Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
126/12.8TAMLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: ACUSAÇÃO
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
CRIME PARTICULAR
MINISTÉRIO PÚBLICO
OMISSÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 04/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º Nº 3 E 7 E 285º Nº 3 E 4 CPP
Sumário: 1.- A acusação particular deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

2.- Assim sendo, os factos nela descritos terão que integrar, para além do mais, todos os elementos típicos do crime (elementos objetivos e subjetivos);

3.- Tratando-se crime dependente de acusação particular, o MP só pode acusar por factos diferentes dos que constam dessa acusação, se tal não implicar alteração substancial dos factos por que se deduziu a acusação;

4.- Há alteração substancial dos factos constantes da acusação particular se, sendo a acusação omissa quanto ao elemento subjetivo, essencial para a definição do crime imputado, apenas passa a integrá-lo por via do aditamento por parte do Ministério Público dos factos consubstanciadores do tipo subjetivo.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Nestes autos em que é arguido A... e assistente B..., o tribunal “ad quem” proferiu a seguinte decisão:

“Dispõe o art. 311° n.º 2, al. a) do CPP que: “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de: a) ser rejeitada a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.

Acusação manifestamente infundada é aquela que em face dos seus próprios termos não tem a potencialidade de vir a ser julgada procedente, nomeadamente é aquela que, seja por ausência de factos que a suportem, resultaria inevitavelmente em absolvição.

Na acusação particular são descritos factos objectivos que eventualmente seriam subsumíveis ao tipo criminal indicado.

Contudo, não são alegados os factos integradores do dolo, designadamente que o arguido conhecia e queria o resultado da sua conduta. A omissão de qualquer facto reportado aos elementos psicológicos do arguido, subsumíveis no tipo subjectivo de ilícito, é total, isto é, a ausência de factos é integral, não havendo como considerar implícito seja em que segmento acusatório for, qualquer elemento subjectivo.

Tal omissão foi, de uma forma sagaz, constatada pelo Ministério que declarou, a fls. 52, a acompanhar a acusação “o arguido agiu, em ambas as ocasiões, de forma livre e com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que as expressões proferidas eram idóneas a tal fim”, sendo daí, sim, decorrente, de forma implícita, mas com bastante facilidade que o arguido conhecia da ilicitude penal da sua conduta.

Mais tais acrescentos não são suficientes.

Nos termos do art. 285° n.º 4 do CPP, o Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles. Ora, ao acrescentar os elementos integrantes do dolo que não constam da acusação particular, implica alterar substancialmente os factos constantes na acusação particular, na medida em transforma um conjunto de factos não subsumível a um tipo de ilícito (designadamente na vertente subjectiva) numa imputação idónea sob a perspectiva da subsunção integral em norma criminal - ainda que ausente (mas atingível, face ao acrescento do MP) o tipo-de-culpa (consciência da ilicitude).

Neste sentido, pode ler-se o Ac. Rel. Pt. de 01-06-2011, Acs. Rel. Cbr de 01-06-2011 e de 21-03-2012, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim sendo, e por todo o exposto, concluímos que a acusação particular deduzida é manifestamente infundada por falta de alegação de factos subsumíveis a um tipo legal e como tal rejeita-se a mesma nos termos do art. 311º n.º 2 al. a) do CPP, bem como o acompanhamento da mesma feita pelo Ministério Público.

(…)

Face à rejeição da acusação, insubsistente é o pedido de indemnização civil formulado por impossibilidade superveniente da lide - artigo 287° al. e) do CPC.”

