Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/14.0T9FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
FALTA DE TIPICIDADE
NULIDADE
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
DEFICIENTE SISTEMATIZAÇÃO DO RAI
Data do Acordão: 12/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (CASTELO BRANCO – INST. LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), 287.º, N.º 2, E 359.º DO CPP
Sumário: I - Se o requerimento para abertura da instrução não cumpre as exigências da alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do CPP, concretamente a descrição dos elementos típicos – objetivos e/ou subjetivos – do crime, pelo qual se pretende a pronúncia do arguido, não pode o problema reconduzir-se ao instituto da alteração substancial, previsto no artigo 359.º do CPP, devendo, antes, situar-se na atipicidade da conduta descrita.

II - Com efeito, o regime da alteração substancial dos factos pressupõe que a matéria narrada na acusação do Ministério Público, do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, contenha factos suficientes à afirmação do crime, redundando aquela, para o que ora importa, na imputação de um crime diverso.

III - Sendo o caso de inexistência de comportamento típico, não há que falar em nulidade – vício reservado às omissões insuscetíveis de comprometer a tipicidade [objetiva e subjetiva do ilícito] -, antes em inexequibilidade, por falta de objeto da instrução.

IV - Se é desejável que as menções a que se reporta o n.º 2 do artigo 287.º do CPP venham tratadas/colocadas de forma ordenada, permitindo, assim, maior facilidade na respetiva abordagem, a deficiente sistematização não pode fundamentar a rejeição do requerimento para abertura da instrução.

V - Assim é, desde logo, por a rejeição, nesse quadro, não encontrar respaldo em qualquer norma; depois, por se assistir a uma evidente desproporção entre, por um lado, o mal decorrente de uma menos cuidada arrumação e, por outro, a consequência que daí se retira para o assistente, impedindo-o, em termos definitivos, de submeter a decisão de arquivar o inquérito a comprovação judicial; desproporcionalidade essa tanto mais clamorosa quanto o nível de esforço de compreensão que o requerimento exige; no caso, diminuto.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 24/14.0T9FND, da Comarca de Castelo Branco, Castelo Branco – Inst. Local – Secção Criminal – J1 - em que como arguido figura A... e assistentes são B... , C... , D... , E... , F... e G... – finda a fase de inquérito, o Ministério Público, por entender não terem resultado apurados indícios suficientes de se ter verificado os denunciados crimes de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º, 184º e 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal, ao abrigo do artigo 277.º, n.º 2, do CPP, determinou o arquivamento dos autos.

2. Requereram, então, os assistentes a abertura da fase de Instrução, a qual, «por ser legalmente inadmissível», veio a ser rejeitada por despacho de 04.06.2015.

3. Inconformados, recorreram os assistentes, extraindo as seguintes conclusões:

1. O presente recurso, como se refere em sede de motivação, vem interposto quanto à matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 412º do C.P.P.

2. A MM.ª Juiz do Tribunal a quo proferiu despacho em que decidiu “rejeitar por ser legalmente inadmissível, o requerimento para abertura de instrução” apresentado pelos Assistentes ora Recorrentes.

Entendendo o Tribunal a quo que “analisado o referido requerimento para abertura de instrução (…) verifica-se que do mesmo não consta uma descrição clara, ordenada e suficiente dos factos imputados ao arguido” bem como que “o requerimento de abertura da instrução agora apresentado não obedece ao que se estatui no citado artigo 287º, nº 2 do CPP, sendo manifesto que, contrariamente ao exigido no artigo 283º, n.º 3, als. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara, ordenada e suficiente – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários para dar como preenchidos todos os elementos típicos do ilícito penal em causa”.

