Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
765/12.7TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: DIREITOS DO CONSUMIDOR
CADUCIDADE
COMPRA E VENDA
COISA MÓVEL
VÍCIOS
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA 1ª S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DEC. LEI Nº 67/2003, DE 08/04, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DEC. LEI Nº 84/2008, DE 21/05
Sumário: De acordo com o regime instituído pelo Dec. Lei nº 67/2003, de 08/04, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 84/2008, de 21/05 – aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, tal como definidos nos referidos diplomas – os direitos atribuídos ao consumidor, em caso de desconformidade/vício dos bens móveis que lhe foram vendidos, caducam pelo decurso de qualquer um dos referidos prazos:
- Dois anos a contar da entrega do bem sem que seja efectuada qualquer denúncia de desconformidade;

- Dois meses a contar da data em que detectou a desconformidade sem que a tenha denunciado ao vendedor;

- Dois anos a contar da data da denúncia sem que tenha exercido os seus direitos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., residente na ..., Coimbra, instaurou a presente acção contra B... , com domicilio profissional na ... Coimbra e “C..., Lda.”, com sede na ...Coimbra, alegando, em suma, que: no exercício da sua actividade profissional de compra e venda de veículos automóveis, em 16/3/2006, o primeiro Réu, enquanto sócio-gerente da sociedade “ C ..., Lda”, vendeu ao Autor o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo 220 CDI, matrícula x..., pelo preço de 27.000,00€, tendo o Autor entregue um cheque à ordem do 1º Réu, no valor de 20.000,00€ e tendo recorrido, por sugestão do 1º Réu, a um crédito na Credibom, pelo valor de 7.000,00€; o 1º Réu garantiu ao Autor que o veículo estava em bom estado, não obstante ter sido importado, tendo sido rigorosamente inspeccionado, tendo apresentado ao Autor um documento redigido na língua alemã, que o Autor assinou, apesar de não compreender o seu teor, em virtude de o Réu ter informado que aquele documento servia para que o veículo não ficasse com mais um registo de propriedade, uma vez que o veículo ainda não estava matriculado em Portugal e dizendo que era aquele o procedimento normal; tendo levantado a viatura no dia 21-03-2006, logo começou a detectar diversas avarias que o 1º R foi resolvendo, acabando por detectar, em Fevereiro de 2010, que, em 2004, o carro já tinha 144.441Km e não os 70.360 Km que o conta quilómetros apresentava quando o Autor o adquiriu; a quilometragem do veículo foi um factor relevante para a aquisição, pois se soubesse que tinha mais quilómetros não o teria adquirido, ou pelo menos, nunca o teria adquirido pelo preço de 27.000,00€, dado tratar-se de veículo do ano de 2001; ao ter conhecimento desse facto – em Março de 2010 –, o Autor interpelou de imediato os RR. e deles participou criminalmente, assistindo-lhe o direito à resolução do contrato, por ser impossível a reparação ou substituição do veículo, já que os Réus apenas alegaram não ter tido culpa e não se dispuseram a colocar à disposição do Autor um outro veículo, da mesma marca, modelo, ano de matrícula, quilometragem, estado de conservação e preço.

Com estes fundamentos e invocando ainda a existência de danos morais – para cuja indemnização considera adequada a quantia de 5.000,00€ – conclui pedindo que:

- Lhe seja reconhecido o direito à resolução do contrato de compra e venda, com a consequente condenação do Réu a restituir-lhe a quantia de 27.000,00€ (vinte e sete mil euros), correspondente ao preço pago pela viatura, devendo o Autor, em contrapartida, e simultaneamente, entregar o referido veículo, nos termos do art.º 290.º do C. Civil.

- Ou caso assim se não entenda, operar-se a redução do preço comercial do veículo em função da quilometragem

- Sejam os RR. condenados a liquidar solidariamente ao A. uma indemnização pelos danos não patrimoniais, no valor de 5.000,00€

- Sejam os RR. condenados a liquidar solidariamente ao A. os juros vencidos e vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Os Réus contestaram, invocando a excepção de caducidade do direito do Autor, por não ter denunciado qualquer defeito nos 30 dias seguintes ao seu conhecimento e por não ter instaurado a competente acção nos seis meses subsequentes, conforme dispõe o nº 2 do art. 916º e art. 917º do C.C.

