Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
636/06.6GAALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES
CRIME CONTINUADO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALBERGARIA À VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 165º, Nº1 E 2, 30º Nº1 E 2E 71º,72º E77 DO CP, 494ºE 496º DO CC
Sumário: 1. Não se mostrando que a reiteração criminosa tenha resultado de qualquer solicitação externa para a qual o arguido não tenha contribuído, concluímos que foram factores endógenos que o levaram a repetir o crime, ou seja, como resulta do acervo factual, o arguido aproveitou-se da sua ascendência sobre a ofendida em resultado da doença mental que a mesma sofria e que a tornava incapaz de avaliar a amplitude e a gravidade dos factos e daí tirou partido para satisfazer paixões lascivas e o seu instinto libidinoso.

2.Assim, não tendo sido qualquer condicionalismo criado pela ofendida que determinou o arguido à prática dos factos criminosos, estamos perante uma culpa agravada e por isso excluída do nº 2, do artº 30º do Código Penal.

3 Cometeu deste modo o arguido dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165º, nºs 1 e 2, do Código Penal, correspondendo a cada um pena de dois a dez anos de prisão, um constituído pelos factos ocorridos na sua casa e o outro pelos factos ocorridos no pinhal.

4 Sendo a atenuação especial da pena aplicável apenas a casos extraordinários ou excepcionais, ou seja, a casos em que razoavelmente se possa supor que o legislador neles não pensou quando estatuiu moldura punitiva respectiva, impõe-se que a mesmas só possa ser aplicada quando no caso concreto ocorram circunstâncias tais que justificam uma punição distinta daquela que é prevista para a generalidade das situações.

5 No caso estamos perante uma situação perfeitamente enquadrável na “normalidade” atendida pelo legislador quando fixou a moldura punitiva. e neste âmbito, nenhuma circunstância se mostra que diminua acentuadamente a culpa ou a ilicitude ou reduza marcadamente a necessidade da pena.

6 Em processo penal vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova, mesmo em relação ao pedido de indemnização por perdas e danos.

Decisão Texto Integral: Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal:

“a) Condenar o arguido M. pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido pelo artigo 165º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova, sendo que do plano de reinserção social fará parte a obrigação do arguido pagar à lesada, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o valor de € 17.500 (dezassete mil e quinhentos euros), sem prejuízo desta poder executar a sentença, na parte que decide do pedido civil, logo que esta transite em julgado.

b) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e condenar o arguido/demandado a pagar à ofendida/demandante a quantia de € 17.500 (dezassete mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.”

Inconformado com o decidido, vem o arguido impugná-lo.

Apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

1ª - O presente recurso vem interposto da douta sentença, com a qual não se concorda, que condenou o arguido/recorrente, como autor material, de forma consumada, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir (p e p artº 165 nºs 1 e 2 do CP), na pena de 05 anos de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova, sendo que do plano de reinserção social fará parte a obrigação do arguido pagar à lesada, a título de indemnização, o valor de 17.500€, sem prejuízo desta poder executar a sentença, na parte que decide do pedido cível, logo que esta transite em julgado; e que julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e condenou o arguido/demandado a pagar à ofendida/demandante a quantia de 17.500€, a título de danos não patrimoniais (cfr. sentença recorrida)
2ª - A ofendida não chegou a constituir-se assistente, pelo que não aderiu à Acusação Pública
3ª - Na sequência de pedido de julgamento na forma Comum perante o Tribunal Singular e promoção de página 03 do Despacho Acusatório (a fls 113 dos autos), a moldura penal abstracta máxima aplicável ao arguido é de 05 anos: “Entendemos que, em concreto, não deve ser aplicado ao arguido pena superior a cinco anos de prisão” (sic)
4ª - O arguido, ora recorrente, entende não dever ser dado como provado o ponto 11 dos factos provados na sentença e que é o seguinte: "após esse dia, em data não concretamente apurada, mas anterior a Novembro de 2006, em execução de propósito formulado, o arguido, por mais pelo menos uma vez, manteve relações sexuais de coito anal com a ofendida, o que sucedeu num pinhal existente nas imediações da residência de ambos" (sic), pelos motivos que abaixo se indicam
5ª - Na sequência de submissão a exame pericial médico-legal (prova arrolada pela Acusação e aproveitada pela sentença para fundamentação desta), na data de 17/11/2006, e em sede de "exame objectivo", e diferentemente do que sucedeu com a região genital, foi observado que "à inspecção desta região apresenta preservação da simetria das pregas anais e contorno anal regular, com manutenção da tonicidade do esfíncter, não sendo visível a este nível, lesões traumáticas ou seus vestígios" (negrito nosso)
6ª - Ainda na sequência do mesmo e nas suas "conclusões" consta, expressamente (ao contrário da conclusão sobre a região genital), que "não foram encontrados quaisquer sinais objectivos de lesões traumáticas ou seus vestígios a nível da superfície corporal, bem como da região anal" (negrito nosso)
7ª - Tendo a sentença recorrida motivado o indicado facto provado (ponto 11 provado da sentença) pelo menos com as declarações da ofendida, conforme consta da página g da sentença - "a ofendida disse, ainda, (. ... ) "foi no rabo" -, claro se toma que as estas são contraditórias (face àquele relatório médico-legal) e não têm base ou suporte documental ou mesmo pericial
8ª - Sendo certo que, ainda, na mesma sentença, a pgs 6, se diz que a ofendida tem "um discurso, por vezes, muito confuso"
9ª - Ficando, também e ainda, sem se perceber e entender, por que razão se deu credibilidade à ofendida nesta parte, quando não existe sequer prova documental/pericial bastante que alicerce as suas declarações
10ª - Assim, face à indicada prova relatório médico-legal, constante a fls ... dos autos, associado ao que supra acabámos de concluir, impunha-se decisão de facto diferente, ou seja, não dever ser dado como provado o indicado ponto 11 dos factos provados da sentença, inclusive que arguido e ofendida mantiveram relações sexuais de coito anal.
11ª - O artº 163 nº 1 CPP foi violado, tem aplicação nos autos e deve ser interpretado com o sentido que acima explanámos; e o artº 127 CPP também foi violado, não tem aplicação nos autos, e deve ser interpretado com o sentido acima dado
12ª - O arguido foi condenado ao limite máximo aplicável em abstracto a este caso, ou seja, a 05 anos de prisão, com a qual não se concorda por ser excessiva
13ª - É aplicável ao caso dos autos a atenuação especial da pena, constante do artº 72 nº 2 d) do CP: "ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta"
14ª - Em virtude dos factos terem ocorrido no ano de 2009, a audiência de julgamento datar de Março/2009 e o arguido em nada ter contribuído, dolosa ou negligentemente, para delongar o processo judicial, conforme se denota por simples consulta aos autos!
15ª - Assim, consequentemente, e por aplicação do artº 73 nº 1 a) e b) do CP, o limite máximo da pena (05 anos) é reduzido de 1/3 (passando o limite máximo a 3 anos e 4 meses de prisão) e o limite mínimo ao mínimo legal, em virtude da diminuição da ilicitude do facto ou da culpa, necessidade de pena e exigências de prevenção (cfr. ob cit Maia Gonçalves)
16a- Foram violados os artºs 72 nº 1 alínea d) e 73 nº 1 alíneas a) e b), todos do Código Penal, que têm aplicação aos autos, com o sentido que acima concluímos
17ª - No entanto, na determinação da medida concreta da pena do artº 71 CP, a culpa a levar em conta deverá ser moderada (e não muito elevada), assim como as exigências de prevenção geral são medianas, porque não foi dado sequer como provado que a população teve conhecimento ou ficou alarmada com os factos da Acusação, nem o arguido ficou sujeito a prisão preventiva com base na perturbação da ordem pública
18ª - O grande decurso do lapso de tempo ocorrido sobre a prática do facto (2006 a 2009), a existência, na nossa modesta opinião, de um só acto sexual, o pormenor das relações de vizinhança (que não levam automaticamente a existência de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual) são factos que determinam a que o grau de ilicitude não deva considerar-se muito elevado, mas somente elevado
19ª - A favor do arguido deverá considerar-se a ausência de antecedentes criminais; cumprimentos exemplar das medidas de coacção impostas pelo Tribunal; justificação das suas ausências às apresentações periódicas; permanência na Alemanha por motivos de contrato de trabalho (cfr. contrato de trabalho junto aos autos em Abri1l2008); casa de morada de família em Portugal composta de esposa e filho menor; conduta posterior ao facto é exemplar e sem quaisquer processo crimes pendentes contra si; deslocação da Alemanha a Portugal a fim de comparecer em audiência de julgamento, a fim nela intervir (cfr. actas de audiência e discussão de julgamento de 2/312009 e 10/312009), com sacrificio de dias de trabalho, inerente perca monetária, acrescida de despesas de transporte
20ª- Assim, nesta sequência, resulta claro que a pena de prisão (de 05 anos) aplicada ao arguido é exagerada, e por visa disso mas sem perder de vista as exigências de prevenção geral e especial, deve ser ajustada em função do que supra foi concluído, modificando-se/revogando-se o quantitativo da pena de prisão
21 ª - Assim, fazendo uso e aplicação do preceituado nos artºs 72 nº 2 alínea d) e artº 73 nº 1 a) e b), todos do CP, deverá o arguido ser condenado em pena de prisão não superior a 02 anos e 06 meses
22ª - Se, pelo contrário, não for de aplicar os preceitos indicados na conclusão anterior, o arguido deve ser condenado em pena de prisão não superior a 03 anos
23ª - Foram violados os artºs 71 nºs 1 e 2 e 40 nº 2 CP, que têm aplicação aos autos, com o sentido acima dado