Inconformada com o decidido, a assistente B... interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“- A acusação particular da assistente omitiu o elemento subjectivo, o Ministério Publico acompanhou a acusação particular deduzida pela assistente nos termos seguinte “... acompanho a acusação particular deduzida pela assistente na parte em que imputa ao arguido a prática de crime de injurias p.e.p. no art. 181 do Código Penal, à qual acrescento que - o arguido agiu em ambas as ocasiões, de forma livre e com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que as expressões proferidas eram idóneas a tal fim”

- A Meretissima Juiz a quo despachou no sentido da rejeição da acusação particular acompanhada pelo Ministério Publico por entender que era manifestamente infundada pelo facto de não serem alegados factos integradores do dolo, designadamente que o arguido conhecia e queria o resultado da sua conduta e porque entende que o facto de tal omissão ter sido colmatada pelo MP ao acompanhar a acusação particular tal significa uma alteração substancial dos factos na medida em que transforma um conjunto de factos não subsumível a um tipo-de-ilicito (designadamente na vertente subjectiva) numa imputação idónea sob a perspectiva da subsunção integral em norma criminal,- ainda que ausente ( mas atingível , face ao acrescento do MP ) o tipo culpa (consciência da ilicitude) e portanto em violação do disposto no art° 285 n.º 4 do CPP.

- E reconhecido o lapso da assistente na omissão do elemento subjectivo, tal omissão foi colmatada pela digna representante do Ministério Publico ao acompanhar a acusação particular acrescentando “O arguido agiu, em ambas, as ocasiões de forma livre e com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que as expressões proferidas eram idóneas a tal fim”

-O Ministério cumpriu o disposto no Art. 282 nO 4 do C.P.Penal, acusou pelos mesmos factos, limitou-se a acrescentar os elementos integrantes do dolo e tal não implica alteração substancialmente aos factos constantes da acusação particular, pois a alteração substancial dos factos, nos termos do disposto no art° 1 alinea f) do CPC. é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicadas.

- Salvo douta opinião, em nada o despacho do Ministério Publico acrescenta factos ou transforma factos não subsumíveis a um tipo de ilícito numa imputação criminal,

- Apenas acrescenta os elementos integrantes do dolo e acompanha a acusação particular no tipo de crime - crime de Injurias p.p.181 do C.Penal.

- Não houve violação do disposto no art. 285 n.º 4 do C.P.Penal nem tão pouco violação do principio do acusatório que na sua essência significa que a acusação vinda de um órgão diferente do julgador é a condição e o limite do julgamento.

- No caso em concreto a acusação é particular e acompanhada pelo M.P. com mero acrescento do elemento subjectivo, foi notificada ao arguido que chamado a defender-se, nada fez, quando poderia ter contestado ou requerido abertura de instrução, pelo que o seu direito não foi minimamente beliscado

- Respeitados os direitos de defesa do arguido e desde que o comportamento do MP não se configure alteração substancial dos factos (e não configura), nada impede processualmente que a acusação do Ministério Publico aporte validamente para acusação elementos necessários e até imprescindíveis ao triunfo da acusação particular

- A parte subjectiva do tipo constitui a representação da situação objectiva na mente do agente, ora, evidente se torna que quem assume o comportamento descrito na acusação e usa as expressões injuriosas descritas na acusação, actua necessariamente com conhecimento da ilicitude da conduta e vontade até de a levar a cabo para ofender a honra de outrem, actua com dolo genérico, o único que é exigido nos crimes contra a honra.

- A acusação particular acompanhada pelo Ministério Publico nos termos em que o foi, deveria ter sido recebida e marcada data para julgamento, pois ela não é manifestamente infundada por falta de alegação de factos subsumíveis a um tipo legal de crime

- A decisão, de que se recorre violou o disposto nos art 311 e 312 do CPPenal e fez Errada Interpretação do disposto no art.º 285 n.º 4 e n.º 1 alínea f) do CPPenal

Nestes termos, merece provimento o presente recurso, devendo em consequência, o douto despacho que ora se impugna ser revogado e substituído por outro de recebimento da acusação particular com o acompanhamento promovido pelo MP com o acrescento do elemento subjectivo, e, com designação de data para julgamento para apreciação da acusação e pedido de indemnização deduzido na sua sequencia.”

