Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
558/11.9TNCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: PESSOA COLECTIVA
ESPECIAL ATRIBUIÇÃO
Data do Acordão: 09/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA, VARAS DE COMPETÊNCIA MISTA, 2ª S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.4º Nº 1 AL.F) DO REGULAMENTO DAS CUSTAS JUDICIAIS
Sumário: I - As especiais atribuições das pessoas colectivas são os fins ou as finalidades para a realização das quais foi formada a pessoa colectiva e que lhe conferem identidade e que as distinguem de outras pessoas no mundo das pessoas colectivas.

II – Tendo a recorrente sido formada com a finalidade de “facultar serviços ou prestações de segurança social no âmbito da população idosa na região centro do país e prioritariamente à residente no concelho de Coimbra, é esta que deve considerar-se a sua “especial atribuição” para efeitos do artigo 4º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

No despacho saneador proferido na presente acção declarativa, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo julgou improcedente a excepção de prescrição arguida na contestação pela ré A....

A ré não se conformou com esta decisão e interpôs recurso de apelação. No requerimento de interposição do recurso alegou que beneficiava da isenção de custas prevista no artigo 4º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais [RCP]. Justificava, assim, a não apresentação de documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso.

 O Meritíssimo juiz do tribunal a quo entendeu que a ré não beneficiava da isenção de custas. Em consequência, ordenou a notificação da demandada para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso. Justificou a decisão nos seguintes termos:

O artº 4º, n.º 1, al. f) do R.C.P. isenta de custas as pessoas colectivas privadas, sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável”.

“Nesta norma cabem, muito especialmente, as instituições particulares de solidariedade social que, dadas as funções altamente relevantes que desempenham na sociedade, devem beneficiar de um especial estatuto em matéria tributária”.

“Tal como refere Salvador da Costa, in “Regulamento das Custas Processuais”, anotado e comentado, 4ª ed.ª, pág 188, “a isenção em apreço é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que á comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar, pelo que lhe subjaz o desiderato de tutela do interesse público.”

“A norma sob exame faz depender a isenção subjectiva em matéria de custas, no tocante às pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, da verificação de dois pressupostos de legitimidade processual:
1. Quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais Atribuições;
2. Para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável”

“Daqui resulta desde logo que o legislador, no dispositivo legal citado, restringiu essa isenção a apenas algumas situações, donde se conclui que as referidas pessoas colectivas, não estão sempre isentas de custas”.

“Estamos, portanto, perante uma isenção de custas com características condicionais, desde logo, na medida em que somente funciona em relação a processos concernentes às suas especiais atribuições das entidades abrangidas pela isenção ou para defesa dos interesses conferidos pelo respectivo estatuto ou, ainda, pela própria lei. Nesta perspectiva, a examinada isenção não abrange, nomeadamente, as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que estas entidades celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições (cfr. ob.cit, p. 188/189; no mesmo sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 13-12- 2011, in www.dgsi.pt)”.

“Tal isenção está condicionada à actuação no âmbito das especiais atribuições da pessoa colectiva em causa ou da defesa dos seus interesses estatutários, pelo que a isenção “só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela lei” (ídem).

“Analisados os estatutos da R. “ A...” constata-se que a mesma tem como fim estatutário facultar serviços ou prestações de segurança social no âmbito da população idosa na região centro do país e prioritariamente à residente no concelho de Coimbra. Para realização destes fins propõe-se manter entre outras as seguintes actividades: lar para idosos e centro de convívio. Poderá ainda prosseguir actividades de prestação de cuidados de saúde, nomeadamente através da sua secção hospitalar “casa de Saúde de Coimbra” (cf. art.ºs

2º a 4º dos Estatutos a fls. 493”).

“Por sua vez, nos presentes autos discute-se da responsabilidade dos RR. por alegada negligência médica nos cuidados prestados ao A., sendo que relativamente à R, “ A...” a mesma é apenas demandada porque o acto médico em causa foi realizado nos serviços cirúrgicos da mesma, tendo ainda sido internado nos serviços daquela.”

