prejudique a sua liberdade de determinação e acção.
VI. Por conseguinte, nas situações em que a conduta do visado condicionante da concretização do mal futuro é uma conduta inteiramente legítima e normal na vida em sociedade, a que qualquer cidadão tem direito, não nos parece correcto afirmar que está salvaguardada a liberdade de decisão e de acção desse visado porque sempre poderá evitar o mal, abstendo-se de tal conduta.
VII. Não estamos perante um mero aviso quando a verificação do mal futuro anunciado está dependente da vontade do arguido, na medida em que a ele cabe, a cada momento, formular um juízo de valoração sobre o comportamento da pessoa a quem as expressões em causa foram dirigidas.
VIII. O gesto de passar a mão pelo pescoço numa trajectória perpendicular, simulando uma acção de corte da garganta, após a verbalização de um «faço-te isto», constitui acto comunicacional com um sentido universal, de anúncio de morte futura do visado por acção de quem faz o gesto, pois a secção daquele órgão tem consequências quase sempre fatais, o que, por si só, justifica a agravação desta ameaça.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
             1. A SENTENÇA RECORRIDA

No processo comum singular nº 1485/19.... do Juízo Local Criminal ... – Juiz ... -, por sentença datada de 7 de Março de 2022, foi decidido: 
a. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, em 01-12-2019, de 1 (um) crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo art. 153.º, nº 1 e pelo art. 155.º, nº 1, al. a) do Código Penal, numa pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa com o quantitativo diário de 7,00€ (sete euros), o que perfaz o montante global de 1.050,00€ (mil e cinquenta euros).

            2. O RECURSO

Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1. «Os presentes autos assentam em duas versões antagónicas dos factos constantes da acusação: a do Arguido, que os nega, e a da Ofendida, que os corrobora.
2. Quanto às declarações do Arguido, prestadas em 01/02/2022, das 10:59:40 às 11:14:15, foram reputadas de naturais e sinceras, nada sendo invocado que fosse apto a afectar a sua validade ou credibilidade.
3. Sendo que as mesmas foram ainda corroboradas pelo depoimento da testemunha II, prestado em 14/02/2022, das 16:38:51 às 16:47:05.
4. Todas no sentido de que o mesmo não praticou os factos dos quais vinha acusado.
5. Em sentido oposto, corroborando tais factos apenas existe o depoimento da Ofendida, prestado em 01/02/2022, das 11:15:01 às 11:52:56.
6. Contudo, e contrariamente ao que sucedeu com as declarações do Recorrente, o depoimento da Ofendida acabou por revelar bastantes fragilidades que, de forma manifesta, vieram afectar a sua credibilidade.
7. O que decorre da demonstrada tendência que esta revelou para inventar ou empolar factos, em função dos seus interesses e conveniências.
8. Sendo o exemplo mais premente disto a descrição fantasiosa que fez da situação vivida no prédio onde ambos residem, em que relatou um cenário de terror, de barulhos constantes e intimidatórios, com o intuito de fazer passar a imagem doRecorrentee da sua esposacomo pessoas perigosas, perturbadoras e conflituosas.
9. Sendo que essa realidade foi absolutamente desmentida por todas as testemunhas de defesa, residentes no prédio em questão, a saber: BB, cujo depoimento foi prestado em 14/02/2022, das 16:47:50 às 16:52:01; CC, cujo depoimento foi prestado em 14/02/2022, das 16:52:40 às 16:56:28; DD, cujo depoimento foi prestado em 14/02/2022, das 16:57:38 às 17:01:50; EE, cujo depoimento foi prestado em 14/02/2022, das 17:02:37 às 17:05:17; e FF, cujo depoimento foi prestado em 14/02/2022, das 17:06:01 às 17:08:35.
10. As quais, verdadeiramente isentas, desinteressadas e imparciais, descreveram um cenário de absoluta normalidade, completamente contraditório e incompatível com o cenário dantesco descrito pela Ofendida.
11. Mais, ainda exemplo desta falta de compromisso com a verdade revelado pela Ofendida foi a efabulação que esta construiu à volta de uma alegada (e falsa) ameaça do Recorrente ao marido da testemunha GG.
12. Sendo que, porventura não se satisfazendo com os alegados contornos da pretensa ameaça, a Ofendida resolveu inventar outros factos para tornar a alegada situação mais emocionante e impactante, passando a incluir a referência de que o ora Recorrente havia ameaçado com “dois tiros”.
13. Facto que surpreendeu a própria testemunha GG, que lhe havia contado a alegada história da ameaça ao marido, tendo no seu depoimento, prestado em 01/02/2022, das 12:03:47 às 12:25:03, negado que alguma vez alguém tenha feito referência a quaisquer tiros.
14. Ora, ficando evidente uma tendência para a dramatização e invenção, não poderá nunca o depoimento da Ofendida merecer grande credibilidade.
15. Assim, do próprio confronto entre as declarações do Arguido e o depoimento da Ofendida já era difícil ao Tribunal concluir, com certeza e segurança, sobre a culpabilidade do Arguido.
16. Sendo que, em face das referidas fragilidades e ausência de credibilidade do depoimento da Ofendida, essa conclusão revela-se absolutamente inviável à luz das regras impostas pelo princípio do in dubio pro reo.
17. Não nos é possível concluir, com a certeza e segurança que se exige, onde reside a verdade: é o Arguido quem diz a verdade? É a ofendida? Ou está a verdade algures num meio termo entre as duas versões?
18. Pelo que, por manifesta inexistência de elementos probatórios aptos a suportar uma decisão assente numa convicção plena, além de qualquer dúvida, terão os factos constantes dos pontos 2, 3 e 4 da factualidade provada que ser julgados não provados.
19. Em consequência, terá o Recorrente que ser absolvido do crime de que vem condenado.
20. Subsidiariamenteaosupra invocado, porcautelade patrocínio impõe-se analisar o enquadramento jurídico-penal dos factos apurados pelo Tribunal a quo.
21. Assim, como devidoe merecido respeito, urgeconcluirque malandou o Tribunal quando interpretou o pretenso gesto do Recorrente como uma ameaça à vida da Ofendida e, subsequentemente, em proceder à agravação do crime de ameaça, por aplicação do disposto no art. 155º, nº 1, a) do CP.
22. Com efeito, a ponderação sobre os fundamentos da sua conduta, os moldes em que a mesma se desencadeou – os factos que lhe sucederam e lhe procederam – e a própria personalidade do Recorrente são reveladores de que o pretenso gesto, tendo existido, deveria ser interpretado como uma ofensa à integridade física da Ofendida, e não à sua vida.
23. Razão pela qual, tendo o Arguido que ser condenado por algum crime, o que apenas por hipótese se pode conceber, seria sempre o de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nº 1 do CP, sem qualquer agravação.
24. Pelo que, assim sucedendo, terá a respectiva medida da pena que ser revista em conformidade.
*
Nestes termos,
Deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra que absolva o Recorrente do crime pelo qual vem acusado. Subsidiariamente, deve ser revisto o enquadramento jurídico-penal da factualidade apurada, sendo desconsiderada a agravação nos termos do art. 155º, 1, a) do CP e revista a medida da pena em conformidade».

