Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
390/11.0TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL DE PEDIDOS
Data do Acordão: 03/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 193º, Nº 2, AL. C) DO CPC.
Sumário: I – A incompatibilidade substancial de pedidos, como causa de ineptidão da petição inicial (art.193 nº 2 c) CPC) pressupõe que as pretensões cumuladas produzam efeitos jurídicos contraditórios entre si, que se excluam mutuamente, de tal forma que a posição do autor se apresenta ininteligível, sendo irrelevante o errado enquadramento jurídico.

II - Cumulando a autora (dona da obra) o pedido de condenação da ré (empreiteira) a realizar a obra nova no prazo de 90 dias com o pedido de condenação da ré a reconhecer a resolução do contrato, se não realizar tal obra por qualquer motivo e no prazo fixado, ou seja, para o caso de não cumprir, não há incompatibilidade substancial de pedidos.

III - Este segundo pedido deve ser qualificado como um pedido incerto, de condenação condicional e de condenação futura (não se apresenta como um direito resolutivo actual).

Decisão Texto Integral: I -RELATÓRIO

1.1.- A Autora – F…, Lda – instaurou (18/11/2011) na Comarca de Nelas acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré – R…, Lda.

         Alegou, em resumo:

         A Autora contratou com a Ré (empreiteira), em 30/4/2009, a realização de todas as obras e fornecimento de equipamentos necessários e adaptação de uma fracção (rés-do-chão) ao estabelecimento comercial, pelo valor de € 106.000,00, acrescido de IVA, de acordo com a proposta de orçamento e memória descritiva, dos quais consta o isolamento acústico.

         Depois das obras e já estando em funcionamento, a Autora recebeu queixas por causa do elevado ruído e denunciou tais defeitos.

         A Autora acabou por verificar que a Ré não procedeu adequadamente ao isolamento.

         Não sendo possível a correcção dos defeitos, por implicar a destruição de toda a parte construtiva do estabelecimento, torna-se indispensável uma nova construção no prazo de 90 dias, sob pena da resolução do contrato.

         Em consequência, a Autora sofreu danos patrimoniais.

         Pediu cumulativamente:

1. Ser a Ré condenada a efectuar nova construção demolindo totalmente a existente no estabelecimento da Autora, identificado no artigo 1ºdesta petição, insonorizando totalmente o ruído que do mesmo imana para o exterior, aplicando os materiais e serviços contratados com a mesma.

2. Ser a Ré condenada a realizar tal obra no prazo máximo de 90 dias ou naquele que demonstre ser necessário para tal realização.

3. A não realizar a Ré tal obra por qualquer motivo, seja a mesma condenada a reconhecer a resolução do contrato que celebrou com a Autora, resolução que a mesma Autora, nesse caso, pela presente via expressamente promove.

4. Seja como for e em qualquer caso, seja a Ré condenada a pagar à Autora o montante dos prejuízos decorrentes do seu incumprimento contratual.

5. Sendo assim e em consequência a Ré condenada a indemnizar a Autora de um montante diário líquido não inferior a 200,00 euros respeitante ao último ano, acrescido dos montantes vincendos até integral realização da obra, montantes esses que no total carecem, pois, de apuramento futuro, pelo que se remetem para liquidação de sentença.

6. Ainda a Ré condenada a indemnizar a Autora do total da receita que esta deixar de auferir em consequência do encerramento do estabelecimento para realização das obras, montante esse a liquidar, também, posteriormente e/ou em execução de sentença.

7. Indemnização essa que no total deverá ser acrescida pela condenação da Ré na indemnização á Autora dos prejuízos decorrentes do encerramento definitivo do estabelecimento em consequência da eventual futura resolução contratual concretizada por não execução das obras.

8. Indemnização essa que não deixará de ser constituída no seu montante pelos valores que a Autora haja de suportar, nomeadamente restituição ao IEFP dos subsídios não reembolsáveis recebidos e acréscimos devidos, das compensações legais a atribuir aos trabalhadores por rescisão contratual, das compensações a entregar ao senhorio por incumprimento do contrato de arrendamento, e outras despesas e custos que a Autora venha a suportar e a cuja liquidação se procederá no futuro e, no limite, se remete para execução de sentença.

9. A tudo acrescendo, ainda, a condenação da Ré de indemnização à Autora pelos danos não patrimoniais sofridos, danos esses também, que se remetem para liquidação posterior, por dependerem no seu montante do destino dos pedidos subsidiários formulados.

         Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese:

         Por excepção, arguiu a caducidade, a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial devido à incompatibilidade substancial entre o pedido de resolução do contrato e o da construção de nova obra.

         Por impugnação, diz ter realizado a obra sem quaisquer vícios.

        

Replicou a Autora.

         1.2. - No saneador decidiu-se julgar procedente a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis (art.193 nº2 c) CPC) e absolver a Ré da instância:

         “Aqui chegados importa apreciar em concreto os pedidos 1 a 3 formulados pela A.