“Conforme resulta da contestação da R. a sua intervenção cingiu-se à prestação de assistência hospitalar ao A. excluindo serviços médicos e cirúrgicos os quais foram contratados e suportados pela R. Estamos, portanto, perante contratos de prestação de serviços hospitalares com terceiros”.

“A sua intervenção nos presentes autos remete-nos para uma actividade acessória daquelas que fundamentam o seu estatuto de IPSS, antes reconduzindo-se a uma actividade por esta prestada para obter meios para o exercício das suas atribuições”.

“Em face do exposto, entendemos, salvo melhor opinião, que perante o objecto do processo, não obstante a qualidade da R., é manifesto que a mesma não actua, nem exclusivamente, no âmbito das suas especiais atribuições que estão expressas no respectivo estatuto, nem está em juízo em defesa dos interesses que lhe estejam por esse mesmo estatuto, ou por lei, especialmente conferidos”.

A ré não se conformou com este despacho e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a decisão recorrida por outra que desse o devido andamento ao recurso.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Ao decidir como decidiu, o despacho recorrido errou na interpretação e na aplicação das competentes normas legais, designadamente, violando o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais.
2. A recorrente encontra-se isenta de custas no presente processo, de acordo, ademais, com decisão que se não pode deixar de considerar tomada previamente nesta acção.
3. Conforme melhor resulta da declaração de registo, publicada no D.R., 3.ª série, n.º 293 (vd doc. n.º 1 junto com a contestação da ora recorrente), “a fundação tem por objectivos facultar serviços do âmbito de acção social e de saúde”;
4. É nestes mesmos termos que a ré se encontra registada como IPSS (e, por conseguinte, pessoa colectiva privada sem fins lucrativos e pessoa de utilidade pública), sendo que existe, enquanto tal, para prestar, também, cuidados de saúde, como sucede no caso presente;
5. O facto de ser actividade acessória da realização das finalidades estatutárias ou o de constituir suporte financeiro do desenvolvimento dos objectivos estatutários não afastam a actividade de prestação de cuidados de saúde ora em causa do âmbito de aplicação da sobredita isenção, antes a impõem, na justa medida em que a realização de tais fins depende e é também garantida pela dita actividade da Recorrente;
6. Nem a afasta o facto de em causa estar um contrato de “prestação de serviços hospitalares com terceiros”, “com vista à obtenção de meios para o exercício das suas atribuições”,
7. Sendo certo que é falso, rotundamente falso, que “os serviços médicos e cirúrgicos (…) foram contratados e suportados pela R.”, como o é que tal resulte da contestação da recorrente, pelo que se impõe substituir a decisão recorrida no que se refere ao suposto circunstancialismo.
8. Veja-se o caso dos contratos de prestação de serviço celebrados, seja expressa, seja tacitamente, com os utentes das respostas sociais e serviços de cuidados continuados desenvolvidos pela Recorrente no contexto das suas atribuições, no âmbito são fixadas comparticipações familiares, pagas pelos utentes e famílias pela utilização das ditas respostas sociais; essas comparticipações constituem receitas da Recorrente, destinadas à consecução dos objectivos estatutários, logo, são celebrados, também esses contratos, “com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições”, logo, são instrumentais; absurdo seria, s.m.o., que, por aplicação do raciocínio defendido no despacho em crise, uma qualquer acção que tivesse por objecto um litígio referente a tais contratos ou receitas, igualmente “obtidos para o exercício das suas atribuições”, como no caso da actividade ora em causa, fosse excluída do benefício da isenção processual de custas.
9. A prestação de serviços de saúde ora em causa insere-se ela mesma no elenco das atribuições da recorrente, encontrando-se estatutariamente consagrada como actividade destinada à prossecução dos seus fins.
10. O facto de se tratar de actividade não prestada a título principal não é, para o caso presente, relevante, pois a questão é a de saber se está ou não em causa uma actuação da recorrente “no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
11. Resposta que não pode deixar de ser afirmativa: de facto, para realizar os seus fins estatutários, a recorrente prossegue actividades de prestação de serviços de saúde, ainda que instrumentalmente.
12. E onde a lei não distingue (no caso, o artigo 4.º, n.º 1, al. f) do RCP) não deve o intérprete distinguir, muito menos quando não haja razões ponderosas que o imponham, como é o caso.
13. Desde que afectas as respectivas receitas aos fins estatutários de acção e solidariedade social e desenvolvidas por causa deles, as “actividades que concorram para a sua sustentabilidade financeira” – que, de acordo com o entendimento assente nesta matéria, estas instituições podem prosseguir, ainda que de modo secundário – devem ser abrangidas pela isenção de custas legalmente consagrada, na justa medida em que, estando em causa, como está, o exercício de “funções públicas” e de “interesse público” que “ao Estado incumbe facilitar” (citações do despacho recorrido), e não podendo este mesmo Estado oferecer os meios financeiros suficientes para garantir a prossecução das sobreditas finalidades, convidando as instituições a financiá-las através de actividades instrumentais, as mesmas não podem, certamente deste ponto de vista do apoio do estado, ser desligadas dos objectivos a que se destinam.
