Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/20.5T8LSA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CUMULAÇÃO DE INVENTÁRIOS
SEU ALCANCE
CABEÇA DE CASAL
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ –JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1094º NCPC E 2080º C. CIVIL.
Sumário: I - A cumulação de inventários não se reporta à partilha - caso em que poderia ser inadmissível nas situações de único interessado - mas antes ao iter processual do inventário; e assenta a sua ratio na conveniência da apreciação conjunta - por virtude de celeridade, economia de meios e decisão final mais justa - do objeto do processo, quando certos elementos, objetivos e subjetivos, de conexão entre os dois inventários – previstos no artº 1094.º do CPC - a aconselhem ou, até, imponham.

II - O cargo de cabeça de casal deve ser, prioritariamente, exercido – mesmo no caso de cumulação de inventários, e respeitada a hierarquia do artº 2080º do CC -, pelo interessado que, por razões objetivas ou subjetivas – familiares, de relacionamento pessoal, de conhecimento do acervo a partilhar, etc - maiores e melhores condições reúna para bem administrar e gerir tal acervo até à sua partilha.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

No processo de inventário sucessório em epígrafe, em que são interessadas  M... e F..., foi proferido, no que ora interessa, o seguinte

Despacho

«DA CUMULAÇÃO DE INVENTÁRIOS

Requereu F... a cumulação de inventário relativo à falecida esposa do de cuius, M...

Em resposta, a requerente alegou que a cumulação de inventários é despicienda, na medida em que sendo F... a única e universal herdeira de M..., não se justifica uma ação de inventário.

Cabe decidir.

Como decorre do n.º 1 do art. 1097.º do Código de Processo Civil, o inventário destina-se a fazer cessar a comunhão hereditária, ou seja, a partilhar o património que integra a massa comum hereditária, caso se trate da partilha de bens da herança de uma pessoa falecida, como, no caso, sucede.

Também de acordo com o n.º 1 do artigo 1094.º do Código Civil, a cumulação de inventários pressupõe a partilha de heranças diversas.

Ora, havendo um único herdeiro não existe necessidade de partilha, na medida em que o património hereditário ingressa na titularidade daquele, sem necessidade de proceder a inventário e a divisão do património hereditário entre interessados.

Sendo este o caso relativamente à herança de M..., em relação à qual existe uma única e universal herdeira, então, não há necessidade de se proceder a inventário para partilha da mesma.

O que importa, sim, é que a representante dessa herança, onde se integrou a quota devida por M... na herança do falecido M..., participe no presente inventário também nessa qualidade, o que foi feito.

Nessa medida, entendemos inadmissível a cumulação de inventários, pelo que vai a mesma indeferida.

 DA OPOSIÇÃO À NOMEAÇÃO DA CABEÇA-DE CASAL

Entende a interessada M... que o cargo de cabeça de casal por falta das pessoas das alíneas a), b) e c) pertence in casu aos herdeiros testamentários, nos termos da al. d), do n.º 1 do art. 2080.º do Código Civil.

Dizendo o nº 3 do art. 2080º, que de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte, sendo que, no caso, tendo falecido o cônjuge sobrevivo do inventariado, a quem incumbia o cargo de cabeça de casal, e sendo a sua herança totalmente dependente da do primeiro, o cargo fica a pertencer à sua única herdeira testamentária, F...

Além disso, M... viveu com esta sua filha, desde 19-04-2017 e até 30-11- 2018, em comunhão de mesa e habitação, logo havia mais de um ano antes da sua morte.

Já a cabeça-de-casal entende que, improcedendo a cumulação de inventários, deve manter-se a sua designação naquela qualidade.

No caso, como resulta do determinado supra, não há lugar a cumulação de inventários.

Assim, não há dúvidas que é por reporte ao falecido M... e não a M... que importa apreciar a legitimidade da cabeça-de-casal, asserção essa igualmente válida em caso de cumulação de inventários, sem prejuízo da possibilidade de duplo cabecelato.

Ora, sendo as únicas e universais herdeiras do de cuius herdeiras testamentárias e dado que nenhuma tendo viveu com ele há, pelo menos, um ano à data da morte, prevalece o critério previsto no n.º 4 do art. 2080.º do Código Civil, ou seja, prefere o herdeiro testamentário mais velho.

Resultando dos assentos de nascimento juntos aos autos que M... é cerca de dois anos mais velha que F..., então é àquela, em sintonia com o determinado, que compete o cabecelato, indeferindo-se o requerido nesta parte.»

2.

Inconformada recorreu a interessada F...

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Contra alegou a recorrida pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

            ...

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685-A º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª - Cumulação de inventários.

2ª - Cabeçalato para a recorrente ou duplo cabeçalato.

4.

Apreciando.

4.1.

Primeira questão.