3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o mesmo não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

1.1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.
Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.
Assim são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Há erro de julgamento?
2. Existe tipicidade criminal na factualidade apurada?
3. Não está perfectibilizada a agravação deste crime de ameaça? (aqui com a inerente mexida na medida da pena)

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição), aqui se consignando que inexistem factos não provados:

1. «O arguido vive na Rua ..., ..., ..., e é vizinho de HH, que reside no ... deste mesmo prédio.
2. No dia 01 de Dezembro de 2019, cerca das 13h30, o arguido AA ao ver, desde a janela da marquise da sua residência, HH, sua vizinha, a passear o cão no jardim junto ao prédio onde todos habitam, dirigindo-se a esta disse-lhe “se não te portares bem, dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?!”, tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço, no vulgar gesto entendido por todos como significando que lhe cortava o pescoço e que, como tal, a mataria.
3. O arguido agiu com o propósito de ameaçar e intimidar a ofendida, anunciando a sua intenção de lhe infligir um mal que sabia constituir crime contra a vida, bem sabendo que o seu gesto era adequado a provocar-lhe receio, medo e a prejudicar-lhe a liberdade de determinação, como aconteceu.
4. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou:
5. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais ou beneficiou da suspensão provisória do processo.
6.   O arguido vive com a sua esposa II e com a sua filha maior BB em casa própria.
7. O arguido tem o nono ano de escolaridade.
8. O arguido é motorista de profissão, auferindo um rendimento mensal, em média, de 1.350,00€.
9. A esposa do arguido é doméstica, não auferindo quaisquer rendimentos e/ou prestações sociais, a sua filha trabalha na Casa de Saúde ..., não contribuindo para os encargos do agregado.
10. O arguido tem enquanto dispêndios mensais: 120,00€ a título de despesas de deslocação; 320,00€ com a renda da sua habitação em ... - onde permanece periodicamente em virtude da sua profissão – e 143,90€ com o crédito automóvel.
11. O arguido é visto, pelo grosso dos vizinhos do prédio onde vive, como alguém trabalhador, pacato e inserido na comunidade.

A demais factualidade constante no libelo acusatório não foi considerada por ser relativa aos crimes semipúblicos imputados ao arguido e a II, não se mostrando como tal relevante para a boa decisão da causa em virtude da desistência da queixa apresentada pela ofendida HH, a qual foi homologada por este Tribunal, julgando-se extinto, nessa parte, o procedimento criminal (arts. 113º nº1, 116º nº 1 e nº 2 e 153.º, nº 2 todos do Código Penal e 48.º a 51.º do Código de Processo Penal; tudo conforme acta de audiência de discussão e de julgamento de 01-02-2022 a fls. 139 a 140)».