Impugnando alguns dos factos alegados e referindo não ter tido intervenção em qualquer eventual alteração de quilometragem, desconhecendo qualquer discrepância de quilometragem, conclui dizendo que, desconhecendo sem culpa, o vício ou a falta de qualidades do veículo, não tem a obrigação de substituir ou reparar o veículo nem está obrigado a indemnizar o Autor.

Alegando ainda que o veículo não está inapto ao fim a que se destina, continuando a satisfazer as necessidades de transporte do Autor, conclui pela improcedência da acção.

O Autor replicou, sustentando a improcedência da excepção de caducidade.

Alega, para o efeito, que interpelou os Réus por carta registada de 17/02/2012 (será 2010 e não 2012) e, tendo apresentado queixa-crime, veio a ser notificado em 17/11/2011 da rejeição do requerimento que havia apresentado para abertura de instrução na sequência do despacho de arquivamento do inquérito, razão pela qual o prazo de caducidade para intentar a presente acção apenas se havia iniciado em 19/12/2011 e portanto apenas terminava em 11/06/2012.

Mais alega que, tendo existido cumprimento defeituoso e presumindo-se a culpa do vendedor, os Réus são responsáveis pelos prejuízos sofridos pelo Autor.

Conclui pela improcedência das excepções invocadas.

Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, onde se julgou procedente a excepção de caducidade, com a consequente absolvição dos Réus do pedido.

Inconformado com tal decisão, o Autor veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. Entre o Autor e os Réus foi celebrado um contrato de compra e venda de um automóvel, sendo que um dos efeitos do contrato consiste na entrega da coisa – arts 874º e 879º, al. b) do C. Civil como a douta sentença bem refere.

2. Ora, in caso, a coisa (veículo automóvel) vendida padecia de defeitos, daí tratar-se de uma coisa defeituosa, portanto, está em causa uma venda de coisa/bem defeituosa, regulada nos artigos 913º e ss do C. Civil e no Decreto –lei nº 67/2003 de 8 de abril, posteriormente alterado pelo Decreto – lei nº 84/2008 de 21 de Maio de 2008.

3. Tais defeitos são patentes pela denúncia efectuada pelo Autor, a Fevereiro de 2010, através do talão da Mercedes-Benz onde indicava que o automóvel tinha mais quilómetros dos que se encontravam descritos no conta-quilómetros, no DAV e no documento da inspecção automóvel.

4. Tratando-se do Autor, um consumidor, e os Réus, uma entidade profissional, o âmbito de aplicação é o Decreto-lei nº 67/2003 de 8 de Abril na redacção dada pelo decreto-lei nº 84/2008 de 21 de Maio de 2008, relativo à venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.

5. Nesta senda, a douta sentença, mui respeitosamente aplicou erradamente o Decreto-lei com a redacção originária, e de tal modo, dando procedência à excepção de caducidade invocada pelos Réus.

6. Concretizando, à data da celebração do contrato de compra e venda, vigorava no nosso ordenamento jurídico, o Decreto – lei nº 67/2003 de 8 de Abril, que estabelecia no art. 5º do DL 67/2003, como prazo de caducidade seis meses a contar da denúncia para propor a respestiva acção.

7. Sendo que o defeito foi denunciado logo após o conhecimento, isto é, a Fevereiro de 2010, este teria segundo a douta sentença, seis meses após a denúncia para propor a acção, nos termos do art. 5º do DL. 67/2003.

8. Mui respeitosamente, não é de todo a nossa inteira perspectiva, colocando-se o problema de aplicação de lei no tempo.

9. Aquando da denúncia do defeito, Fevereiro de 2010, vigorava no ordenamento jurídico o DL. 84/2008 de 21 de Maio de 2008, o qual surgiu para colmatar algumas falhas existentes no DL. 67/2003 inerentes à má transposição da Directiva nº 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.

10. Logo, cremos que, o DL. 84/2008 que alterou e republicou o DL 67/2003, e que entrou em vigor a 20 de Junho de 2008, nele não se vislumbram fundamentos, para a sua não aplicação ao caso sub judice.