14. E se esses objectivos de acção social merecem tal tutela do Estado, nomeadamente por via da isenção de custas processuais, também a merecem as actividades que a instituição desenvolve para os conseguir realizar.
15. O artigo 63.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa garante que o Estado apoia a actividade e o funcionamento das IPSS com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social. E a actividade ora em causa é desenvolvida com vista à prossecução desses objectivos de solidariedade social.
16. De actos como os que constituem objecto do presente processo depende a consecução do escopo estatutário e demais interesses especialmente atribuídos à Recorrente, bem como a defesa do estatuto de utilidade pública que, enquanto IPSS, lhe pertence.
17. A interpretação ora operada do artigo 4.º, n.º 1, al. f), do RCP está em violação manifesta do dito preceito da Lei Fundamental, sendo inconstitucionalmente restritiva e ilegítima, porquanto recusa o preceituado apoio do Estado no âmbito da prossecução de finalidades que a própria CRP elege.
18. Estão verificados os requisitos para a respectiva aplicação, pelo que é manifesto que a recorrente actua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições e para defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto e nos termos de legislação que lhe é aplicável.
19. Sem conceder, a decisão ora proferida sempre seria inadmissível por extemporânea e contrária a decisão anterior sobre a mesma matéria.
20. A isenção de custas foi oportunamente alegada na contestação da recorrente, o que justificou a sua intervenção no processo sem proceder ao pagamento de taxa de justiça (que, de outra forma, lhe seria exigida), desta forma se conformando, ademais, a actividade processual da ré.
21. A matéria da isenção de custas foi apreciada e decidida, ainda que tacitamente, no sentido de estar a ora recorrente isenta, pois que, de outra forma, ter-lhe-ia sido exigido, nos termos do disposto no art. 486.º-A, n.º 3, do CPC, o pagamento de taxa de justiça considerada devida pela apresentação em juízo daquele articulado, e, bem assim, teria sido notificada de decisão que pudesse impugnar no tempo próprio.
22. O que não aconteceu.
23. Não podendo tal deixar de ser entendido como tendo havido decisão sobre a isenção, favorável à ré, sob pena de imposição de uma intolerável insegurança e incerteza à parte que invoca o benefício da isenção.
24. Não pode, pois, o tribunal vir agora pôr em causa uma decisão anterior no âmbito da presente e mesma acção, exigindo, para efeitos de interposição de recurso, o pagamento de taxa de justiça, contrariamente à decisão tomada, para efeitos de apresentação da contestação, e contra qualquer expectativa legítima da ré.
25. Com efeito, se está isenta de custas no âmbito, geral, da acção, não lhe pode ser exigido o pagamento de taxas de justiça no âmbito da mesma, para mais com o fundamento de que não está isenta de custas,
26. Pois que qualquer acto ou impulso processual da ré no contexto do presente processo está naturalmente abrangido pelo regime da isenção de custas, nos termos legalmente previstos, decidida no presente processo.
27. Esta é, pois, questão que ficou ultrapassada, não havendo lugar à respectiva reapreciação (pois que é disso que se trata) em sede de interposição de recurso.
28. Foi agora notificada a recorrente para proceder ao pagamento, para além da taxa de justiça alegadamente devida, de multa pela omissão da junção aos autos do comprovativo do pagamento da taxa de justiça alegadamente devida;
29. Sem prejuízo da matéria alegada quanto à inexistência da obrigação de pagar taxas de justiça, sucede que, alegada a isenção de custas em 30-05-2011, por ocasião da contestação, e, interposto recurso relativo ao despacho saneador, em 01-10-2012, sem que até àquela data tivesse sido posta em causa a isenção (e não podendo mesmo deixar de se considerá-la decidida a favor da Ré, nos termos invocados), é ilegítimo e abusivo vir o tribunal exigir multa pelo não pagamento de taxa de justiça.
30. De facto, a multa ora notificada pressupõe, naturalmente, o conhecimento (ou a obrigação de conhecer) do dever do pagamento da taxa de justiça.
31. Ora, se invocada expressamente a isenção, esta não foi posta em causa até à data da interposição do recurso, havia fundada e legítima expectativa da recorrente de que estava isenta.
32. Assim, sem conceder, a considerar-se a recorrente não isenta de custas, hipótese que por mera facilidade de raciocínio se coloca, sempre se mostraria indevidamente exigido o pagamento de multa directamente decorrente da falta de pagamento de taxa de justiça.
33. De todo o exposto resulta que da ora recorrente não pode ser legitimamente exigido o pagamento de taxa de justiça (ou qualquer multa) pela interposição do recurso, contrariamente ao decidido pelo despacho em crise.