2.2. Motivou-se assim, a matéria de facto provada (transcrição):
«Nos termos do art. 374.º, nº 2 do Código de Processo Penal, e em cumprimento do comando constitucional plasmado no artigo. 205.º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (Cfr. ainda o art. 97.º, nº 5 do Código de Processo Penal), cumpre doravante explicitar os motivos onde estribou o Tribunal a sua convicção acerca da factualidade dada como provada, assegurando, desse modo, quer a sindicância do iter cognoscitivo e valorativo pelos intervenientes processuais (finalidade endoprocessual), quer a legitimação externa da decisão,    fomentando assim a transparência do processo decisório (finalidade extraprocessual).
Ancoraram-se as conclusões do Tribunal na análise global, crítica e ponderada de toda a prova relevante (Cfr. art. 124.º do Código de Processo Penal) produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, dando cumprimento ao princípio da imediação (Cfr. art. 355.º do Código de Processo Penal). Ponderação, ademais, feita à luz das regras da experiência comum e do comportamento do homem médio, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, enunciado no artigo 127.º do Código de Processo Penal e, bem ainda em obediência ao disposto nos artigos 125.º e 126.º ambos do Código de Processo Penal.
Particularizemos.
Preliminarmente, sublinhe-se que é incontrovertido que entre o arguido e a ofendida existe há algum tempo um conflito de vizinhança. Assim o reconheceu, desde logo, o arguido, mesmo que colocando a tónica, mormente, no mau relacionamento entre a ofendida HH e a sua esposa II.
E de facto, relevando ainda, porque críveis e espontâneos, os testemunhos de JJ, filha da ofendida, de KK, residente no ... do prédio do arguido e, finalmente, o depoimento da ofendida, ficou o Tribunal convencido que por razões de vizinhança – a saber, o arguido reputando haver questões em aberto concernentes à administração do condomínio que a ofendida exerce; a ofendida, as testemunhas KK e JJ explanando que a génese do conflito é o barulho que a esposa do arguido vem fazendo na sua fração –as relações entre HH e a esposa do arguido não são em nada amistosas e que, por força disso, o relacionamento daquela com o arguido passou a ser também pautada pelo dissídio. Em suma, como disse HH, o mau estar inicialmente era só com II - pois que até reputava o arguido alguém “cordato e razoável” -, mas à data o mesmo é também extensível a AA.
É verdade que a esposa do arguido, ouvida na qualidade de testemunha, asseverou que inexiste entre HH, ela e o marido todo e qualquer conflito. Sucede que esta testemunha - que, repise-se, assistiu a toda à produção da prova da acusação, uma vez que só tendo perdido a qualidade de arguida veio a ser admitido o seu arrolamento enquanto testemunha, Cfr. acta da audiência de discussão e de julgamento a fls. 139 a 142 – procurou, de forma manifestamente não neutral ou objectiva, proteger, compreensivelmente, o seu esposo encarreirando num discurso que passou por negar todo e qualquer clima de tensão entre os sujeitos processuais o que se mostrou, de todo, não crível.
Tanto assim é que pelo menos três testemunhas arroladas pela defesa - DD, vizinha / residente no ... do prédio melhor identificado no facto provado nº 1, EE, residente no ... e FF que também residiu no prédio em crise por vários anos - mostraram saber do conflito entre HH, AA e II, esta última testemunha avançando mesmo que soube da contenda porque II lhe contou, por aqui ficando, igualmente, o Tribunal convicto de que os factos sub judice devem ser lidos no quadro de um conflito de vizinhança.
Sem que para tal conclusão infirme, como pretende a defesa, o facto de todas as testemunhas residentes no prédio arroladas – com excepção da referida testemunha KK – terem dado conta que têm, há largos anos, um bom relacionamento com o vizinho AA e que desconhecem quaisquer problemas relacionados com barulhos (assim, a testemunha CC, residente no .... e as referidas DD, EE e FF), não só porque aqui o que se discute não é se há (ou não) a ofensa ao direito ao descanso de ninguém, mas, sobretudo, porque da premissa de que – concebe-se – a maior parte dos vizinhos do prédio do arguido tenham um bom relacionamento e nenhuma razão de queixa do mesmo, não se pode extrair a conclusão de que o arguido não tem más relações com a ofendida. Acrescente-se, derradeiramente, que segundo a testemunha KK os barulhos só se ouvem na parte esquerda, donde sendo a maior parte das testemunhas acima identificadas residentes nas frações do lado direito, também assim se poderá explicar a discrepância.
Assente que é este o pano de fundo onde nos movemos.
Quanto ao episódio em questão levado ao facto provado nº 1 e nº 2 confrontou-se o Tribunal com duas versões antagónicas.
De uma banda, o arguido que negou categoricamente o sucedido, nem sabendo sequer dizer se estaria em Portugal no dia 01-12-2019 dado que é motorista e só vem a casa de três em três semanas. Versão corroborada pela sua esposa, cujo depoimento, porém, pela sua não isenção e objectividade, conforme acima avançado, o Tribunal neste ponto arredou, sendo ainda certo que, como deu conta a ofendida, estando II a olhar para si poderá nem sequer ter visto o gesto em juízo.
De outro lado, a ofendida HH que relatou que, no dia e hora patentes no auto de denúncia - que não soube concretizar, mas, como disse, em Dezembro, depois do almoço e num fim-de-semana - estava a passear o seu cão, sozinha, no jardim em frente ao prédio e à marquise e varanda do arguido, e que foi então confrontada com II a chamá-la nomes (“feia, gorda”) desde a sobredita marquise. Após, abeirou-se de LL o arguido dizendo à ofendida que se ela não se portasse bem lhe dava uma mocada “e faço-te isto, ouviste?!, passando em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço.
Disse ainda a ofendida, sempre de forma que se reputou espontânea, detalhada, sincera e por isso credível, que mesmo tendo ficado em choque retorquiu “calma lá que o senhor me está a ameaçar”, não sabendo sequer se o arguido replicou. Depois, como disse, entrou no prédio e voltou para casa, ligou para a mãe e, a conselho desta, foi à Polícia de Segurança Pública onde apresentar denúncia porque, como denotou, ficou com medo, tanto é que dali foi depois para a casa da progenitora.
Mais nenhuma testemunha presenciou o sucedido, pese embora o auto de denúncia mostrar-se conforme a tal relato, dali se inferindo que no dia 01-12-2019 pelas 14:15h, isto é, pouco tempo depois do incidente, HH apresentou a sua denúncia no Comando Distrital ... (fls. 3).
Quanto à sua mãe, MM, não conseguiu recordar do reporte do evento em crise, o que se diga, atento o hiato temporal entretanto volvido e a provecta idade da testemunha (76 anos), mostrou-se perfeitamente natural. Mas se assim é, também não deixou esta testemunha de saber dar conta, de forma que se considerou honesta e crível, que a sua filha e a sua neta JJ têm medo do arguido em virtude de terem ouvido na sua casa, vindas da fração do arguido, palavras ameaçadoras. Mais tendo sublinhado que, por várias vezes, quando a sua filha estava sozinha (isto é, quando as netas vão dormir a casa do pai), HH foi dormir para a sua casa com “medo do homem”, leia-se de AA, pese embora reconhecendo que, nos últimos tempos, houve acalmia no relacionamento entre estes vizinhos, também assim não deixando de contribuir para a credibilidade da versão da ofendida.
E de facto por força da flagrante credibilidade, rigor, seriedade, espontaneidade do depoimento da ofendida, ficou o Tribunal convencido da sua versão factual, assim logrando dar como provado o patente nos factos provados 1 e 2.
É que não obstante a inimizade entre estes vizinhos, HH mostrou não se nortear por qualquer vingança, procurando apenas, como repisou, paz e um relacionamento são com os vizinhos, sendo paradigmática a sua atitude de desistir da queixa apresentada contra AA e II na parte operante (ameaças simples), e bem ainda o seu não desiderato em formular qualquer pedido de indemnização pelos danos não patrimoniais que pudessem ter advindo dos factos em juízo. Em suma, a versão da ofendida além de sólida, detalhada, congruente mostrou-se objectiva e desinteressada, assim ficando o Tribunal convencido que a verdade do acontecido corresponde ao por ela narrado.
Ademais, e ainda em abono da versão da ofendida abona ainda a constatação do arguido que tem uma marquise e uma varanda e que quem esteja no jardim em frente ao prédio conseguirá ver quem estiver na dita varanda e marquise, assim confirmando que o gesto – que denegou – bem podia ser visto por HH então a passear o seu cão naquele jardim.
Um gesto que, diga-se, no pano de fundo acima esboçado é perfeitamente razoável, à bitola de um homem médio, ter sucedido. Pois que o arguido vendo a sua esposa em (novo) conflito com vizinha, e arregimentando-se, compreensivelmente, do lado de II procurou com a ameaça reforçar a posição da sua mulher “se não te portas bem, dou te uma mocada” e faço-te isto (passando então o dedo pelo pescoço).
E nem se diga que tal versão não pode colher porque o medo que a ofendida demonstrou ter do arguido (como disse, careceu mesmo de apoio psiquiátrico) mostra-se exacerbado e sem razão de ser.
É que a ofendida explicou, com plausibilidade, que ficou atemorizada porque, primeiro, não esperava naquelas circunstâncias aquela atitude de AA. Depois, porque este incidente sucedeu já após um outro episódio onde ela e a filha JJ ouviram ameaças vindas da fração do arguido e destinadas “às de cima” e bem ainda porquanto tinha conhecimento que AA houvera ameaçado de morte outrora um outro vizinho. Tudo isto e porque, como disse, com acerto, o arguido é um homem corpulento, levou a que ficasse então e nos tempos que se seguiram com medo, pois como, compreensivelmente, também disse se fosse II não ficaria com tanto receio, mas sendo um homem e vivendo ela sozinha com as filhas, passou a temer AA em moldes consentâneos com a sua forma de ser.
Uma perturbação, medo e ansiedade que além de reconhecida pela mãe da ofendida MM, foi também devidamente explanada pela vizinha KK – também ela com uma má relação com II - que deu conta não só de HH lhe ter relatado o incidente de 01 de Dezembro de 2019 e do comportamento receoso desta, mas bem ainda que a referida ameaça feita a um outro vizinho por AA foi destinada ao seu marido. Episódio que, reconheceu, ter relatado a HH, não sabendo datar com exactidão quando, contudo, tal evento sucedeu, também assim cimentando-se a versão da ofendida.
No que tange aos factos provados nºs 3 e nº 4 - relativa ao conhecimento e à vontade do arguido – inexistindo confissão, como bem denota a doutrina e a jurisprudência, tais factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo, concernentes à conduta do agente, só podem ser considerados como assentes “a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum”. Assim, o aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-12-2019 (Relatora Isabel Valongo, Processo nº 797/17.9JACBR.C1) e o acórdão de 29-01-2013 (Relator Sérgio Corvacho, Processo nº 599/99.6TAABT.E1) ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Em suma, e como já ensinava o Professor Cavaleiro de Ferreira “o elemento subjectivo da infracção, como conclusão de direito que é, não pode fazer-se derivar imediatamente da prova mas deduzir-se desta, através das ilações que segundo as regras de experiência comum se extraem dos factos na medida em que sejam meras consequências ou prolongamento deles. Pois, trata-se de factos, que não deixam de o ser, mas que assumem uma particular especificidade, visto consistirem em realidades do foro psíquico, logo internos do sujeito. Tais factos não se comprovam em si próprios, mas mediante ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento” (in “Lições de Direito Penal, Vol. I, Lisboa: Verbo, pp. 297 e 298).
Ora, ante toda a factualidade provada e à luz da bitola a convocar que é a do homem médio nas concretas circunstâncias que é a de um conflito entre vizinhos, é possível também asseverar que o arguido representou o facto ilícito com consciência da sua censurabilidade, agindo com intenção de o realizar.
A constatação da inexistência de antecedentes criminais ancora-se, por seu turno, no certificado de registo criminal actualizado do arguido junto aos autos (a fls. 132) que, de forma plena, a comprova (art. 169.º do Código de Processo Penal). Por sua vez, o não benefício da suspensão provisória do processo estriba-se na informação da base de dados da Procuradoria-Geral da República sobre a suspensão provisória de processos crime (Decreto-Lei nº 299/99, de 04 de Agosto) a fls. 70.
Derradeiramente, para a comprovação das condições sociais, familiares e económicas do arguido, relevou o Tribunal as declarações do mesmo em sede de audiência de discussão e de julgamento pois que se reputaram naturais e sinceras e bem ainda o testemunho da sua filha BB e das suas vizinhas CC, DD, EE e FF todos conhecedores da personalidade e quotidiano do vizinho AA».

*
             3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. IMPUGNAÇÃO DE FACTO

3.1.1. O arguido alega que existe um erro de julgamento na prova que foi feita dos factos 2, 3 e 4.
É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias:
- a da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada – cfr. artigo 431º do CPP;
- e, se for o caso, a dos vícios do nº 2 do art. 410.º do CPP.
Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Na 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, nº 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410.º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.
O recorrente alude a um erro de julgamento.
Prévio a ele, opinamos no sentido de inexistir qualquer vício formal da decisão, nos termos do nº 2 do artigo 410º do CPP.