Respondeu o Ministério Público defendendo a procedência do recurso com a seguinte argumentação (transcrição das partes relevantes):

“(…)

A fls. 42-45 consta a acusação particular deduzida pela assistente onde são descritos, do ponto de vista objectivo, factos susceptíveis de integrar a prática por parte do arguido de dois crimes de injúria p. e p. no art. 181.° do Código Penal.

A acusação particular é, contudo, omissa relativamente a factos que revelem o elemento subjectivo dos referidos crimes, tal como é referido no despacho recorrido.

A fls. 51-54 consta despacho de acompanhamento da acusação particular por parte do Ministério nos moldes aí vertidos, tendo o Ministério Público completado a acusação particular na parte em que esta era omissa, ou seja, na parte referente ao elemento subjectivo.

A fls. 66-67 consta o despacho recorrido que, não obstante ter em conta a correcção levada a cabo pelo Ministério Público, entende que a mesma constitui uma alteração substancial dos factos constantes da acusação particular, na medida em que transforma um conjunto de factos não subsumiveis a um tipo-de-ilicito (designadamente na vertente subjectiva) numa imputação idónea sob a perspectiva da subsunção integral em norma criminal.

Ora, a questão central é a de saber se o aditamento feito pelo Ministério Público constitui uma alteração substancial dos factos descritos na acusação particular e, portanto, legalmente inadmissivel por extrapolar a prerrogativa contida no art. 285.°, n.º 4 do Código de Processo Penal.

A resposta a esta questão tem sido alvo de ampla controvérsia jurisprudencial.

A titulo meramente exemplificativo indicam-se alguns arestos:

No sentido de que é legalmente vedado ao Ministério Público acrescentar factos referentes ao tipo subjectivo veja-se:

• Acórdão da Relação do Porto datado de 28-10-2009, com o número convencional JTRP00043091;

• Acórdão da Relação do Porto datado de 01-06-2011, proferido no processo n.º 1021/09.3GDGDM.P1

• Acórdão da Relação de Coimbra datado de 21-03-2012, proferido no Processo n.º 597/11.0T3AVR.C1.

No sentido de que é legalmente admissível veja-se:

• Acórdão da Relação do Porto de 13-12-2006, com o número convencional n.º JTRP00039847;

• Acórdão da Relação do Porto de 24-03-2004, com o número convencional n.º JTRP00035132;

• Acórdão da Relação de Guimarães datado de 04-02-2013, proferido no processo n.º 816/10.0TAGMR.G1;

• Acórdão da Relação de Coimbra datado de 16-05-2012, proferido no Processo n.º 136/11.2TAGRD.C1;

• Acórdão da Relação de Lisboa de 10-01-2012, proferido no Processo n.º 24/11.2GDTVD.Ll-5

Todos disponíveis em www.itij.pt.

Cotejando os argumentos esgrimidos nos diversos arestos e atendendo ao teor do art. 285.°, n.º 4 e 1.º alínea f) do Código de Processo Penal entendemos que assiste razão à recorrente.

Senão vejamos:

Dispõe o art. 285.°, n.º 4 do Código de Processo Penal:

“O Ministério Público pode, nos cinco s dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.” (negrito nosso)

Por seu turno prescreve o art. 1.º alínea f) do mesmo diploma legal:

“Considera-se alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”

Ora, facilmente se denota que o aditamento de factos à acusação particular feito pelo Ministério Público a fls. 51-54 não teve quaisquer efeitos ao nível da imputação de crime diverso ou da agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Tal aditamento limitou-se a corrigir a acusação particular deduzida, na parte atinente ao elemento subjectivo, mantendo-se a mesma intocada relativamente ao tipo de crime imputado e aos limites punitivos.

Assim, como bem defende a recorrente, não se verificou qualquer alteração substancial dos factos que justificasse a rejeição do aditamento feito pelo Ministério Público e, consequente, a rejeição da acusação particular por omissa quanto ao elemento subjectivo dos crimes imputados ao arguido.

