Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
334/07.3PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA NÃO PAGA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 49º, DO C. PENAL
Sumário: Estabelece o artigo 61.º, n.º 1, al. b), do C. Proc. Penal, que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo, e salvas as excepções da lei, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.
Previamente à conversão da pena de multa em prisão subsidiária, o tribunal deve proceder à audição do arguido, para que este se pronuncie sobre as razões do incumprimento do trabalho a favor da comunidade (cfr. art.º 49º, n.º 4, do C. Penal), uma vez que está em causa um acto que o afecta num dos direitos fundamentais de maior valia - o direito à liberdade.
A notificação do despacho que procedeu à conversão da multa em prisão subsidiária deve ser efectuada quer ao defensor quer ao condenado.
Decisão Texto Integral:

19
Proc. n.º 334/07.3PBFIG.C1
I. Relatório:
1. No âmbito dos autos de processo comum singular n.º 334/07.3PBFIG do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, em despacho de 22 de Setembro de 2011, foi determinado o cumprimento, pelo condenado A..., de 74 dias de prisão subsidiária, correspondente a parte da multa de 200 dias que àquele foi imposta por sentença proferida em 27 de Outubro de 2008, por o mesmo não ter cumprido a totalidade do trabalho a favor da comunidade substituição da referida pena de multa.
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2. Inconformado, o arguido interpôs recurso desse despacho, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - O arguido não se conforma com a revogação da pena de prestação a favor da comunidade que lhe foi aplicada.
2.ª - Em primeiro lugar , não foram asseguradas todas as garantias de defesa que o processo penal consagra, nomeadamente o direito de o arguido ser ouvido (presencialmente) sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, sendo certo que não existirá decisão judicial susceptível de o afectar mais gravemente do que aquela que o priva da sua liberdade (constitui nulidade insanável cominada na alínea c) do art. 119.º do CPP).
3.ª - O tribunal a quo decidiu em violação do princípio constitucionalmente consagrado do art. 32.º da CRP, o que expressamente se invoca.
4.ª - Concluiu-se no douto despacho recorrido que “…o arguido, culposamente, não cumpriu os dias de trabalho que lhe haviam sido fixados em substituição da pena de multa e mostrando-se o seu cumprimento coercivo inviável, impõe-se o cumprimento da pena de prisão…”. Tal conclusão não é fundamentada, faltando explicitar as razões que levam a ser tomada.
5.ª - A falta de fundamentação da decisão, para além de a tornar ininteligível, produz a nulidade da mesma [artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP], o que expressamente se invoca.
6.ª - O tribunal a quo decidiu em violação do princípio constitucionalmente consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, o que expressamente se invoca.
7.ª - O arguido não de cumprir a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade a que havia sido condenado por mera intenção de se furtar ao seu cumprimento.
8. Foram-lhe criadas ou propiciadas situações previsíveis de conflito, que previamente deveriam ter sido acauteladas por quem de direito, situações essas que levaram a que o arguido perdesse confiança nos serviços da DGRS e não reconhecesse a autoridade destes como reconhece a do tribunal.
9. Finalmente, não existem necessidades de prevenção geral ou especial que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena de privação da liberdade, justificando-se a manutenção da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade que deve ser realizada.
10. Foram violadas, entre outras, pelo douto despacho recorrido, as disposições legais constantes dos artigos 40.º, 49.º, 53.º, 56.º, 58.º e 59.º (por aplicação analógica) do Código Penal, 374.º, n.º 2, 495.º, n.ºs 2 e 3 e 498.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e os artigos 32.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1, da CRP.
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se a nulidade da decisão e ordenando-se a baixa do processo ao tribunal recorrido, assim se fazendo inteira justiça!