3.1.2. Houve, de facto, um erro de julgamento?
Ouvimos as gravações dos depoimentos prestados em 1/2 e em 14/2 e facilmente nos apercebemos que temos em jogo duas versões contraditórias:
· a do arguido que nega que tenha proferido aquela frase documentada em 2
· a da ofendida que confirma que essa frase foi proferida.
Todas as outras testemunhas não foram presenciais e não puderam lançar luz sobre essa factualidade.
O que importa é saber se aquela frase foi proferida.
Ouvido o testemunho da ofendida, suficientemente incomodada com o ocorrido, a ponto de ter recorrido até a ajuda psicológica, pareceu-nos o mesmo credível e vivido, sendo, por isso, convincente, bastante mais do que a mera negação, pura e simples, de um arguido que quis transmitir a ideia de que é só paz aquilo que ali se vive, em termos habitacionais e vicinais (para já nem falar do testemunho de sua mulher, II, que contra toda a evidência, veio declarar que não existe qualquer conflito entre ela e a arguida, o que não corresponde minimamente à verdade).
A testemunha KK foi muito clara no elencar de situações de conflito latente entre os vizinhos do 1º e do ... da Rua ..., ..., em ..., ... (ouvindo ela também os barulhos do ...), e colocando aí o acento tónico no mau ambiente existente entre a II, mulher do arguido, e a ofendida HH (corroborando a versão da própria ofendida, da sua mãe MM e da sua filha JJ, que também depuseram nesse sentido).
Por outro lado, pareceram-nos estranhamente concertadas as testemunhas de defesa, demasiado coladas à versão do arguido, o que não nos convenceu.
Mas mesmo nesse campo das testemunhas de defesa, convém lembrar o que escreveu o tribunal, por nós confirmado após a audição dos testemunhos em causa.
«Tanto assim é que pelo menos três testemunhas arroladas pela defesa - DD, vizinha/residente no ... do prédio melhor identificado no facto provado nº 1, EE, residente no ... e FF que também residiu no prédio em crise por vários anos - mostraram saber do conflito entre HH, AA e II, esta última testemunha avançando mesmo que soube da contenda porque II lhe contou, por aqui ficando, igualmente, o Tribunal convicto de que os factos sub judice devem ser lidos no quadro de um conflito de vizinhança».
Adiantando-se ainda que da premissa de que a maior parte dos vizinhos do prédio do arguido têm um bom relacionamento e nenhuma razão de queixa do mesmo, não se pode extrair a conclusão de que o arguido não tem más relações com a ofendida.
Por isso, não temos nada a apontar à conclusão probatória a que chegou o tribunal que teve a imediação do processo, optando por uma das versões, em natural detrimento da outra, determinando que ficou apurado que entre o arguido e a ofendida existe há algum tempo um conflito de vizinhança, nomeadamente devido ao mau relacionamento entre a ofendida HH e a testemunha II, cônjuge do arguido.
Alega a defesa que a ofendida se mostrou exagerada, dramática e inventiva.
Não o sentimos na audição do seu depoimento – foi peremptória e muito sofrida, e não capaz de inventar a todo o custo e em todo o pano para seu proveito (e a prova é que até desistiu da queixa em audiência, ansiando por paz).
Como tal, resta concluir que temos por provado o facto nº 2, ou seja, que a frase em causa foi proferida da boca do arguido dirigida à ofendida HH, embora ignorando-se o real e concreto contexto e alcance da mesma, como mais à frente explicitaremos melhor.
Quanto aos factos 3 e 4, ouçamos a sentença:
«(…) Inexistindo confissão, como bem denota a doutrina e a jurisprudência, tais factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo, concernentes à conduta do agente, só podem ser considerados como assentes “a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum”. Assim, o aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-12-2019 (Relatora Isabel Valongo, Processo nº 797/17.9JACBR.C1) e o acórdão de 29-01-2013 (Relator Sérgio Corvacho, Processo nº 599/99.6TAABT.E1) ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Em suma, e como já ensinava o Professor Cavaleiro de Ferreira “o elemento subjectivo da infracção, como conclusão de direito que é, não pode fazer-se derivar imediatamente da prova mas deduzir-se desta, através das ilações que segundo as regras de experiência comum se extraem dos factos na medida em que sejam meras consequências ou prolongamento deles. Pois, trata-se de factos, que não deixam de o ser, mas que assumem uma particular especificidade, visto consistirem em realidades do foro psíquico, logo internos do sujeito. Tais factos não se comprovam em si próprios, mas mediante ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento” (in “Lições de Direito Penal, Vol. I, Lisboa: Verbo, pp. 297 e 298).
Ora, ante toda a factualidade provada e à luz da bitola a convocar que é a do homem médio nas concretas circunstâncias que é a de um conflito entre vizinhos, é possível também asseverar que o arguido representou o facto ilícito com consciência da sua censurabilidade, agindo com intenção de o realizar».

Totalmente de acordo.
No que tange ao dolo, enquanto facto interior, não podendo ser apreendido directamente, tem que ser deduzido de factos externos, de factos materiais designadamente, dos que preenchem o tipo objectivo do crime, conjugados com as regras da experiência.
Neste sentido, invoque-se o Acórdão da RP de 23.02.93, in B.M.J. 324/620, onde se escreve, a certo trecho: “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.
Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
Repete-se o que deixou exarado em Viseu - também para Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, Vol. II, 1981, pág. 292, existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjetivo da conduta criminosa. No mesmo sentido, Malatesta, in A Lógica das Provas em Matéria Criminal, págs. 172 e 173, defende que, exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas (“percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência”).
Diga-se ainda que, como pessoa adulta que é, torna-se claro que o arguido sabia que com a sua conduta estava a amedrontar de forma ilícita a ofendida.

3.1.3. E nem foi violado qualquer princípio constitucional de presunção da sua inocência na medida em que o tribunal não acreditou na sua versão, no legítimo exercício da sua livre apreciação do depoimento do arguido e dos demais meios de prova.
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações por si prestadas e da credibilidade que deveria ter merecido, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o art.º 412º/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal de Viseu em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Ou seja:
Assim, podemos dizer que a argumentação expendida pelo recorrente esbarra naquilo que foi o conjunto da prova (directa e indirecta) produzida, e com eco na decisão proferida.
Decorre, pois, de todo o exposto, que não demonstra o recorrente que a decisão recorrida tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer, ou da experiência comum, não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo, tampouco o recorrente indicou prova que imponha decisão diversa da tomada na decisão em crise, não podendo senão concluir-se que a argumentação e prova por ele indicadas não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo.
Aqui chegados e, face a todo o exposto, parece-nos evidente a falta de razão do recorrente, no que se refere à invocada violação princípio do in dubio pro reo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

3.1.4. E dizer-se – como até à exaustão alega o arguido em recurso - que o arguido é homem habitualmente pacato, trabalhador, cumpridor da lei e com uma imagem positiva junto dos seus familiares, dos seus amigos ou pelo «grosso dos vizinhos do prédio onde vive», não significa que, por isso, tenha de ser ilibado de culpas pois as maiores atrocidades da história foram levadas a cabo por gente insuspeita, aparentes bons cidadãos que apesar de viverem, normalmente, sem erros na vida, foram capazes de cometer alguns contra todas as expectativas e as probabilidades.
O lado negro de cada ser humano desponta a horas incertas e demora, tantas vezes, longo tempo a ser descoberto.
Finalizando e em súmula diremos ainda que os poderes do tribunal na procura da verdade material encontram-se limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, temperado pelo princípio das garantias da defesa, consignado no art.º 32, da CRP.
Assim, sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento, em benefício do arguido.
Em processo penal não existe um verdadeiro ónus probatório em sentido formal, vigorando o princípio da aquisição da prova articulado com o princípio da investigação: são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem interessar a sua origem, recaindo sobre o juiz, em última hipótese, o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente os factos em busca da verdade material.
Quanto ao ónus da prova em sentido material, o princípio de presunção da inocência do arguido impõe que, em caso de dúvida irremovível, a questão seja sempre decidida a favor do arguido. Da falta de prova não podem resultar consequências desfavoráveis para ele, qualquer que seja o thema probandum.
Contesta-se assim o alegado pela defesa quando escreve na sua peça processual de recurso que «pese embora ter consciência de que as regras do ónus de prova lhe eram favoráveis».
O tribunal decidiu acreditar na versão da ofendida e explicou porquê.
E este tribunal valida esta leitura da prova.
De facto:
Não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal.
Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, não sendo suficiente, por isso, para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
Ora, a versão trazida pelo arguido não nos convenceu mais do que a da ofendida, razão pela qual validaremos a tese acusatória.
Se assim é, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto PROVADA, improcedendo a impugnação de facto levada a cabo.