O Ministério Público respondeu ao recurso, alegando na resposta que concordava no essencial com a decisão recorrida.


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A exposição acabada de efectuar mostra que a principal questão suscitada pelo recurso é a de saber se a decisão recorrida, ao julgar que a ré recorrente não estava isenta de custas, violou o artigo 4º, n.º 1, alínea f), do RCP, e o artigo 63º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa [CRP].

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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos descritos no relatório do presente acórdão e ainda pelos seguintes:
1. A ré é uma instituição particular de segurança social, sob a forma de fundação de solidariedade social.
2. Nos termos do artigo 1º dos seus Estatutos tem por objectivo principal facultar serviços ou prestações de segurança social no âmbito da população idosa na região centro do país e prioritariamente à residente no concelho de Coimbra.
3. Nos termos do artigo 3º dos seus Estatutos, para a realização daqueles objectivos propõe-se manter-se manter entre outras as seguintes actividades: a) Lar para idosos; b) Centro de Convívio.
4. Nos termos do parágrafo único do artigo 3º dos seus Estatutos, “poderá ainda prosseguir actividades de prestação de cuidados de saúde, nomeadamente através da sua secção hospitalar Casa de Saúde de Coimbra”.  

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Passemos à resolução da questão supra enunciada.

Como resulta da transcrição das conclusões do recurso, no centro da argumentação da recorrente está a interpretação do artigo 4º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro.

O artigo 4º do RCP estabelece o elenco e o regime de isenções de custas processuais.

O n.º 1 prevê as isenções subjectivas. Note-se que não se trata de isenções subjectivas puras, visto que não são estabelecidas exclusivamente em função das entidades que são partes nos processos. O n.º 1 isenta certas entidades do pagamento das custas, mas condiciona a isenção à natureza das questões, dos direitos e dos interesses ou da relação material que é objecto do processo.

O n.º 2 prevê, por seu turno, as isenções objectivas, ou seja, os processos que não estão sujeitos a custas. Constitui um desvio à regra geral enunciada no artigo 1º, n.º 1 do RCP, segundo a qual “todos os processos estão sujeitos a custas…”.