11. Senão vejamos, o diploma legal não é mais do que uma alteração correctiva do anterior diploma, designadamente no que diz respeito aos prazos de caducidade do direito de acção, aditando-lhe uma norma que estabelece novos prazos de caducidade, de acordo com a Directiva – art. 5º- A.

12. Face à natureza correctiva do DL. n.º84/2008, de 21 de Maio, o qual se limitou a completar a transposição da Directiva n.º 1999/44/CE, de 25 de Maio para a ordem jurídica interna, será de considerar que não estamos perante uma norma nova e, nessa medida, será imediatamente aplicável às relações constituídas anteriormente à sua entrada em vigor.

13. E como flui do disposto do artigo 12º, nº2 do C.Civil “quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-à que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”, o que nos conduz que se deva aplicar o prazo de dois anos para o exercício dos seus direitos previsto no artigo 5º-A, nº 3 do DL 67/2003, com a redacção dada pelo DL. 84/2008 de 21 de Maio de 2008.

14. Mais ainda, “o art. 297.º do CC, que prescreve sobre a alteração de prazos, consagra uma regra de direito transitório que visa esclarecer a lei aplicável aos prazos em curso, sempre que estes sejam alterados. Sendo o prazo relevante o novo prazo mais longo, desde que o antigo não esteja transcorrido à data da entrada em vigor da nova lei.” – cfr. Ac. do STJ de 24/05/2012, relator: Serra Batista, in www.dgsi.pt.

15. Neste sentido, veja-se ainda o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03/02/2011, in www.dgsi.pt, "Por outro lado, tendo o DL 84/2008 entrado em vigor a 20 de Junho de 2008, é aplicável ao caso o novo prazo (…), pois no que respeita à alteração de prazos, rege o disposto no artigo 297.º do CC, aplicando-se a lei que fixar um prazo mais longo aos prazos que estejam em curso (...) embora se compute neles todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial".

16. Quer isto manifestar que para exercer os direitos elencados no art. 4º, o prazo de caducidade previsto, no artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio têm aplicação imediata a partir da entrada em vigor deste diploma legal (20 de Junho de 2008).

17. Para exercer o seu direito, o Autor dispõe após a denúncia, de um prazo de dois anos no caso de um bem móvel, tratando-se da natureza do bem em apreço – um veículo automóvel.

18. Termos em que, o prazo para o exercício dos direitos do Autor, não caducou, pelo que após a denúncia do defeito, tem este o prazo de dois anos, de acordo com o disposto do art. 5º-A DL. 84/2008.

Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o alargamento do prazo de caducidade operado pelo Dec. Lei nº 84/2008 é aplicável ao caso sub júdice e se, em função disso, caducou ou não o direito que o Autor/Apelante vem exercer nos presentes autos.


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III.

Apreciemos, pois, a questão suscitada no recurso.

Com vista a delimitar a matéria de facto relevante para a decisão da excepção invocada, escreveu-se na decisão recorrida o seguinte:

Da análise da matéria de facto apurada resulta que, em 16.03.2006, foi celebrado entre o autor e a ré um contrato de compra e venda tendo por objecto um veículo automóvel marca Mercedes, modelo 220 CDI, com a matricula x... no estado de usado.

O veículo foi entregue ao autor no dia 21.03.2006, passando a então a circular com ele.

Muito embora, no dizer do autor, logo após lhe ter sido entregue o veículo, este tenha começado a apresentar varias pontuais, só em Fevereiro de 2010 o aquele que apercebeu que o automóvel tinha muitos mais quilómetros do que aqueles que exibia no seu conta-quilometros, sendo esta divergência entre os quilómetros do veículo pressupostos aquando da celebração do negócio e aqueles que na realidade o veículo terá, com a sua inerentes desvalorização em termos de mercado e reflexos no seu estado geral de funcionamento, integra o “defeito” em que o autor de estriba para fundamentar as pretensões que formula na presente acção”.