3.2. DO DIREITO

3.2.1. Está, pois, fixada a matéria factual dada como provada.
Discute-se agora se é possível subsumir a conduta do arguido, exarada no facto 2, ao crime de ameaça pelo qual foi condenado.

3.2.2. O facto 2 é:
2. «No dia 01 de Dezembro de 2019, cerca das 13h30, o arguido AA ao ver, desde a janela da marquise da sua residência, HH, sua vizinha, a passear o cão no jardim junto ao prédio onde todos habitam, dirigindo-se a esta disse-lhe “se não te portares bem, dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?!”, tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço, no vulgar gesto entendido por todos como significando que lhe cortava o pescoço e que, como tal, a mataria».

Entende o arguido que esta frase não configura o anúncio de mal futuro letal – que justifique a agravação do artigo 155º, nº 1, alínea a) do CP - mas apenas o anúncio de uma futura ofensa corporal.

3.2.3. Quanto ao imputado crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, nº 1 do C.Penal [agravado pelo artigo 155º/1 a)], há que dizer o seguinte:
Sujeito passivo de ameaça é o destinatário da ameaça, valendo aqui a ameaça com a prática de um crime, seja ou não na pessoa do ameaçado (no nosso caso, a frase foi ouvida pelo seu destinatário).
O conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo desta é elemento integrante do tipo objectivo do ilícito de ameaça (vide FIGUEIREDO DIAS, in Actas da Comissão Revisora do C.Penal, 1993, página 232).
Hoje em dia, este ilícito é um crime de perigo concreto[1] – na realidade, já não se exige a ocorrência do dano (efectiva perturbação do ameaçado quanto à sua pessoa ou a bens seus), mas também não basta (diferentemente do Código Penal alemão) a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se ainda que tal ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação.
            São, pois, três as características essenciais do conceito AMEAÇA:
q Mal
q Futuro (não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo e a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura)
q Cuja ocorrência dependa da vontade do agente (ou apareça como dependente da vontade do agente)
Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 16.04.2008, proc. nº 0717222 , e de 28.11.2007, proc. nº 0712156, todos em www.dgsi.pt, onde se afirma que no crime de ameaça o mal anunciado tem de ser futuro, não estando preenchido o crime se o mal anunciado é iminente.
É esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a acção como crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento.
Tal como é afirmado no Acórdão da Relação do Porto de 22.11.2006, proc. nº 0614091, em www.dgsi.pt, “haverá crime de ameaça quando alguém diz: “quando te apanhar (momento futuro), vou dar-te uns socos” (anúncio de um mal para a integridade física). Que se distingue do acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física quando alguém diz: “ou sais, ou levas já um soco”. Na primeira hipótese, ocorre o anúncio de um mal futuro, limitador da liberdade individual da pessoa ameaçada. Na segunda hipótese ocorre o anúncio de um mal actual, contra a ofensa à integridade física, que começa e acaba ali: ou porque é executado de imediato, integrando o crime de ofensa à integridade física, ou porque o agente ameaçador desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da pessoa visada».
Repete-se: o mal ameaçado tem que ser futuro, ou seja, o objecto da ameaça não pode ser iminente, pois nesse caso e, conforme tem sido largamente defendido na jurisprudência, “estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, do respectivo mal, sendo, irrelevante que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo” – Acórdãos da Relação do Porto de 25 de Janeiro de 2006 e 21 de Junho de 2006, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Não ignoramos que a jurisprudência se tem dividido a propósito do mal iminente.
Enquanto uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça [cfr. Acs. TRP de 25/9/02, proc.º 0240259, de 22/1/03, proc.º 0210754, de 17/11/04, proc.º nº 0414654, de 23/2/05, proc.º 0510031, de 30/3/05, proc.º 0510587, de 25/1/06, proc.º nº 0544124, de 17/5/06, proc.º nº 0411428, de 22/11/06, proc.º nº 0614091, de 20/12/06, proc.º nº 0645320, de 28/11/07, proc.º nº 0712156, de 28/5/08, proc.º nº 0841544, de 22/6/11, proc nº 41/10.0GAVMS.P1 e de 7/3/12, proc.º nº 625/10.6GBVNG.P1; TRG de 1/2/10, proc.º nº 495/05.6GBMR.G2; TRC de 7/3/12, Proc.º nº 110/09.9TATCS.C1 e de 30/5/12, Proc. nº366/10.4GCTND.C1], outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro[2] e a pedra de toque para distinguir o que é ameaça e o que são actos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer [Casos claros em que não há ameaça, mas sim tentativa da prática de outro crime são os que foram analisados nos Acs. TRP de 28/5/03, proc. nº 0340713, TRL de 11/12/03, proc. nº 7569/2003-9 e de 3/11/09, proc. nº 1092/02.3PBOER.L1-5, e TRE de 4/11/10, proc. nº 13/07.1GLBJA.E1] (art. 22º nº 1 do C. Penal) estará na intenção que presidiu à conduta em questão [No âmbito deste entendimento, cfr. Acs. TRP de 16/2/00, proc. nº 9910861, de 7/1/08, proc. nº 1798/07-2 de 13/7/11, TRG de 18/5/09, proc. nº 349/07.1PBVCT, TRC de 9/9/09, proc. nº 363/08.0OGAACB.1 de 23/9/09, proc. nº 541/04.0GBPBL.C1, TRL de 11/2/10, proc. nº 105/08.0PCPDL.L1-9 de 9/3/10, proc. nº 1713/06.9TALRS.L1.5, e TRE de 6/9/11, proc. nº 428/09.0PBELV.E1].
«A propósito refiram-se também os acórdãos (da mesma Relação do Porto) de 14.7.2004, relatora Conceição Gomes, em que se considerou que ”o arguido diz ao queixoso: “Anda cá para fora, que eu mato-te”, está a anunciar um mal futuro; de 30.3.2005, relator Fernando Monterroso, onde foi considerado como mal anunciado futuro, a expressão “eu vou dar cabo de ti, eu vou-te cortar aos bocadinhos”; de 21.6.2006, relator Jorge França, considerou-se como mal futuro, a situação de o arguido, dirigindo-se à ex-mulher, em frente do edifício onde esta residia, a aborda inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo, impedindo-a assim de a fechar, enquanto lhe diz, em tom sério, que queria resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”; de 30.9.2009, do mesmo relator, onde se entendeu que a expressão “Quando te agarrar para os lados da … faço-te as contas” utilizada de forma séria, no contexto de uma discussão, é suscetível de preencher o tipo legal do crime de ameaça; de 22.9.2010, relatora Lígia Figueiredo, onde se entendeu que preenche o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: “hei de te pôr numa cadeira de rodas”; de 6.10.2010, relator Moisés Silva, onde se considerou preencher o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: «hei de tratar-te da saúde, e só não é hoje porque tenho uma distensão muscular» (trecho do eloquente acórdão da Relação do Porto de 26/5/2021, no Pº 775/18.0GBVFR.P1).