Concluindo assim que o requerimento para abertura de instrução apresentado pelos ora Recorrentes “é nulo, sendo que a falta de objeto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objeto; tudo implicando que seja parcialmente rejeitado, nos termos do art.º 287º, nº 3 do CPP, por inadmissibilidade legal da instrução

3. Os Recorrentes discordam do douto despacho recorrido e não se podem conformar com o mesmo, nomeadamente, por entenderem que:

i) desde logo, não podia a MM.ª Juiz a quo pronunciar-se sobre a nulidade do Requerimento de abertura de instrução (doravante designado abreviadamente por RAI) uma vez que tal nulidade, dependente de arguição, a existir efetivamente, no que não se concede, não foi arguida;

ii) o RAI apresentado pelos Assistentes não está ferido de nulidade e obedece a todos os requisitos previstos nos arts. 287º e 283º do CPP.

4. Ainda que se entendesse, no que não se concede, que o RAI de fls. junto aos autos está ferido de nulidade por “não conter uma descrição clara, ordenada e suficiente dos factos imputados ao arguido”, tal nulidade não é uma nulidade insanável estando a mesma dependente de arguição. Arguição, essa, que não existiu.

5. O art.º 119.º do CPP, que enumera as nulidades insanáveis, não se refere à nulidade do requerimento de abertura de instrução estipulando o art.º 120.º, n.º 1 daquele código que “qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados”.

6. Pelo que estava vedado ao MM.º Juiz a quo declarar a nulidade do RAI de fls.

7. Nulidade essa que, todavia, não existe, sendo certo que o RAI junto aos autos não enferma de qualquer nulidade.

8. Na verdade, o mesmo contém todos os elementos a que se refere o art.º 287.º, n.º 2 do CPP, contendo, nomeadamente, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, quer quanto aos elementos objetivos quer quanto aos elementos subjetivos do tipo de crime, a indicação das disposições legais aplicáveis e a indicação dos atos de instrução que os requerentes pretendem que sejam levados a cabo.

9. Contendo o RAI apresentado pelos Recorrentes e que aqui se dá por integralmente reproduzido, a factualidade concreta necessária para poder permitir ao Juiz de instrução fundamentar uma decisão de pronúncia.

10. Os Recorrentes identificam o Arguido e identificam a sua conduta, ou seja, alegam todos os factos relativos ao dia, hora, local e circunstâncias em que o Arguido proferiu as expressões “estão sentados entre nós seis cabrões, gente ordinária …, desorientada, gente sem valores …”, bem como “graças a Deus não preciso de me relacionar com bandidos mas também não sou obrigado a trabalhar com eles. Não vou trabalhar com eles. Há aqui gente que não tem lugar nesta casa” e “com cabrões eu não trabalho”.

11. Identificando assim a autoria dos factos que invocam bem como os elementos de facto que em concreto permitem concluir pela existência dos crimes de injúria praticados pelo Arguido contra os Assistentes.

12. Assim como alegam que o Arguido agiu de forma consciente e livre ao dirigir-lhes as expressões acima mencionadas; identificam as normas incriminadoras de tal conduta; relatam de forma detalhada os motivos da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento e requerem várias diligências de prova a realizar em sede de instrução.

13, Os ora Recorrentes carrearam assim para a instrução todos os elementos necessários para que fosse possível ao Juiz de instrução proferir despacho de pronúncia (ou, em abstrato, de não pronúncia, no que não se concede).

14. Tendo concluído pedindo a pronúncia do Arguido pela prática de seis crimes de injúria agravada p. e p. pelos artigos 181º, 184º e 132º, nº 2 al. l) do CP.

15. Com efeito, no RAI de fls. os Recorrentes alegaram nos artigos 34º a 40º, 42º a 45º, 48º a 58º, 10º, 11º e 14º daquele articulado e que aqui se dão por reproduzidos, todos os factos necessários para que possa dar-se como preenchidos todos os elementos típicos do ilícito penal em causa.

16. Pelo que entendem os Recorrentes que o RAI junto aos autos não enferma de nulidade.

17. Estando alegados factos integradores dos crimes imputados ao Arguido e indicados os factos relativos aos tipos subjetivo e objetivo do ilícito criminal.

18. Pelo que, deve o despacho recorrido ser revogado e mandado substituir por outro que declare aberta a instrução e ordene a realização das diligências de prova requeridas.

Nestes termos, nos melhores de direito aplicáveis e nos que doutamente forem supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso com as legais consequências, porque assim se fará Justiça.

