Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
800/03.0TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CECÍLIA AGANTE
Descritores: REGISTO PREDIAL
TERCEIROS
VENDA EXECUTIVA
COISA IMÓVEL
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 5º, 6º, 7º E 17º, Nº 2, DO CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL; 291º, Nº 2, DO C.CIVIL.
Sumário: I – A identidade matricial (de imóveis) tem de apurar-se com base nos documentos dos serviços de finanças, mas a identidade física do prédio há-de apurar-se pela restante prova produzida, desde logo pela averiguação da existência de um qualquer outro prédio que com aquele possa ser correlacionado.

II – A inscrição matricial é apenas um elemento de identificação para o recenseamento fiscal dos imóveis, o qual pode até nem existir e nem por isso o prédio deixa de ter existência real.

III – O direito de propriedade ou outro direito real sujeito a registo inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes – artº 6º do Código do Registo Predial.

IV – No âmbito da oponibilidade do registo predial a terceiros, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo – artº 5º C. R. P..

V – O direito de propriedade ou outro direito real sujeito a registo não será oponível, em termos de prevalência ou prioridade, a quem não seja terceiro.

VI – São legalmente tidos como terceiros para efeitos de registo aqueles que tenham adquirido de um autor comum – alienante - direitos incompatíveis entre si e aqueles cujos direitos adquiridos ao abrigo da lei tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos actos jurídicos de que tais direitos resultam – nº 4 do artº 5º do CRP, aditado pelo DL nº 533/99, de 11/12.

VII – A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida – artº 824º, nº 1, C. Civ. -, a significar que com a penhora a titularidade do direito sobre o bem não se transfere, nem para o tribunal, nem para o exequente, antes se mantém na esfera jurídica do executado.

VIII – Só com a venda em execução tem lugar a transferência da titularidade do direito do executado para o adquirente.

IX – Apesar da natureza coactiva da venda, o vendedor é o executado e não o tribunal ou o exequente (asserção que é atestada pela reversão para o executado do remanescente do preço, quando o haja, depois de pagos os créditos exequendo e graduados).

X – O vendedor, como sujeito material do negócio, é o executado e o tribunal é apenas o sujeito formal, que actua, não como representante do executado ou do exequente, mas no uso do seu poder de jurisdição executiva, sem qualquer modificação na natureza do contrato de compra e venda – gera-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente.

XI – O anterior adquirente do direito de propriedade não registado e o adquirente em venda executiva de direito de propriedade registado são terceiros para os fins previstos no artº 5º, nº 4, CRP.

XII – Se o direito inscrito for transmitido, a título oneroso, a um subadquirente de boa fé que o inscreva a seu favor antes do registo da acção de nulidade, a presunção júris tantum derivada do registo (artº 7º) pode transformar-se juris et juris, nos termos constantes das disposições que consagram o princípio da fé pública registral.

XIII – O subadquirente de boa fé e a título oneroso que confiou na presunção registral emergente do registo a favor do transmitente e registou a sua aquisição antes do registo da acção impugnatória, não pode ser prejudicado pela nulidade do registo a favor do transmitente – artº 17º, nº 2, CRP; o subadquirente de boa fé e a título oneroso que registou a sua própria aquisição antes do registo da acção impugnatória, mesmo que não beneficie da presunção registral a favor do transmitente, não pode ser prejudicado pela declaração de nulidade do negócio jurídico de que resulta o direito do transmitente, salvo se a acção tiver sido registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio – artº 291º, nº 2, CC.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório

            1. A... e B..., residentes na ..., intentam a presente acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra C... e D... , residentes em ..., E..., residente em..., F...e G..., residentes em ...., “Companhia de Seguros H..., S.A.”, com sede em ..., e I... e J..., residentes em ..., pedindo:

            - sejam declaradas nulas e de nenhum efeito a penhora e todas as aquisições

inscritas no prédio descrito sob o n.º ...da Conservatória do Registo Predial da ...;

            - seja ordenada a anulação da descrição registral n.º ...da Conservatória do Registo Predial da ...;

            - a condenação de todos os réus a reconhecerem os autores como únicos e exclusivos donos e proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial e, consequentemente, absterem-se de ter todo e qualquer comportamento que colida com os direitos assim reconhecidos dos autores;

            - a condenação de todos os réus, a reconhecerem que o prédio actualmente identificado no artigo 1.º da petição inicial, é o mesmo em localização, extensão que o prédio referido no artigo 4.º do mesmo articulado;

            - a condenação dos 1.º e 2.º réus, a pagarem aos autores a quantia de 20.000,00 euros (vinte mil euros), a título de indemnização por danos patrimoniais, pelo valor da madeira cortada e removida do local, acrescidos de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;

            - a condenação destes mesmos a pagarem aos autores a indemnização, a título de danos patrimoniais, pelo prejuízo e desvalor de os autores, não poderem cortar o seu eucaliptal desde Junho de 2003, em montante a liquidar em momento próprio, pois, tal valor é nesta data indeterminado na medida em que só poderá ser determinado com o trânsito em julgado deste processo, e, consequentemente, o reconhecimento dos autores como únicos e exclusivos donos e proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial;

            - a condenação dos 1.º e 2.º réus no pagamento aos autores, a título de danos morais, a quantia de  7.500,00 euros (sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.