3.2.4. Analisemos o caso vertente.

3.2.4.1. A frase é:
Se não te portares bem, dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?! (tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço).
Com ela, anuncia-se um mal, já veremos se também letal.
Trata-se de uma ameaça adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da ameaçada[3].
Temo-la também como anúncio de algo futuro na medida em que a destinatária da ameaça está na rua e o ameaçador está numa varanda da marquise do prédio onde ambos habitam (o facto da expressão que precedeu o gesto não se reportar ao futuro não obsta à conclusão de que encerra um mal vindouro, pois não tendo sido acompanhada “de qualquer ato de execução, é futuro o tempo em que o agente permanece inativo, não obstante lhe ser possível a concretização do referido mal”).

3.2.4.2. Pergunta-se agora, em questão não directamente invocada no recurso mas premente para este tribunal de recurso:
A ocorrência deste mal futuro depende da vontade do agente (ou aparece como dependente da vontade do agente)?
Lembramos que a doutrina avança que «indispensável é, em terceiro lugar, que a ocorrência do "mal futuro" dependa (ou apareça como dependente (...) da vontade do agente) e que esta característica estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso da advertência».
Pode ser problemática esta questão pois a frase – a que segue o gesto - é formulada no condicional.
Efectivamente, tem sido defendido que a ameaça sob condição não constitui ameaça em termos penais, no sentido de que, quando a promessa de um mal futuro está condicionada por uma conduta do destinatário, não se verifica a ratio da punição da ameaça: a intimidação em causa (e, portanto, a lesão da liberdade) pode ser evitada se esse destinatário evitar tal conduta.
Segundo este entendimento, só constituirá ameaça a situação em que a concretização do mal depende apenas do próprio agente.
Opinamos que esta posição, repetida em diversa jurisprudência, pode ser acolhida, em regra, mas com algumas reservas.
Se a conduta do destinatário, que se visa condicionar pela ameaça, é uma conduta inteiramente legítima, que qualquer cidadão tem o direito de adoptar livremente, consideramos absurdo dizer-se que o destinatário, como tinha a escolha de evitar tal conduta, não foi ameaçado.
É óbvio que foi!
Como escreveu o Juiz Conselheiro João Trindade num seu acórdão desta Relação de Coimbra (de 19 de Maio de 2004, no processo n.º 992/04):
«Independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante é a possibilidade da “mensagem”, do “anúncio” que é transmitido pela ameaça provoque ou seja susceptível de provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afecte ou prejudique a sua liberdade de determinação e acção, nem que seja numa restrita, como é o caso (fresar determinada terra), pequena parte da actividade do visado, mesmo, quando existe um direito em litígio.
Se assim não fosse teríamos de considerar como não violadora da liberdade do visado e como tal não puníveis, as ameaças de que “se sais de casa, dou-te um tiro”, ou “se vais para o trabalho, dou-te um tiro” e outras que tais, já que a concretização do mal anunciado estaria dependente de um acto do visado, sublinhe-se de um acto normal e legítimo de qualquer cidadão, sair de casa ou ir trabalhar».
Por conseguinte, nas situações em que a conduta do visado condicionante da concretização do mal futuro é uma conduta inteiramente legítima[4] e normal na vida em sociedade, a que qualquer cidadão tem direito, achamos surpreendente que se diga que está salvaguardada a liberdade de decisão e de acção desse visado porque sempre poderá evitar o mal, abstendo-se de tal conduta.
Comungamos da tese do aresto de Coimbra atrás citado pois a tese contrária, levada ao extremo, violaria frontalmente o espírito e o bem jurídico que subjaz ao artº 153º, qual seja a tutela penal da liberdade pessoal.
É verdade que, em rigor, não poderemos prescindir da consideração, em concreto, do tipo/natureza da conduta do visado que o agente pretende condicionar ao proferir a expressão ameaçadora, pois será a forma de saber se está em causa o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja, a liberdade de determinação e acção do visado.
Em consequência, sempre interessaria saber o que é que significa a frase fatídica  “se não te portares bem, ou seja, que conduta da visada se visou condicionar mediante as palavras e gestos descritos na acusação e dados como apurados.
E a verdade é que ignoramos o que quis dizer exactamente o arguido com essa essa condicionante – «se não aborreceres mais a minha mulher? Se praticares o comportamento x ou y?».
Não o sabemos.
Razão pela qual entendemos que esta condicional é meramente retórica e não indicativa de que a ameaça só se consumaria se existisse um determinado comportamento futuro da ameaçada.
 Tem-se escrito que esse elemento (o mal deve depender como dependente da vontade do agente) há-de ser reportado a um critério objectivo-individual, do homem adulto comum, tendo em conta as características individuais do ameaçado.
Salienta, a respeito, Américo Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora p. 344):
«Significa este critério que o ponto de partida para o juízo sobre a dependência, ou não, do mal, é feito segundo a perspectiva do homem comum, isto é, da pessoa adulta e normal.
Todavia, sendo este o critério-base, não pode deixar de se ter em conta – como factor correctivo do critério objectivo do “homem médio” – as características individuais da pessoa ameaçada.
Assim, afirmações de ocorrência de males futuros poderão não ser consideradas ameaças para um adulto normal (na medida em que seja manifesto que a verificação, ou não, do mal anunciado não depende da vontade do “ameaçante”), mas já o serem, quando a pessoa destinatária da ameaça é uma criança ou um débil mental (p. ex., dizer a uma criança que vai a uma bruxa para que esta provoque uma doença grave na sua mãe), desde que esta debilidade psicológico-intelectual seja conhecida ou devesse ser conhecida do agente».
No nosso caso, não vislumbramos diferença substancial – que possa justificar a tipicidade criminal da conduta do agente numa hipótese e a sua atipicidade noutra em que se coloca uma retórica condicionante – entre estas duas frases:
- Dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?! (tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço) e
- Se não te portares bem, dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?! (tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço).
Repugna assim que se deixe sem punição a 2ª frase, em tudo idêntica à 1ª, em intensidade e intenção.
Aliás, por paralelismo com os exemplos dados por Taipa de Carvalho, tenderemos a considerar que o caso concreto dos autos está para além de um mero aviso, porquanto a verificação do mal futuro anunciado está dependente da vontade do arguido, já que a ele cabe, a cada momento, formular um juízo de valoração sobre o comportamento da pessoa a quem as expressões em causa foram dirigidas (o que é portar-se bem?).
Como tal, não nos perturba a condicional nesta frase, entendendo-a nós como uma ameaça típica, penalmente punível, pois a condicionante é vaga e inócua (estando nós longe de considerar que a acção da ofendida que o arguido coloca no condicional – o tal «se não te portares bem» -, e que, como tal, condicionaria a sua atitude agressiva, seria, de facto, ilícita). 
Diga-se ainda que tal circunstância (condicionante vaga e inócua) impede que ao arguido possa ser assacada a prática de um crime de coacção do artigo 154º do CP.
Para haver uma coacção – crime mais grave, que não depende tendencialmente de queixa e é punível com prisão até três anos –, é necessário que o agente recorra à violência ou pratique uma ameaça grave: "ameaça com mal importante".
A consumação deste crime requer que a vítima, constrangida, pratique uma certa acção ou omissão ou suporte determinada actividade.
Desta forma, para haver coacção, não basta qualquer ameaça que inflija temor à vítima – a mera pressão psicológica não é uma coacção criminosa e a ameaça tem de ser objectivamente apta a constranger a vontade da vítima, embora devamos ter em consideração as suas características peculiares, incluindo os seus conflitos psicológicos, temores, fobias e afectos em geral.
Em suma, o crime de coacção tem, na sua essência, uma manipulação apta e eficaz da liberdade de vontade de outra pessoa (não se tratando de uma conduta reprovável em termos meramente morais mas sim da manipulação de um bem jurídico essencial, que o artigo 26º da Constituição da República Portuguesa classifica como direito fundamental: a liberdade).
A incerteza decorrente da pluralidade de significados atribuíveis à expressão “Se não te portares bem» só poderá converter-se numa verdade penalmente relevante, recondutível ao tipo de crime de coacção, se for possível determinar, com a certeza juridicamente exigível, a intenção subjacente à sua verbalização.
Ora, no caso vertente, pelo facto de não termos efectivo conhecimento da conduta, activa ou omissiva, a que se pretende constranger a visada mediante a ameaça, iremos ficar pela ameaça, fazendo cair a coacção (no caso, em forma de tentativa[5], e já que o crime de coacção, sendo um crime de resultado, fica consumado a partir do momento em que o ofendido inicia a conduta pretendida pelo agente, ignorando-se em concreto que acção seria essa no nosso caso (o tal «portar-se bem»).