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3. O Ministério Público respondeu ao recurso, conclusivamente nos termos infra transcritos:
A) Deverá o recurso interposto ser rejeitado, porquanto intempestivo;
B) Caso assim se não entenda, não deve o recurso interposto por Mariano de Rosa Vicente merecer provimento, mantendo-se antes, porque irrepreensivelmente tomado, face ao estado dos autos, o despacho judicial que determinou o cumprimento, pelo aqui recorrente, do período de 74 (setenta e quatro) dias de pena de prisão subsidiária.
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4. Nesta Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, em parecer a fls. 318/322, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, referindo, nos segmentos que temos como relevantes:
«1. Questão prévia:
Consideramos tal como o Mm.º Juiz que o recurso é tempestivo, na medida em que só após a notificação pessoal do arguido começa a decorrer o prazo para interposição do recurso (…).
2. Recurso:
(…).
C - É nosso entendimento que o recurso do recorrente merece provimento, pelas razões que a seguir explanamos:
Preceitua o artigo 48.º do CP:
(…).
De acordo com o que resulta dos autos, o recorrente, logo após a condenação em multa, solicitou a prestação de trabalho a favor da comunidade, o que lhe foi deferido com o seu cumprimento nos Bombeiros Municipais da Figueira da Foz.
Contudo, como tinha que cumprir no Proc. 396/07.3PBFIG também trabalho a favor da comunidade, só após terminar aquele cumprimento daria início ao cumprimento nestes autos.
Foi-lhe então feito o cúmulo jurídico e determinado o cumprimento de 199h de trabalho a favor da comunidade, a executar nos termos propostos pela DGRS, nos Bombeiros Municipais da Figueira da Foz.
Porém, conforme relatório de anomalias de fls. 200, causou distúrbios com elementos do mesmo grupo, razão pela qual não cumpriu toda a pena de substituição que lhe foi aplicada, tendo apenas cumprido 87,5h, havendo total indisponibilidade daquela instituição para ali terminar o cumprimento da medida de trabalho a favor da comunidade. Foi ouvido o arguido para esclarecer as razões que determinaram o não cumprimento do total da pena de substituição (fls. 224 e segs.).
Encetadas diligências no sentido de enquadrar o arguido e terminar o cumprimento da prestação de trabalho a favor da comunidade noutra instituição, foi-lhe dada a possibilidade de prestar trabalho junto da Junta de Freguesia de S. Julião. Convocado para o dia 1/10/2010 para reunião com o técnico da DGRS e o Presidente da Junta, não compareceu, não deu qualquer justificação, nem atendeu o telefone.
Na sequência dos acontecimentos e em face do incumprimento, foi o arguido notificado para proceder ao pagamento do remanescente da pena de multa em que foi condenado, na pessoa do seu defensor e pessoalmente (fls. 265 v.º), sem que o tivesse feito.
Veio então o M.º Juiz a determinar o cumprimento da prisão subsidiária, tendo operado o desconto do número de horas de trabalho já cumprido e determinado a emissão dos mandados de detenção para cumprimento da pena.
Nesta parte, estamos em desacordo com o despacho recorrido.
O comportamento do condenado não pode, em nosso entender, de imediato e de forma automática, ser considerado como uma recusa em prestar trabalho a favor da comunidade sem justa causa, ou sem se averiguar das razões porque não efectuou o pagamento do remanescente da pena de multa.
É indiscutível a falta de cumprimento do trabalho - o arguido não cumpriu o trabalho a favor da comunidade na totalidade e não compareceu à reunião para que estava convocado -, mas entendemos que, em face daquele incumprimento, não se desencadeia, de modo automático, a revogação da prestação de trabalho a favor da comunidade que lhe foi deferida.
Assim, ao lado do elemento objectivo da violação dos deveres, a lei penal torna dependente a concorrência de um elemento subjectivo, traduzido na culpa, enquanto infracção grosseira ou repetida dos deveres impostos na decisão judicial.
Isto é, optou-se por um regime mais exigente que só determina a revogação da pena de substituição quando se conclui que as finalidades subjacentes à aplicação daquela não podem, por meio dela, ser atingidas.