            Para tanto alegam serem donos e legítimos possuidores do prédio rústico, actualmente inscrito sob o artigo n.ºx..., sito em ..., […], tendo o autor marido adquirido tal prédio casado no regime de comunhão geral de bens com a autora mulher, aos 5.º réus por escritura de compra e venda, outorgada a 7 de Maio de 1984, no Cartório Notarial da .... Anteriormente, aquando da outorga de tal escritura, tal prédio tinha as seguintes confrontações: […], encontrava-se inscrito na matriz sob os artigos w..., k..., z...,ç...,s... e descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., no Livro B -102, fls. 43, sob o n° OOO1. Porém, fruto das novas matrizes, resultantes da nova avalização fiscal que ocorreu no Concelho da ..., nos anos de 1983, 1984, tais prédios, passaram a ter após Setembro de 1984, um artigo matricial único, o artigo rústico n.º y..., tendo sido actualizadas as confrontações a nascente, poente e norte, de acordo com os então proprietários dos prédios confinantes na altura, mantendo-se inalterável a confrontação a sul, na medida em que tal confrontação era e é com ribeira e o prédio então inscrito no art. y... mantendo os mesmos limites e extensão dos prédios anteriormente inscritos na matriz rústica sob os artigos w..., k..., z...,ç..., s.... Porém, já desde Janeiro de 1983 os autores, que tinham comprado verbalmente tal prédio a I... e esposa, passaram a vigiar tal prédio, deslocando-se desde então regularmente ao mesmo, procedendo à limpeza do mato, colhendo lenha, até que há cerca de 13 ou 14 anos o autor procedeu ao corte dos pinheiros nele existente, vendendo-os. Passado pouco tempo surribou o terreno, abriu caminhos, plantou todo o terreno de eucaliptos e há cerca de 6 anos alargou e limpou caminhos existentes no mesmo, acções estas realizadas pelos autores e a seu mando, à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém, de uma forma continuada, na firme convicção de que possuíam coisa sua, sem prejudicar direitos de terceiros, pelo que os autores, há mais de 20 anos, que exercem posse pública, pacífica, continuada e de boa fé sobre tal prédio, sendo reconhecido por todos como sendo os seus únicos e legítimos donos, pelo que defendem os autores que, em todo o caso, adquiriram já tal prédio por usucapião. Não obstante, no dia 23.05.03, pela manhã, os autores foram avisados de que pessoas desconhecidas estavam a cortar eucaliptos existentes no seu prédio. De imediato, o autor marido, acompanhado das testemunhas[…], deslocou-se ao seu terreno, aí tendo constatado que andavam algumas pessoas a cortar os seus eucaliptos. O autor, de imediato, pediu para falar com o responsável presente, tendo-se apresentado como tal, o Sr. L..., que disse que trabalhava para o ora réu E..., pelo que o autor, na presença das mencionadas testemunhas, disse, que tal terreno e os eucaliptos que andavam a cortar eram sua propriedade e que não autorizava tal corte pelo que deviam parar com o mesmo, mais tendo dito que tal corte se encontrava embargado, ordem essa que, momentaneamente, foi acatada. Nessa ocasião o abate dos eucaliptos encontrava-se no início, encontrando-se carregado meio camião e existindo madeira cortada para, no máximo, mais dois camiões. Sucede, porém, que nessa tarde, bem como nos dias seguintes, ao contrário da ordem de embargo dada, o corte continuou, prosseguindo, no dia 18 de Junho de 2003, aquando foi realizado o auto de embargo de obra nova, tendo sido cortado o eucaliptal numa grande extensão de terreno (cerca de 35.000 m2), e os eucaliptos cortados removidos do local pelo 2.º réu.

            Por outro lado, indicado prédio rústico, actualmente inscrito sob o art.x...º, tem como titular inscrito, o ora réu C..., o que não corresponde à verdade, visto que desde há mais de 20 anos que os autores têm aposse e a propriedade de tal prédio, tendo celebrado a escritura de compra há mais de 19 anos. O mesmo prédio, pertencente aos autores, foi indevidamente penhorado a 20 de Novembro de 1989, penhora requerida pela ora ré Companhia de Seguros H... tendo, por via dessa penhora, o prédio rústico então inscrito na matriz sob o art. ...º, sido indevidamente registado sob o n° 0002, quando na realidade tal prédio já se encontrava registado sob o n.º OOO1, no Livro B - 102, fls. 43, sendo tal situação legalmente inadmissível e devendo ser anulado o registo n° ...na Conservatória do Registo Predial da .... Fruto desse registo indevido, tal prédio foi "arrematado" em processo de execução intentado contra os ora 5.º réus, pelos ora 3.º réus, tendo estes registado tal "aquisição" em 14.12.1990. Os 1.º réus compraram aos 3.º réus tal prédio a 17 de Junho de 1991, por escritura outorgada no Vigésimo Terceiro Cartório Notarial de Lisboa. Tais transmissões tiveram na sua origem um registo ilegal feito por parte da 4.ª ré, já que desde Janeiro de 1983 que os autores são os únicos donos e legítimos proprietários de tal prédio. Prédio que já tinha descrição registral quando foi novamente descrito, tendo ocorrido uma situação de venda de bens alheios, que não têm quaisquer efeitos jurídicos perante os autores. Da conduta dos 1.º e 2.º réus resultaram elevados danos patrimoniais e não patrimoniais que consideram compensáveis com o valor mínimo de 20.000,00 euros (vinte mil euros) para o corte do eucaliptal. Corte que teriam iniciado em Junho de 2003 e que não levaram a cabo por via dos réus. Atendendo à grande oferta de madeira existente no mercado, resultante do grande número de incêndios que lavraram no território nacional e em Espanha e França no Verão de 2003, o preço do metro do eucalipto desceu abissalmente. Acrescem ainda danos não patrimoniais derivados de verem o seu prédio invadido, grande parte dos eucaliptos aí existentes cortados e removidos do local, e da deslocação do autor marido ao posto da G.N.R. de ..., a fim de apresentar queixa por tal situação. Estes factos acarretaram-lhes, em especial para o autor marido, incómodos, aborrecimentos, impaciência, tristeza, dificuldade em adormecer, o que consideram compensados com uma indemnização no montante de 7.500,00 euros (sete mil e quinhentos euros).