3.2.4.3. Resta analisar a questão da agravação, único ponto levantado pela defesa no seu recurso.
À ofendida o arguido disse: Se não te portares bem, dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?! (tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço).
Para o tribunal, o gesto justifica a agravação [os factos foram realizados por meio de ameaça com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, havendo aqui uma clara remissão para o crime de homicídio, com moldura penal abstracta superior a esse limite, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131º e 155º/1 a) do CP], para a defesa não, pois entende que «a ponderação sobre os fundamentos da sua conduta, os moldes em que a mesma se desencadeou – os factos que lhe sucederam e lhe procederam – e a própria personalidade do Recorrente são reveladores de que o pretenso gesto, tendo existido, deveria ser interpretado como uma ofensa à integridade física da Ofendida, e não à sua vida».  
Sabemos que é indiferente a forma que revista a acção de ameaçar: tanto pode ser oral (directa, ou, p. ex., via telefone), como escrita (assinada ou anónima), como gestual.
Lembra-nos Taipa de Carvalho, no comentário acima indicado que «a partir da entrada em vigor do CP de 1982, desapareceu a exigência de que a ameaça fosse escrita ou oral (CP 1886, artigo 379º: «Aquele que, por escrito assinado, ou anónimo, ou verbalmente, ameaçar outrem (…)».
No que concerne à pretensa necessidade de concretização dos meios a empregar quando a ameaça contenha um anúncio de morte, a questão de saber se a agravação do crime de ameaça prevista no artigo 155º, no 1, alínea a), se verifica quando o crime objecto da ameaça (obviamente um dos previstos no no 1 do artigo 153º), é punível com pena de prisão superior a três anos ou, ao invés, quando a ameaça (obviamente de um dos crimes previstos no no 1 do artigo 153º) é feita mediante o anúncio da utilização de meios que constituem crime punível com pena de prisão superior a três anos, foi decidida em sentido negativo pelo Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2013, que fixou jurisprudência no sentido de que «a ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no no 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do no 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal».
Ameaçar que se «dá uma mocada em alguém» não significa, por si só, um anúncio de morte.
Contudo, o arguido não ficou por essa frase.
Disse:
«Dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?! (tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço).
Portanto, «agrido-te com a dita mocada e faço ainda isto» (passando os seus dedos pela largura do pescoço, naquilo que ficou ainda apurado como um «vulgar gesto entendido por todos como significando que lhe cortava o pescoço e que, como tal, a mataria»).
Ou seja, ameaçou que lhe daria uma «mocada» e que lhe cortaria a garganta, o que, fatalmente, é anúncio de morte.
Não nos convence o argumento da defesa de que não faz sentido que uma ameaça de morte seja precedida de uma ameaça à integridade física («ou bem que quer agredir, ou bem que quer matar»).
A nossa experiência forense tal desmente – além disso, sempre se poderia cogitar que o anúncio de morte se consubstanciaria, na prática, em duas acções violentas contra a ofendida (dar-lhe uma mocada e rasgar-lhe a garganta, num claro indício que a “mocada” seria mais um dos meios usados para contribuir para ambicionada morte da HH, sabendo nós que existem “mocadas” que matam).
O tribunal raciocinou assim, quanto à questão do gesto feito:
«Ora, o gesto sub judice - pois que a expressão “dou-te uma mocada” não pode ser relevada por força da extinção do procedimento criminal quanto ao crime de ameaça simples imputado ao arguido -, assume-se, comummente, como o de degolar o visado e, como tal, uma promessa de mal futuro consubstanciador de um crime, porquanto é lhe intrínseco, à luz do aludido critério objectivo, um inequívoco anúncio à vítima de um mal injusto e grave criminalmente tipificado.
Efectivamente, de acordo com a bitola do homem médio o gesto de passar o dedo pelo pescoço, depois de dizer “se não te portas bem, dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste”, reporta-se à prática de um crime contra a vida do destinatário o que, naquele concreto contexto de discussão e de inimizade ao ter sido feito de forma séria e convicta e em moldes que chegaram ao conhecimento da ofendida, provocando-lhe medo e inquietação, e por ser ainda certo que a consumação do augúrio estava na disponibilidade do arguido, permitiu a perfectibilização dos elementos objectivos do crime de ameaça.
É que “o gesto de passar a mão pelo pescoço numa trajetória perpendicular, simulando uma ação de corte da garganta, constitui ato comunicacional com um sentido universal, de anúncio de morte futura do visado por ação de quem faz o gesto, pois a secção daquele órgão tem consequências quase sempre fatais. O sentido comunitário do gesto tem como equivalente verbal a expressão “vou-te cortar o pescoço”, ou seja, anuncia uma concreta conduta projetada no futuro, lesiva da vida do assistente ou, pelo menos, da sua integridade física”. Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-01-2022 (Relator Fernando Ventura, Processo n.º 7765/19.4T9LSB.L1-5) disponível em www.dgsi.pt.
Também assim o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-01-2019 (Relator Artur Vargues, Processo n.º 268/15.8GESTB.L1-5) onde, por referência ao acto de passar a mão aberta pela zona do pescoço se escreveu que tal gesto é, “sem dúvida, apelando para as regras da experiência comum, expressão de promessa ou enunciação de um mal vindouro - futuro – de privação da vida, que integra o crime previsto no artigo 131º, do Código Penal”. Ainda connosco o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18-06-2013 (Relator Martinho Cardoso, Processo n.º 1723/10.1PAPTM.E1).
Nestes termos ainda o aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-06-2018 (Relator Jorge Jacob, Processo n.º 51/17.6GASRE.C1, disponível em www.dgsi.pt.) onde se disse que “o que está em causa neste tipo de crime (de ameaça) é uma conduta adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado; conduta que nem sequer tem que consistir numa afirmação; pode ser um simples gesto carregado de significado (pense-se por exemplo, no acto de passar a mão estendida pelo pescoço, paralela ao queixo, que numa primeira impressão equivale a dizer “corto-te o pescoço”, mas que pode valer com significados diversos, dependendo da situação em concreto, a interpretar caso a caso)”.
Dubiedade que, no contexto de dissídio em juízo, não ocorre, pois, que não se concebe que a conduta do arguido possa ser tida apenas como uma bravata, sem foros de seriedade, não idónea a provocar medo e inquietação, na medida em que adveio num cenário de conflito de vizinhança entre ofendida e arguido e esposa».

