Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/14.0GBMGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: PROCESSO SUMARISSIMO
TRÂNSITO EM JULGADO
ENTREGA DOS DOCUMENTOS
CARTA DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 07/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - MANGUALDE - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 69.º DO CP; ARTS. 397.º E 500.º. DO CPP
Sumário: O cumprimento da sanção acessória antes do trânsito em julgado da sentença, com carta apreendida nos autos de processo sumaríssimo, entregue voluntariamente pelo arguido e recebida pela Secretaria do tribunal, nos termos acima expostos, deve ser tomado em conta na decisão que declarar extinta a pena, para efeitos do art. 500.º, do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório

Em autos sob a forma de processo sumaríssimo, na sequência de proposta do Ministério Público, foram aplicadas a A... , nos termos do art. 394.º, 396.º e 397.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal (CPP), pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pela disposição conjugada dos art. 292.º, n.º 1 e 69.°, do Código Penal (CP), a pena de 90 dias de multa à taxa diária de €5,00, perfazendo o montante global de €450,00, e a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses.


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Previamente o arguido foi notificado, de acordo com o disposto no art. 396.º, do CPP da proposta do Ministério Público, o qual declarou não se opor, tendo procedido de seguida à entrega da carta de condução no dia 4/08/2014 no Posto da Guarda Nacional Republicana de Aguiar da Beira, que depois a remeteu à Secretaria do então 1.º Juízo do tribunal Judicial de Mangualde, conforme termo de recepção de fls. 2, assinado pelo soldado Manuel Gomes e o próprio arguido.

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A carta de condução foi recebida no 1.º Juízo do tribunal Judicial de Mangualde, a qual ficou junta por linha aos autos, no dia 7/08/2014, conforme consta da cota de fls. 3.

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Entretanto o despacho valendo como sentença condenatória, de acordo com o disposto no art. 397.º, n.º 2, do CPP, foi proferido em 29/09/2014 (fls. 4 e 5).

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Em 10/12/2014, o arguido veio solicitar que lhe fosse reconhecido o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, com a consequente devolução da carta de conduzir, o que fez pelo requerimento do seguinte teor:

«O Arguido logo que recebeu a notificação contendo a proposta elaborada pelo Ministério Público nos presentes autos, veio dizer que à mesma não se opunha a requerimento que deu entrada em Juízo no dia 17 de Julho de 2014.

De imediato, no dia 04 de Agosto de 2014, entregou de forma voluntária a sua carta de condução para poder cumprir a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de quatro meses.

Tal entrega ocorreu no Posto de GNR da residência do Arguido que a remeteu a esse Tribunal.

Os referidos quatro meses de inibição de conduzir já passaram, razões pelas quais vem requerer lhe seja reconhecido tal e a sua carta de condução entregue, pois caso contrário o Arguido irá cumprir não quatro mas oito meses de inibição de conduzir», conforme fls. 7.


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O requerimento foi indeferido em 16/12/2014, com o fundamento de que o despacho condenatório ainda não tinha sido notificado ao arguido e como tal não tinha transitado, momento a partir do qual se deve dar início ao cumprimento da sanção acessória imposta, como decorre do seguinte despacho recorrido:

«(…)

II. Fls.87:

Vem o arguido requerer que lhe seja entregue a sua carta de condução pela circunstância de ter já decorrido o prazo respeitante à pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses que lhe foi aplicada nestes autos.

Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese, que no dia 4 de Agosto de 2014, após ter comunicado a sua não oposição ao requerimento do Ministério Público para aplicação de sanção em processo sumaríssimo, entregou a sua carta de condução no posto da entidade policial, devendo contar-se a partir de tal data o início do prazo da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor.

Apreciando:

O Ministério Público apresentou o requerimento junto a fls.53 a 59 para aplicação de sanção em processo sumaríssimo, requerendo a aplicação ao arguido A... da pena de 90 dias de multa à taxa diária de €5,00, perfazendo o montante global de €450,00, e a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses.