            Juntam documentos.

            2. Contesta o réu F..., alegando apenas saber que a 21 de Setembro de 1990, em hasta pública, no Tribunal Judicial da Comarca da ..., arrematou um prédio rústico com a área de 682,968 m2, sito em ..., constituído por pinhal, mato e pastagem, confrontando[…], omisso na Conservatória do Registo Predial da ..., e inscrito na matriz rústica da freguesia de ... sob o artigo y...º. Pagou o preço total da arrematação, registou a seu favor o respectivo prédio após arrematação e, em 17 de Junho de 1991, vendeu o referido prédio a C..., tendo sido registado tal prédio sob a ficha ..., na Conservatória do Registo Predial da ... e se encontrava inscrito sob o artigo matricial y...º.  Impugna a restante factualidade, defendendo que os autores não provam que o prédio reivindicado seja o prédio descrito sob a ficha ... e que os 5.º réus fossem donos do prédio a que se refere a escritura de compra e venda, como não provam que o prédio descrito sob o número OOO1 a fls. .., do Livro ... seja o mesmo prédio que se encontra descrito sob a ficha ..., pois aquele prédio abrange apenas um terço do inscrito na matriz sob o artigoç... e um terço do inscrito sob o artigo s.... Conclui pela improcedência da acção.

            Junta documentos.

           

            3. A Companhia de Seguros H..., S.A. contesta com a alegação de ser alheia a toda a “trama”. Requereu a penhora de um imóvel que era da propriedade de um seu devedor, o réu I..., casado com a ré J..., tendo registado devidamente tal penhora. Bem que foi vendido por arrematação em execução judicial e adquirido por F...... e mulher, que o alienaram a C...e mulher. Penhora, cancelamento e sucessivas alienações feitas com total boa fé, com sustentáculo documental e sujeitas registo. Conclui pela sua absolvição do pedido.

            4. O réu C..., citado editalmente, contesta com a invocação de ter adquirido, por escritura pública de 17.06.1991,  o prédio rústico de eucaliptal, no sítio do ..., freguesia de ..., concelho da ..., inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob a ficha... da freguesia de .... Paga previamente a sisa correspondente, regista a aquisição na respectiva Conservatória do Registo Predial no dia 4.07.1991 e averba a aquisição nas Finanças, pagando desde 1992 até hoje a contribuição autárquica do imóvel. O imóvel foi objecto de uma penhora em 20.11.1989, no âmbito de um processo de execução em que era exequente a 4.ª ré e executados os 5.º réus, em que foi adquirido, por arrematação em sede do processo executivo, pelos 3.º réus, os quais lho transmitiram posteriormente. Da leitura da escritura junta aos autos pelos autores não resulta que estes tenham celebrado um contrato de compra e venda do imóvel adquirido em 1991 pelo contestante, já que as confrontações do imóvel são diferentes, a inscrição (ou inscrições) matriciais não coincidem, a descrição predial não é a mesma, sendo ainda certo que os autores nunca registaram dita a aquisição. Desde 1997 não vê qualquer alteração no eucaliptal, designadamente, qualquer limpeza e abertura de caminhos, com excepção da que fez em 1993. Desde que adquiriu o imóvel que nele pratica todos os actos de posse. Procedeu ao corte dos eucaliptos e, quando tal corte foi embargado, interrompeu o corte dos eucaliptos, não tendo sido cortado mais nenhum eucalipto, desconhecendo qual a área exacta de corte de eucaliptos. Impugna a restante matéria fáctica constante da petição inicial.

            4. Os autores replicam, mantendo a posição propugnada no articulado inicial.

           

            5.1. Realizada audiência preliminar, são elaborados o saneamento e a condensação, esta com reclamação parcialmente atendida.

            5.2. Procede-se a audiência de julgamento com observância do legal formalismo. [...]

            5.3. O tribunal decide a matéria de facto, sem reclamação.

            5.4. O réu C...apresenta alegações de direito defendendo que, em face da resposta negativa dada aos pontos 1.º, 1.º- A, 1.º- B, 1.º- C da base instrutória, todos os pedidos são improcedentes.

            5.5. Ao invés, os autores, alegando de direito, pugnam pela  procedência da acção, face à resposta positiva dada ao item 1º- D. Defendem que não tem qualquer efeito jurídico a venda posterior efectuada ao réu C....

            5.6. Prolatada a sentença, é acção julgada improcedente com absolvição do pedido de todos os demandados.

            6. Inconformados com a sentença, apelam os autores assim concluindo as alegações:

[…………………..]

           

            7. Contra-alega o réu C..., ajuizando em súmula:

            […………………..]

            8. Contra-alega a ré Companhia de Seguros H..., S.A., defendendo em síntese:

            […………………….]


*

            II. Objecto do recurso

            Delimitando o objecto do recurso face às conclusões dos apelantes, ao abrigo do preceituado nos artigos 684º, 690º e 712º, 2, do Código de Processo Civil[1], importa resolver as seguintes questões:

            - ónus de impugnação da matéria de facto;

            - o erro na apreciação da prova documental;

            - a reapreciação da decisão de facto;

            - direitos incompatíveis adquiridos do mesmo transmitente.