Embora a lei não defina o que deva entender-se por violação grosseira dos deveres, deixando ao critério do julgador a fixação dos seus contornos, nem por isso se poderão esquecer os ensinamentos gerais de observância; a demissão pelo agente dos mais elementares deveres que não escapam ao comum dos cidadãos; uma inobservância absolutamente incomum (…).
No caso dos autos, temos o elemento objectivo da violação das regras de conduta impostas ao arguido: o seu incumprimento, uma vez que o arguido não prestou todo o trabalho para o qual tinha dado o seu consentimento, porque provocou desentendimentos e não mostrou empenho na sua realização.
Constituirá essa conduta omissiva uma recusa ao dever imposto?
Na verdade, entendemos que o legislador quer lutar contra a pena de prisão, ainda que seja prisão subsidiária, pelo que, no desenvolvimento desse desiderato, deve entender-se que a revogação desta pena de substituição, consubstanciando-se na aplicação de uma pena de prisão, só deve ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências.
Perante a falta de cumprimento a favor da comunidade por parte do condenado, e apesar de ser mais que tempo para que ele interiorize a condenação e a obrigação de trabalhar a favor da comunidade como foi seu desejo e acordo, e que pode estar sujeito a cumprir uma pena de prisão subsidiária, entendemos que o remédio não está, pelo menos por agora, no recurso à solução radical do cumprimento da pena de prisão, e muito menos sem que o mesmo tivesse sido ouvido, exercendo-se, assim, o contraditório sobre as razões porque não compareceu à reunião marcada para o dia 01/10 ou porque não pagou o remanescente da pena de multa.
Havia que previamente averiguar quais as razões do incumprimento, quais as condições de que o arguido dispõe actualmente e avaliar a forma como o arguido poderá efectuar o cumprimento deste trabalho a favor da comunidade e alertá-lo para o facto do seu novo incumprimento.
(…).
Assim, somos de parecer que, deve ser revogada a decisão proferida e proceder-se previamente à audição do arguido, procedendo-se, posteriormente, ou à determinação do cumprimento da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade ou alertá-lo para o facto de que não a cumprindo terá de cumprir a pena de prisão subsidiária.
Pelo que, entendemos merecer provimento o recurso interposto».
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5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
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5. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
No caso dos autos, o recorrente Mariano de Rosa Vicente circunscreve o recurso às seguintes questões:
A) Se a decisão recorrida, no sentido do cumprimento pelo recorrente de pena de prisão subsidiária, sem a prévia audição daquele sobre as razões que determinaram a consideração do incumprimento pelo mesmo da prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos das disposições, conjugadas, dos artigos 498.º, n.º 3, e 495.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, consubstancia a nulidade insanável prevista na al. c) do artigo 119.º do mesmo diploma legal;
B) Se o tribunal a quo, ao decidir nas condições descritas na alínea A), violou o princípio constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – direito à defesa plena;
C) Se o despacho em causa padece ainda da nulidade elencada na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, tendo o tribunal decidido em violação do princípio constitucionalmente consagrado no n.º 1 do artigo 205.º da CRP;
D) Se existe fundamento legal para o cumprimento de pena de prisão subsidiária.
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2. Para a devida compreensão do sentido e alcance das questões a dirimir, importa ter em conta os seguintes elementos relevantes:
a) Por sentença proferida, em 27-10-2008, no âmbito do processo (comum singular) a que respeitam os presentes autos, transitada em julgado, o arguido, ora recorrente, B…, foi condenado, na vertente estritamente penal: pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 140 dias de multa; pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, na pena de 160 dias de multa; na pena única de 220 dias de multa, com desconto de 1 dia de detenção, à razão diária de €5,00;
b) Em 17-12-2008, o arguido requereu, nos termos do disposto no artigo 48.º do Código Penal, a substituição daquela pena de multa por dias de trabalho em estabelecimentos oficinais, obras do estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou instituições particulares de solidariedade social (cfr. fls. 166);
c) Os serviços de reinserção social prestaram, em 24-03-2009, informação cuja conclusão, na parte pertinente, ora se transcreve:
«Existem condições para a execução do trabalho junto dos Bombeiros Municipais da Figueira da Foz. O arguido está disponível para o cumprimento da medida e em horário laboral já que se encontra inactivo profissionalmente.