Por despacho datado 4/07/2014 foi recebido aquele requerimento apresentado pelo Ministério Público e foi determinada a notificação do arguido nos termos e para os efeitos do preceituado no art.396.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal (v. fls.64 e 65).

O arguido foi pessoalmente notificado de tal despacho em 11/07/2014 (v. fls. 70).

Por requerimento junto aos autos em 17/07/2014 o arguido veio afirmar não se opor à sanção proposta pelo Ministério Público.

Em 4/08/2014 o arguido entregou, voluntariamente, a sua carta de condução à ordem dos presentes, tendo tal título de condução ficado apreendido, desde tal data, à ordem dos mesmos (v. fls. 77 e 78).

Por decisão datada de 29/09/2014 foi aplicada ao arguido a sanção proposta pelo Ministério Público (v. fls.81 e 82).

Tal decisão não foi ainda notificada ao arguido, razão pela qual não transitou ainda em julgado, tal como decorre de fls.89.

Destarte, não obstante, como decorre do preceituado no art.397.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a sentença condenatória proferida em processo sumaríssimo não admitir recurso ordinário, o certo é que o despacho judicial não transita "imediatamente", mas apenas decorrido o prazo de arguição de nulidades, razão pela qual a decisão judicial de aplicação da sanção em processo sumaríssimo deve ser notificada ao Ministério Público, ao arguido e seu defensor e, havendo-o, ao assistente e respectivo mandatário (cfr. neste sentido, entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 1005).

Relativamente à pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor dispõe o art. 69.º, n.º 2 do Código Penal que "a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria ", adiantando o n.º 3 que "no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo ".

Por sua vez, preceitua o art.500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que "no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo", acrescentando o n.º 4 que "a licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular ".

Da análise de tais normativos legais extrai-se que o momento determinante para o início da contagem do período da pena acessória é o do trânsito em julgado da decisão que a aplica.

Assim, antes desse momento não pode ter início o cumprimento da sanção, ainda que o título de condução esteja apreendido e, portanto, o período anterior a esse momento em que porventura o título tenha estado apreendido não contará para o cumprimento da pena acessória, assim corno o condenado não poderá ser sancionado pelo exercício da condução antes do trânsito em julgado da sentença (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29/06/2011, proferido no âmbito do processo n.º 190/10.4GAVFR.Cl, disponível in www.dgsi.pt.).

Nessa medida, não tendo a decisão condenatória proferida nos autos, que aplicou a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, transitado em julgado e sendo a partir da data do trânsito em julgado que se inicia a contagem do prazo respeitante à pena mencionada acessória, é irrelevante o tempo decorrido entre 4/08/2014 e a data do trânsito em julgado que se venha a verificar.

Nessa medida, indefiro o requerido pelo arguido a fls.87, devendo o início do decurso do prazo respeitante à pena acessória iniciar-se a partir da data do trânsito em julgado da sentença condenatória proferida nos presentes autos.

Mais se adianta que enquanto não ocorrer o trânsito em julgado de tal sentença condenatória pode o arguido requerer o levantamento da sua carta de condução, pois, como supra se referiu, a mesma deve obrigatoriamente ser junta aos autos após o trânsito em julgado da sentença».


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Inconformado com este despacho dele interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:

«a) Ao Recorrente foi proposta uma multa e uma sanção acessória de inibição de conduzir pelo Ministério Público do então Tribunal Judicial de Mangualde;

b) A multa foi no valor global de €450,00 e a inibição de conduzir pelo período de quatro meses;

c) O Recorrente foi notificado pessoalmente da decisão do Ministério Público;

d) O Recorrente, conformando-se com a prática que havia cometido do ilícito criminal, declarou expressamente que aceitava tal proposta do Ministério Público;

e) E, face a tal aceitação, entregou de forma voluntária a sua carta de condução para dar início o cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir;

f) Da mesma forma, por não ter meios financeiros para pagar a multa de uma só vez, requereu o seu pagamento em prestações, de que ainda não obteve resposta;