*

            III. Ónus de impugnação da matéria de facto

            [………………..]


*

            IV. Erro na apreciação da prova documental

            Parametrizando o cerne do litígio das partes, vemos que os autores se arrogam à titularidade do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo x...º da freguesia de..., concelho de ..., o qual corresponde ao prédio vendido em processo executivo e que, actualmente, se encontra registado a favor do réu C.... Porém, clarificam que esse prédio foi por eles adquirido sob as inscrições matriciais rústicas n.ºs w..., k..., z...,ç...,e s... as quais, por via das novas matrizes, passaram a ser inscritas num artigo único, com o n.º .... No fundo, defendem os autores que o actual artigo matricial x...º corresponde ao anterior ...º e ainda aos precedentes w..., k..., z...,ç...,e s... Alterações matriciais que supõem prova documental.

            Para tanto, invocam os apelantes os documentos juntos aos autos, que analisaremos cada um de per se.

            A certidão matricial de fls. 41 e 42, emitida em 12 de Junho de 2003 pelo Serviço de Finanças da ..., inscreve o artigo x...º como um eucaliptal sito no ..., freguesia de..., com a área de 682.968 metros quadrados, inscrito a favor do réu C..., com a menção: “Esteve inscrito sob o artigo ...º. Dec. de 25.03.91” e que não há dados comparativos que permitem comprovar as anteriores inscrições matricias. Certidão que corresponde à invocada pelos apelantes a fls. 110 e 111 do procedimento cautelar em apenso.

            Escritura de compra e venda de fls. 25 a 27, outorgada em 7.05.1984  mediante a qual I... e mulher, M..., declaram vender ao autor A..., pelo preço de 150.000$00, e este declara comprar-lhes, uma terra de mato e pinheiros, sita no ..., freguesia de..., inscrita na matriz sob os artigos w..., k..., z...,ç...,e s... descrito no registo predial no Livro ..., n.º ....  Documento que corresponde ao de fls. 34 e 35 da providência cautelar.

            Fotocópias de descrições do registo predial de fls. 46 a 48: n.º ..., sem exibição de data, relativa a uma terra de oliveiras, mato e pinheiros no sítio do ..., freguesia de...,[...].

            Escritura de compra e venda de fls. 50 a 52, outorgada em 17.06.1991, na qual F..., por si e na qualidade de procurador de sua mulher, G..., declara vender ao réu C..., pelo preço de 2.000.000$00, e este declara comprar, um prédio rústico composto de eucaliptal, no sítio do ..., freguesia de..., inscrito na matriz sob o artigo ...º, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º... da freguesia de....

            Documento de sisa n.º 272/272 de fls. 109 da providência cautelar, de 12 de Junho de 1991, relativo à compra a efectuar pelo réu C..., pelo preço de 2.000.000$00, a F...e mulher, G..., do prédio rústico composto de pinhal, mato e pastagem,  com a área de 682.969 metros quadrados, no sítio do ..., freguesia de..., inscrito na matriz sob o artigo ...º. Conhecimento de sisa que foi exibido e arquivado por via da escritura de compra e venda celebrada em 17.06.1991.

            Certidão registral de fls. 54 a 56, relativa à descrição […].

            Certidão do Serviço de Finanças da ... de fls.82 a 86, […].

            Certidão do auto de arrematação de 21 de Setembro de 1990, na carta precatória n.º 67/90, do Tribunal Judicial da Comarca da ..., extraída da execução de sentença 2/97-A do 4º Juízo, 3ª Secção, da Comarca de Lisboa, em que foi licitado o prédio rústico com a área de 682.968 metros quadrados, sito em ..., freguesia de..., constituído por pinhal, mato e pastagem, inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o artigo ...º. Prédio que foi licitado por 690.000$00 por F...(fls. 101 a 105).

            O elemento perturbador da identidade física do prédio referido na escritura de 1984 (o comprado pelos autores) foi introduzido pela contestação do réu F..., ao afirmar que os autores não provam que o seu prédio é aquele que ele comprou em execução (artigos 5º a 7º). Igualmente o réu C...envereda por idêntica contestação, defendendo que são diversas as confrontações e as inscrições matriciais (artigos 10º a 17º).

            Porém, a factualidade dada por assente na sentença assevera a identidade matricial dos imóveis sob confronto: o comprado pelo autor e o vendido em execução.   Vejamos.

            […]

            A identidade matricial tem de apurar-se com base nos documentos dos serviços de finanças e que acima se encontram discriminados, mas a identidade física do prédio há-de apurar-se pela restante prova produzida, desde logo pela averiguação da existência de um qualquer outro prédio que com aquele possa ser correlacionado.

            […].

            Do referenciado concluímos que basta a avaliação dos documentos juntos aos autos para ajuizar por erro de julgamento da matéria de facto.


*

            V. Reapreciação da decisão de facto

            As considerações tecidas não retiram qualquer relevo à prova testemunhal, que tem particular relevância na identificação física do imóvel. A inscrição matricial é apenas um elemento de identificação para o recenseamento fiscal dos imóveis, o qual pode até nem existir e, nem por isso, o prédio deixa de ter existência real. Para além disso, não podemos deixar de relativizar a sua importância, uma vez que a inscrição matricial do prédio se baseia numa participação da parte interessada, normalmente sem qualquer controlo dos serviços fiscais. E as testemunhas inquiridas são assertivas quanto à identidade do prédio questionado, como procuraremos demonstrar.

            […]


*

            VI. Fundamentos de facto

            […].