24ª - À semelhança do que foi decidido na sentença., que ora se recorre, deverá a pena de prisão que vier a ser decretada, suspensa na sua execução por igual período de tempo, em virtude do arguido preencher os pressupostos legais para tal (artº 50¬correctamente aplicado aos autos) (está social e familiarmente inserido com esposa e filho, não tem antecedentes criminais, sempre conduziu a vida em conformidade com o direito, está empregado, cumpriu e respeitou os imperativos do Tribunal quer em termos de medias de coação como em pedir autorização para se deslocar a Alemanha para aí trabalhar), sendo certo que a censura e ameaça da prisão são adequadas, neste caso concreto, a realizar as finalidades de punição
25ª - No entanto, o plano de reinserção social (regime de prova) (artº 53 CP) a aplicar - caso seja aplicado - deverá levar em consideração que o arguido reside na Alemanha por motivos de execução de contrato de trabalho, deslocando-se a Portugal, em visita à sua família, no Natal e férias contratuais que não pré-determinadas (cfr. contrato de trabalho junto aos autos em 16/4/2008)
26ª - Por mera cautela, sem prejuízo das conclusões infra sob os nºs 29 a 39, e para a eventualidade do arguido ter de proceder ao pagamento de uma qualquer soma monetária à ofendida, no âmbito do plano de reinserção social, requer-se que tal ocorra durante o período de tempo de suspensão da execução da pena, só sendo passível de acção executiva após o decurso da suspensão
27ª - Pelo que, nesta sequência, na nossa modesta opinião e com todo o respeito, cremos que, nesta parte, a sentença recorrida enferma de uma ambiguidade, senão mesmo uma contraditoriedade - que se invoca para todos os efeitos legais -, porque por um lado considera o pagamento da indemnização de danos morais um dever a incluir no dito plano de reinserção e, por outro, confere, imediatamente após trânsito, a faculdade à parte contrária de executar
28ª - O artº 380 nº 1 b) CPP foi violado e tem aplicação aos autos, com o sentido que acabamos de indicar
29ª - O pedido de indemnização civil formulado, deve ser considerado não provado e improcedente
30ª - As provas do pedido cível deduzido em acção penal têm de ser apresentadas com os respectivos articulados para prova dos factos (e não conclusões) aí alegados (artº 79 CPP, artº 341 e 342 nº 1 CC)
31ª- Por força do artº 74 nº 2 CPP, a "intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil" (negrito nosso)
32ª - Da observação e leitura atenta da petição inicial de pedido de indemnização civil da demandante cível verifica-se que esta não apresentou quaisquer meios ou elementos probatórios (vg testemunhas, documentos, etc que tudo se indica de forma genérica) para prova do conteúdo da sua peça processual
33ª - Logo, não poderá - face ao ónus da prova que impende sobre a requerente cível e o efeito não confessório da não contestação pelo demandado civel -, dar-se, em sede cível, como provados, na sentença, os factos que integram aquela peça ratificada
34ª- O que leva, inevitavelmente, a que o arguido/demandado/recorrente seja absolvido do pedido de indemnização cível em toda a sua extensão e amplitude, já que a demandante não logrou, nem demonstrou, a realidade dos factos de que se arrogou titular e tinha obrigação
35ª - Outra consequência é o facto de não se poder fundamentar os factos cíveis com referência a testemunhas, documentos ou perícias existentes nos autos, pois não foram indicados como prova na petição da demandante cível
36a- Logo, poder-se-á dizer que, nesta parte, a motivação e fundamentação de facto da sentença é omissa, pois não pode reconduzir-se a nenhum meio probatório indicado (que, como se conclui e se observa na p.i. cível, não aconteceu) pela parte no seu articulado, o que nos conduz, inevitavelmente, nesta sede a uma nulidade de sentença, que se invoca para todos os efeitos legais
37ª - Foram dados como provados os pontos 17, 18, 19 e 20 da sentença que aqui se reproduzem para todos os efeitos legais, correspondentes respectivamente aos artºs 3, 8, 16 e 12 do pedido de indemnização civil da ofendida e ratificado, que aqui se reproduzem para todos os efeitos legais, quando deveriam ter sido dado como não provados, face à que se concluiu em 31°, 32°, 33°, 34°, 35° e 36° supra e que aqui se reproduzem para todos os efeitos legais
38ª - Foram violados os artºs 341 e artº 342 nº 1 ambos do CC, artº 79 nº 1 do CPC, artº 74 nO 2 CPP, artº 208 nº 1 CRP, que têm aplicação nos autos, com o sentido acima explanado
39ª - Foi também violado o artº 374 nº 2 CPP e artº 668 nº 1 b) CPC aplicável ex vi artº 4 CPC, que têm aplicação nos autos, com o sentido acima assinalado
40ª - No entanto, por mera cautela e para a hipótese de assim não se entender, sempre se alega que a procedência do pedido de indemnização cível, na vertente de danos morais, foi exagerado 2 não deverá ser superior a 2.0000, pois face ao teor dos artºs 494 e 496 n° 3 CC e na sequência de tudo quanto se disse supra, a tutela do direito não se faz sentir com grande intensidade, o arguido foi para a Alemanha, trabalhar, com vista a uma melhoria de vida económico-financeira (objectivo, aliás, comum a todos os emigrantes), deixando em solo nacional, a sua esposa e filho
41ª - Foram violados os artºs 496 nº 3 e 494 ambos do CC, que têm aplicação nos autos, com o sentido acabado de expor
Nestes termos e nos melhores de direito, deve
- o presente recurso ser recebido e considerado provado e procedente e, nesta sequência, ser revogado a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que decrete:
I)- a condenação do arguido pelo crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir (artº 165 nºs 1 e 2 Cod Penal) em medida concreta não superior a 02 anos e 06 meses de prisão [na eventualidade de ter aplicação aos autos os artºs 72 nº 2 d) e 73 nº 1 a) e b), ambos do CP], suspensa na sua execução por igual período de tempo, e caso se considere necessário sujeita a regime de prova (plano de reinserção social) (que leve em consideração que o arguido trabalha na Alemanha e só regressa a Portugal no Natal e em férias laborais que não se encontram previamente estipuladas)
- ou, para a hipótese de não se entender que deva ter aplicação a este autos os artºs 72 n° 2 d) e 73 nº 1 a) e b) do CP, e por mera cautela, deverá o arguido ser condenado pelo crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir (artº 165 nºs 1 e 2 Cod Penal) em medida concreta não superior a 03 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova (plano de reinserção social) (que leve em consideração que o arguido trabalha na Alemanha e só regressa a Portugal no Natal e em férias laborais que não se encontram previamente estipuladas)
II)- a absolvição do arguido no pagamento da indemnização deduzida no pedido cível formulado pela demandante cível
- ou, caso assim não se entenda, e por mera cautela, que condene o arguido em pagamento de quantia não superior a 2.0000 por danos morais, a ser pago durante o período de tempo em que decorrer a suspensão da execução da pena de prisão, integrando um dos deveres do plano de reinserção social, caso exista, e, nesta hipótese, não podendo ser alvo de acção executiva durante o período de suspensão