Com base nesses pressupostos de facto e depois de efectuar a análise do regime jurídico aplicável, a decisão recorrida conclui nos seguintes termos:

- O negócio de compra e venda do veículo automóvel ocorreu no dia 16.03.2006;

- O veículo foi entregue ao autor no dia 21.03.2006;

- O autor não denunciou qualquer defeito do veículo aos réus nem nos seis meses nem nos 2 anos posteriores às referidas datas;

- O autor não alegou quaisquer factos que possam, de forma concreta e susceptível de serem sujeitos a prova, imputar a qualquer dos réus uma actuação dolosa (designadamente de onde se extraiam os elementos intelectual e volitivo do dolo);

Mesmo admitindo, como base de raciocínio (em todo o caso impugnado pelos réus e não comprovado documentalmente) que, como diz o autor:

- aquele descobriu o feito do veículo invocado na causa de pedir em Fevereiro de 2010, tendo interpelado de imediato os réus por carta registada;

O certo é que:

- a presente acção foi intentada, penas no dia 09.06.2012;

Em conclusão:

Mesmo admitindo como assente a versão dos factos alegada pelo autor (o que os réus não admitem e que o Tribunal apenas faz por facilidade de raciocínio), o certo é que a denuncia do defeito (alegadamente em 17.02.2010) terá sido feita para alem dos prazos de garantia consignados, quer no artigo 916.º, n.º 2 do C.C. quer no artigo 4.º do DL 67/2003, de 8 abril.

Por outro lado, alegando o autor que denunciou o defeito de imediato, o certo é que não propôs a respectiva acção destinada a exercer os seus direitos, nem no prazo de 6 meses previstos no artigo 917.º do C.C ou no prazo de 6 meses a contar da denuncia previsto no artigo 5.º do DL 67/2003, de 8 abril.

Com base nessas considerações e considerando que a apresentação de queixa e o decurso do inquérito não tinham qualquer influência na contagem do prazo, julgou procedente a excepção de caducidade do direito do Autor.

Embora discorde da decisão – por isso interpondo o presente recurso – o Apelante não questiona os pressupostos de facto da decisão, ou seja, a matéria que foi alegada pelo próprio Autor (ainda que não esteja ainda integralmente provada por ter sido, em parte, impugnada) e que tem relevância para a decisão e, mais concretamente:

• O facto de o contrato ter sido celebrado em 16/03/2006 e o veículo entregue ao Autor em 21/03/2006;

• O facto de o Autor não ter denunciado qualquer defeito do veículo nos dois anos posteriores às referidas datas, sendo que apenas teria detectado o defeito (com base no qual vem intentar a presente acção) em Fevereiro de 2010, tendo sido nesta data que (alegadamente) o denunciou aos Réus.

Resulta ainda dos autos que a presente acção deu entrada em 08/06/2012.

O que está em causa nos autos – atendendo aos factos alegados pelo Autor/Apelante – é uma venda de coisa defeituosa, já que o veículo automóvel que lhe foi vendido não teria (alegadamente) as qualidades asseguradas pelo vendedor ou sofria de vício que o desvalorizava, em virtude de ter uma quilometragem maior do que aquela que era apresentada pelo conta-quilómetros e com base na qual o Autor teria contratado.

O regime jurídico da venda de coisas defeituosas tem assento legal nos arts. 913º e segs. do Código Civil, onde são especificados os direitos que, nessa situação, assistem ao comprador e onde se determina o modo e o prazo de exercício desses direitos.

No que toca aos prazos – e é essa a matéria que aqui nos interessa – ali se dispõe que, ressalvando o caso de existência de dolo por parte do vendedor, o comprador, tratando-se de coisa móvel (como aqui acontece) deve denunciar o vício ou defeito ao vendedor no prazo de trinta dias após o respectivo conhecimento e dentro de seis meses após a entrega da coisa (art. 916º), sendo que, como dispõe o art. 917º, a acção de anulação por simples erro caduca se a denúncia não for efectuada dentro dos prazos fixados no artigo anterior ou se a acção não for instaurada no prazo de seis meses após a denúncia.

Essa matéria veio, porém, a ser objecto de regulação própria no âmbito das relações de consumo, pois que a Lei nº 24/96 de 31/07, visando a defesa e protecção dos consumidores, veio estabelecer, de forma específica, os direitos que assistem ao consumidor a quem seja fornecida coisa com defeito e onde se incluem os concretos direitos que o Autor vem exercer nos presentes autos (a resolução do contrato ou, subsidiariamente, a redução do preço).