g) O Recorrente aceitou e conformou-se com a decisão e no seu entendimento, estava condenado nos termos propostos pelo Ministério Público;

h) E, durante o período em que a sua carta de condução estava apreendida pelo Tribunal dos autos, o Recorrente esteve sempre convicto de que estava a cumprir a sanção acessória de inibição de conduzir;

i) Só quando o Recorrente pediu para lhe ser entregue o documento que o habilita a conduzir veículos automóveis é que foi confrontado com a posição vertida no douto despacho de que se recorre;

j) A manter-se a posição defendida no douto despacho a que o Recorrente é punido duas vezes;

k) E o Recorrente, dessa forma, vai cumprir oito meses de inibição de conduzir e não quatro;

1) Sendo que o Recorrente não pode ser responsabilizado por o Tribunal ter aceite a entrega do documento em causa e o ter apreendido, dado a entender ao Recorrente que tudo estava bem;

m) Nem pode o Recorrente ser duplamente punido pelo caos instalado nos Tribunais após a Reforma do Mapa Judiciário que entrou em vigor em 01 de Setembro de 2014;

n) Acresce que após a aceitação pelo Recorrente das medidas propostas pelo Ministério Público o M.mo Juiz não podia sequer propor outra medida;

o) Devendo ser aceite que o Recorrente já cumpriu essa citada sanção acessória, o que a não suceder implica uma dupla condenação do Recorrente pelo mesmo crime;

p) A decisão proferida viola, assim, o disposto nos artigos 40.º e 69.º, do Código Penal».


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Respondeu o Ministério Público na 1.ª instância ao recurso interposto, nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, pugnando pela sua improcedência, concluindo que a sanção acessória só deve começar a ser cumprida com o trânsito da decisão.

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Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual se limitou a apor visto.

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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre decidir.

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II - O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:

Apreciar se deve ser considerada cumprida, em processo sumaríssimo, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, ao arguido que, logo após notificação da proposta do Ministério Público, entregou voluntariamente a carta de condução na Secretaria do Tribunal, e este, recebendo-a, ficou com ela apreendida nos autos, durante o período dos 4 meses fixados, mesmo antes do trânsito em julgado do despacho que fixou a condenação proposta.

Apreciando:

No caso dos autos estamos perante duas interpretações da lei.

A primeira é de ordem formal, na qual o juiz fundamentou o seu despacho.

Outra é de natureza material, na qual o arguido alicerça os fundamentos do seu recurso.

Sobre a interpretação da lei chamamos à colação o art. 9.º, n.º 1, do Código Civil que dispõe o seguinte:

“A interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

Vejamos pois então o que dizem as normas legais que regulamentam a obrigação de entrega do título de condução de veículos motorizados, em consequência de decisão condenatória, sem nos desligarmos do espírito das mesmas e fins que pretendem alcançar e tendo ainda em conta a particularidade de nos presentes autos ter sido imposta em sede de processo sumaríssimo.

Cada caso é um caso e como tal assim temos de o entender e decidir.

O Ministério Público formulou a proposta de ser aplicada ao arguido, em processo sumaríssimo, a condenação por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pela disposição conjugada dos art. 292.º, n.º 1 e 69.°, do CP, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €5,00, perfazendo o montante global de €450,00, e a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses.

Uma vez notificado o arguido em 11/7/2014, para os termos do art. 396.º, do CPP, declarou expressamente nos autos em 17/07/2014 que não se opunha e procedeu de seguida à entrega da carta de condução no dia 4/08/2014 no Posto da Guarda Nacional Republicana de Aguiar da Beira, que a remeteu à Secretaria do então 1.º Juízo do tribunal Judicial de Mangualde, onde foi recebida no dia 7/08/2014, a qual ficou junta por linha aos autos.

Entretanto o despacho do juiz que aplicou a sanção, designadamente da proibição de conduzir veículos com motor, valendo como sentença condenatória, proferido à luza do art. 397.º, n.º 1 e 2, do CPP, foi proferido apenas em 29/09/2014, sem que tivesse sido notificado ao arguido.