Diga-se também que não poderá, na nossa perspectiva, colher a argumentação utilizada pelo despacho recorrido no sentido de que o aditamento fáctico feito pelo Ministério Público constitui uma alteração substancial dos factos por transformar um conjunto de factos não subsumíveis a um tipo de ilícito numa subsunção idónea sob a perspectiva da subsunção integral em norma criminal.

Pois, o Tribunal ao proferir o despacho a que alude o art. 311º do Código de Processo Penal, quando se trata de crime particular, terá de analisar a acusação no seu todo, ou seja, a acusação particular apresentada pelo assistente e ainda, quando haja acompanhamento ou aditamento à mesma, o teor do despacho proferido pelo Ministério Público nos termos do art. 285º, n.º 4 do Código de Processo Penal dado que são estas duas peças processuais que delimitam o objecto do processo e não apenas a acusação particular apresentada pelo assistente.

Assim, só se no seu conjunto o objecto acusatório se revelar omisso quanto algum aspecto essencial à sua procedência é que o Tribunal deverá rejeitar a acusação por manifestamente infundada, o que não ocorre no caso vertente, dado que o aditamento feito pelo Ministério Público torna a acusação particular idónea do ponto de vista subjectivo.

Ora, nenhum óbice legal, para além da referida alteração substancial dos factos, vislumbramos ao aditamento do elemento subjectivo por parte do Ministério, bem pelo contrário, tal aditamento constitui um poder-dever enquanto garante da legalidade.

Neste sentido se pronunciou o Acórdão da Relação de Lisboa datado de 10-01-2012 supra enunciado:

“Daí que, respeitados os direitos de defesa do arguido e desde que não se configure alteração substancial dos factos da acusação particular, nada impede processualmente, que a acusação do Ministério Público aporte validamente para a acusação factos necessários e, até, imprescindíveis, ao triunfo da acusação particular, como é o caso do elemento subjectivo, que na acusação particular não estava suficientemente explícito. A acusação é que determina o objecto do processo, a extensão da cognição e os limites da decisão. Ora a acusação, no caso dos crimes particulares, só é definitiva quando o Ministério Público dá cumprimento ao disposto no art. 285°, n.º 4, CPP” .

Assim, a acusação particular, na parte em que foi acompanhada pelo Ministério Público, não é manifestamente infundada.”

Face ao que se expôs entendemos que assiste razão à recorrente impondo-se a revogação do despacho recorrido e, o consequente, recebimento da acusação particular.”

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso com a seguinte argumentação (transcrição das partes relevantes):

“(…)

A questão a decidir neste recurso, que alguma controvérsia jurisprudencial tem levantado, é de saber se, como se refere no não obstante douto despacho sob recurso, se o M.” P.” ao apenas acrescentar os elementos integrantes do dolo que não constam da acusação particular tal adição integra o conceito de alteração substancial dos factos.

Para tanto, a nosso ver, teremos de partir da noção legal de alteração substancial dos factos contida no artigo 1.°,alínea f) do C. P. P.:

“Considera-se alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Para nós, aquele normativo não postula que se ultrapasse o primeiro estádio da interpretação literal, gramatical ou verbal, pois o sentido daquele texto é claro e inequívoco.

Aderimos pois à corrente da nossa jurisprudência de que são exemplo os citados acórdãos, desde o da Relação do Porto de 13.12.2006 até aos recentes acórdãos da Relação de Lisboa de 10-01.2012 e desta Relação de Coimbra de 16.05.2012.

Digamos em síntese portanto, que no caso de crime particular, se o M. P. adere à acusação do Assistente e apenas acrescenta o elemento subjectivo da infracção não descrito na acusação particular, tudo o resto se mantendo inalterado, tal não configura uma alteração substancial dos factos descritos na acusação do Assistente.