Apresentamos, contudo, algumas reservas relativamente ao seu envolvimento responsável, tendo em conta o estilo de vida descomprometido do ponto de vista social e profissional.
(…)».
d) Em 10-07-2009, foi proferido despacho deste teor:
«Nos presentes autos, por sentença de 27-10-2008, transitada em julgado, foi o arguido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 199 dias de multa à taxa de €5,00 (…).
A seu requerimento, pela DGRS foi elaborado um relatório de caracterização do trabalho a favor da comunidade, para execução nos Bombeiros Municipais da Figueira da Foz (…).
Face ao exposto, determina-se a prestação, pelo arguido, de 199 horas de trabalho nos termos propostos pela DGRS.».
e) No dia 20-10-2009, a Direcção-Geral de Reinserção Social (DGRS) - Delegação Regional do Centro prestou a informação que se passa a transcrever:
«(…) apesar das dificuldades sinalizadas ao nível da integração do arguido em trabalho comunitário, foram efectuadas novas diligências junto dos Bombeiros Municipais da Figueira da Foz e o responsável aceitou que o arguido venha a cumprir a medida substitutiva nos Serviços de Protecção Civil.
Atendendo ao comportamento anteriormente assumido pelo arguido, aquando do cumprimento de anterior medida de trabalho junto desta EBT, foi o mesmo advertido para o seu envolvimento responsável, cumprindo o trabalho sem que se verifiquem irregularidades, quer ao nível da assiduidade, quer ao nível do relacionamento interpessoal.
A execução do trabalho terá início no próximo dia 2 de Novembro (…)»;
f) Em 12-01-2010, a DGRS elaborou a seguinte “informação sobre anomalias”:
«O arguido iniciou a execução do trabalho no passado dia 2 de Novembro junto dos Bombeiros Municipais da Figueira da Foz, exercendo tarefas de protecção civil.
Atendendo ao comportamento assumido pelo arguido, aquando do cumprimento de anterior medida de trabalho junto desta EBT, tratou-se de uma última oportunidade concedida pelo responsável da EBT. O arguido foi advertido para o seu envolvimento responsável, quer ao nível do relacionamento pessoal, encontrando-se igualmente esclarecido das consequências que poderiam advir do não cumprimento da medida.
Todavia, o arguido voltou a provocar distúrbios, desacatos e sendo conflituoso na relação, tanto com os elemento do grupo, como com responsáveis.
No dia 24 de Novembro executou tarefas de protecção civil na Serra da Boa Viagem e, durante a pausa para almoço, agrediu verbalmente um funcionário. Desde essa altura, não voltou a comparecer ao trabalho e não procurou justificar o sucedido junto do responsável da EBT.
O funcionário em causa optou por não apresentar queixa do arguido; no entanto, após o sucedido, os responsáveis da Entidade não demonstram receptividade para que o arguido retome o trabalho, até que os próprios elementos do grupo rejeitaram a presença do mesmo.
Como é do conhecimento desse Tribunal, o arguido é um elemento de etnia cigana conotado com um modo de vida marginal e a sua imagem social condiciona a disponibilidade das instituições contactadas para o seu enquadramento em trabalho e quando surgiu a possibilidade de cumprir o trabalho junto dos Bombeiros Municipais já tinham sido esgotadas todas as alternativas de cumprir o trabalho junto de diversas entidades contactadas da Figueira da Foz.