Estatui o artigo 1094.º do CPC, sob a epígrafe:

Cumulação de inventários

1 - É admissível a cumulação de inventários para a partilha de heranças diversas quando:

a) As pessoas por quem tenham de ser repartidos os bens sejam as mesmas;

b) Se trate de heranças deixadas pelos dois cônjuges;

c) Uma das partilhas esteja dependente da outra ou das outras.

2 - No caso referido na alínea c) do número anterior:

a) Se a dependência for total, a cumulação é sempre admissível, por não haver, numa das partilhas, outros bens a adjudicar além dos que ao inventariado tenham de ser atribuídos na outra;

b) Se a dependência for apenas parcial, o juiz pode indeferir a cumulação quando a mesma se afigure inconveniente para os interesses das partes ou para celeridade do processo, por haver outros bens a partilhar.

A cumulação de inventários justifica-se porquanto:

 «Os interessados partilham num só processo duas ou mais heranças a que concorrem e reduzem com isso a sua intervenção, evitam a repetição de diligências, a possível fragmentação da propriedade e até o pagamento de custas mais avultadas.

A actividade judiciária torna-se mais útil, porque de pronto esclarece as partilhas, são mais céleres o seu andamento e conclusão.

O inventário toca mais cedo o seu termo e dai advêm vantagens para a administração de cada um, no pagamento das despesas, dos impostos e na cobrança das receitas.

Resulta ainda uma partilha mais igualitária.

Por outro lado, não se descortinam inconvenientes vultosos, que os direitos de todos em nada são preteridos com a cumulação, e aos intervenientes asseguram-se os mesmíssimos meios de defesa» - Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Vol. I, 4.ª edição. Almedina, 1990, pág. 192.

No caso da al. b) do nº1 cabem aí as situações em que «se não procedeu a inventário por óbito do cônjuge predefunto»  sendo que no caso desse preceito legal «não pode a cumulação deixar de ser ordenada quando requerida»  - cfr.  Autor e ob. Cits. pgs. 196 e 201.

No caso vertente.

A cumulação não pode deixar de ser deferida, e, ao menos essencialmente, pelas razões  aduzidas pela recorrente.

Em primeiro lugar porque as interessadas dos bens das duas heranças são as mesmas – al. a).

Em segundo lugar porque  se trata de  heranças deixadas pelos dois cônjuges que feneceram sucessivamente sem que as partilhas a cada um deles atinentes se tenham verificado – al. b).

Sendo que, e como se viu, nestes casos só, quiçá, excecionalmente, e por razões mui ponderosas claramente explicitadas, tal cumulação deve ser arredada.

Em terceiro lugar porque, tanto quanto emerge do recurso e dos factos nele alegados  pela recorrente -  que devem, porque não contestados pela recorrida, ser dados como  assentes -, existe uma relação de total dependência entre os dois inventários, já que numa das partilhas  inexistem outros bens a adjudicar para além dos que ao inventariado tenham de ser atribuídos na outra.

Como se viu, o tribunal a quo afastou a cumulação com o argumento de que:

«…. a cumulação de inventários pressupõe a partilha de heranças diversas.

Sendo este  (que) relativamente à herança de M..., em relação à qual existe uma única e universal herdeira, então, não há necessidade de se proceder a inventário para partilha da mesma.

O que importa, sim, é que a representante dessa herança, onde se integrou a quota devida por M... na herança do falecido M..., participe no presente inventário também nessa qualidade, o que foi feito. »

SDR não é assim.

A cumulação não pressupõe, ao menos necessariamente, a «partilha de heranças diversas».

O que ela pressupõe, é, apenas, e existência de um elo/nexo, subjetivo ou objetivo, de conexão entre os dois inventários que aconselhe, ou até imponha, a apreciação conjunta e unitária de todo o conspeto processual tramitado com vista à consecução de uma partilha  justa e equitativa.

Destarte, e como alega a recorrente, o facto de, vg., existir num inventário apenas um interessado único, não impede a emergência de inventário e consequente possível cumulação com outro inventário.

Tal o impõe o artº 2103º do CC, a saber:

«Havendo um único interessado, o inventário a que haja de proceder-se nos termos do n.º 2 do artigo anterior tem apenas por fim relacionar os bens e, eventualmente, servir de base à liquidação da herança.»

Sendo de notar que no próprio inventário arrolamento se podem levantar questões controvertidas na relacionação ou liquidação.

Ora a  lei reporta-se à cumulação de inventários e não à cumulação de partilhas, sendo estas a consequência daquele e reportando-se os benefícios da cumulação ao iter do processo de inventário que não, diretamente – posto quer indiretamente também tal se pretenda – à partilha.

Por conseguinte, o argumento de que o que importa e basta é a participação da interessada única da herança da M... nessa qualidade, outrossim não colhe.

No inventário partilham-se bens, real e objetivamente considerados.