Como se diz no acórdão desta Relação de Coimbra, de 16.05.2012, relatado Pelo Exmo. Desembargador, Dr. José Eduardo Martins, “Apesar do acrescento do elemento subjectivo por parte do Ministério Público, substancialmente há apenas uma acusação, que é o resultado da acusação do assistente e do acrescento do Ministério Público. As duas acusações deduzidas, a pública e a particular, têm que ser vistas como parte de um todo, devendo a acusação do M. P. ser vista como complemento da acusação particular.”

Pelo exposto, é nosso parecer de que devem V. Exas. julgar procedente o recurso, determinando que o douto despacho recorrido seja substituído por outro que receba a deduzida acusação particular.”

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[1].

Questão a decidir: Saber se não constando da acusação particular deduzida pela assistente os elementos subjectivos do crime de injúria, pode o Ministério Público, no âmbito do art.º 285º, n.º 4 do Código de Processo Penal, “colmatar” de tal omissão acrescentando os factos em falta

Vejamos:

A acusação particular deduzida pela assistente contra o arguido A... tem o seguinte teor:

“1)- No dia 23 de Abril de 2012 cerca das 20.00H, quando a Assistente chegou à garagem do prédio onde habita, depois de ir buscar a filha ao Ballet encontrou o acesso obstruído pelo veículo propriedade do participado A... e esposa D. C..., que se encontrava junto ao mesmo a limpá-lo.

2)- A Assistente aguardou dentro do veiculo que a senhora retirasse o seu veiculo para poder estacionar e fez indicação com a mão a pedir para ela retirar o veiculo, ao que a mesma respondeu “espera se quiseres, que a garagem está lavada e eu não estou para a sujar”, numa atitude imediata de falta de educação.

3)- A Assistente aguardou uns minutos mas a senhora manteve-se inativa, então a participante insistiu e a D. C... entrou no veiculo e engatou-o em Marcha atrás e recuando no propósito de obrigar a Assistente a recuar

4)- Então a Assistente dirigiu-se à D. C... e pediu para tirar o carro para poder estacionar alegando que já lhe tinha alertado noutras circunstancias para não colocar ali o carro pois impedia a passagem

5) -De imediato a senhora saiu do carro disse que “não tiro o carro, e vou chamar a GNR para resolver o problema”

6)-A assistente perante esta atitude deixou o seu veículo estacionado perto ao acesso à garagem, e foi para casa, a D. C... deixou o carro onde estava e também foi para casa

7)-Entretanto chegou a GNR e disse á D. C... que ela tinha que tirar o carro e desobstruir a passagem, o que aconteceu de imediato e tudo voltou á normalidade.

8)-No dia 1 de Maio cerca das 17 horas, a Assistente mais uma vez ao chegar, junto com a sua mãe, as filhas menores e um casal amigo, para estacionar, se deparou com o mesmo cenário e mais uma vez pediu à senhora, que estava acompanhada do filho, para tirar o carro ao que a mesma respondeu, “desta vez não tiro e hoje quem vai resolver o problema e o meu marido” desaparecendo e deixando o carro onde estava

9)-A Assistente ficou com as outras pessoas que a acompanhavam na garagem encostada ao carro, entretanto chegou o arguido numa atitude exaltada e de imediato dirigiu-se a ela aproximou o seu rosto do da assistente numa atitude provocadora enquanto lhe dava pequenos encontrões com o peito e foi dizendo numa cadência descontrolada e repetidas vezes:

“Leves uma cabeçada que te rebento toda”

“O meu carro não sai dali, se quiseres passar encolhe o teu cu, sua gorda”

“Não tens educação, precisas que ta dêem.”

“Meto-te na ordem”

“Mereces uns palmadões”

“Lá por seres doutora eu também sou doutor”

“Lá por seres advogada pensas que és boa, mas não vales nada”.