Pelo exposto, verifica-se total indisponibilidade por parte dos Bombeiros Municipais da Figueira da Foz para que o arguido termine o cumprimento da medida de trabalho junto dessa entidade e não dispomos, no presente, de receptividade por parte de outra instituição para receber o arguido (…)»;
g) Na sequência da referida informação, o julgador do tribunal de 1.ª instância procedeu à audição do arguido, nos termos do disposto no artigo 498.º, n.º 4, do CPP. Aquele prestou as declarações infra transcritas:
«Quando se encontrava a prestar trabalho comunitário junto da Protecção Civil, na Serra da Boa Viagem, no momento em que iniciava a sua refeição, foi interpelado por um funcionário deste organismo que, dirigindo-se a si, gritou em voz alta dizendo que “estava com fome” e ainda que “eu já estou há muito para te bater”.
O arguido ter-lhe-á respondido “anda que eu não tenho medo de ti”.
Nas palavra do arguido, tais expressões, pelo modo como foram proferidas e pela corpulência do interlocutor, foram, na sua óptica, suficientes para o incomodar no momento em que terminava a sua refeição; para mais, estando ambos sentados à mesma mesa e muito próximos um do outro.
Além disso, precisou que os funcionários no Serviço de Protecção Civil são “mesmo assim”, querendo com isto significar que “não são sinceros, dizem mal pelas costas e são autoritários”, aproveitando-se da situação do arguido perante a instituição.
Invoca tais razões como motivo determinante das relatadas anomalias, afigurando-se que se lhe for dada de novo oportunidade de prestar trabalho comunitário as coisas correrão de outro modo»;
h) Seguidamente, no cumprimento de despacho proferido em 13-04-2010, foi determinada a elaboração, pela DGRS, de novo relatório, de modo a que o arguido retomasse a prestação de trabalho a favor da comunidade;
i) Desenvolvidas diligências nesse sentido, a DGRS prestou a final a informação abaixo reproduzida:
«Conforme se informou esse Tribunal Judicial, o Presidente da Junta de Freguesia de S. Julião demonstrou disponibilidade para enquadrar em trabalho o arguido, o qual veio, posteriormente, a demonstrar disponibilidade para tal. Todavia, convocado para, no passado dia 1 de Outubro, estar presente na Junta de Freguesia de S. Julião, em reunião com o técnico desta Equipa da DGRS e o Presidente da Junta, com o objectivo de acordar as questões referentes às tarefas a executar e a data para início do trabalho, não veio a comparecer e, até à data, não deu qualquer justificação nem atende o telefone.
Mais se informa que tinha sido efectuado um contacto telefónico prévio com o arguido que se comprometeu a comparecer à reunião, tendo sido igualmente remetida convocatória para a sua residência por carta registada»;
j) Notificado, o ilustre defensor do arguido retorquiu deste modo:
«O signatário não tem contacto com o arguido, desconhecendo o seu paradeiro.
Desconhece, por isso, quais as razões da sua não comparência à reunião agendada.
Admite-se, no entanto, que possa existir uma justificação válida do arguido para não ter comparecido na reunião para que foi convocado pelo técnico da DRGS.
Admite-se também que, por defeito de informação, o arguido não reconheça os técnicos da DRGS, nesta situação, a autoridade que reconhece ao Tribunal.
Assim, afigura-se-me que deverá o Tribunal proceder à notificação do arguido, através das forças policiais, no sentido deste comparecer na reunião a efectuar entre o técnico da equipa da DGRS e o Presidente da Junta de Freguesia de S. Julião»;
k) Apurado, junto da DGRS, o número de horas de trabalho a favor da comunidade prestadas pelo arguido, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, após notificação do Defensor e do arguido, este pessoalmente, para que o último procedesse ao pagamento da multa residual de €557,50, proferiu, em 22-09-2011, o despacho recorrido, com o seguinte conteúdo:
«O arguido foi condenado nestes autos, em cúmulo jurídico, numa pena única de 200 dias de multa, descontando-se um dia de detenção (199 dias), à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num montante global de €995,00 (novecentos e noventa e cinco euros).