Uma vez decorridos os 4 meses de proibição de conduzir veículos com motor, com cumprimento efectivo, em consequência da entrega voluntária do título de condução pelo arguido e da aceitação pela Secretaria do Tribunal, apesar de não ter sido notificado do despacho sancionatório do juiz, em 10/12/2014, o arguido veio solicitar que lhe fosse reconhecido o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, com a consequente devolução da carta de conduzir, o que se encontrava apreendida nos autos.

O requerimento foi indeferido em 16/12/2014, com o fundamento de que o despacho condenatório ainda não tinha sido notificado ao arguido e como tal não tinha transitado, momento a partir do qual se deve dar início ao cumprimento da sanção acessória imposta.

Foi indeferida a pretensão do arguido e quanto a nós sem razão.

O despacho recorrido só aparentemente tem fundamento legal formal.

Os alicerces em que se pretende apoiar, fazendo apelo ao facto de que o despacho sancionatório em processo sumaríssimo, previsto no art. 397.º, do CPP, apesar de não admitir recurso ordinário, não transita imediatamente e a previsão legal do início do cumprimento da proibição de conduzir veículos com motor, constante do art. 69.º, n.º 3, do CP, não podem ser aplicáveis sob uma perspectiva meramente formal, esquecendo a realidade concreta que tais normativos pretendem disciplinar.

O art. 69.º, n.º 3, do CP e o 500.º, n.º 2, do CPP tem precisamente a mesma redacção:

«No prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido».

Por outro lado o art. 69.º, n.º 2, do CP impõe:

«A proibição de conduzir produz efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão…».

Por sua vez o art. 500.º, n.º 4, do CPP, quanto ao modo de cumprimento da sanção acessória estipula o seguinte:

«A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular».

Este é o procedimento normal aplicável à generalidade dos casos, quanto ao momento a partir do qual produz efeitos a decisão de proibição de conduzir veículos com motor e a forma de cumprimento dessa pena acessória.

É fundamental fixar o momento a partir do qual produz eficácia a decisão condenatória quanto ao cumprimento de penas, isto é, a partir do trânsito em julgado.

É a segurança do poder punitivo do Estado e a garantia dos cidadãos que estão em causa.

E como tal há necessidade de regulamentar essa relação entre o Estado e os cidadãos.

Quanto mais litígio houver entre essa relação maior necessidade há dessa exigência.

Porém, há certas situações em que há um maior compromisso entre o Estado e os cidadãos mesmo na aplicação e aceitação da punição nos mais diversos domínios dos sistemas jurídicos em vigor nos estados de direito.

A introdução do processo especial sumaríssimo no sistema processual penal português é disso um exemplo, em que o arguido é chamado a intervir, para dizer se aceita a sanção proposta, mediante notificação que para o efeito lhe é proposta, nos termos do art. 396.º, do CPP.

As leis não podem ser vistas apenas para se justificarem a si próprias, mas para regulamentarem e disciplinarem a vida concreta dos cidadãos em sociedade de forma justa e legal, aplicando com rigor as obrigações e deveres, mas sempre com respeito pelo exercício dos direitos, liberdades e garantias.

No caso dos autos, face às circunstâncias em que os factos ocorreram seria injusto e até um “abuso de direito” por parte do Estado obrigar o arguido a cumprir novamente a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor. 

E não basta fazer apelo ao facto de ainda não ter transitado a decisão condenatória, proferida em processo sumaríssimo, ao abrigo do art. 397.º, do CPP.

Dispunha a anterior redacção do art. 397.º, n.º 2, do CPP:

«O despacho a que se refere o número anterior vale como sentença condenatória e transita imediatamente em julgado».

Com a alteração introduzida pela Lei 20/2013, de 21/2, com entrada em vigor em 23/04/2013, passou a ter a seguinte redacção:

«O despacho a que se refere o número anterior vale como sentença condenatória e não admite recurso ordinário».

Não faz grande sentido trazer á colação a diferença de regimes, pois no caso concreto a decisão ainda não foi tão pouco notificada e como tal nem se questiona que não transitou em julgado.