10)-Perante este comportamento a Assistente tentando manter a calma foi dizendo, “tira o carro eu quero estacionar e não me cuspas na cara” , isto porque atenta a proximidade e o descontrolo do arguido o mesmo expelia saliva ao gritar e atingia-lhe o rosto

11)-Perante isto o mesmo ainda disse como provocação e desrespeito a sorrir

“Mereces o meu cuspo”

“faz-te bem à cara”

“Toda a gente te conhece aqui no prédio”

“Também conheço bons advogados, sua vaca, sua gorda”,

“Precisas é de um homem com peito para te pôr na ordem”

12)-A assistente manteve a sua postura dizendo “seu mal-educado, tira o carro e deixe-me em paz”

13)-A esposa do arguido voltou a chamar a GNR, que ao chegar teve a mesma atitude que anteriormente, o mesmo acabou por retirar o carro e tudo serenou.

14)-No dia 6 de Maio, quando a Assistente entrou na garagem, acompanhada com as filhas menores e com a mãe, o arguido estava junto do seu carro e mal a avistou deu inicio a uma provocação fazendo gestos como quem está a tourear enquanto dizia “Anda, anda” dirigindo-se à participante dizendo “Toda a gente sabe o que és , até te incendiaram as casa e os carros, és uma fraca”

“Espera aí ... precisas de um homem como eu para te dar uma carga de porrada”

15)-A assistente passou sem resposta.

16)-O comportamento do arguido é incompreensível para assistente que nunca havia falado com o mesmo e desconhece os motivos que o determinaram mas entende que o mesmo integra a pratica de 2 crimes de injurias pp . pelos art° 181 e 182 do CPenal pelos quais deve o mesmo ser acusado, julgado e condenado”

No âmbito do art.º 285º, n.º 4 do Código de Processo Penal[2]o Ministério Público proferiu o seguinte despacho (transcrição das partes relevantes):

“(…)

De acordo com posição anteriormente firmada no processo acompanho a acusação particular deduzida pela assistente na parte em que imputa ao arguido a prática de crime de injúria p.p. pelo art.º 181º, n.º 1 do Código Penal à qual acrescento que:

“O arguido agiu, em ambas as ocasiões, de forma livre e com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que as expressões proferidas eram idóneas a tal fim”.

Relativamente aos factos aí descritos e susceptíveis de integrar a prática do crime de ameaça p. e p. no art. 153.º, n.º 1 do Código Penal entendemos que a acusação particular deve ser rejeitada nessa parte por falta de legitimidade para a acusação por parte da assistente.”

Apreciando:

Nos termos do art.º 285º, n.º 3 do Código de Processo Penal[3] à acusação particular é aplicável o disposto no art.º 283º, n.ºs 3 e 7, ou seja, no que ao caso interessa, a mesma contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (alínea b.).

Assim sendo, os factos nela descritos terão que integrar, para além do mais, todos os elementos típicos do crime (elementos objectivos e subjectivos).

No caso “sub judice”, em que a assistente imputa ao arguido a prática de dois crimes de injúria previstos e punidos pelos art.ºs 181º e 182º do Código Penal, constata-se que a acusação particular não contém factos integrativos do elemento subjectivo dos crimes, ou seja, no que ao caso interessa, não contém factos integrativos do dolo (elemento que consiste no conhecimento dos elementos objectivos essenciais desse tipo — elemento intelectual ou cognoscitivo — e na vontade de praticar um certo acto criminoso ou, nos crimes materiais, de atingir um certo resultado — elemento volitivo).

Contudo, em sede de cumprimento do disposto o art.º 285º, n.º 4, o Ministério Público acrescentou:

“O arguido agiu, em ambas as ocasiões, de forma livre e com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que as expressões proferidas eram idóneas a tal fim”.

ou seja, acrescentou à acusação particular os factos integrativos do elemento subjectivo do crime que nela faltavam.

Será válido este reajuste factual?

Consideramos que não.