*

            VII. Fundamentos de direito

            Os autores defendem a nulidade do negócio jurídico que transmitiu a propriedade do imóvel para o réu C... e a existência de um conflito de presunções: a derivada do registo, a favor do réu C..., e a derivada da posse, a favor dos autores, prevalecendo esta última sobre aquela. A sentença concluiu pela improcedência por estar indemonstrada a identidade dos prédios objecto dos negócios sob confronto. Improcedência que os apelados propugnam. A questão colocada pela sentença sindicada está ultrapassada pela fixação factual, pois está comprovada a identidade do prédio transmitido ao autor e no processo executivo.

            O enquadramento jurídico do litígio centra-se no conflito existente entre dois adquirentes do mesmo imóvel (identidade fixada em termos factuais) e do mesmo transmitente, quando o primeiro adquirente (o autor) não inscreveu no registo tal aquisição e o adquirente no processo executivo procedeu ao registo da sua aquisição, tal como o subadquirente, o réu C.... Problemática jurídica que entronca na existência de direitos incompatíveis sobre o mesmo imóvel adquiridos de um transmitente comum.

            O I... transmitiu a propriedade do imóvel ao autor, por escritura pública outorgada em  7.05.1984 e, posteriormente, em execução movida contra aquele I..., o prédio é objecto de venda judicial, em 21.09.1990,  a favor de F... que, por seu turno, o transmitiu, por escritura pública de 17.06.1991 a C.... A questão nodal é, pois, a de averiguar qual dos direitos de propriedade invocados relativamente ao prédio rústico identificado deve prevalecer.

            O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes (artigo 6º do Código de Registo Predial). E no âmbito da oponibilidade do registo predial a terceiros, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo (artigo 5º do Código de Registo Predial). Registo predial que se destina a dar publicidade à situação jurídica dos prédios para perseguir a segurança do comércio jurídico imobiliário, mas com valor meramente declarativo, por regra (artigos 1º e 4º do Código de Registo Predial). Assim, o direito de propriedade ou outro direito real sujeito a registo não será oponível, em termos de prevalência ou prioridade, a quem não seja terceiro.

            Após lata controvérsia jurisprudencial, dando mesmo azo à publicação de dois acórdãos uniformizadores de jurisprudência[2], são legalmente tidos como terceiros para efeitos de registo aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si (n.º 4 do artigo 5º do Código de Registo Predial, aditado pelo Decreto-Lei nº 533/99, de 11 de Dezembro). Diploma que, tal como o refere o preâmbulo, consagra a clássica definição de Manuel de Andrade[3], assumindo uma feição interpretativa que, como tal, se integra na lei interpretada.
            O acórdão uniformizador n.º 15/97 definiu terceiros para efeitos de registo predial como “todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”, adoptando um conceito mais amplo de terceiros para efeitos de registo predial.

            O acórdão uniformizador nº 3/99 expressou o entendimento de que “o exequente que nomeia bens à penhora e o seu anterior adquirente não são terceiros; embora sujeita a registo, no caso de imóveis, a penhora não se traduz na constituição de algum direito real sobre o prédio, sendo apenas um dos actos em que se desenvolve o processo executivo ou, mais directamente, um ónus que passa a incidir sobre a coisa penhorada para satisfação dos fins da execução. A ineficácia apenas se reporta aos actos posteriores à penhora, pelo que os actos de disposição ou oneração de bens, com data anterior ao registo da penhora, prevalecem sobre esta”. A significar que o conflito entre o direito de propriedade derivado de uma compra e venda anterior, não registado, e o direito de propriedade decorrente de uma venda executiva sujeita a registo, se resolve em favor do primeiro.

            Houve uma recondução ao conceito restrito de terceiros, considerando a função meramente declarativa do registo predial, na lógica da dogmática que lhe confere uma natureza não constitutiva, limitando-se a conferir-lhe a publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, afastando o inconveniente de maximizar uma mera função publicitária, que não pode sobrepor-se às normas e princípios do autêntico direito substantivo, de modo a que “quem adquiriu a domino, ainda que não tenha transcrito, é sempre preferido a quem adquire a non domino, se bem que o seu título se torne público[4].

            Não obstante esta evolução jurisprudencial e legislativa, consideramos que o rumo decisório se prende com a natureza da venda executiva. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (artigo 824º, 1, do Código Civil), a significar que com a penhora a titularidade do direito sobre o bem não se transfere, nem para o tribunal, nem para o exequente, antes se mantém na esfera jurídica do executado. E só com a venda em execução tem lugar a transferência da titularidade do direito do executado para o adquirente. Daqui resulta, inequivocamente, que apesar da natureza coactiva da venda, o vendedor é o executado e não o tribunal ou o exequente. Asserção que é atestada pela reversão para o executado do remanescente do preço, quando o haja, depois de pagos os créditos exequendo e graduados. O vendedor, como sujeito material do negócio, é o executado e o tribunal é apenas o sujeito formal, que actua, não como representante do executado ou do exequente, mas no uso do seu poder de jurisdição executiva, sem qualquer modificação na natureza do contrato de compra e venda[5]. Na verdade, na execução, o tribunal não vende no exercício do poder originariamente pertencente ao credor ou ao devedor, mas no exercício de um poder autónomo imanente à própria essência da função judiciária.  É uma venda forçada, alheia à vontade do executado, que prescinde da sua declaração negocial nesse sentido, mas em que o executado continua a ser o vendedor. Gera-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente[6].