4. Por despacho exarado a fls. 241, foi o recurso admitido, fixado o respetivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

1. O tribunal “a quo” rejeitou liminarmente o requerimento de abertura da instrução, apresentado pelos assistentes B... , C... , D... , E... , F... e G... , com fundamento em inadmissibilidade legal, por falta de descrição concreta dos factos a imputar ao arguido.

2. Bem andou a Mm.ª JIC ao rejeitar tal requerimento de abertura da instrução, uma vez que do mesmo não constam os factos consubstanciadores quer dos elementos objetivos quer subjetivo do crime que se pretende imputar ao arguido.

3. Tal aditamento de factos não pode ser feito pelo JIC, pelo Juiz do julgamento ou pelos próprios assistentes em momento posterior ao requerimento para a abertura da instrução, como se alcança dos acórdãos uniformizadores de jurisprudência do STJ 7/2005 e 1/2015.

4. Para além do mais, permitir-se a correção do requerimento de abertura de instrução aos assistentes, ainda que por via de recurso, seria violador de garantias, constitucionalmente consagradas, também do arguido.

5. Pelo que, por não haverem sido violados quaisquer preceitos legais, é nosso entendimento dever ser negado provimento ao recurso ora apresentado e confirmada, pois, a douta decisão recorrida.

V. Exas, Senhores Juízes Desembargadores, no entanto, decidirão e farão Justiça.

6. Remetidos os autos à Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual consignou: «Analisando o RAI apresentado pelos assistentes, parece-me que nele resulta suficientemente identificado o arguido e que os factos alegados nos números 7, 8, 9, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, descrevem o elemento objetivo e subjetivo do crime de injúria que são imputados ao arguido A... , embora integrados nas razões que alega sobre a discordância em relação ao despacho de arquivamento, indicando as provas recolhidas e as que pretende ver realizadas durante a instrução, pelo que me parece que satisfaz minimamente as exigências previstas nos artigos 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do CPP», pronunciando-se, assim, no sentido de o recurso merecer provimento.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve reação.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

       De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço insurge-se o recorrente contra a decisão recorrida já enquanto conheceu de nulidade relativa nunca suscitada, já enquanto considerou não conter o requerimento para abertura da instrução a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho recorrido:

Findo o inquérito em 30.04.2015, foi proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público.

Os assistentes apresentaram requerimento para abertura de instrução, a folhas 180 e seguintes, para o qual se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

Cumpre apreciar.

Dispõe o n.º 2 do art. 287.º do Código de Processo Penal que:

“O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º. Não podem ser indicados mais de 20 testemunhas”

Com efeito, o requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a atividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objeto da decisão instrutória, nos exatos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz. Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objeto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos suscetíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual se pretende essa pronuncia.

A estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da atividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Acresce que as deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito.

A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência por acórdão de 12.05.2005 (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no D.R. – I Série A de 04.1.2005) nos termos seguintes:

“Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do Código de processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Já no que concerne às consequências da inobservância do preceituado no art. 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no art. 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do mesmo diploma legal.

Pelo que, além de inviabilizar, objetivamente, a possibilidade de realização da instrução (art. 309.º do Código de Processo Penal), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento – por não conter a narração de factos que fundamentam a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado art. 283.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Código de processo Penal -, implica a sua nulidade, tornando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do art. 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, onde dispõe que “o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

A inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito da assistente a deduzir acusação através desse requerimento – como referido no acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001: “(…) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização – uma considerável afetação das garantias de defesa do arguido”. Ainda segundo este aresto: “(…) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efetivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito”.

Posto isto, importa ter em consideração os elementos objetivos, e sobretudo os elementos subjetivos, que integram os crimes pelos quais os assistentes pretendem ver o arguido pronunciado nestes autos: seis crimes de injúrias agravadas, previstas e punidas pelos arts. 181.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal.

Ora, analisado o referido requerimento para abertura de instrução, para o qual se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido, verifica-se que do mesmo não consta uma descrição clara, ordenada e suficiente dos factos imputados ao arguido.