Não tendo pago tal montante, veio requerer entretanto a substituição de tal pena por prestação de trabalho a favor da comunidade, o que lhe foi deferido, tendo-se determinado o cumprimento de 199 horas.
O arguido prestou apenas 87,5 horas das referidas 199 horas, não tendo sido possível o cumprimento das restantes horas, pelos motivos constantes dos relatórios de anomalia do IRS, constantes de fls. 212, 237 e 242 dos autos.
Por despacho datado de 07-06-2011 (fls. 259), determinou-se que restaria ao arguido cumprir 111,5 horas, correspondendo ao montante de multa ainda por liquidar o valor de €557,50 (115,5 x €5,00).
O arguido foi notificado para proceder ao pagamento do remanescente da pena, no referido valor, como forma de evitar o cumprimento da prisão subsidiária, o que não fez.
O Ministério Público promove que seja determinado o cumprimento da prisão subsidiária (operando-se o desconto do número de horas de trabalho a favor da comunidade para efeito do seu cômputo).
Dispõe o artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal, que se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
O que é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado culposamente não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída (artigo 49.º, n.º 4, do Código Penal).
Assim, considerando que o arguido, culposamente, não cumpriu os dias de trabalho que lhe haviam sido fixados em substituição da pena de multa e mostrando-se o seu cumprimento coercivo inviável, impõe-se o cumprimento de pena de prisão subsidiária, sem prejuízo de o mesmo, pagando, poder evitar a sua execução e do desconto da pena já cumprida (artigo 49.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal).
Assim, ponderando que aos 200 dias de multa já foi descontado 1 dia de detenção (artigo 80.º, n.º 2, do Código Penal) e que o arguido cumpriu já 87,5 horas de trabalho das 199 que lhe haviam sido fixadas, entende-se que caberá ao arguido pena de prisão subsidiária pelo período de 74 dias.
Pelo exposto, determina-se que o condenado cumpra a pena de prisão subsidiária, fixando-se a mesma em 74 dias.
Notifique.
Após trânsito, conclua a fim de se determinar a emissão dos correspondentes mandados para cumprimento da pena».
l) O arguido foi pessoalmente notificado deste despacho em 23-11-2011 e o recurso foi interposto em 29-11-2011.
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2. Questão prévia:
O Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância suscita a questão da inadmissibilidade do recurso, por ter sido interposto para além do prazo de 20 dias fixado no artigo 411.º, n.º 1, do CPP.
Na sua tese interpretativa, o dito prazo começou a correr a partir da notificação do despacho em causa ao Defensor do arguido.
Não estamos de acordo.
A circunstância do despacho em causa nestes autos, de determinação, para cumprimento, da prisão subsidiária correspondente à pena (principal) de multa imposta em sentença, versar questão substancialmente diversa daquela sobre que incidiu o Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 6/2010, de 15-10-2010, publicado no DR, 1.ª série, n.º 99, de 21-05-2010, não significa, antes aconselha, que as razões que justificaram, nesse acórdão, a opção pela notificação ao condenado do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão não devam também aqui ser aplicáveis.
Efectivamente, os motivos em que radica a exigência de notificação da sentença tanto ao arguido como ao seu defensor - necessidade de garantir um efectivo conhecimento do seu conteúdo por parte daquele em ordem a disponibilizar-lhe todos os dados indispensáveis para, em consciência, decidir se impugna ou não por via de recurso - são transponíveis para a notificação do despacho que considera culposamente incumprida a prestação de trabalho a favor da comunidade e impõe o cumprimento da pena de prisão subsidiária.