            Sabemos que este entendimento não é consensual, havendo quem defenda que constitui mero artifício a afirmação de que na venda judicial é o executado que deve ser visto como vendedor. Afirma-se que, na venda executiva, o executado é substituído no acto da venda pelo juiz enquanto órgão do Estado, gerando-se uma aquisição derivada em que o transmitente não é o executado mas o Estado[7]. Argumenta-se que o direito de propriedade derivado da venda judicial, ao contrário do direito derivado da compra e venda, que se transfere e consolida no património do comprador por mero efeito do contrato, advém para o respectivo titular por força da lei e não por acto do executado, pelo que se não pode defender que ocorra um conflito de dois direitos adquiridos do mesmo transmitente. Por isso, se propugna que ao adquirente em venda judicial não pode ser oposta uma transmissão anteriormente feita pelo executado a favor de uma outra pessoa que a não fez inscrever oportunamente no registo predial[8].

            Delineados os termos desta problemática, debruçando-nos sobre a doutrina, vemos que Antunes Varela e Henrique Mesquita[9]  explicitam que terceiros, para efeitos de registo predial, são aqueles que, relativamente a determinado negócio de alienação ou oneração de uma coisa, adquiram do mesmo autor ou transmitente direitos incompatíveis, no todo ou em parte, e não os que adquiram direitos incompatíveis através de negócio concluído com outro sujeito[10]. Asserção que se reconduz à afirmação de que só a pessoa que era titular de certo direito e o alienou é que dispõe de legitimidade, enquanto o negócio não for inscrito no registo, para uma segunda alienação, porque a primeira, por via da omissão no registo, é inoponível a terceiros. A significar que se A vender o mesmo prédio a B e a C, este é terceiro em relação ao B e pode opor-lhe a aquisição se a inscrever em primeiro lugar no registo predial. E neste conceito de terceiros incluem estes civilistas também aqueles que, sobre determinada coisa, alienada pelo respectivo titular, adquiram contra este, mesmo sem o concurso da sua vontade, direito de natureza real através de actos permitidos por lei (por regra, actos judiciais ou que assentem numa decisão judicial)[11]. Neste juízo enunciativo cabem as situações em que A vende a B um determinado prédio, que não transcreve no registo,  e C, em venda executiva, adquire-o e inscreve-o no registo, sem que o direito de B lhe seja oponível. Caso em que não ocorre uma ampliação do conceito de terceiros, se entendermos, como defendem aqueles civilistas, que na venda executiva o vendedor é o próprio executado, que transfere para o adquirente os seus direitos sobre a coisa vendida coerciva e judicialmente no interesse dos seus credores[12]. Assim concluindo que terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que adquiram do mesmo alienante direitos incompatíveis e aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos actos jurídicos de que tais direitos resultam[13].

            Entendimento que nos parece absolutamente compaginável com o conceito de terceiros ínsito ao n.º4 do artigo 5º do Código de Registo Predial, na medida em que sendo o executado transmitente, continuam a ser terceiros, para efeitos de registo, o anterior adquirente do direito de propriedade não registado e o adquirente em venda executiva de direito de propriedade registado, pois ambos adquiriram de um autor comum um direito de propriedade incompatível entre si[14].   

            Não olvidemos que a justificação de Manuel Andrade que o registo não pode “assegurar a existência efectiva do direito da pessoa a favor de quem esteja registado um prédio, mas só que a ter ele existido ainda se conserva – ainda não foi transmitido a outra pessoa”[15] está distanciada da posterior evolução do direito registral, que dá publicidade à situação jurídica dos prédios, é condição de eficácia dos actos sujeitos a registo relativamente a terceiros e, em alguns casos, condiciona mesmo a eficácia inter partes[16].

            Ante o exposto, parece-nos que o acórdão uniformizador 3/99 e a actual redacção daquele artigo 5º, ao assumir aquele aparente conceito restrito de terceiros, deixou de fora a discussão da natureza dos actos aquisitivos, se devem ser do tipo negocial ou se também podem ser actos unilaterais, previstos na lei, realizados por terceiro ou pela autoridade pública. Nesta linha de pensamento, António Quirino Duarte Soares[17] defende que a fundamentação do acórdão uniformizador 3/99 deixa uma porta aberta para incluir na sua previsão a concorrência da venda judicial com os actos negociais estritos.                                                                    

            É neste trajecto que alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[18] tem vindo a defender que o anterior adquirente do direito de propriedade não registado e o adquirente em venda executiva de direito de propriedade registado são terceiros para os fins previstos no predito artigo 5º, n.º 4, do Código de Registo Predial. Posição que sufragamos por nos parecer a mais consentânea com a apontada natureza da venda executiva e que dá prevalência ao direito de propriedade do F..., por ter inscrito no registo a sua aquisição, assim preterindo o direito de propriedade do autor, cuja aquisição não foi levada ao registo.

            Mesmo admitindo a invalidade da transmissão operada pela venda judicial, por o executado já não ser o titular do direito transmitido, como advogam os autores,  e que o réu C... adquiriu de quem não tinha legitimidade para alienar, por via de vício substantivo que afectava o seu direito, teríamos de convocar o disposto no nos artigos 291º do Código Civil e 17º, 2, do Código de Registo Predial. Vale por dizer que mesmo aceitando que o réu C... adquiriu do réu F...um direito de propriedade que este adquiriu por acto inválido, a venda judicial a non domino, não estamos perante a simplista solução propugnada pelos apelantes. O enquadramento jurídico sempre teria de efectuar-se à luz daqueles preceitos, cuja previsão legal abarca um defeito substantivo do título e um defeito substantivo do registo[19].