Estamos de acordo com esta leitura jurídica dos acontecimentos.
É verdade que aderimos à conclusão do nosso Colega Jorge Jacob no aresto citado na decisão recorrida, ou seja, que tudo dependerá da prova que em concreto vier a ser produzida relativamente à real intenção do agente ameaçador.
No caso vertente, temos muita dificuldade em não interpretar este gesto como sendo de anúncio de algo não letal pois o gesto é explícito e muito expressivo (por muito que possamos pensar que no dia-a-dia se faz tal gesto com plúrimos significados, neste contexto de «briga» entre vizinhos, e na sequência de se dizer, em tom alterado, que se tem vontade de dar uma «mocada» na HH, a intenção pressuposta é letal e assim foi entendida pela dita HH, temerosa ainda hoje do comportamento do arguido).
O que aconteceu foi isto, repete-se:
- Se não te portares bem, dou-te uma mocada e faço-te isto, ouviste?! (tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço).
Não foi isto:
- Se não te portares bem, dou-te uma mocada, ouviste?! (tendo passado em seguida um dos seus dedos pela largura do pescoço).
Ou seja, o «faço-te isto» foi um acréscimo de acção que até ultrapassa a referida «mocada».
Se tivesse sido dita a 2ª frase, sem esse acréscimo, ainda poderíamos ponderar que a interpretação do gesto fosse mais benigna, podendo apenas referir-se a uma mera lesão corporal (causada pela dita «mocada»).
Agora com o aditamento do «e faço-te isto», o filme ganha uma coloração mais negra e sangrenta, logo, potencialmente letal.
Portanto estamos com o Juiz de ...: «não se concebe que a conduta do arguido possa ser tida apenas como uma bravata, sem foros de seriedade».
Assim sendo, tendo presente todas estas considerações, podemos concluir que a conduta do recorrente, tal como se encontra descrita nos pontos 2, 3 e 4 do rol de factos provados, preenche inequivocamente todos os elementos do correspondente tipo legal do artigo 155º/1 a), traduzindo-se as expressões em causa, na sua leitura integrada com o gesto que lhe foi contemporâneo, num claro anúncio de morte (não cindimos, pois, como faz a sentença, o momento da frase e o momento do gesto).
Em suma, estão perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos do crime em apreço, não se podendo absolver o arguido, como é pedido, mas sim validar a sua condenação.

3.2.5. O crime de ameaça consiste em ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade ou autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a causar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação – nº 1 do artigo 153º do Código Penal (tipo simples) –, sendo o agente punido com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias se os factos previstos no artigo 153º forem realizados por meio de ameaça com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (o caso do homicídio) – artº 155º, nº 1, a), do mesmo CP (tipo agravado).
Não tendo este recurso incidido directamente na medida da pena aplicada (no caso, uma mera pena de multa), resta também validar a pena em causa, tida como justa e adequada, assente sobretudo o passado sem mácula em termos criminais do arguido.

3.3. Se assim é, naufraga em absoluto este recurso, não se tendo por violados os artigos citados nas suas conclusões, só havendo que confirmar a sentença recorrida, muito bem elaborada.

3.4. Em sumário:
I. Em processo penal não existe um verdadeiro ónus probatório em sentido formal, vigorando o princípio da aquisição da prova articulado com o princípio da investigação: são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem interessar a sua origem, recaindo sobre o juiz, em última hipótese, o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente os factos em busca da verdade material.
II. Quanto ao ónus da prova em sentido material, o princípio de presunção da inocência do arguido impõe que, em caso de dúvida irremovível, a questão seja sempre decidida a favor do arguido e que da falta de prova não podem resultar consequências desfavoráveis para ele, qualquer que seja o thema probandum.
III. São três as características essenciais do conceito AMEAÇA expresso no tipo do artigo 153º do Código Penal: a)- mal; b)- futuro (não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo e a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura); c) - cuja ocorrência dependa da vontade do agente (ou apareça como dependente da vontade do agente).
IV. Se a conduta do destinatário, que se visa condicionar pela ameaça, é uma conduta inteiramente legítima, que qualquer cidadão tem o direito de adoptar livremente, consideramos inadequado dizer-se que o destinatário, como tinha a escolha de evitar tal conduta, não foi ameaçado.
V. Independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante é a possibilidade do “anúncio” que é transmitido pela ameaça provoque ou seja susceptível de provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afecte ou prejudique a sua liberdade de determinação e acção.
VI. Por conseguinte, nas situações em que a conduta do visado condicionante da concretização do mal futuro é uma conduta inteiramente legítima e normal na vida em sociedade, a que qualquer cidadão tem direito, não nos parece correcto afirmar que está salvaguardada a liberdade de decisão e de acção desse visado porque sempre poderá evitar o mal, abstendo-se de tal conduta.
VII. Não estamos perante um mero aviso quando a verificação do mal futuro anunciado está dependente da vontade do arguido, na medida em que a ele cabe, a cada momento, formular um juízo de valoração sobre o comportamento da pessoa a quem as expressões em causa foram dirigidas.
VIII. O gesto de passar a mão pelo pescoço numa trajectória perpendicular, simulando uma acção de corte da garganta, após a verbalização de um «faço-te isto», constitui acto comunicacional com um sentido universal, de anúncio de morte futura do visado por acção de quem faz o gesto, pois a secção daquele órgão tem consequências quase sempre fatais, o que, por si só, justifica a agravação desta ameaça.


            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
· em negar provimento ao recurso intentado pelo arguido AA, confirmando na íntegra a sentença recorrida (em matéria de facto e em matéria de Direito).

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513.º, n.o 1, do CPP e 8.º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].

Coimbra, 14 de Setembro de 2022
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94.º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)
 
Paulo Guerra (Relator)

Alcina da Costa Ribeiro (Adjunta)

Cristina Branco (Adjunta)



[1] «Como o refere Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., p. 413), referindo-se ao crime base, «atenta a natureza do crime, não é aplicável a teoria da adequação do resultado à acção, mas a mensagem comunicada tem de ser "adequada" a provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação do destinatário. Isto é, não é necessário que o destinatário tenha efectivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade (daí, se afigurando como mais adequada a qualificação como crime de perigo abstracto-concreto e não como crime de perigo concreto, como pretende TAIPA DE CARVALHO, anotação 23.ª ao artigo 153.°, in CCCP, 1999, nem como crime de perigo abstracto, como defendem SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETIE, 2008: 412, anotação 13.ª ao artigo 153.°; e, na jurisprudência, acórdão do STJ, de 26.4.2001, in SASTJ, 50, 55, e acórdão do TRE, de 24.4.2001, in CJ, XXVI, 2, 270). Nas palavras proferidas por FIGUEIREDO DIAS na comissão de revisão do CP de 1989-1991, “O que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação” (actas CP/Figueiredo Dias, 1993: 500”» (cfr. Ac. Relação de Lisboa de 9/5/2017 (Pº 17/16.3PTHRT.L1-5).
[2] Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo e prestes a acontecer.
[3] A ameaça adequada é, assim, aquela ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o ameaçado ficar, ou não, intimidado).
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo - individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado» (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, anotação ao art. 153º).

[4] Aqui se invoca o exemplo contrário:
No acórdão da Relação de Évora, datado de 15.5.2012 (Pº 539/10.0GAOLH.E1) opinou-se que «se aceita o argumento de que a concretização do mal depende da vontade da própria vítima [ou seja, se ela não voltar a “tocar” na filha do Arguido não estará sujeita a qualquer agressão] com a dimensão que lhe foi dada [ser capaz de afastar a prática do crime de ameaça], porque não foi posto em causa o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja a liberdade de decisão e de ação – por tal liberdade, in casu, já se encontrar limitada, uma vez que implica a prática de um crime, o de ofensas corporais perpetrado pelo menor (…) na pessoa da filha do Arguido.
A ameaça proferida pelo arguido não se revela adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação do visado com ela, pois que apenas constitui o anúncio de uma ofensa corporal que o motivará a conformar-se com o direito, respeitando a integridade física de terceiro, não praticando qualquer crime.
Traduz um apelo dirigido ao queixoso para que não agrida ninguém, ou seja, ao cabo e ao resto, para que não pratique qualquer crime. Pelo que não há crime de ameaça».
Aqui neste aresto discute-se uma situação em que o arguido pretendia evitar que a vítima praticasse um acto ilícito e criminoso, o que manifestamente não é a nossa situação em que se ignora de todo em todo o que significa o «portar-se mal» da ofendida.

[5] Para que a tentativa seja punível é necessário que o alvo da ação coactiva inicie uma conduta conforme ao que é imposto pelo agente coactor.