Considerando a dicotomia acabada de fazer, a alínea f) do n.º 1 do artigo 4º estabelece uma isenção subjectiva de custas. Isenção que é estabelecida a favor das “pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos”.

No presente recurso não se discute se a ré, ora recorrente, é uma pessoa colectiva privada sem fins lucrativos. A decisão recorrida reconheceu-lhe acertadamente esta qualidade. Com efeito, uma vez que está provado documentalmente que a ré é uma instituição particular de solidariedade social, que reveste a forma de fundação de solidariedade social, e que as instituições particulares de solidariedade social são pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos [neste sentido se pronuncia Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, página 302], é isento de dúvida que a ré cabe no círculo das pessoas abrangidas pela isenção prevista pela norma acima transcrita.

Sucede que, nos termos da citada alínea, as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos estão isentas de custas “quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.

Vê-se da norma acabada de transcrever que o benefício da isenção é reconhecido às pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos desde que:

1. Actuem, no processo, exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições; ou

2. Actuem, no processo, “para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.

Qualquer actuação no processo fora destas condições não beneficia da isenção de custas.

O que está em causa no presente recurso é saber se a ré actua no presente processo “exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições”.

A divergência da recorrente em relação à decisão recorrida provém do facto de os Estatutos assinalarem à ré dois objectivos, um principal e um secundário.   

O objectivo principal da ré é facultar serviços ou prestações de segurança social no âmbito da população idosa na região centro do país e prioritariamente à residente no concelho de Coimbra” [artigo 2º dos Estatutos].

Os Estatutos permitem ainda à ré prosseguir actividades de prestação de cuidados de saúde, nomeadamente através da sua secção hospitalar “Casa de Saúde de Coimbra” [parágrafo único do artigo 3º dos Estatutos].

Ora, enquanto a decisão recorrida entendeu que, para efeitos da alínea f), do artigo 4º do RCP, a única actividade da ré que cabia no âmbito das suas “especiais atribuições” era a dos “serviços e das prestações de segurança social no âmbito da população idosa”, a recorrente entende que no âmbito das suas especiais atribuições cabem também “as actividades de prestação de cuidados de saúde”.

Este entendimento apoia-se, em síntese, na seguinte linha argumentativa:
1. Embora não se trate da actividade principal da ré, na prestação de cuidados de saúde também está em causa uma actuação da recorrente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhe seja aplicável;
2. Devem ser abrangidas pela isenção de custas, as actividades da pessoa colectiva privada sem fins lucrativos que concorram para a sustentabilidade financeira delas, pois tanto merece tutela a acção social das pessoas colectivas como as actividades desenvolvidas por elas para conseguir realizar a acção social;
3. O artigo 63º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, ao garantir que o Estado apoia a actividade e o funcionamento das Instituições particulares de segurança social com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social, garante também as actividades, como a que está em causa nos autos [prestação de cuidados de saúde] pois dela depende a consecução do escopo estatutário e demais interesses especialmente atribuídos à recorrente, bem como a defesa do estatuto de utilidade pública que, enquanto IPSS, lhe pertence.

Pese embora o respeito que nos merece a alegação da recorrente, a mesma não tem apoio legal.

Como é sabido, a toda a constituição de pessoas colectivas preside um fim [artigos 167º, n.º 1 e 186º, n.º 1, ambos do Código Civil]. Como escreve António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2ª Edição, 2007, Almedina, página 628, o fim tende a “ser considerado o seu factor fundamental”, pois é o fim da pessoa colectiva que vai determinar: “a sua idoneidade e, sendo o caso, o seu reconhecimento”; “a sua capacidade, em função do princípio da especialidade”; “o eventual reconhecimento da utilidade pública”; “o tipo de actuação requerido aos titulares dos seus órgãos”; as coordenadas de interpretação dos estatutos”. 