            Aquela primeira norma preceitua que a declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da acção de nulidade, a conferir protecção ao terceiro subadquirente que, onerosamente e de boa fé, adquire do titular inscrito no registo. A segunda confere protecção ao adquirente, a título oneroso e de boa fé, que tenha registado o seu direito antes do registo de qualquer acção de nulidade ou anulação do negócio jurídico, salvo se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. Portanto, as duas normas exigem acto negocial oneroso e de boa fé e harmonizam-se entre si: enquanto o artigo 291º prevê hipóteses de invalidades de direito substantivo, o artigo 17º, 2, reporta-se a invalidades registrais, derivadas de registos efectuados com base em títulos falsos ou insuficientes para a prova do facto registado[20].

            Como já deixámos antever, o conceito de terceiro registral (artigos 17º, 2, do actual Código de Registo Predial, cujas sucessivas alterações não introduziu modificações nesse preceito, e 85º de idêntico diploma de 1967), é alheio ao conceito de terceiros que temos vindo a definir, antes aludindo à pessoa que inscreve um direito submetido a registo, se este direito foi adquirido, de boa fé e a título oneroso, da pessoa que aparecia como seu titular no registo público de propriedade[21]. Se o direito inscrito for transmitido, a título oneroso, a um subadquirente de boa fé que o inscreva a seu favor antes do registo da acção de nulidade, a presunção juris tantum derivada do registo (artigo 7º) pode transformar-se juris et jure, nos termos constantes das disposições que consagram o princípio da fé pública registral. Ainda assim, não há coincidência entre os conceitos de terceiro referidos nesses dois preceitos: o terceiro do artigo 291º é o adquirente que, de boa fé e a título oneroso, registou a sua aquisição antes do registo da acção de nulidade ou de anulação, ao passo que o do artigo 17º, 2, impõe que esse direito tenha sito transmitido por pessoa que no registo surja como titular inscrito, de modo a que só o subadquirente mencionado nesta última norma é um verdadeiro terceiro registral [22]. Proposição que nos leva a definir para as duas normas o seguinte o campo de aplicação: o subadquirente de boa fé e a título oneroso que confiou na presunção registral emergente do registo a favor do transmitente e registou a sua aquisição antes do registo da acção impugnatória, não pode ser prejudicado pela nulidade do registo a favor do transmitente (artigo 17º, 2, CRP); o subadquirente de boa fé e a título oneroso que registou a sua própria aquisição antes do registo da acção impugnatória, mesmo que não beneficie da presunção registral a favor do transmitente, não pode ser prejudicado pela declaração de nulidade do negócio jurídico de que resulta o direito do transmitente, salvo se a acção tiver sido registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (artigo 291º, 2, do Código Civil)[23].

            Sabemos que é cada vez mais reduzido o campo de aplicação desta última norma, face à obrigatoriedade do registo a favor do transmitente, embora indirecta e com excepções, uma vez que o artigo 9º, 1, do Código de Registo Predial dispõe que os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo.

            Retornados ao caso dos autos, configurando a validade formal e substancial da compra e venda efectuada ao autor e continuando a pressupor a nulidade do negócio jurídico subjacente à aquisição do F..., este transmitiu ao réu C..., estando aquele inscrito no registo como titular do direito de propriedade transmitido. Vindo os autores exercer o seu direito à declaração de nulidade das vendas subsequentes, por acção instaurada em 29 de Agosto de 2003, como o réu C... adquiriu do titular inscrito, F......, e um e outro registaram o facto aquisitivo do seu direito de propriedade antes de proposta a acção, por força do n.º 2 do artigo 17º do Código de Registo Predial, o seu direito não pode ser afectado, porque adquiriu a título oneroso e de boa fé (os autores nada alegaram sobre a sua eventual má fé). Para além disso, não foi a acção instaurada dentro dos três anos posteriores ao negócio (inválido, cujo registo se encontra reportado a 14.12.1990), pelo que o direito do réu C...não poderá ser afectado, à luz do disposto no artigo 291º do Código Civil. Protege-se, assim, quem, ignorando o vício do negócio anterior a favor do transmitente, ganhou plena confiança na sua validade consultando o registo[24].

            Não ignoramos a posição dos que defendem que esta problemática não pode ser resolvida apenas com base no registo, devendo partir-se da boa fé, com o comportamento honesto tido como o vector básico de actuação. Deve exigir-se sempre a boa fé do terceiro, por força do princípio geral da boa fé, que se deve considerar subjacente ao exercício de todas as posições jurídicas subjectivas[25]. Porém, nas circunstâncias factuais apuradas nada resulta, nem os autores o invocaram, que possa intuir a má fé dos réus adquirentes, o que logo inviabiliza qualquer veredicto sobre essa matéria.

            Não interfere com esta solução a circunstância de subsistirem duas descrições prediais diferentes relativamente ao mesmo imóvel: o autor negociou com o I... em 7.05.1984 com o prédio na situação de descrito na CRP sob o n.º ... (embora sem estar inscrito a favor do I...  (fls. 18 a 23). Como não inscreveu o acto aquisitivo no registo, na execução movida contra aquele I..., a penhora, com registo de 20.11.1989, vem a incidir sobre o prédio na situação de omisso no registo predial e todas as inscrições subsequentes referem-se a essa descrição, a n.º 0002, de 8.02.1990 (fls. 108 a 110). Foi assim que o autor concluiu a aquisição do prédio descrito sob o n.º ... e os réus adquirentes fizeram a  aquisição do prédio descrito sob o n.º 0002. E a duplicação de registos, decerto desconhecida dos réus e também da Conservatória (os registos foram lavrados em definitivo), veio a lume nesta acção, rectius na providência cautelar em apenso,  mas não altera os termos delineados para o conflito, uma vez que a desprotecção dos autores deriva da omissão do registo, que não foi promovido nem quanto a uma nem quanto a outra descrição.