O requerimento de abertura de instrução agora apresentado não obedece ao que se estatui no citado art. 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sendo manifesto que, contrariamente ao exigido no art. 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do mesmo diploma legal, não contém descrição clara, ordenada e suficiente – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos do ilícito penal em causa.

Em face disso, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelos assistentes não contém a descrição clara e ordenada de todos os factos suscetíveis de responsabilizar criminalmente o arguido pelos crimes que lhe são imputados, abstratamente, pelos assistentes.

Por conseguinte, tal requerimento é nulo, sendo que a falta de objeto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objeto; tudo implicando que seja parcialmente rejeitado, nos termos do art. 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução.

Decisão:

Pelo exposto, e nos termos das normas legais acima citadas, decido rejeitar, por ser legalmente inadmissível, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelos assistentes, a folhas 180 e seguintes.

(…).

3. Apreciação

Insurgem-se os assistentes/recorrentes contra a decisão de rejeição do requerimento para abertura da instrução, já porque incluiria, o mesmo, todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes em questão, já porque sempre teria o tribunal conhecido de nulidade – no caso sanável – nunca arguida nos autos.

Vejamos, pois, quais os fundamentos que estiveram na base da referida rejeição.

A este título, de relevante, identificam-se as seguintes passagens do despacho recorrido: (i) «Ora, analisado o referido requerimento para abertura de instrução, para o qual se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido, verifica-se que do mesmo não consta uma descrição clara, ordenada e suficiente dos factos imputados ao arguido»; (ii) «O requerimento de abertura de instrução agora apresentado (…), não contém a descrição clara, ordenada e suficiente (…) dos factos necessários a dar como para dar como preenchidos todos os elementos típicos do ilícito penal em causa»; (iii) «(…) o requerimento para abertura de instrução apresentado pelos assistentes não contém a descrição clara e ordenada de todos os factos suscetíveis de responsabilizar criminalmente o arguido pelos crimes que lhe são imputados, abstratamente, pelos assistentes» - [negritos nossos].

Modo de fazer que não pode escapar à crítica da vaguidade em que incorre, quedando-se por asserções genéricas, dispensando-se do exercício, sempre exigível na confeção de uma peça que se pretende esclarecedora, de concretização, tanto mais que, recorrentemente, condensa três patologias, as quais, a verificarem-se, afigura-se-nos carecem ser distinguidas, isto é não parece deverem equivaler-se para o sentido da decisão a proferir.

Com efeito, uma descrição menos clara e ordenada, mas ainda assim percetível e identificável, não há-de conduzir ao mesmo desfecho da ausência de narração dos factos que encerram os elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico em questão.

Deixado o reparo, não resta senão fazer incidir a análise sobre o requerimento para abertura de instrução e, assim, aferir do bem, ou mal, fundado da decisão, não sem que antes, contudo, se deixe as linhas mestras que dominam na matéria.

Que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a uma forma especial resulta claro da primeira parte do n.º 2, do artigo 287º do CPP.

Não obstante, deve obedecer a vários requisitos de conteúdo que vem enunciados na dita norma, a saber:

(i) a enunciação “em súmula” das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação;

(ii) a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende ver levados a cabo, bem como dos meios de prova que não hajam sido considerados no inquérito e ainda dos factos que, através de uns e outros, o requerente espera provar.

Sendo o requerimento apresentado pelo assistente tem o mesmo, igualmente, de observar (iii) o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do CPP.

Donde, com propriedade, se pode afirmar que o requerimento do assistente deve conformar materialmente uma acusação [artigo 287º, n.º 2, parte final], impondo-se-lhe que contemple os elementos enunciados nas referidas alíneas do n.º 3 do citado artigo 283º, isto é “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”, e bem assim “A indicação das disposições legais aplicáveis”.