Não obstante a prisão subsidiária se configurar, não como um pena de substituição, mas como uma “sanção penal de constrangimento, conducente à realização do efeito preferido de pagamento da multa” - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 147 -, certo é que a mesma também opera uma modificação da natureza da pena aplicada, que não deixa de ser um pena detentiva.
Efectivamente, o que está em causa, em última caso, tanto na pena de prisão como na prisão subsidiária, é a privação da liberdade de uma pessoa.
A ficção jurídica entre a natureza da prisão como pena privativa da liberdade e a prisão subsidiária como sanção penal de constrangimento perde todo o sentido quando em concreto se atenta na exequibilidade de ambas, onde não há nem deve haver qualquer distinção (cfr. Ac. da Relação do Porto de 02-11-2011, proc. n.º 150/08.5GACDR.P1, in www.dgsi.pt).
Assim, as razões que impõem a notificação do próprio condenado, e não apenas do defensor, no caso de revogação da suspensão da pena são as mesmas que determinam a notificação de ambos na concreta situação dos autos - necessidade de garantir ao primeiro um efectivo conhecimento do conteúdo da decisão determinativa do cumprimento da pena de prisão subsidiária em ordem a disponibilizar-lhe todos os elementos indispensáveis para, em consciência, decidir se impugna ou não.
Como se refere no dito Ac. de Fixação de Jurisprudência, se na fase de execução da pena não há por norma um relacionamento normal e de efectivo acompanhamento entre o defensor e o condenado, não pode ter-se como seguro que a aludida decisão, uma vez notificada ao primeiro será por este comunicada ao segundo.
Em síntese conclusiva: a notificação do despacho que procedeu à conversão da multa em prisão subsidiária deve ser notificada quer ao defensor quer ao condenado (neste sentido, v.g., Acs. da Relação do Porto de 18-05-2011, proc. n.º 241/10.2PHMTS-A.P1; de 19-01-2011, proc. n.º 662/05.2GNPRT-A.P1; de 23-02-2011, proc. n.º 18/08.5PHMTS-B.P1; de 09-03-2011, proc. n.º 630/06.7PCMMTS-A.P1; de 16-03-2011, proc. n.º 4989/08.3TAMTS-A.P1; de 06-04-2011, proc. n.º 53/10.3PBMTS-A.P1; da Relação de Coimbra de 06-07-2011, proc. n.º 17/06.1GBTNV.C1, todos publicados no sítio www.dgsi.pt).
No caso concreto, sem necessidade de entrar na polémica instalada na jurisprudência sobre a natureza da notificação a realizar nas situações iguais à versada nos presentes autos (pessoal ou não), verificamos que o arguido apenas foi notificado do despacho concretizado na alínea k) do n.º 2 da fundamentação deste acórdão em 23-11-2011. Consequentemente, o recurso do arguido, de 29-11-2001, insurgindo-se contra o referido despacho, foi interposto no prazo de 20 dias fixado pela lei processual penal.
Daí que improceda a questão prévia.
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3. Mérito do recurso:
3.1. Da invocada nulidade (insanável) prevista na al. c) do artigo 119.º do CPP, por a decisão de conversão da pena de multa em prisão subsidiária correspondente ter sido proferida sem prévia audição do condenado Mariano de Rosa Vicente sobre os motivos que determinaram a consideração do não cumprimento por aquele da prestação de trabalho a favor da comunidade:
Dispõe o artigo 49.º do Código Penal:
«1 - Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º.
2 - O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.
4 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado, culposamente, não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída. Se o incumprimento não lhe for imputável, é correspondentemente aplicável o disposto no número anterior».
De acordo com o artigo citado, quando não são cumpridos os dias de trabalho pelos quais a multa foi substituída, o condenado cumpre a pena de prisão subsidiária correspondente, salvo se o mesmo provar que a razão do incumprimento do trabalho a favor da comunidade não lhe é imputável, caso em que a execução da dita prisão pode ser suspensa por um período de um a três anos, subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de cariz não económica ou financeira.