Na verdade pediu a A. a condenação da Ré a efectuar nova construção e caso a Ré não realize tal obra por qualquer motivo, seja a mesma condenada a reconhecer a resolução do contrato que celebrou com a Autora, resolução que a mesma Autora, nesse caso, pela presente via expressamente promoveu.

Daqui se retira que a A. ao mesmo tempo em que peticiona pela construção de nova obra peticiona pela mesma via a resolução do contrato.

Não olvida o Tribunal que quando em causa estejam pedidos subsidiários (ou seja quando é formulado pedido para ser tomado em  consideração somente no caso de não proceder um pedido) nos termos do disposto no art. 469.º do Código de Processo Civil, não se verificará a apontada contradição.

Sucede porém que se retira do pedido formulado, que a A. pretende a apreciação concomitante dos dois pedidos, da construção de obra nova e da resolução do contrato, na medida em que refere expressamente que nesta sede também promove a resolução do contrato.

Deste modo ao pretender pela mesma via a apreciação do pedido de obra nova e da resolução do contrato, a operar no caso de, por qualquer motivo, a Ré não construir o que seria obrigada pelo pedido formulado em 1., impõe-se a conclusão de estarmos perante pedidos substancialmente incompatíveis, na medida em que não se afigura que um dos pedidos, em sede de apreciação jurisdicional, seja subsidiário de outro. Ao invés, pretende a A. que, na mesma sede, se aprecie um e outro pedido.

Com efeito ao peticionar a construção de obra nova e, no caso de não ser tal eventual decisão cumprida no prazo a determinar, condenar-se a Ré a priori na resolução de tal contrato no caso dessa mesma decisão judicial não ser cumprida, não configuram de todo pedidos subsidiárias na noção supra-exposta.”

1.3. - Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

Não houve resposta.


II FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. - O objecto do recurso:

         A sentença recorrida justificou a ineptidão a petição inicial com a incompatibilidade substancial dos pedidos de condenação a efectuar nova construção e da resolução do contrato.

         A Apelante rejeita a incompatibilidade dizendo que os pedidos são alternativos.

         A questão submetida a recurso consiste em saber se ocorre ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis entre si (art.193 nº2 c) CPC).

         2.2.- O mérito do recurso:

         O pedido costuma qualificar-se como a pretensão do autor (art.467 CPC) para a qual requer a tutela judicial, ou seja, é o feito jurídico pretendido (pretensão processual) e, em regra, deve ser único, certo e exigível.

         O art.470 do CPC permite a cumulação de pedidos, que pressupõe a simultaneidade ou multiplicidade de pretensões, ou seja, o autor pede a satisfação ao mesmo tempo de mais de uma prestação.

         Exige-se, contudo, a compatibilidade substancial, verificando-se a incompatibilidade sempre que as prestações se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si, de tal forma que uma impeça o exercício da outra.

Como esclarece A. REIS, “duas ou mais prestações são legalmente incompatíveis quando produzem efeitos contraditórios ou sob o aspecto material ou sob o aspecto processual (…). A incompatibilidade substancial que conta para a ordem jurídica é a que resulta do facto de as pretensões produzirem efeitos jurídicos contraditórios“, exemplificando com o pedido simultâneo de anulação e cumprimento de determinado contrato (Comentário, III, pág. 154, 156).

No mesmo sentido, A. VARELA para quem “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis“ (Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 246).

         A incompatibilidade substancial de pedidos só releva para a ineptidão da petição inicial “quando coloque o julgador na impossibilidade de decidir por confrontado com a ininteligibilidade das razões que determinaram a formulação das pretensões em confronto, irrelevando, para o efeito, o antagonismo que ocorra no plano legal ou do enquadramento jurídico” (cf. Ac STJ de 6/5/2008, proc. nº 08A966; Ac STJ de 3/5/2012, proc. nº 2329/06, em www dgs.pt).

         Importa, pois, que se trate de uma verdadeira “ininteligibilidade do pensamento do autor” (M. ANDRADE, Noções Elementares, pág.178) e já não de vício de enquadramento jurídico, porque neste caso implica a improcedência.

Perante o incumprimento do contrato de empreitada, nele se incluindo o cumprimento defeituoso, o dono da obra terá, em princípio, de subordinar-se à ordem estabelecida nos arts.1221, 1222 e 1223 do CC, ou seja, (i) o direito de exigir a eliminação dos defeitos, caso possam ser supridos, (ii) o direito a uma nova construção, se os defeitos não puderem ser eliminados, (iii) o direito à redução do preço ou, em alternativa, a resolução do contrato, (iv) o direito à indemnização, nos termos gerais.

         Daqui decorre que o dono da obra não tem a liberdade de escolha entre as prestações de cumprimento (eliminação dos defeitos e obra nova) e a prestação da resolução, porque a lei impõe uma ordem preferencial ou hierárquica.