Logo, existindo a necessidade, ou a possível necessidade, de uma apreciação relativamente ao acervo sucessório que possa colocar-se atenta, ou por referência, ao respetivo de cujus, ou numa ótica que possa contender ou ser influenciada, pela perspetivação de situações jurídicas ou direitos sucessórios a eles, individual ou dualmente consideradas, é óbvio que a sua dilucidação pelo mesmo juiz, a um tempo, e numa perspetiva global e unitária, é preferível a todos os títulos: de celeridade, de economia de meios e, quiçá, não de somenos, e como supra aludido, de uma partilha justa e equitativa – cfr. Ac. RC de 20.05.2020, p. 3311/12.9YXLSB-C.C1 in dgsi.pt.

No caso sub judice assim é ou deve ser.

Até porque, como refere a recorrente, ela é interessada, posto que em percentagens diversas, nas duas heranças e nos respetivos bens que as compõem e, ademais, titular de uma quota hereditária superior à  da outra interessada.

4.2.

Segunda questão.

Prescreve o artº  2080º do CC:

1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:

a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;

b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;

c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;

d) Aos herdeiros testamentários.

2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.

3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.

4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.

Dimana deste preceito que o cargo de cabeça de casal deve ser, prioritariamente, exercido, pelo interessado que, por razões objetivas ou subjetivas – familiares, de relacionamento pessoal, de conhecimento do acervo a partilhar, etc -  maiores e melhores condições reúna para bem administrar e gerir tal acervo até à sua partilha.

O exercício do cargo não concede privilégios ao respetivo interessado, e nem sequer atribui apenas direitos;  concede-lhe alguns, mas, também, lhe impõe deveres.

Assume-se, afinal, como um cargo que atribui qualidades consubstanciadas em poderes/deveres funcionais tendentes à consecução do seu fito primordial: boa administração/gestão/preservação dos bens  com vista a uma  partilha célere e equitativa.

Destarte, e nesta senda, o cargo não pode ser exercido arbitrária e atribiliáriamente; antes, ao invés, o devendo ser honesta e zelosamente.

Na verdade, ele está obrigado a prestar contas anualmente, e, no limite, e se não exercer o cargo adequadamente e violar os deveres a que está adstrito, podendo ser removido do cargo. – cfr. artºs  2093º e 2086º do CC.

Neste caso, como nos demais, são estes os pressupostos que devem alicerçar a nomeação do cabeça de casal, posto que cumprida a hierarquia prevista no artº 2080º.

In casu.

Concluindo-se que a cumulação deve efetivar-se, falece o argumento nuclear no qual, tanto o tribunal a quo como a recorrida, alicerçam a sua pretensão de manter esta como cabeça de casal, ou, até, adotar o duplo cabeçalato.

Sendo de efetuar a cumulação, ou seja, apreciando-se conjuntamente o acervo patrimonial a partilhar e sendo este comum aos dois inventários, não se nos afigura útil e profícuo optar pelo duplo cabeçalato.

Antes pelo contrario, tal seria algo redundante e possível fonte de conflitos.

O cabeçalato singular, atento o supra aludido quanto aos direitos e obrigações do cabeça de casal, alcandora-se, pois, à solução mais adequada.

Ora atento o teor da decisão recorrida e os elementos fáctico circunstanciais que se vislumbram, parece-nos que os argumentos invocados pela recorrente têm a sua validade e relevância.

Efetivamente, ela é a herdeira que maior quinhão tem, e esse quinhão abrange as duas heranças.

No limite, e mesmo que assim não fosse, ou assim não se entenda, sempre relevaria o segmento normativo do nº3 do artº 2080º.

E  ela invoca, e não é contestado, que preenche o requisito de tal segmento, pois que viveu com a falecida  mais de ano e meio antes da morte desta.

Procede o recurso.

5.

Sumariando – arº 663º, 7 do CPC.

I - A cumulação de inventários não se reporta à partilha - caso em que poderia ser inadmissível nas situações de único interessado -  mas antes ao iter processual do inventário; e assenta a sua ratio na conveniência da apreciação conjunta -  por virtude de celeridade, economia de meios e decisão final mais justa - do objeto do processo, quando certos elementos, objetivos e subjetivos, de conexão entre os dois inventários – previstos no artº 1094.º do CPC -  a aconselhem ou, até, imponham.

II - O cargo de cabeça de casal deve ser, prioritariamente, exercido – mesmo no caso de cumulação de inventários, e respeitada a hierarquia do artº 2080º do CC -,  pelo interessado que, por razões objetivas ou subjetivas – familiares, de relacionamento pessoal, de conhecimento do acervo a partilhar, etc -  maiores e melhores condições reúna para bem administrar e gerir tal acervo até à sua partilha.

6.

Deliberação.

Termos em que se julga o recurso procedente, revoga-se a sentença, ordena-se a cumulação de inventários e nomeia-se cabeça de casal a recorrente em substituição da recorrida.

Custas pela recorrida.

                 Coimbra, 11/05/2021

Carlos Moreira
João Moreira do Carmo
Fonte Ramos