Porém, previamente à conversão da pena de multa em prisão subsidiária, o tribunal deve proceder à audição do arguido, para que este se pronuncie sobre as razões do incumprimento do trabalho a favor da comunidade, uma vez que está em causa um acto que o afecta num dos direitos fundamentais de maior valia - o direito à liberdade.
A tese vertida no recurso apela à norma prevista no n.º 2 do artigo 495.º, aplicável ao vertente caso ex vi do n.º 3 do artigo 498.º, do CPP [«O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido o parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da prestação do trabalho a favor da comunidade»].
No presente caso, não é aí que está consagrada a exigência do direito de audição.
Enquanto os referidos normativos estão intimamente ligados ao incumprimento dos deveres impostos no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão e da prestação de trabalho a favor da comunidade e, se decretada a revogação, implicam a execução da pena de prisão, a pena de prisão subsidiária constitui uma pena de constrangimento, porquanto, como decorre com evidência do disposto no n.º 2 do artigo 49.º do CP, o condenado pode a todo o tempo evitar a execução da pena de prisão pecuniária através do pagamento, total ou parcial, da pena, principal, de multa.
«Esta diferente axiologia justifica, como se entende, a diversidade de exigências e/ou cautelas jusprocessuais. Não está em causa a execução de uma pena originariamente privativa da liberdade. Está em causa, apenas, a execução e - nesta altura, em termos reduzidos - de uma pena não privativa da liberdade, in casu, de uma pena de multa» (cfr. Ac. da Relação do Porto de 09-02-2011, in www.dgsi.pt.).
O direito do condenado a ser ouvido decorre antes, na situação em apreço, de preceito comum da lei adjectiva penal e do princípio do contraditório.
Efectivamente, estabelece o artigo 61.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo, e salvas as excepções da lei, dos direitos de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.
Como escreve Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1981, I, 157/158), o direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências inscritas no Estado de Direito, do espírito do processo como “comparticipação” de todos os interessados na criação da decisão; direito que deve ser assegurado perante quaisquer decisões, sejam do juiz ou de entidades instrutórias, nomeadamente do M.º P.º, sempre que aquelas atinjam directamente a esfera jurídica das pessoas.
Todavia, o direito de audição não se confunde com o direito de presença, radicando este na imprescindibilidade de o arguido estar presente nos actos que directamente lhe digam respeito [artigo 61.º, al. a)] e que constitui a contra-face do dever de comparência imposto pela al. a) do n.º 3 do mesmo artigo.
No preciso domínio em que nos situamos, importa averiguar as eventuais razões que levaram o arguido ao incumprimento (parcial) da prestação de trabalho a favor da comunidade antes solicitada.
E isso só é possível através da audição antecipada do arguido.
Porém, como acima ficou dito, este apenas foi notificado para proceder “ao pagamento do remanescente da pena de €557,50 de multa”.
Ora, tendo por referência os princípios do Estado de Direito, do due process, fair process, da proporcionalidade e adequação, afigura-se-nos que foi claramente violado o direito de defesa do arguido, pois que a este não foi dada a oportunidade de apresentar as hipotéticas razões determinantes da sua não comparência à reunião agendada na Junta de Freguesia de S. Julião (neste sentido, Ac. da Relação de Coimbra de 12-04-2011, proc. n.º 548/07.6TAAND-B.C1).
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4. Se assim é, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões elencadas nas conclusões da motivação do recurso (artigo 660.º do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP).
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação de Coimbra em:
- Julgar improcedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público;
- Conceder, embora com diversos fundamentos, provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que, antes de impor o cumprimento da prisão subsidiária, ouça o arguido sobre as razões da sua não comparência à reunião na Junta de Freguesia de S. Julião e, assim, à continuidade da prestação do trabalho a favor da comunidade, decidindo depois o tribunal a quo em conformidade.
Sem tributação.
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(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 7 de Março de 2012

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)