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.

*

Uma vez que foi entendido por este tribunal que a integração jurídica dos factos é diversa da que foi considerada no acórdão recorrido e que tal questão nunca foi abordada no processo, deu-se cumprimento ao disposto no artº 424º, nº 3, do Código de Processo Penal.

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Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir:

- erro na apreciação da prova

- medida da pena

- quantum indemnizatório

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):
1. MA nasceu a 09 de…. de 1968, e reside habitualmente com os seus pais, na localidade de … em …. área desta comarca de Albergaria-a-Velha.
2. A ofendida padece de oligofrenia e de défice intelectivo, para além de sofrer de surdez quase completa, com um grau de deficiência de cerca de 74%, o que não a impede de ajudar a sua mãe nas lides domésticas e trabalhos agrícolas bem como se deslocar na via pública sem o auxílio de terceiros.
3. Desde 27 de …. de 1987, que a ofendida recebe uma pensão social, tendo sido reavaliada em 25 de … de 1998 pela Comissão de Verificação de Incapacidade.
4. Por sua vez o arguido é vizinho da ofendida MA há alguns anos, residindo com a sua esposa e filho numa casa contígua à sua, mantendo este um bom relacionamento de vizinhança com a mesma e com os seus pais.
5. O arguido pelos contactos que manteve com a ofendida, bem como com os pais da mesma, tinha perfeito conhecimento que a mesma padecia de doença psíquica que a impedia, designadamente, de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática de actos desta natureza.
6. Pelo que decidiu tirar proveito desta situação, para praticar com a mesma relações sexuais e satisfazer os seus instintos libidinosos.
7. Na execução de tal propósito o arguido chamou a ofendida para ir até junto dele, tendo um dia, não concretamente apurado, seguramente entre o mês de Janeiro e Outubro de 2006, a mesma acompanhado o arguido até casa dele.
8. No interior da residência do arguido, após este ter exibido revistas de conteúdo pornográfico à ofendida MA, ambos tiraram a roupa.
9. Após o que o arguido apalpou os seios da ofendida e chupou os seus mamilos e, seguidamente, deitou-a no chão em cima de um cobertor.
10. Entretanto o arguido colocou um preservativo no seu pénis e colocou-se sobre o corpo da ofendida e introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma, aí o friccionando até ejacular.
11. Após esse dia, em data não concretamente apurada, mas anterior a Novembro de 2006, em execução do propósito formulado, o arguido, por mais pelo menos uma vez, manteve relações sexuais de coito anal com a ofendida, o que sucedeu num pinhal existente nas imediações da residência de ambos.
12. O arguido agiu de forma livre, consciente, e com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos e a vontade de dominar a liberdade de determinação sexual da ofendida.
13. O arguido sabia que a ofendida, em razão da sua anomalia psíquica, não possuía a capacidade e discernimento necessários para se auto determinar sexualmente, bem como não era capaz de se defender e de se opor de forma eficaz aos seus actos.
14. Mais sabia que um relacionamento sexual com a mesma, tirando proveito da sua incapacidade, era adequado a molestar a sua liberdade de auto conformação da vida sexual.
15. Não obstante, quis e manteve tal conduta, sabendo que a mesma era proibida e punida por lei.
16. A anomalia psíquica de que padece a ofendida impedia-a, à data dos factos, de se auto determinar sexualmente, no sentido de que é fortemente influenciável, e não possuía discernimento necessário para entender o alcance e significado do direito de queixa em processo-crime, posto que não possuía a noção de que lhe foi feito um mal e o seu causador deve ser sancionado.
17. A conduta do arguido provocou um agravamento do estado psíquico da ofendida.
18. A ofendida amiúde é acometida de ataques de choro e de pânico quando o assunto é abordado quer por familiares, assistentes sociais, médicos ou outras pessoas.
19. Por causa dos factos praticados pelo arguido a ofendida deslocou-se muitas vezes quer à polícia, ao Instituto de Medicina Legal, à assistente social, quer a outras entidades, sempre acompanhada por familiares devido à sua deficiência.
20. Em virtude de o arguido ser vizinho da ofendida e conhecer os hábitos dos familiares da mesma, utilizou esses conhecimentos para levar a cabo as suas condutas, sem que pudesse ser surpreendido pelos familiares da ofendida.
21. O arguido não tem antecedentes criminais.
22. O arguido é adjunto de construção e trabalha para a empresa M… na Alemanha.
23. Em sede de primeiro interrogatório judicial, foi aplicada ao arguido a medida de coacção de obrigação de apresentação periódicas (duas vezes por mês) e a medida de proibição de contacto com a ofendida, que o arguido sempre cumpriu.
24. O requerimento do arguido, foi alterada a medida de coacção de apresentações bimensais para apresentações mensais, de forma a possibilitar que o mesmo se deslocasse para a Alemanha para aí trabalhar.

Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição):
1. Após os factos descritos nos pontos 7 a 11 dos factos provados existiu um retrocesso na sociabilização da ofendida.
2. Os factos descritos no ponto 19 dos factos provados acarretam muitas despesas.
3. A ofendida está a ser acompanhada social e psicologicamente devido aos factos descritos nos pontos 7 a 11.
4. Como consequência dos factos praticados pelo arguido a ofendida terá que continuar a ser acompanhada por médicos e psicólogos para o resto da vida, o que acarretará despesas inerentes a esses tratamentos e deslocações.
5. O arguido é pessoa considerada, respeitadora e respeitada no meio social em que se insere.

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
No que respeita aos factos atinentes à incapacidade da ofendida o tribunal formou a sua convicção com base nos documentos juntos a fls. 20 a 23 e 50, no relatório pericial junto a fls. 349 a 354 e nos esclarecimentos que a perita médica prestou em sede de audiência de discussão e julgamento, e, ainda, no depoimento das testemunhas NI , mãe da ofendida, CZ irmão da ofendida e J., médico de família da ofendida.
Face ao relatório pericial junto a fls. 349 e 354, dúvidas não restam que a ofendida sofre de doença mental de oligofrenia e défice intelectivo (resposta ao 1º quesito).
Por outro lado, deste mesmo relatório, conjugado com os esclarecimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento pela perita médica que o elaborou, resultou que, consequência da doença de que padece, a ofendida não é nem era, à data da prática dos factos, capaz de entender o significado do acto sexual, não sabia o que era, se era algo bom ou mau, sendo incapaz de querer algo que não conhecia.
Do depoimento da mãe e do irmão da ofendida, e das próprias declarações do arguido, resulta que, apesar da doença de que padece, a ofendida ajuda a mãe nas lides domésticas e trabalhos agrícolas e é capaz de se deslocar nas ruas da aldeia sozinha.
Acresce que, em sede de audiência de discussão e julgamento, a perita médica que elaborou o relatório pericial às faculdades mentais da ofendida foi clara e peremptória quando afirmou que não é característica das pessoas com a doença da ofendida mentir e inventar factos, já sendo normal evidenciarem estados de confusão e esquecimentos após um evento traumático. Estas informações também foram prestadas pela testemunha J, médico de família da ofendida.
Por fim, foi o próprio arguido que reconheceu que sabia que a ofendida sofria de alguma doença do foro psiquiátrico.
De facto, o tribunal constatou que a doença da ofendida é evidente, sendo suficiente, para alguém se aperceber da mesma, falar com a ofendida.
No que respeita aos factos atinentes à conduta do arguido, o tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos da ofendida, MA e das testemunhas NI, mãe da ofendida, C. irmão da ofendida, conjugados com o relatório médico-legal junto a fls. 27 a 31 e com as regras da experiência comum.
Apesar da ofendida padecer de oligofrenia e de défice intelectivo, para além de sofrer de surdez quase completa, com um grau de deficiência de cerca de 74%, ela foi capaz de descrever os factos dados como provados, embora o tenha feito numa linguagem muito própria, como se tratasse de uma criança, e com um discurso, por vezes, confuso.
Nem se diga que, em virtude da doença de que padece, a ofendida não deveria ser ouvida em tribunal, ou que o seu depoimento não tem valor probatório.
Desde logo, a perita médica que elaborou aquele relatório pericial referiu que a ofendida é perfeitamente capaz de depor em tribunal, uma vez que sabe o que é verdade e o que é mentira, não tendo consciência das consequências do seu depoimento (facto este que apenas demonstra a isenção com que a ofendida prestou declarações).
Acresce que “Impedir-se a vítima de um crime que haja sido declarada incapaz e que, portanto, se encontre numa posição de debilidade significativa na tutela dos bens jurídicos próprios, de intervir no processo dando a conhecer a sua versão dos acontecimentos que tenham eventualmente levado à lesão desses bens constitui uma manifesta e notável diminuição do seu direito de protecção que afecta de maneira grave a sua dignidade de pessoa humana e, por conseguinte, uma violação quer da regulamentação supra-nacional quer, em especial, dos arts. 1º e 13º, nº 1 CRP. 2. É, pois, inconstitucional, por violação dos arts. 1º e 13º CRP, o art. 131º CPP quando interpretado no sentido de declarar incapaz para testemunhar uma pessoa que tenha num processo a condição de vítima ou ofendido de um crime se essa pessoa estiver interdita por anomalia psíquica. Quando, portanto, abranja nessa incapacidade além de terceiros, alheios aos factos, também a vítima na definição desta que supra se consignou pela circunstância de ter sido declarada incapaz. 3. Além disso e salvo melhor opinião, há também na situação que se aprecia violação do art. 20º, nº 1 CRP que consagra o direito de a todos ser assegurado o acesso ao direito para defesa dos seus direitos” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/05/2007, processo 85/07-5, disponível em www.dgsi.pt).
A ofendida relatou os factos de uma forma não contínua, dando mais ênfase aqueles que mais a marcaram.
Assim, referiu várias vezes que “o M..” a chamou a casa dele e lhe mostrou “livros”, e que depois pôs uma passadeira no chão e “uma almofada para a cabeça” no chão, tendo-lhe dado “beijos nas mamas”.
Descreveu com pormenor o acto do arguido colocar um preservativo no pénis, referindo que “ele pôs um plástico”, enquanto apontava para a zona genital, e que depois pôs-se em cima dela e dizia “ai que bom, ai que bom”.
A ofendida disse, ainda, que no pinhal ele despiu-se e despiu-a a ela também, mas só a parte de baixo, e que nesse dia “foi no rabo”.
Ora, atendendo à doença mental de que padece a ofendida, não sabendo nem compreendendo o que é o acto sexual, esta só seria capaz de descrever os factos com estes pormenores tendo vivenciado os mesmos.
Acresce que, os depoimentos da mãe e do irmão da ofendida, com quem ela falou quando os factos ainda eram recentes e com quem a ofendida mantém uma relação de confiança sedimentada, corroboram o que por ela foi relatado ao tribunal.
De facto, a mãe da ofendida, que prestou um depoimento claro e objectivo, descreveu a forma como a filha lhe contou o que tinha acontecido, em Novembro de 2006, na sequência de lhe ter perguntado se precisava de pensos higiénicos, ao que aquela respondeu que não e para a mãe perguntar ao arguido porquê.
Esta testemunha afirmou que a ofendida lhe disse que o arguido, em casa dele, lhe deu muitos beijos, muitos beijos, e que “pôs um plástico e botou dentro dela”, e o resto punha dentro de um guardanapo.
Também o irmão da ofendida, que prestou um depoimento objectivo e credível, relatou aquilo que ela lhe tinha contado, nomeadamente que no pinhal tinha sido por trás, e que um dia, quando estavam a ver televisão, passou um anúncio aos preservativos control e a ofendida disse que tinha sido aquilo que o arguido tinha usado. A ofendida não sabia o que aquilo era e perguntou se aquilo era bom ou mau, e se ía morrer por causa do preservativo.
Ora, apesar do depoimento da mãe e do irmão da ofendida consubstanciarem depoimentos indirectos, o tribunal não está impedido de os valorar como prova.
De facto, como podemos ler no sumário do Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 26/11/2008, processo 27/05.6GDFND.C1, disponível em www.dgsi.pt “III - Tendo o juiz chamado a depor a fonte, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou, por exemplo, diz de nada se recordar, porquanto nestes casos é possível o exercício do contraditório, na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte. IV – Não fixando a lei as regras de valoração do depoimento indirecto, quando tal valoração é admissível, terá de entender-se, em ordem ao princípio-base da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127º, do C. Processo Penal, que o depoimento deve ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o correspondente depoimento directo, quando tenha sido prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum portanto, sem qualquer hierarquia de valoração entre um e outro. V - Tendo deposto a pessoa a quem se ouviu dizer, desaparece a proibição de prova de valoração do depoimento de ouvir dizer, pelo que nenhum impedimento se forma para que o tribunal valore o “depoimento indirecto” no processo de formação da sua convicção”.
Pelo exposto, concluímos que os depoimentos da mãe e do irmão da ofendida, além de constituírem prova válida, complementam o depoimento da ofendida e conferem-lhe maior consistência.
Acresce que do relatório médico-legal, cujo exame foi realizado em 17/11/2006, resulta que a ofendida apresentava lesões não recentes na região genital.
No que respeita às consequências dos factos praticados pelo arguido, nomeadamente as sequelas verificadas na ofendida a nível psíquico, o tribunal baseou a sua convicção no depoimento da mãe e do irmão da ofendida, no relatório da perícia às faculdades mentais da ofendida junto a fls. 349 a 354 PP, nos esclarecimentos prestados pela perita médica que realizou aquele relatório, tudo conjugado com as regras da experiência comum.
A mãe da ofendida referiu que o estado da filha agravou-se depois da prática dos factos pelo arguido, tendo sido necessário alterar a sua medicação, sendo que a ofendida tem dificuldades em adaptar-se a alterações na medicação.
Este depoimento é corroborado pelo relatório da perícia às faculdades mentais da ofendida e pelos esclarecimentos prestados em audiência pela perita médica que o realizou.
A Sra. Perita explicou que a medicação que foi introduzida em 2008 na terapêutica da ofendida trata-se de anti-depressivos, que em doses reduzidas, tal como foram prescritos, são indicados para controlar os comportamentos exagerados de ansiedade (choro, pânico) da ofendida consequência dos factos praticados pelo arguido.
Foi ainda referido por aquela que é normal que o agravamento da doença e do comportamento ansioso e fóbico da ofendida só se tenha verificado em 2008, sendo que os factos foram praticados em 2006, porque a ofendida só adquiriu a consciência de que aquilo que aconteceu é mau à medida que vai falando do assunto e se apercebe da reacção das pessoas..
Por fim, tanto a perita médica, como a assistente social, S., como a mãe e o irmão da ofendida, referiram que a ofendida, sempre que se fala dos factos praticados pelo arguido, chora, berra e fica em pânico.
No que concerne aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal atendeu ao certificado de registo criminal junto a fls. 110.
No que respeita à sua condição familiar e profissional o tribunal teve em consideração as declarações do arguido, que nesta parte se mostraram credíveis, e ainda o documento junto a fls. 314 a 318.
No que respeita ao comportamento do arguido posterior aos factos, nomeadamente no que respeita ao cumprimento das medidas de coacção a que foi sujeito, o tribunal atendeu ao despacho de aplicação de medida de coacção (fls. 66 a 73), ao despacho que alterou a mesma (fls. 277), e ainda ao facto de, sempre que por qualquer motivo não podia deslocar-se ao posto policial no dia em que deveria apresentar-se o arguido apresentou justificação para tal falta (conforme resulta de fls, 147 e do requerimento de fls. 186).
Sobre os factos não provados não foi produzida prova em audiência, designadamente, no que respeita ao facto constante do ponto 5. dos factos não provados, uma vez que a testemunha ON referiu que apenas conhecia o arguido no âmbito profissional, afirmando que ele se dava bem com todos os colegas, mas frisou que nunca privou com o arguido fora do local de trabalho.


