Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
951/21.9T8CRB-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA
PRONÚNCIA DO FIDUCIÁRIO
REQUERIMENTO FUNDAMENTADO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÕES ABSOLUTAS
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 243.º, N.ºS 1 E 3, AL.ª C), 185.º E 186.º, N.º 2, DO CIRE
Sumário: I – Ainda que surgida a impulso do juiz, a pronúncia do fiduciário em como “a decisão proferida no incidente da qualificação de insolvência como culposa é fundamento bastante para a cessação antecipada do procedimento de exoneração”, mostra-se bastante para efeitos de verificação do requisito formal de “requerimento fundamentado” a que se refere o art. 243.º, n.º 1 do CIRE.

II – A recusa da exoneração do passivo restante com o fundamento enunciado no art. 243.º, n.º 3, alínea c), do CIRE abrange todos os casos em que no incidente de qualificação da insolvência se conclua que a mesma é culposa nos termos do art. 185.º, incluindo a decorrente da verificação de alguma das situações elencadas no art. 186.º, n.º 2, as quais configuram presunções absolutas de insolvência culposa.

III – Em nenhuma das situações previstas para o indeferimento liminar/cessação antecipada/recusa/revogação da exoneração do passivo restante se exige a aferição “em concreto” do merecimento (subjetivo) do benefício, tendo o legislador entendido que não se justifica a concessão desse benefício a quem culposamente contribuiu para o desmoronar ou o agravar dos danos da estrutura económica/património e assim comprometeu as legítimas expetativas dos credores ao recebimento do que lhes é devido, não podendo, como tal, ser premiado com uma libertação do passivo gerado.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 951/21.9T8CRB-F.C1

Juízo de Comércio ... – Juiz ...

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

Por sentença de 15.03.2021 foi declarada a insolvência de AA, residente na Rua ..., ... ....


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Por decisão de 03.09.2021 foi, ao demais, admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor e determinado que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o mesmo viesse a auferir se considera cedido ao fiduciário, constituindo rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, e nomeadamente do que seja razoavelmente necessário para o sustento do seu agregado familiar, correspondente ao montante de uma vez e meia o salário mínimo nacional[2].

                                                                                   *

Por decisão de 29.10.2022 a insolvência foi declarada como culposa, julgado afetado pela qualificação o insolvente e declarado o mesmo inibido para administrar patrimónios de terceiros, bem como inibido para o exercício do comércio, pelo período de 3 (três) anos, e inibido, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.

Essa decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.01.2022, tendo transitado em julgado.

                                                                                   *

Na sequência do despacho de 15.11.2022, o devedor e a fiduciária foram notificados para, querendo, se pronunciarem relativamente à cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos da previsão contida no artigo 243.º, n.º 1, alínea c), do CIRE.

O devedor pronunciou-se manifestando o entendimento que “A previsão da alínea c) do art.º 243º, n.º 1, do CIRE não deve ter consequência natural a cessação antecipada como consequência do incidente de qualificação de insolvência, especialmente nos presentes autos onde o devedor, designadamente, se encontra a cumprir as obrigações que decorrem da admissão do pedido de exoneração”, não devendo ser determinada essa cessação antecipada.

Já a Sra. Fiduciária pugnou no sentido de “a decisão proferida no incidente da qualificação de insolvência como culposa é fundamento bastante para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos e para os efeitos da al. c) do nº 1 do art.º 243 º do CIRE”.

                                                                                   *

Por decisão de 19.12.2022, com os fundamentos que dela constam, o Sr. Juiz recusou a exoneração do passivo restante do devedor e declarou antecipadamente cessado o procedimento.

                                                                                   *

Inconformada, o insolvente interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:

“Conclusão Um - O douto Tribunal recorrido violou o n.º 1, do art. 3.º, e o n.º 2, do art. 608.º, ambos do CPC, e violou o n.º 1, do art. 243.º, do CIRE, ao decidir a cessação antecipada do procedimento de exoneração sem que tal tivesse sido requerido por qualquer dos intervenientes processuais, sejam elas o AI, aqui Fiduciário, os credores e o Insolvente;

Conclusão Dois - Deve a decisão em crise ser revogada e substituída por uma outra que ordene o prosseguimento do procedimento de exoneração (isto é, a sua retoma, uma vez que, tendo o recurso efeito devolutivo, no entretanto, a decisão em crise surte efeito);

INCONSTITUCIONALIDADE:

Conclusão Três - Ao decretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração, com inerente recusa dela quanto ao passivo restante, sem a prática de quaisquer diligências e sem análise factual, o douto Tribunal recorrido violou os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça e da solidariedade, plasmados no art. 1.º, da CRP, o princípio do Estado de Direito Democrático, plasmado no art. 2.º, do mesmo texto constitucional, e o n.º 3, do art. 3.º, de tal diploma fundamental, dispositivos que violou;

Conclusão Quatro - Deve a decisão em crise ser revogada e substituída por uma outra que ordene o prosseguimento do procedimento de exoneração (isto é, a sua retoma, uma vez que, tendo o recurso efeito devolutivo, no entretanto, a decisão em crise surte efeito)

VIOLAÇÃO DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO:

Conclusão Cinco - Ao não discriminar os factos que considera provados, o douto Tribunal recorrido violou o seu dever de fundamentação fáctica, violando os n.ºs 1, 2 e 3, do art. 607.º, do CPC;

Conclusão Seis - Deve a decisão em crise ser revogada e substituída por uma outra que ordene o prosseguimento do procedimento de exoneração (isto é, a sua retoma, uma vez que, tendo o recurso efeito devolutivo, no entretanto, a decisão em crise surte efeito)”.


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Não foi oferecida resposta.

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No despacho em que admitiu o recurso, o Sr. Juiz, prevenindo a possibilidade de se entender que no recurso foi suscitada a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, pronunciou-se nos seguintes termos: “Compulsado o teor da sentença, verifica-se que a mesma se encontra fundamentada de facto. Na verdade, constata-se que a mesma decidiu «tendo- se em consideração a factualidade acima descrita [no relatório] que resulta do próprio processado.».

Face ao exposto, consideramos que não se verifica a nulidade invocada, nada havendo a suprir”.


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Dispensados os vistos, foi realizada a conferência, com obtenção dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

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II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (art. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a decidir (ordenadas por precedência lógica, a partir da forma para a substância):

Saber se:

1.ª – A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 3.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 do CPC e 243.º, do CIRE, por a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante ter sido decretada sem que existisse requerimento nesse sentido apresentado por qualquer credor ou pela Sra. fiduciária.

2.ª – A decisão recorrida violou o dever de fundamentação emergente do art. 607.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC ao não discriminar os factos que considera provados.

 3.ª – É inconstitucional - por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça, da solidariedade e do Estado de Direito Democrático plasmados nos arts. 1.º, 2.º e 3.º, n.º 3 da CRP - a norma contida no art. 243.º, n.º 1, alínea c) do CIRE quando interpretada no sentido de se tratar de uma presunção inilidível, estando dispensadas quaisquer diligências no sentido de se apurar se o devedor merece um “recomeço limpo”.


*

III-Fundamentação

A – Da ilegalidade da decisão por inexistência de requerimento (?)

Como é sabido, o instituto da exoneração do passivo restante constitui uma medida especial de proteção do devedor, concedendo-lhe a possibilidade de retomar a sua atividade liberto das consequências da anterior insolvência.

A obtenção de tal benefício conduz a que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos (designado período de cessão) adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.

Durante esse período ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores, integrando o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos previstos nas als. a) e b) do n.º 3, do artigo 239.º do CIRE, impondo simultaneamente o n.º 4 deste mesmo artigo ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, tendo em vista assegurar a efetiva prossecução dos fins a que é dirigida.

Depois de admitida liminarmente, no que ao caso dos autos interessa, a exoneração pode:
i) cessar antecipadamente nos termos previstos no art. 243.º do CIRE
ii) ser, a final (nos 10 dias subsequentes ao termo do período), recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente (art. 244.º do CIRE)

Mau grado as suas sucessivas intervenções neste domínio do direito, o legislador persiste na adoção de formulações imprecisas, suscetíveis de criar “ruído” num percurso processual que se impunha isento de antolhos.

Na verdade, e incidindo apenas sobre a reflexão imposta por este recurso, se é claro e límpido que a cessação antecipada do procedimento de exoneração não pode ser determinada oficiosamente[3], já deixa de o ser no que atine à recusa no fim do período, face à redação do art. 243.º, n.º 2 do CIRE “com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente”, apesar da redação do n.º 1 desse mesmo preceito apenas exigir a audição prévia do devedor, do fiduciário e dos credores da insolvência antes da sua decisão final de conceder ou não (recusa) da exoneração.