Ora, as atribuições de uma pessoa colectiva são precisamente os fins ou as finalidades por ela prosseguidas. As especiais atribuições são os fins ou as finalidades para a realização das quais foi formada a pessoa colectiva e que lhe conferem identidade e que as distinguem de outras pessoas no mundo das pessoas colectivas. É com este sentido, por exemplo, que o artigo 51º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 da Lei n.º 24/2012, de 9 de Julho, que aprovou a Lei-Quadro das Fundações, fala das “atribuições” das fundações públicas.

Logo, as atribuições da ré são as finalidades que ela prossegue; as especiais atribuições são as finalidades que levaram à sua formação; são os objectivos que lhe conferem identidade e que concorrem para a distinguir de outras pessoas colectivas.

Assim, uma vez que a ré foi formada com a finalidade de “facultar serviços ou prestações de segurança social no âmbito da população idosa na região centro do país e prioritariamente à residente no concelho de Coimbra, é esta que deve considerar-se a sua “especial atribuição”.

É certo que os seus Estatutos também lhe permitem prosseguir actividades de prestação de cuidados de saúde. A ré não foi, no entanto, formada para prestar cuidados de saúde. E assim, embora seja certo que os rendimentos provenientes da prestação de serviços constituem receitas da ré [artigo 6º, alínea c), dos Estatutos], que utilizará certamente para desenvolver a acção de segurança social, não é a prestação de cuidados de saúde que define a ré como instituição particular de solidariedade social; não é a prestação de cuidados de saúde que lhe dá especificidade no contexto das pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos. Os fins ou os objectivos que a definem como instituição particular de solidariedade social são os serviços e as prestações de segurança social no âmbito da população idosa. A prestação de cuidados de saúde não é, pois, uma especial atribuição da ré, enquanto instituição particular de solidariedade social. Tanto não é que, no caso de a ré deixar de exercer a actividade de cuidados de prestação de saúde, continuará como instituição particular de solidariedade social. Porém, já deixará de o ser se deixar de facultar serviços ou prestações de segurança social no âmbito da população idosa.

Diga-se que a actividade de prestação de cuidados de saúde, embora prosseguida pela ré, enquanto instituição particular de segurança social, não está sujeita ao regime do Decreto-lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto das Instituições Particulares de Segurança Social [IPSS]. Com efeito, se o n.º 2 do artigo 1º do referido Estatuto permite que as instituições particulares de solidariedade social prossigam de modo secundário outros fins não lucrativos, além dos que lhes são próprios, desde que com aqueles sejam compatíveis, o n.º 3 do mesmo preceito estabelece que o regime estabelecido no diploma não se aplica às mesmas instituições em tudo o que respeite exclusivamente aos fins secundários das IPSS.

Em síntese, o entendimento da decisão recorrida segundo o qual, para efeitos da alínea f), do n.º 1 do artigo 4º do RCP, a única actividade da ré que cabia no âmbito das suas “especiais atribuições” era a dos “serviços e das prestações de segurança social no âmbito da população idosa” é a melhor que se ajusta à letra do preceito.

É também o entendimento que melhor se ajusta ao pensamento legislativo. Vejamos.

Uma das linhas de orientação da reforma das custas processuais efectuada pelo RPC aprovado pelo Decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro consistiu na “reavaliação do sistema de isenção de custas”. Com o novo regime procurou-se, para utilizarmos as palavras do preâmbulo do diploma atrás citado, “proceder-se a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenções”.

Ora, em relação às instituições particulares de segurança social, basta compararmos o regime anterior ao RCP com o regime saído deste Regulamento para se concluir que houve uma redução do âmbito da isenção de custas. Com efeito, no domínio do Código das Custas Judiciais anterior ao RCP [Código das Custas Judiciais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro de 2003], estava prevista expressamente a isenção de custas para as instituições particulares de solidariedade social [artigo 2º, n.º 1, alínea c)]. E estava prevista sem quaisquer condições. E assim, qualquer que fosse a questão que estivesse em discussão no processo, as instituições particulares de segurança social estavam isentas de custas. Na passagem do CCJ para o RCP, a lei, além de integrar a isenção de custas em benefício das IPSS nas isenções previstas para pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, deixou de definir a isenção de custas destas pessoas em função de um critério exclusivamente subjectivo. A isenção das custas passou a estar dependente da relação do objecto do litígio com as “especiais atribuições” da pessoa colectiva ou com “a defesa dos interesses que lhe são especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.