Sendo evidente a sujeição do caso sub judice a tal regime específico, já que o Autor/Apelante é um consumidor para efeitos da referida Lei (como decorre do seu art. 2º), dispunha o art. 4º da citada Lei que, estando em causa um bem móvel, o fornecedor dos bens estava obrigado a garantir o seu bom funcionamento por período não inferior a um ano, determinando o art. 12º que o consumidor deveria denunciar o defeito no prazo de 30 dias após o seu conhecimento e dentro do prazo de garantia (de um ano), mais se determinando que os direitos do consumidor caducavam findo qualquer um desses prazos sem que a denúncia fosse efectuada ou decorridos seis meses após a denúncia.

Decorria, portanto, desse regime que, sob pena de caducidade, a denúncia do defeito de coisa móvel teria que ser efectuada no prazo de trinta dias após o seu conhecimento e dentro do ano subsequente à sua entrega e, efectuada a denúncia, o direito teria que ser exercido no prazo de seis meses após a denúncia.

Entretanto, a Directiva 1999/44/CE – que teve por objecto a venda de bens de consumo e respectivas garantias e que apenas se reportava a bens móveis corpóreos – veio determinar (art. 5º) que o vendedor seria responsável quando a falta de conformidade se manifestasse dentro de um prazo de dois anos a contar da entrega do bem, mais se determinando que, se por força da legislação nacional, os direitos do consumidor estivessem sujeitos a um prazo de caducidade, esse prazo não poderia ser inferior a dois anos a contar da data da entrega. Ali se permitiu ainda que os Estados-Membros pudessem determinar que o consumidor, para usufruir dos seus direitos, teria que informar o vendedor da falta de conformidade num prazo de dois meses a contar da data em que esta tivesse sido detectada.

Procedendo à transposição dessa Directiva para o ordenamento jurídico português, o Dec. Lei nº 67/2003 de 08/04, veio alargar o prazo de garantia para dois anos a contar da entrega (no caso de coisa móvel), alargando o prazo da denúncia do defeito para dois meses a contar do respectivo conhecimento, mais determinando – no art. 5º, nº 4 – que os direitos conferidos ao consumidor caducam findo qualquer um dos referidos prazos sem que a denúncia seja efectuada ou decorridos seis meses após a denúncia.

 Decorria, assim, deste regime que, sob pena de caducidade, a denúncia do defeito de coisa móvel teria que ser efectuada no prazo de dois meses após o seu conhecimento e dentro dos dois anos subsequentes à sua entrega e, efectuada a denúncia, o direito teria que ser exercido no prazo de seis meses após a denúncia.

Foi este o regime jurídico considerado na decisão recorrida e com base no qual foi julgada procedente a excepção de caducidade, já que, como é evidente, a denúncia não foi efectuada no prazo de dois anos após a entrega (o veículo foi entregue ao Autor em 21/03/2006 e o defeito ou desconformidade apenas terá sido detectado e denunciado – como alega o Autor - em Fevereiro de 2010) e o direito também não foi exercido no prazo de seis meses após a denúncia, já que está terá sido efectuada em Fevereiro de 2010 e a presente acção (onde o direito é exercido) apenas foi instaurada em Junho de 2012.

Considera, porém, o Apelante – e essa é a única questão suscitada no recurso – que não é esse o regime aplicável, mas sim o regime fixado pelo Dec. Lei nº 84/2008, de 21/05, que já se encontrava em vigor aquando da denúncia do defeito (em Fevereiro de 2010). Com efeito, e sustentando que o citado diploma tem natureza correctiva – porque se limitou a completar a transposição da Directiva nº 1999/44/CE – afirma que o mesmo é imediatamente aplicável às relações constituídas antes da sua entrada em vigor e, portanto, em conformidade com o disposto no citado diploma, dispunha do prazo de dois anos após a denúncia para propor a acção, ao invés do prazo de seis meses que decorria do Dec. Lei 67/2003 e que foi considerado na decisão recorrida.

O citado Dec. Lei nº 84/2008 – que entrou em vigor em 20/06/2008 – veio, efectivamente, introduzir algumas alterações ao Dec. Lei nº 67/2003, sendo que, apesar de manter o prazo de garantia, que, relativamente aos bens móveis, era de dois anos a contar da entrega do bem, veio aditar o art. 5º-A com a seguinte redacção:

1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.

3 - Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data.

(…)”.