O requerimento de abertura de instrução vale, neste caso, como uma verdadeira acusação, sendo através dele que se define o thema probandum em termos de não poder o tribunal, sob pena de nulidade [artigo 309.º do CPP], vir a pronunciar o arguido por factos diferentes daqueles que constam do mesmo, uma vez que tal se traduziria numa alteração substancial, aspeto que encontra justificação desde logo no direito de defesa, o qual, para ser exercido de forma eficaz, implica o conhecimento concreto e preciso daquilo que se lhe imputa e a que título, isto quer ao nível dos factos quer em sede do respetivo enquadramento jurídico.

Na verdade, a estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa leva a que o tribunal esteja vinculado pelo “alegado” por quem requer a instrução, sem embargo dos poderes de investigação do juiz, que podendo praticar outras diligências probatórias, tendo em conta a indicação constante do respetivo requerimento [princípio da investigação oficiosa], está, nessa atividade, sujeito aos limites do objeto da instrução fixados no requerimento de abertura de tal fase processual no caso de arquivamento do inquérito – [cf. artigo 303º do CPP].

Por conseguinte, se é verdade que o legislador comina com o vício da nulidade a acusação que não obedeça aos requisitos descritos nas várias alíneas do n.º 3 do artigo 283º do CPP, sendo, igualmente, inegável a aplicação ao requerimento para a abertura da instrução das alíneas b) e c) do citado preceito, o que ocorre ex vi do n.º 2 do artigo 287º do mesmo diploma, apresentando-se incontroversa a cominação com a nulidade da decisão instrutória que produza alteração substancial dos factos descritos no RAI, afigura-se-nos não dispensar a questão uma abordagem de outra dimensão.

Se o requerimento para abertura da instrução não cumpre as exigências da alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do CPP, concretamente a descrição dos elementos típicos – objetivos e/ou subjetivos [cf. AFJ n.º 1/2015, DR 18, Série I, de 2015.01.27] – do crime, pelo qual se pretende a pronúncia do arguido, não pode, a nosso ver, o problema reconduzir-se ao instituto das alterações substanciais, devendo, antes, situar-se na atipicidade da conduta descrita.

Com efeito, o regime da alteração substancial dos factos pressupõe que a matéria descrita na acusação do Ministério Público, do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução contenha factos suficientes à afirmação do crime, redundando aquela, para o que ora importa, na imputação de um crime diverso; ou seja, simplisticamente, da imputação, sustentada pelos factos descritos, de um determinado crime, passa-se à imputação de um crime diverso, realidade insuscetível de ser confundida com aquela outra em que se converte «um não crime» em «crime».

Posta a coisa nestes termos, a questão precede a de uma eventual alteração substancial, tendo o seu epicentro na atipicidade da conduta, circunstância que compromete, irremediavelmente, a realização da instrução, conduzindo, por “inadmissibilidade legal”, à rejeição do respetivo requerimento, rejeição, essa, que, para além dos fundamentos mais óbvios – vg. de ilegitimidade do requerente; decorrentes da forma do processo não admitir tal fase processual –, abrange os casos em que a instrução é inexequível por falta de objeto, o que ocorre quando, perante o RAI, seja de concluir não conter, o mesmo, factualidade que, em si mesma, configure crime.

Sendo este o caso não há que falar em nulidade – na nossa perspetiva reservada às omissões insuscetíveis de comprometer a tipicidade [objetiva e subjetiva do ilícito] -, antes em inexequibilidade, por falta de objeto, da instrução.

Diremos que, não desconsiderando as disposições legais citadas que cominam com a nulidade, quer a acusação, quer do requerimento de abertura da instrução que não obedeçam aos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º, o problema se reconduz ao nível – dimensão - do respetivo incumprimento, não se confinando o vício decorrente de uma descrição donde ressalta a atipicidade da conduta, à nulidade

Nesta perspetiva, independentemente do acerto na qualificação do vício assinalado à decisão recorrida, a confirmar-se a patologia evidenciada – traduzida na incompletude da descrição dos elementos necessários à configuração do tipo -, parece-nos isento de dúvida que a decisão no sentido da rejeição do RAI se mostra devidamente sustentada.

O que urge responder é se efetivamente o requerimento em causa padece das enfermidades assinaladas na decisão em crise.