Erro na apreciação da prova

Entende o recorrente que não devia ter sido dado como provado que “após esse dia, em data não concretamente apurada, mas anterior a Novembro de 2006, em execução de propósito formulado, o arguido, por mais pelo menos uma vez, manteve relações sexuais de coito anal com a ofendida, o que sucedeu num pinhal existente nas imediações da residência de ambos”.

Fundamenta esta pretensão no facto de, apesar do exame pericial ter concluído que “a inspecção desta região apresenta preservação da simetria das pregas anais e contorno anal regular, com manutenção da tonicidade do esfíncter, não sendo visível a este nível, lesões traumáticas ou seus vestígios” e de a fls 6 da sentença o tribunal ter afirmado que ofendida tem “um discurso, por vezes, muito confuso”, ter sido dado como provado o facto descrito em 11.

Ou seja, entende o recorrente que o resultado do exame pericial não pode ser contrariado pelas declarações de uma pessoa cujas declarações não podem merecer credibilidade e por isso o facto descrito em 11) não podia ter sido dado como provado.

Não lhe assiste, porém, qualquer razão

Vejamos:

Começaremos por dizer que, como sistematicamente acontece nos recursos sobre a matéria de facto, o recorrente desprezou a fundamentação do tribunal e, como se a mesma não existisse, escolheu uma ou outra prova produzida e a partir daí construiu uma tese que vai ao encontro dos seus interesses.

No caso dos autos, o tribunal a quo indicou os meios de prova em que alicerçou a sua convicção e procedeu ao seu exame crítico de forma a tornar compreensível o processo lógico-racional que conduziu a essa convicção, ou seja, as finalidades intraprocessuais de reexame da decisão e extraprocessuais de compreensão do sentido da decisão pela arguida (e demais sujeitos processuais e comunidade), mostram-se atingidas através da fundamentação.

Por isso, conhecendo-se pela fundamentação da matéria de facto consignada na sentença o caminho lógico que levou o tribunal a quo a considerar provado o facto posto em causa pelo recorrente, deveria o recorrente ter-se limitado a sindicar esse percurso e a indicar as provas que impunham uma decisão diversa[[1]].

No entanto, o recorrente nem sequer critica a fundamentação apresentada pelo tribunal.

Passa por ela como se a mesma não existisse e apresenta o seu próprio julgamento como se não fosse o tribunal a entidade competente para julgar.

Ora, se é verdade que no exame pericial não foram detectadas lesões ou vestígios de lesões anais traumáticas, não é menos verdade que também não afasta a existência do coito anal.

Por outro lado e ao contrário do que afirma o recorrente, não consta de fls. 406, in fine, que a Maria Celeste tem “um discurso, por vezes, muito confuso”: o que ali consta é que “apesar da ofendida padecer de oligofrenia e de défice intelectivo, para além de sofrer de surdez quase completa, com um grau de deficiência de cerca de 74%, ela foi capaz de descrever os factos dados como provados, embora o tenha feito numa linguagem muito própria, como se tratasse de uma criança, e com um discurso, por vezes, confuso”.

Ora, para além de ser desde logo evidente que o recorrente, sorrateiramente, acrescentou a palavra “muito”, é também evidente que descontextualizou a expressão, o que lhe retira desde logo a força que lhe pretendeu dar.

De qualquer maneira, o tribunal explica que apesar de a ofendida apresentar um discurso, por vezes, confuso conferiu crédito às suas declarações porquanto “a perita médica que elaborou aquele relatório pericial[[2]] referiu que a ofendida é perfeitamente capaz de depor em tribunal, uma vez que sabe o que é verdade e o que é mentira, não tendo consciência das consequências do seu depoimento” e porque “em sede de audiência de discussão e julgamento a perita médica (…) foi clara e peremptória quando afirmou que não é característica das pessoas com a doença da ofendida mentir e inventar factos, já sendo normal evidenciarem estados de confusão e esquecimentos após um evento traumático. Estas informações também foram prestadas pela testemunha J…, médico de família da ofendida”.

Também explicou o tribunal que as declarações da mãe e do irmão, porque reveladoras da forma ingénua como a ofendida lhes ia passando as informações, deram ainda maior crédito ao que ela afirmava.

Aliás, a este respeito é relevante a parte da fundamentação que se passa a transcrever:
Também o irmão da ofendida, que prestou um depoimento objectivo e credível, relatou aquilo que ela lhe tinha contado, nomeadamente que no pinhal tinha sido por trás, e que um dia, quando estavam a ver televisão, passou um anúncio aos preservativos control e a ofendida disse que tinha sido aquilo que o arguido tinha usado. A ofendida não sabia o que aquilo era e perguntou se aquilo era bom ou mau, e se ia morrer por causa do preservativo.

Como se vê, o tribunal explicou amplamente as razões que o levaram a considerar que as declarações da ofendida mereciam toda a credibilidade e tais razões são por nós totalmente subscritas, não se vislumbrando em que medida poderá a decisão “violar” o artº 127º (aliás, embora o afirme, o próprio arguido também não explica por que forma foi violado o princípio da livre apreciação da prova).

Assim sendo, bem andou o tribunal ao considerar que o exame pericial não afastava a existência de coito anal e que as declarações da ofendida merecem credibilidade.

Em face do exposto, improcede nesta parte o recurso.


Medida da pena

Pelos factos supra descritos foi o arguido condenado pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido pelo artigo 165º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova.

Não concordamos com tal integração jurídica.

Mas também não tem razão o recorrente quando, em sede de resposta à notificação que lhe foi feita nos termos do nº 3, do artº 424º, defende que estamos perante um crime continuado.

Explicando:

Quanto à agora pretendida integração como crime continuado, apenas diremos que tendo ficado provado que o “arguido agiu de forma livre, consciente, e com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos e a vontade de dominar a liberdade de determinação sexual da ofendida”, que “sabia que a ofendida, em razão da sua anomalia psíquica, não possuía a capacidade e discernimento necessários para se auto determinar sexualmente, bem como não era capaz de se defender e de se opor de forma eficaz aos seus actos” e que “sabia que um relacionamento sexual com a mesma, tirando proveito da sua incapacidade, era adequado a molestar a sua liberdade de auto conformação da vida sexual” e não se vislumbrando que a reiteração criminosa tenha resultado de qualquer solicitação externa para a qual o arguido não tenha contribuído, teremos que concluir que foram factores endógenos que o levaram a repetir o crime, ou seja, como resulta do acervo factual, o arguido aproveitou-se da sua ascendência sobre a ofendida em resultado da doença mental que a mesma sofria e que a tornava incapaz de avaliar a amplitude e a gravidade dos factos e daí tirou partido para satisfazer paixões lascivas e o seu instinto libidinoso.