Uma coisa em comum comportam estes preceitos, a proposta do Ministério Público quanto à pena principal e pena acessória, havendo declaração expressa do arguido a dizer que não se opunha, está definitivamente assente.

O arguido que voluntariamente aceitou a proposta do Ministério Público interiorizou que se tratava da condenação definitiva e como tal entregou a carta de condução no Posto da GNR em 4/08/2014, que por sua vez foi remetida à Secretaria do Tribunal, onde ficou apreendida junta aos autos, a partir de 7/08/2014. 

A Secretaria praticou um acto de aceitação da carta de condução, quando em bom rigor o não devia.

Por outro lado, devia tê-la devolvido ao arguido, sem necessidade do requerimento de 10/12/2014, a solicitar que se desse por cumprida a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor fixada em 4 meses e a devolução da carta de condução.

Não se compreende as irregularidades verificadas, pois não faz sentido que a decisão sancionatória da proposta do Ministério Público proferida em 29/09/2014, ainda não tivesse sido notificada em 16/12/2014, data do despacho recorrido, que deu por não cumprida a sanção acessória e ordenou a junção aos autos do título de condução após trânsito em julgado da decisão a que se refere o art. 397.º, do CPP.

Ao ocorrido não terá sido alheia a implantação da Reforma do Mapa Judiciário, conforme alude o recorrente, com transtornos na tramitação processual, mas por esse facto não pode ser responsabilizado o arguido, conforme refere nas suas alegações a fls. 13.

Os art. 69.º, n.º 3, do CP e o art. 500.º, n.º 2, do CPP, ao estipularem que a licença de condução fica retida na Secretaria do tribunal pelo período de tempo que decorrer a proibição e que decorrido esse período é devolvida ao titular, têm em vista o controle, da legalidade e da transparência do cumprimento da sanção acessória.

Estes requisitos verificaram-se.

O arguido já cumpriu o período de 4 meses de proibição de conduzir veículos com motor, ficando afectado de forma real e efectiva no seu direito de conduzir, não podendo ser culpabilizado pelo cumprimento antes de transitar a decisão condenatória.

A decisão de imposição de cumprimento de novo período da sanção acessória após o trânsito em julgado, por culpa não imputável ao arguido, é profundamente injusta e não fundamentada.

O cumprimento da sanção acessória antes do trânsito em julgado da sentença, com carta apreendida nos autos de processo sumaríssimo, entregue voluntariamente pelo arguido e recebida pela Secretaria do tribunal, nos termos acima expostos, deve ser tomado em conta na decisão que declarar extinta a pena, para efeitos do art. 500.º, do CPP.

Não é a negação de que o cumprimento da sanção acessória produz efeito a partir do trânsito em julgado da sentença, antes a afirmação deste princípio consagrado no art. 69.º, n.º 2, do CP.

Por isso, o juiz deve velar pelo cumprimento da pena acessória e quando for exequível deve levar em conta o tempo da sanção acessória já cumprido, depois de apreciar a regularidade deste cumprimento como aconteceu nos autos.

 Este preceito corresponde ao mesmo princípio das decisões penais condenatórias que só têm força executiva após transitarem em julgado, de acordo com o disposto no art. 467.º, n.º1, do CPP.

Ora, nos termos do art. 80.º, n.º 1, do CP também a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas no inteiro cumprimento da pena de prisão.

Não há razão para assim não ser no cumprimento das penas acessórias, uma vez constatado a regularidade no âmbito dos respectivos autos.


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III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, se revoga o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, leve em conta o cumprimento da sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, antes da sentença proferida em processo sumaríssimo ter transitado em julgado, que voluntariamente o arguido já cumpriu, com carta de condução entregue na Secretaria do Tribunal e que esta manteve junta por linha nos autos, até decorrer o período em que foi condenado.  


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Sem custas, nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP.

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NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

Coimbra, 01 de julho de 2015



(Inácio Monteiro - relator)


(Alice Santos - adjunta)