Vejamos:

Diz-nos o art.º 285º, n.º 4 que “o Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles”.

Ora, muito embora a jurisprudência se divida quanto à resposta, parece-nos claro que perante esta redacção a resposta terá que ser negativa.

Com efeito, estamos perante um crime particular (art.ºs 188º, n.º 1 do Código Penal e 50º do Código de Processo Penal), singularidade que para efeitos de legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal é explicada pelo Conselheiro Henriques Gaspar nos seguintes termos: “Está bem sedimentada em razões de política criminal a justificação do regime de procedimento nos designados «crimes particulares» em sentido estrito: a insignificância ou o menor relevo directo e imediato de certas infracções relativamente a bens jurídicos preponderantes, aconselham a que a promoção e a acusação dependam da vontade do ofendido, desaconselhando a reacção oficiosa” (Código de Processo Penal Comentado, pág. 186, comentário ao art.º 50º).

Esta menor relevância dos crimes particulares e a consequente legitimidade limitada do Ministério Público na promoção do processo penal, está também espelhada no art.º 285º, n.º 4 quando nele se determina que aquela entidade pode acusar pelos mesmos factos constantes da acusação particular, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial dos mesmos, o que impõe, para além do mais, que a alteração factual que o Ministério Público pode introduzir nunca poderá determinar a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (art.º 1.º, alínea f., do Código Penal).

Ainda no sentido da referida limitação, mostra-se relevante assinalar o facto de, ainda que em sede de inquérito não sejam apurados indícios suficientes da verificação de crime particular (ou da sua autoria), o Ministério Público não pode determinar o arquivamento do inquérito, restando-lhe apenas não acompanhar a acusação particular se ela for deduzida; porém, se do inquérito resultarem fortes indícios da prática do crime e o assistente não deduzir acusação, o Ministério Público tem que arquivar o inquérito (art.ºs 50º, n.º 1 e 277º, n.º 1, in fine).

A referida limitação está também retratada nos n.ºs 1 e 2 do art.º 50º quando termina que o Ministério Público se limita

– a promover o processo em função da queixa apresentada (desde que entenda que o processo deve prosseguir),

– a proceder às diligências indispensáveis ao esclarecimento dos factos denunciados (podendo no entanto proceder oficiosamente a diligências de prova e a deferir ou indeferir as diligências requeridas pelo assistente)

– a, sob pena de nulidade (art.º 119.°, alínea b.), participar nos actos em que intervier a acusação particular,

– a acusar conjuntamente com a acusação particular, pelos mesmos factos, por parte deles, ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles factos (podendo no entanto não acompanhar a acusação particular se entender que não se indiciam suficientemente todos os elementos do crime).

Como se vê, a legitimidade do Ministério Público para procedimento criminal por crime particular é fortemente condicionada pelo comportamento do assistente.

Ora, tal condicionamento da acção do Ministério Público é incompatível com uma interpretação do art.º 285º, n.º 4 que permita ao Ministério Público aditar à acusação particular factos nela omitidos e que integrem elementos típicos da infracção.

É que, ainda que se entenda que tal aditamento não “transforma” uma conduta “atípica” numa conduta “típica”[4], sempre estaríamos perante uma alteração substancial dos factos, o que é vedado ao Ministério Público e impõe a rejeição da acusação nos termos do art.º 311º, n.º 2, alínea b. (neste sentido, v.g., Conselheiro Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, pág. 998, comentário ao art.º 285º, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Março de 2012, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Junho de 2011, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de Novembro de 2010 e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Outubro de 2009)

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Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso

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Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça.

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Coimbra, 30 de Abril de 2014

Luís Ramos (Relator)

Olga Maurício

1 “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada)

2 Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem

3 Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem

4 Neste sentido, ou seja, de que a falta de narração na acusação do elemento subjectivo do crime traduz uma inexistência de tipicidade, v.g., acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Julho de 2011