Estando em causa a imputação ao arguido de seis crimes de injúria, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), basta debruçarmo-nos sobre o que descrito vem sob os n.ºs 8º, 9º, 12º, 19º, 22º, 34º, 36º, 37º, 40º, 41º, 42º, 46º, 48º, 49º, 51, 57º e 58º do RAI para concluir conter o mesmo suficiente descrição dos factos objetivos e subjetivos que conformam os ilícitos em questão.

Sendo desejável que as menções, já antes identificadas, a que se reporta o n.º 2 do artigo 287.º do CPP venham tratadas/colocadas de forma ordenada, permitindo, assim, maior facilidade na respetiva abordagem, a deficiente sistematização não pode surgir a fundamentar a rejeição do requerimento para abertura da instrução.

E assim é, desde logo, por não encontrar respaldo em qualquer norma; depois, por se assistir a uma evidente desproporção entre, por um lado o mal decorrente de uma menos cuidada arrumação e, por outro, a consequência que daí se retirou para o assistente, impedindo-o, em termos definitivos, de submeter a decisão de arquivar o inquérito a comprovação judicial; desproporcionalidade, essa, tanto mais clamorosa quanto, o nível de esforço de compreensão que o requerimento exige se apresenta, no caso, diminuto.

Em síntese:

(i) Sendo incontroversa, à luz das disposições conjugadas dos artigos 283.º, n.º 3 e 287.º, n.º 2, ambos do CPP, a consequência decorrente do incumprimento no requerimento para abertura de instrução, das menções descritas na alínea b), do n.º 3, da primeira disposição legal, há que distinguir o grau da respetiva inobservância, por forma a avaliar se em causa está tão só uma deficiente descrição ou mesmo omissão, que não comprometa a existência do tipo de crime ou se se assiste a patologia mais devastadora, que surge a montante, traduzida na ausência de descrição de todos os factos capazes de conformar o ilícito típico;

(ii) Verificando-se o último caso, por falta de objeto, a instrução torna-se inexequível, impondo-se, então, a rejeição do requerimento para abertura da instrução;

(iii) É que sem contestar a natureza do vício previsto para a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura da instrução [artigo 309.º do CPP], semelhante realidade não deve ser confundida com aquela outra, traduzida na ausência de descrição no RAI de todos os elementos necessários à afirmação do crime, isto é sem os quais não é possível, ainda que em termos indiciários, configurar a respetiva existência;

(iv) Com efeito, enquanto o regime da alteração substancial dos factos pressupõe que a matéria descrita no requerimento para abertura da instrução contenha factos suficientes à identificação do crime, redundando aquela, para o que ora importa, na imputação de um crime diverso [artigo 1.º, alínea f) do CPP] - simplificando, da imputação, sustentada pelos factos descritos, de um determinado crime, passa-se à imputação de um crime diverso – a consideração/introdução de factos necessários à afirmação do crime equivaleria à transmudação de «um não crime» em crime, o que seria, a todos os títulos, insustentável, escapando, pois, ao regime da alteração substancial;

(v) Nesta medida, independentemente da real natureza do vício identificado na decisão recorrida, a falta de descrição de elementos [objetivos e/ou subjetivos] do crime sempre consentiria – mais, imporia – a rejeição do RAI;

(vi) A deficiente sistematização no seio do RAI dos factos [objetivos e/ou subjetivos] do crime não pode servir de fundamento à sua rejeição;

(vii) Desde logo por não encontrar respaldo em qualquer norma; depois por representar uma evidente desproporção entre o mal daí decorrente e aquele outro resultante para o assistente, vedando-lhe, em definitivo, o direito de submeter a decisão de arquivar o inquérito a comprovação judicial.

III. Decisão

Termos em que, julgando procedente o recurso interposto pelos assistentes B... , C... , D... , E... , F... e G... , se revoga o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que declare aberta a instrução, por aqueles requerida, seguindo-se os ulteriores trâmites legais.

Sem tributação.

Coimbra, 2 de dezembro de 2012

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)