E, se perante a redação do aludido n.º 1 do art. 243.º (mera audição das partes), se afigura que no n.º 2 do art. 244.º se disse mais do que se pretendia – pelo menos enquanto querendo abranger a necessidade do impulso processual –, aceitando-se que a não concessão da exoneração pode ser efetuada sem requerimento de qualquer dos legitimados e mesmo contra o divergente entendimento unânime destes, o mais elementar sentido de coerência interroga-nos acerca da diferença de tratamento existente.

Dito em termos muito básicos: o juiz pode, no final do procedimento, recusar a exoneração sem requerimento nesse sentido, mas não o pode fazer antecipadamente, embora saiba que inelutavelmente o terá de fazer a final (!!!).

E, a ser assim, qual a justificação normativa para vincular o juiz a esperar pelo esgotamento do termo do período, não podendo fazer cessar antecipadamente o procedimento ex officio, quando os fundamentos da recusa se apresentem ostensivos, tão só por persistirem na indolência os legitimados em agir?

Seja como for, e com isto se pode criticar a desnecessidade quanto ao avanço do argumentário deixado, importa fazer a petitio principii: no caso dos autos não foi apresentado requerimento pela Sra. fiduciária no sentido de cessar antecipadamente o procedimento?

A verdade é que, embora depois de uma iniciativa processual do Sr. Juiz, a posição assumida pela Sra. fiduciária foi no sentido de pretender que a cessação antecipada do procedimento tivesse lugar, com o pressuposto que “a decisão proferida no incidente da qualificação de insolvência como culposa é fundamento bastante para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos e para os efeitos da al. c) do nº 1 do art.º 243.º do CIRE”.

É certo que nunca utilizou os verbos requerer, pedir ou peticionar (ou outros de sentido idêntico), mas resulta inequívoco do seu texto a sua pretensão de cessação antecipada do procedimento, com fundamento na decisão que considerou culposa a insolvência.

 Do exposto resulta estar verificado o requisito formal de “requerimento fundamentado” a que se refere o art. 243.º, n.º 1 do CIRE e, consequentemente, o respeito pela exigência que emerge do art. 3.º, n.º 1 do CPC.

B – Da imputada violação do dever de fundamentação emergente do art. 607.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC.
É indiscutível a necessidade de fundamentação das decisões judiciais – sendo que nela se inscreve a sua verdadeira e válida fonte de legitimação constitucionalmente impressa (cfr. art. 205.º, n.º 1 da CRP, ao prescrever que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas na forma prevista na lei).
Correspetivamente, prevê-se no art. 615.º, n.º 1, b) do CPC, ser nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto que justificam a decisão, embora devendo realçar-se que, como o afirma a doutrina e a jurisprudência em termos uniformes, só a absoluta falta de fundamentação da sentença (ou seja, a não indicação dos factos provados e não provados) é suscetível de gerar a sua nulidade[4].
Sucede que, no caso, o Sr. Juiz, na parte inicial da decisão, enunciou os factos que considerou relevantes[5], factos esses que passamos a reproduzir, agora sob a forma numericamente ordenada:
1. No âmbito do presente processo especial de insolvência relativo ao devedor AA, foi liminarmente admitido, em 03.09.2021, o incidente de exoneração do passivo por este requerido, fixando-se o rendimento indisponível em valor correspondente a uma vez e meia o salário mínimo nacional.
2. Por sentença proferida em 29.10.2021, foi a presente insolvência qualificada como culposa, julgando-se afetado pela qualificação o próprio devedor insolvente.
3. Tendo o devedor insolvente recorrido da aludida sentença, veio a ser proferido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em 11.01.2022, entretanto já transitado em julgado, confirmando-a.

Não ocorre, como tal, o vício apontado.

C – Da invocada inconstitucionalidade

No entender do recorrente, é inconstitucional a norma contida no art. 243.º, n.º 1, alínea c) do CIRE quando interpretada no sentido de se tratar de uma presunção inilidível, estando dispensadas, quando se verifique a situação em análise, quaisquer diligências no sentido de se apurar se o devedor merece um “recomeço limpo”.

Estatui-se no artigo 243.º, n.º 3, alínea c) do CIRE dever ser recusada a exoneração quando “A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência”.

O mesmo é dizer-se - quando no incidente de qualificação da insolvência se conclua que a mesma é culposa nos termos do art. 185.º do CIRE[6].

“Culposa” incluindo a decorrente da verificação de alguma das situações elencadas no art. 186.º, n.º 2 do CIRE, uma vez que as mesmas configuram presunções absolutas de insolvência culposa[7].