Perante o regime assim fixado, os direitos atribuídos ao consumidor relativamente a bens móveis caducam pelo decurso de qualquer um dos referidos prazos:

• Dois anos a contar da entrega do bem sem que seja efectuada qualquer denúncia de desconformidade;

• Dois meses a contar da data em que detectou a desconformidade sem que a tenha denunciado ao vendedor;

• Dois anos a contar da data da denúncia sem que tenha exercido os seus direitos.

Embora tal não tenha sido referido expressamente no respectivo preâmbulo, admite-se que o citado diploma tenha assumido, no que respeita aos prazos de caducidade dos direitos do consumidor referentes a bens móveis, uma natureza correctiva do anterior diploma (o Dec. Lei 67/2003).

De facto, este diploma – que havia procedido à transposição para o direito interno da Directiva nº 1999/44/CE – não havia respeitado inteiramente esta Directiva, onde se determinava que o prazo de caducidade nunca poderia ser inferior a dois anos a contar da entrega (sendo que a aplicação do prazo de seis meses após a denúncia, que era fixado no Dec. Lei 67/2003 – conjugado com o prazo de garantia e com o prazo da denúncia – não garantia que aqueles direitos não caducassem antes de decorridos dois anos a contar da data da entrega).

Daí que o Dec. Lei 84/2008, ao alterar esse prazo de seis meses para dois anos, tenha tido a virtualidade de adaptar e corrigir o regime que havia sido fixado relativamente a bens móveis, com vista a respeitar e transpor integralmente a referida Directiva (Directiva que, como supra referimos, apenas se reportava a bens móveis) e, portanto, como se refere no Acórdão do STJ de 11/10/2011[1], “Não sofrerá sobressalto hermenêutico a asserção de que o alongamento dos prazos fixados no artigo 5.º-A do Decreto-lei n.º 84/2008, de 21 de maio para as coisas móveis se tratou de uma disposição correctiva ou determinativa de referencial prefixado, dado que o legislador se limitou a adequar a normação de transposição, por definição normação de feição “copista” ou adaptativa, à normação de hierarquia superior, nesta caso de fonte comunitária”.

Admitimos, portanto, a imediata aplicação do regime fixado no citado Dec. Lei nº 84/2008 às relações já constituídas antes da sua entrada em vigor.

Mas isso não altera o facto de o direito do Autor/Apelante já ter caducado.

Em primeiro lugar, porque, a denúncia da desconformidade/defeito do bem foi efectuada quando já haviam decorrido mais de dois anos a contar da entrega do bem (o bem foi entregue em 21/03/2006 e a denúncia foi efectuada em Fevereiro de 2010). Importa notar que este prazo – fixado no art. 5º, nº 1, do Dec. Lei 67/2003 e cujo decurso implicava a caducidade dos direitos, em conformidade com o disposto no nº 4 do mesmo preceito – não sofreu qualquer alteração com o Dec. Lei nº 84/2008.

E, em segundo lugar, porque o Autor, tendo efectuado a denúncia do defeito em Fevereiro de 2010, apenas veio exercer os seus direitos – mediante a propositura da presente acção – em 08/06/2012 e, portanto, quando, desde a referida denúncia, já havia decorrido o prazo de dois anos que foi estabelecido pelo Dec. Lei nº 84/2008.

E, como parece evidente, o art. 297º do C.C. – a que o Apelante também alude nas suas alegações – não altera aquela conclusão, já que, ainda que seja aplicável o prazo mais longo que veio a ser estabelecido pelo Dec. Lei nº 84/2008, a verdade é que esse prazo já havia decorrido à data da propositura da acção.

Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.  


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

De acordo com o regime instituído pelo Dec. Lei nº 67/2003, de 08/04, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 84/2008, de 21/05 – aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, tal como definidos nos referidos diplomas – os direitos atribuídos ao consumidor, em caso de desconformidade/vício dos bens móveis que lhe foram vendidos,  caducam pelo decurso de qualquer um dos referidos prazos:

- Dois anos a contar da entrega do bem sem que seja efectuada qualquer denúncia de desconformidade;

- Dois meses a contar da data em que detectou a desconformidade sem que a tenha denunciado ao vendedor;

- Dois anos a contar da data da denúncia sem que tenha exercido os seus direitos.


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

                

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Proc. nº 409/08.1TBVIS.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.