Assim, não tendo sido qualquer condicionalismo criado pela ofendida que determinou o arguido à prática dos factos criminosos, estamos perante uma culpa agravada e por isso excluída do nº 2, do artº 30º do Código Penal.

Conclui-se assim que lhe são imputáveis ao arguido dois crimes: um constituído pelos factos ocorridos na sua casa e o outro pelos factos ocorridos no pinhal, ou seja, cometeu o arguido dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165º, nºs 1 e 2, do Código Penal, correspondendo a cada um pena de dois a dez anos de prisão.

*

Ainda que num contexto algo diverso, entende o recorrente que deveria o tribunal fazer funcionar o instituto da atenuação especial da pena.

Com efeito, afirma que “foi condenado ao limite máximo aplicável em abstracto a este caso, ou seja, a 05 anos de prisão” e que “é aplicável ao caso dos autos a atenuação especial da pena, constante do artº 72 nº 2 d) do CP”, pelo que “por aplicação do artº 73 nº 1 a) e b) do CP, o limite máximo da pena (05 anos) é reduzido de 1/3 (passando o limite máximo a 3 anos e 4 meses de prisão) e o limite mínimo ao mínimo legal”.

Não tem razão quanto à aplicação do instituto.

Explicando:

Visando abarcar a generalidade das situações, o legislador fixou a moldura punitiva entre um limite mínimo e um limite máximo mas, admitindo a existência de casos em que circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou mesmo suas contemporâneas, diminuíssem acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da sanção, consignou uma “válvula de segurança” no sistema: a atenuação especial da pena.

A este respeito explica o Professor Jorge de Figueiredo Dias in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 302, que “(…), quando o legislador dispõe a moldura penal para um certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os da menor até aos da maior gravidade pensáveis: em função daqueles fixará o limite mínimo, em função destes o limite máximo da moldura penal respectiva; de modo a que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências da prevenção. Desde há muito que se põe em relevo, porém, que a capacidade de previsão do legislador é necessariamente limitada e inevitavelmente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade das situações reais da vida. E que, em consequência, mandamentos irrenunciáveis de justiça e de adequação (ou «necessidade») da punição impõem que — quando esteja em causa uma atenuação da responsabilidade do agente, já não quando seja questão de uma «agravação», pois que nestes casos o princípio da legalidade da punição implica que a falta de previsão do legislador funcione a favor do agente (cf. já supra § 263) — o sistema seja dotado de uma válvula de segurança. Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena.”

Temos assim que, sendo a atenuação especial da pena aplicável apenas a casos extraordinários ou excepcionais, ou seja, a casos em que razoavelmente se possa supor que o legislador neles não pensou quando estatuiu moldura punitiva respectiva, impõe-se que a mesmas só possa ser aplicada quando no caso concreto ocorram circunstâncias tais que justificam uma punição distinta daquela que é prevista para a generalidade das situações.

Ora, sendo a atenuação especial da pena aplicável apenas a casos extraordinários ou excepcionais, ou seja, a casos em que razoavelmente se possa supor que o legislador neles não pensou quando estatuiu moldura punitiva respectiva, impõe-se que aquela só possa ser aplicada quando no caso concreto ocorram circunstâncias tais que justificam uma punição distinta daquela que é prevista para a generalidade das situações[[3]].

Configurará o caso «sub judice» uma situação de excepção?

Entendemos que não pois que estamos perante uma situação perfeitamente enquadrável na “normalidade” atendida pelo legislador quando fixou a moldura punitiva.

E neste âmbito, nenhuma circunstância se vislumbra que diminua acentuadamente a culpa ou a ilicitude ou reduza marcadamente a necessidade da pena.

Nem sequer o invocado decurso de muito tempo sobre a prática do crime pois que, tendo os últimos factos criminosos sido praticados em Novembro de 2006 e o seu julgamento em 1ª instância tido lugar em Março de 2009, ou seja, dois anos e quatro meses depois, temos que considerar que este período é perfeitamente aceitável dentro do que se possa entender como andamento normal do processo.

Tanto basta para que não seja aplicável a alínea d., do nº 2, do artº 73º do Código Penal.

Assim, não resultando dos autos o mínimo fundamento para a atenuação especial da pena — art.º 72.º do Código Penal — jamais a pretensão do recorrente poderia obter satisfação.

*

A integração dos factos em dois crimes, e não num único, conforme consta da decisão recorrida, obriga necessariamente à sua revisão também quanto à pena fixada.

Assim sendo e uma vez que os argumentos apresentados pelo recorrente no que respeita ao quantum da mesma se mostram ultrapassados pelo facto de estarmos perante dois e não perante um único crime, diremos que, atentos os critérios do artº 71º, sendo elevado o grau de culpa, prementes as necessidades de prevenção geral e fortes as de prevenção especial, não tendo havido confissão relevante e não tendo o arguido antecedentes criminais (conhecidos), se mostra adequada a pena de quatro anos por cada crime.

Vejamos a pena única:

Diz-nos o artº 77º do Código Penal que, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena; na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” e que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Temos assim que num momento inicial há que estabelecer a moldura penal do concurso.

No caso em apreço, a mesma tem como limite mínimo 4 (quatro) anos e como limite máximo, 8 (oito) anos — a soma material das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Num segundo momento e dentro destes limites, há que apurar a pena do concurso, a qual será encontrada, como diz o Prof. Figueiredo Dias[[4]],”em função das exigências gerais da culpa e de prevenção” e “tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade — unitária — do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade”.

Continua explicando que só no primeiro caso estaremos perante uma tendência criminosa radicada na personalidade e por isso “será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”.