Ou seja, tendo-se demonstrado qualquer um dos comportamentos tipificados no art. 186.º, n.º 2, a insolvência presume-se iuris et de iure como insolvência culposa, sem necessidade de demonstrar que a atuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade).

Na situação presente, como decorre da certidão junta aos autos, entendeu a primeira instância, com confirmação do Tribunal da Relação de Coimbra, “pelo preenchimento da circunstância prevista na citada alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE”.

Na literalidade do art. 243.º do CIRE, a decisão do incidente de qualificação da insolvência que conclua pela insolvência culposa, implica, com automaticidade, desde que reunidos os demais pressupostos (requerimento apresentado em prazo[8]), a cessação antecipada do procedimento de exoneração, ficando mesmo excluído o direito ao contraditório previsto para demais  situações elencadas no art. 243.º, n.º 1, do CIRE, por força da previsão do n.º 3 desse mesmo normativo.

É contra este automatismo que se insurge o recorrente, entendendo que, por imposição constitucional, sempre haveria que indagar se o devedor não merece uma segunda oportunidade – um “recomeço limpo” ou “fresh-start”, mostrando-se indigno que “uma pessoa humana, por ter errado na gestão económica da sua vida, fique, eternamente, prisioneira dos seus erros”.

Este argumento, com a vénia e o respeito que se impõem, prova demais e não atende à “ratio” do instituto da exoneração do passivo restante.

Prova demais porque em nenhuma das situações previstas para o indeferimento liminar/cessação antecipada/recusa/revogação da exoneração se exige a aferição “em concreto” do merecimento (subjetivo) do benefício.

O que ocorre nesta sede não é uma apreciação abordada num prisma idêntico ao que é feito no âmbito criminal ao jeito do juízo de prognose quanto à “suspensão da execução da pena”, antes a verificação de situações objetivas que justificam, o indeferimento liminar/cessação/recusa/revogação da exoneração.

De resto, se à data da apreciação do requerimento de exoneração estivesse já decidida a qualificação da insolvência como culposa, impunha-se o seu indeferimento liminar nos termos previstos no art. 238.º, n.º 1, e) do CIRE, apresentando-se, com este preciso alcance, indiferente o conhecimento dessa qualificação a posteriori (exceto quanto às soluções técnicas processuais para se atingir esse resultado -indeferimento liminar, cessação antecipada ou a final).

Depois, em termos de ratio normativa, o instituto insere-se numa tentativa de conciliação dos princípios ligados ao ressarcimento dos credores (por regra em termos insignificantes) com o de possibilitar aos devedores singulares a sua reabilitação económica (cfr. ponto 45 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março), tendo o legislador entendido que não se justifica a concessão desse benefício a quem culposamente contribuiu para o desmoronar ou o agravar dos danos da estrutura económica/património e assim comprometeu as legítimas expetativas dos credores ao recebimento do que lhes é devido, não podendo, como tal, ser premiado com uma libertação do passivo gerado, mediante, dito com muita imprecisão, “uma prescrição atípica”.

Assim, a aludida automaticidade em nada belisca os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça e da solidariedade e do Estado de Direito Democrático, antes se apresenta como meramente decorrente da responsabilização pelo pagamento das dívidas no âmbito do cumprimento, de quem, culposamente, as gerou ou ampliou.

Não vemos, pelo já exposto, estar presente a mencionada inconstitucionalidade.

                       


    *

Sumário[9]:

(…).                        

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

                                                                               *

Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                               *

Coimbra, 28 de fevereiro de 2023


(Paulo Correia)

(Helena Melo)

(José Avelino)




[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2] - Por manifesto lapso na decisão em causa efetuou-se a formulação do texto no feminino “devedora”.
[3] - “a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência (…) ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor” (art. 243.º, n.º 1, do CIRE).
[4] - Cfr. Ac. do STJ de 17.10.1990, disponível em www.dgsi.pt.

[5] - Deixou-se escrito na decisão “Cumpre apreciar e decidir, tendo-se em consideração a factualidade acima descrita que resulta do próprio processado”.
[6] - Neste sentido Ana Prata et all, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, pág. 675 e Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª Edição, pág. 867.
[7] - Segue-se, a este propósito, a corrente ultra maioritária defendida, entre outros por Luís Teles de Menezes Leitão (Direito da Insolvência); Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado), Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e Maria do Rosário Epifânio (Manual do Direito da Insolvência).
[8] - A questão da prova apresenta-se como despicienda, uma vez que ela consta do próprio processo.
[9] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).