Foi por objecto do litígio não respeitar às “especiais atribuições” da pessoa colectiva que:
1. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Janeiro de 2013, publicado no sítio www.dgsi.pt, proferido no processo n.º 1140/11.6TTMTS decidiu que a isenção de custas prevista na alínea f), do n.º 1 do artigo 4º do Regulamento das Custas processuais não abrangia as acções declarativas emergentes de contrato de trabalho interpostas contra uma IPSS com vista ao reconhecimento de créditos decorrentes da relação laboral que existiu entre ela e uma trabalhadora (A.)
2. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-12-2011, proferido no processo n.º 68/08.1TTCBR, publicado no mesmo sítio, decidiu que a isenção prevista na alínea f), do n.º 1 do artigo 4º do RCP estava condicionada à actuação no âmbito das especiais atribuições da pessoa colectiva em causa ou da defesa dos seus interesses estatutários, pelo que a isenção “só funcionava em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela lei” (ídem) e que não cabiam, assim, na previsão normativa “as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições”.
3. O acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28-12-2012 proferido no processo n.º 3892/11.4TBPTM publicado no mesmo sítio decidiu que a isenção não se verificava quando, em concreto, a Instituição pretende impugnar as coimas que lhe foram aplicadas pela prática de contra-ordenações ambientais, se os interesses subjacentes à protecção dessas contra-ordenações não constam dos seus estatutos ou da lei.

E foi por o objecto do litígio não estar relacionado com “a defesa dos interesses que lhe são especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável” que o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 14-03-2013, no processo n.º 01166/12, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “de acordo com as disposições articuladas das alíneas f) e h) do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais e do artigo 310º/3 do Regime do Contrato de Trabalho na Função Pública, aprovado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, os sindicatos, quando litigam em defesa colectiva dos direitos individuais dos seus associados, só estão isentos de custas se prestarem serviço jurídico gratuito ao trabalhador e se o rendimento ilíquido deste não for superior a 200 UC.

Interpretando o artigo 4º, n.º 1, alínea f), do RCP com o sentido e o alcance expostos, é bom de ver que a pretensão da recorrente de lhe ser reconhecida isenção de custas está votada ao fracasso.

Na verdade, apesar da controvérsia entre o autor e a ré quanto aos exactos contornos da actividade desta última que está sob julgamento nos presentes autos, é, no entanto, isento de dúvida que a actividade em causa diz respeito à prestação de cuidados de saúde. Actividade que, como escrevemos mais acima, não cai no âmbito das suas “especiais atribuições”.

A favor da isenção de custas da recorrente e contra a decisão recorrida não vale a alegação de que a interpretação que esta fez do artigo 4º, n.º 1, alínea f) viola o artigo 63º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. Diz a recorrente que este preceito constitucional, ao garantir o apoio do Estado à actividade e ao funcionamento das IPSS com vista à prossecução dos objectivos de solidariedade social, tanto garante o apoio às acções de solidariedade social como às acções que a instituição desenvolve para as conseguir realizar, o que era o caso da actividade da recorrente com a prestação de cuidados de saúde.

É certo, como afirma a recorrente, que o n.º 5 do artigo 63º da CRP, ao dispor que o Estado apoia, nos termos da lei, a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, no artigo 63º, na alínea b), do n.º 2 do artigo 67º [protecção da família], no artigo 69º [infância], na alínea e), do n.º 1 do artigo 70º {aproveitamento dos tempos livres] e nos artigos 71º e 72º [respectivamente cidadãos portadores de deficiência e terceira idade], impõe ao Estado o dever de apoiar a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social. É igualmente certo que uma das formas que pode revestir esse apoio é a de conceder isenção de custas nos litígios relativos às acções de solidariedade social.