Assim, e na observância do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 77º do Código Penal, considera-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 2002, relatado pelo Conselheiro Carmona da Mota[[5]], que a pena aplicável “tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes» (…) donde que o somatório das penas «menores» — a menos que a pena única seja fixada no seu máximo — deva sofrer, na sua adição à «maior», determinada «compressão»; ora, tudo estará em apurar, em cada caso, qual a compressão a imprimir ao somatório das penas menores (já que a pena «maior», constituindo o limite mínimo da pena única, é, naturalmente, intangível); numa primeira abordagem, haverá — como forma de dar ao juiz um terceiro termo de referência (dentro da enorme latitude conferida pelos outros dois: o limite mínimo e o limite máximo) — que desenhar, entre os extremos, um ponto que fixe, geometricamente, o «encontro» entre essas duas variáveis; na generalidade dos casos (conciliando a tendência da jurisprudência mais «permissiva» em somar à «maior» ¼ — ou menos — das demais com a jurisprudência mais «repressiva» que àquela usa adicionar metade — ou mais — das outras), esse ponto de convergência poderá achar-se, somando à pena «maior» 13 das «menores»; mas, em segunda linha, será razoável — atento o limite máximo de 25 anos fixado pelo artº 41º 2 e 3 do CP — que esse «factor de compressão» seja tanto maior quanto maior o somatório das penas «menores», pois que, de outro modo, tenderiam a fixar-se no máximo (ou muito próximo dele) penas únicas decorrentes de penas parcelares de valor consideravelmente diverso.”

Mas, estando em causa a visão conjunta dos factos e da personalidade, haverá ainda que apurar, como se disse, se estamos perante uma tendência criminosa ou perante uma pluriocasionalidade.

No caso em apreciação, a factualidade apurada não nos permite avaliar se estamos perante uma ou outra e por isso consideramos que, por se mostrar mais favorável, deverá acrescer 13 da outra pena, ou seja, deverá acrescer 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, o que perfaz a pena única de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

Contudo, respeitando a proibição de reformatio in pejus, fixa-se a pena única em 5 (cinco) anos de prisão.

Tal pena fica suspensa por igual período com sujeição do arguido a regime de prova em que do plano de reinserção social constará a obrigação de o arguido indemnizar a queixosa (a indemnização deverá ser paga neste âmbito e só se o plano de pagamento não for definitivamente cumprido nesta parte é que terá lugar a execução da sentença, dando-se assim parcial provimento à pretensão do recorrente, visto que fazendo o acórdão recorrido depender da vontade da ofendida o modo de cumprimento do plano que viesse a ser estabelecido para o regime de prova, estar-se-ia a permitir que um terceiro interferisse directamente numa matéria que é da competência exclusiva do Estado: a execução das penas).

Quanto ao pedido de indemnização civil:

Entende o recorrente que não tendo a demandante apresentado prova com o pedido de indemnização civil, estava vedado ao tribunal apreciá-lo com base na prova apresentada pelo Ministério Público em sede de acusação.

Fundamenta tal pretensão em diversas disposições do Código de Processo Civil que regulam a produção de prova.

Ora, consagrando-se, como regra, no artº 71º a adesão obrigatória da acção cível de indemnização à acção penal, parece-nos não poder haver qualquer dúvida de que aquela fica sujeita ao regime desta última porquanto daí resulta a unidade da causa, causa essa que corre termos segundo a lei processual penal.

Aliás, o artº 7º do Código de Processo Penal é muito claro ao estabelecer o princípio da suficiência do processo penal quando nele se resolvem questões de outra natureza, como é o caso[[6]].   

Neste sentido e a título de exemplo de uma jurisprudência unânime, transcreve-se o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 1995[[7]]:

“I - A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos; porém, processualmente, é regulada pela lei processual penal.
II – Em processo penal vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova, mesmo em relação ao pedido de indemnização por perdas e danos.
III – Por isso, não há, mesmo nesse aspecto, que considerar o princípio do ónus da prova, e não tem efeitos cominatórios a falta de contestação.”

Assim sendo, bem andou o tribunal ao, com os meios de que dispunha, investigar e apurar os danos morais invocados pela demandante.

Cai assim por terra também esta pretensão do recorrente.

Vejamos agora o montante indemnizatório:

Considera o recorrente que o montante indemnizatório em que foi condenado a pagar à ofendida se mostra desajustado e por isso mesmo se deverá ser reduzido para € 2.000.

Diga-se desde já que não lhe assiste qualquer razão, o que acaba por ressaltar das próprias motivações onde não concretiza qualquer deficiência nos argumentos expendidos pelo tribunal “a quo” nem invoca fundamentos minimamente relevantes que aquele não tenha apreciado.

O critério para a fixação de danos morais que, embora assumindo primordialmente um cariz compensatório se reveste também de um carácter sancionatório, consta do artº 494º do CC por remissão do nº 3 do artº 496º, podendo dizer-se que, no fundamental, o legislador faz apelo à equidade harmonizada com as circunstâncias do caso([8]).

Na determinação da mencionada compensação deve por isso atender-se ao grau de culpabilidade do responsável e à sua situação económica, bem como à do lesado.

E a apreciação da gravidade do dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve ser efectuada seguindo critérios objectivos para evitar que subjectivismos intoleráveis do lesado ou do lesante interfiram e descaracterizem a finalidade que o instituto tem em vista atingir.

Como atrás se disse, o recorrente defende que o montante da indemnização por danos morais não ultrapasse € 2.000.

No caso dos autos, estamos perante a prática de dois crimes dolosos em que o grau de culpa do agente se mostra muito elevado e que tiveram como consequência, para além do mais, um agravamento do estado de saúde mental da ofendida.

Assim sendo e tomando em consideração o que se apurou quanto à situação económica de ambos, mostra-se perfeitamente adequado o quantum fixado no acórdão sob recurso.

*

Em face do exposto, no parcial provimento ao recurso decide-se:

1) Condenar o arguido como autor de dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um e em cúmulo, na pena de 5 (cinco) anos de prisão

2) Suspender a execução da pena por cinco anos, com sujeição a regime de prova, sendo que do plano de reinserção social fará parte a obrigação do arguido pagar à lesada uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 17.500 (dezassete mil e quinhentos euros).

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Custas pelo recorrente, fixando-se em 6 UC a taxa de justiça.

*

Coimbra,

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[1] Neste sentido, v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2008, in www.dgsi.pt
[2] Relatório pericial às faculdades mentais da ofendida
[3] Neste sentido, v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Outubro de 2009, in www.dgsi.pt“A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da(s) atenuante(s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.”
[4] Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 291
[5] Www.dgsi.pt
[6] A este respeito, veja-se a jurisprudência citada Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, em anotação ao artº 71º, págs. 222/223 
[7] In www.dgsi.pt
[8] Como escrevem P. Lima e A. Varela Código Civil Anotado, I vol., 3ª ed. rev. e act., pág. 474., “o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”.