         Depois de analisar a articulação entre os diversos meios, diz, em resumo P. MARTINEZ (Cumprimento Defeituoso, pág. 448):

         “Pode, pois, concluir-se que o comprador e o dono da obra, dentro das alternativas que a lei lhes concede, na melhor das hipóteses, podem fazer, em simultâneo, um pedido principal, três subsidiários e um cumulativo. O pedido principal é o do cumprimento, que pode ser efectivado à escolha da contraparte mediante a eliminação dos defeitos ou pela entrega de uma prestação substitutiva; subsidiariamente, para a eventualidade deste pedido não ser efectivado de forma voluntária, pode ser requerida a condenação no valor correspondente à execução específica, a executar por terceiro; para a hipótese de não ser possível qualquer das pretensões de cumprimento, pode ser formulado um pedido subsidiário de resolução do contrato; admitindo-se a inviabilidade deste último pedido, pode ainda ser requerida, também por via subsidiária, a redução do preço. Por último o pedido de indemnização cumula-se com a pretensão que vier a ser aceita”.

         Por conseguinte, os direitos de redução e de resolução “são de exercício subsidiário relativamente aos direitos de eliminação dos defeitos e realização de nova construção”, e quando exercidos judicialmente devem submeter-se às regras processuais da formulação de pedidos subsidiários ou cumulativos, consoante o caso (cf. CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro, 2ª ed., pág. 152 e segs.).

         Na situação dos autos, a Autora não deduz as pretensões em simultâneo, pois não pede ao mesmo tempo a nova construção e a resolução do contrato.

Com efeito, ela pede a condenação da Ré a realizar obra nova no prazo de 90 dias ou naquele que demonstre ser necessário, e se não realizar tal obra, por qualquer motivo, pede a resolução do contrato ( “3. A não realizar a Ré tal obra por qualquer motivo, seja a mesma condenada a reconhecer a resolução do contrato que celebrou com a Autora, resolução que a mesma Autora, nesse caso, pela presente via expressamente promove”).

Nesta medida, os pedidos não são contraditórios entre si, não se excluem, visto que a Autora pretende a construção nova e só para o caso de a Ré não cumprir é que pede a resolução do contrato.

         Como qualificar este pedido?

         Não é um pedido subsidiário (art.469 CPC) pois não foi feito para a hipótese de o primeiro não proceder, e ainda que o pedido subsidiário seja por natureza sujeito a uma condição (é apreciado caso o pedido principal ou primário improceda), tal não sucede aqui, porque na formulação da Autora a condicionalidade reporta-se à própria condenação.

         Também não se reconduz a um pedido alternativo (art.468 CPC), como afirma a Apelante, porque a alternatividade pressupõe a dedução de duas ou mais pretensões disjuntivas, para apenas uma delas se efectivar. Tanto nos pedidos subsidiários, como alternativos, há uma singularidade de pretensões, já que o autor pretende valer contra o réu um dos pedidos, o que não sucede na cumulação.

O pedido, assim formulado, deve ser qualificado como um pedido incerto (porque depende da actuação futura da Ré), de condenação condicional (porque se pede a resolução, mas apenas se a Ré não fizer a obra, por qualquer motivo) e de condenação futura (não se apresenta como um direito resolutivo actual).

         O art.472 nº2 do CPC admite a chamada “condenação in futurum”, reportando-se às situações em que o autor já tem o direito, só que não é exigível, nem está vencido, mas o correspondente pedido só deve ser admissível quanto a obrigações existentes e ainda não vencidas, estando excluídas as obrigações futuras e as sujeitas a uma condição suspensiva, como é o caso.

         Por outro lado, é de rejeitar a admissibilidade das sentenças condicionais, ou seja, aquelas cuja eficácia depende de um evento futuro, sendo problemática a aceitação das sentenças de condenação condicional em que condicionado é o direito reconhecido na sentença, não sendo incerto o sentido da própria decisão.

         Mas, como decidiu o Ac STJ de 7/4/2011 (www dgsi.pt) “A lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante”.

         Contudo, uma coisa é a ilegalidade ou a falta de legitimação substantiva do pedido, outra a sua “incompatibilidade”, que aqui não se verifica.

         Procede a apelação e revoga-se a decisão recorrida, devendo prosseguir a acção.

2.3. – Síntese conclusiva:

1.- A incompatibilidade substancial de pedidos, como causa de ineptidão da petição inicial (art.193 nº2 c) CPC) pressupõe que as pretensões cumuladas produzam efeitos jurídicos contraditórios entre si, que se excluam mutuamente, de tal forma que a posição do autor se apresenta ininteligível, sendo irrelevante o errado enquadramento jurídico.

         2.- Cumulando a autora (dona da obra) o pedido de condenação da ré (empreiteira) a realizar a obra nova no prazo de 90 dias com o pedido de condenação da ré a reconhecer a resolução do contrato, se não realizar tal obra por qualquer motivo e no prazo fixado, ou seja, para o caso de não cumprir,  não há incompatibilidade substancial de pedidos.

3.- Este segundo pedido deve ser qualificado como um pedido incerto, de condenação condicional e de condenação futura (não se apresenta como um direito resolutivo actual).


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:

1)

Julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida.

2)

         Condenar nas custas a parte vencida a final.

*

         Jorge Arcanjo ( Relator)

Teles Pereira

Manuel Capelo