No que não se acompanha a recorrente é na interpretação do n.º 5 do artigo 63º do CRP no sentido de que dele resulta para o Estado um dever de conceder isenção de custas às instituições de solidariedade de segurança social, mesmo nos litígios em que estejam em causa actividades das instituições que não dizem respeito à solidariedade social.    

Conclui-se, assim, que a decisão recorrida, ao interpretar o artigo 4º, n.º 1, alínea f), no sentido acima indicado, não violou o disposto no artigo 63º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Para a hipótese de este tribunal não acolher a interpretação do artigo 4º, n.º 1, alínea f), no sentido por si sustentado, a recorrente pediu a revogação da decisão recorrida com a alegação de que ela seria extemporânea e contrária a decisão anterior sobre a mesma matéria. Segundo a recorrente, a extemporaneidade e a contrariedade provinham do seguinte. Uma vez que a recorrente alegou na contestação que estava isenta de custas e que lhe não foi exigido o pagamento de taxa de justiça pela apresentação da contestação, nos termos do artigo 463º-A do CPC, formou-se, pelo menos tacitamente, decisão no sentido de a recorrente estar isenta de custas, pelo que, sob pena de intolerável insegurança e incerteza, não poderia vir agora o tribunal pôr em causa a decisão anterior e exigir para efeitos de interposição do recurso o pagamento de taxa de justiça.

Pese embora o respeito que merece esta alegação, ela não tem cobertura legal.

Antes de mais, importa dizer que é certo ter a ré, ora recorrente, alegado na contestação [artigo 2º] que estava isenta de custas ao abrigo do artigo 4º, n.º 1, alínea f), do RCP e que, embora não haja prova nestes autos de recurso de que a ré não pagou taxa de justiça pela apresentação da contestação, irá laborar-se neste pressuposto para efeitos de apreciação da alegação da recorrente.

Sucede que, ao alegar nos termos acima expostos, a recorrente argumenta como se o Código de Processo Civil ou o Regulamento das Custas Processuais contivessem norma ou princípio dos quais resultasse que, quando a parte alegar que está isenta de custas e não juntar documento comprovativo do pagamento de taxa de justiça e quando a secretaria também a não notificar para efectuar o pagamento da taxa acrescida de multa, forma-se decisão tácita no sentido de julgar a parte isenta de custas.

Sucede que não há norma ou princípio do qual resulte esta solução. A realidade processual que deve ser tomada em conta é a seguinte. Quando o Meritíssimo juiz do tribunal a quo se pronunciou sobre a isenção de custas, não havia decisão sobre esta questão. E como não havia, não tem cabimento a alegação de que a decisão recorrida pôs em causa uma decisão anterior sobre isenção de custas, como nem tem cabimento a alegação de que a questão de custas estava ultrapassada e que lhe não podia ser exigida o pagamento de taxa de justiça devida pela interposição do recurso.

Por último, alega a recorrente que, mesmo que se considerasse que ela não está isenta de custas, era ilegítimo e abusivo exigir multa pelo não pagamento da taxa de justiça.

Ao alegar nos termos acabados de expor, a recorrente argumenta como se a decisão recorrida tivesse ordenado o pagamento de multa, além da taxa da justiça. Labora, no entanto, em erro, uma vez que a decisão recorrida limitou-se a ordenar a notificação da ré para pagar a taxa de justiça. Foi a secretaria quem, ao cumprir o despacho, notificou a ré ora recorrente para pagar a taxa de justiça acrescida de multa.

Sucede que o que é objecto de recurso é a decisão proferida pelo tribunal a quo e não o acto da secretaria. Dos actos dos funcionários da secretaria reclama-se para o juiz de que aquele depende funcionalmente [n.º 5 do artigo 161º do Código de Processo Civil].

Pelas razões expostas não se conhece da questão de saber se era ilegítimo e abusivo exigir multa pelo não pagamento da taxa de justiça.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.


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      As custas do recurso serão suportadas pela ré recorrente.

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Emídio Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria Domingas Simões