            Inexistem quaisquer dados que afectem a boa fé do terceiro e que possam afastar a aplicação das regras aludidas. O terceiro está de boa fé se acreditou, sem culpa, na fidelidade do registo à realidade substantiva, sendo inquestionável que o terceiro não está vinculado a averiguar a efectividade dessa fidelidade. Daí que existindo o registo a favor daquele de quem o terceiro adquire se presuma a sua boa fé[26].

            Igualmente não tem qualquer relevância os actos de posse praticados pelos autores sobre o prédio em destaque, sob pena de tornar inútil e libertar de quaisquer consequências jurídicas o instituto do registo predial, designadamente a protecção e segurança do comércio jurídico imobiliário que prossegue. Admitir que o adquirente que não registou possa, por via da usucapião, neutralizar os efeitos do registo promovido por um terceiro adquirente sobre a mesma coisa é frontalmente contrária à regra basilar em que assenta o registo predial e ao fim precípuo da segurança das transacções, que através dele se pretende atingir[27].

            Se decantarmos esta proposição à luz do instituto da usucapião veremos que é inaceitável outro posicionamento. A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício de determinado direito real (corpus) e o faz com a intenção de agir como titular do direito (animus) (artigo 1251º do Código Civil). Por regra, o possuidor é o titular do direito que exerce possessoriamente – é a chamada posse causal – mas se alguém tiver apenas uma posse formal e alienar o direito correspondente à sua actuação possessória, o beneficiário da alienação nada adquire por mero efeito do negócio. Trata-se de uma aquisição derivada e ninguém pode transmitir direitos que não tem (nemo plus jurisin alium transferre potest quam ipse habet). Assim, é inviável a invocação da posse do transmitente para através da acessão e adição dessas posses atingir a usucapião. O mesmo é dizer que se os autores adquiriram o direito de propriedade sobre o imóvel e, porque não registaram a aquisição, não podem opor ao terceiro o direito que receberam do transmitente, também lhe é vedado invocar, para efeitos de usucapião, a posse desse transmitente, que mais não é do que o lado material ou exterior do direito cujo registo foi omitido[28]. Estas considerações afastam a adução dos apelantes quanto ao conflito de presunções derivadas do registo e da posse e da pretendida prevalência desta última.

            Deste modo ajuizamos que a finalidade daquele regime legal é tutelar ou privilegiar, em detrimento do adquirente que, por incúria, não procedeu à inscrição registral do seu direito, o sucessivo adquirente que agiu em função da situação jurídica publicitada através do registo[29] e, nessa medida, o direito dos autores não pode prevalecer sobre o direito do réu C....

            Neste contexto, embora por fundamentos diversos, mantemos a decisão final de improcedência da acção.


*

            VIII. Decisão

            Perante o explanado, acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação improcedente e, não obstante a diversidade da fundamentação factual e jurídica, confirmar a sentença apelada.

            Custas da apelação a cargo dos autores (artigo 446º do Código de Processo Civil).


[1] Na redacção imperante até à entrada em vigor do Decreto-Lei 303/07, de 24 de Agosto, à qual pertencerão todas as normas desse diploma que, doravante, viermos a indicar sem outra menção (por se tratar de processo entrado em juízo antes de 1 de Janeiro de 2008).
[2] Acórdãos uniformizadores de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 15/97, de 20 de Maio de 1997 (Diário da República, I- A, de 4.07.1997) e n.º 3/99, de 18 de Maio de 1999 (Diário da República, I- A, de 10.07.1999).
[3] Para o Prof. Manuel de Andrade (“Teoria Geral da Relação Jurídica”, 1983, II, pág. 19) terceiros são apenas os que, relativamente a determinado acto de alienação, adquirem do mesmo autor ou transmitente, direitos total, ou parcialmente, incompatíveis.
[4] Orlando de Carvalho,  “Terceiros para efeitos de registo”, in “Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra”, LXX, 1994, pág. 102.
[5] Pedro Romano Martinez, “Venda Executiva, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, págs.  335 e 336; Acs. STJ de 4.04.2002, in CJ/STJ, tomo 1, pág. 154; R.C. de 3.03.2009, processo 93/03.9TBFCR.C1
[6] Acs. STJ de 7.07.1999, in CJ/STJ, tomo II, pág. 164; R.C. de 3.03.2009, in www.dgsi.pt, processo 93/03.9TBFCR.C1.
[7] Lebre de Freitas, “ A Acção Executiva”, 4.ª ed., pág. 348, nota 44;  Anselmo de Castro, “A Acção Executiva Singular Comum e Especial”, pág. 254;
[8] Acs. STJ de 30.04.2003 e  8.01.2009, in www.dgsi.pt, ref. 03B99 e 608B3877
[9] RLJ 126º, págs. 380 a 384, e 127º, págs. 19 a 32.
[10] RLJ 126º, pág. 384.
[11] RLJ 127º, pág. 19.
[12] RLJ 127º, pág. 19, nota 2.
[13] RLJ, 127º, pág. 20.
[14] Ac. STJ de 7.07.99, in CJ/STJ, tomo II, pág. 164, tirado já depois do acórdão uniformizador 3/99 e da introdução do n.º4 ao artigo 5º do CRP pelo Decreto-Lei 533/99, de 11 de Dezembro .
[15] Ibidem, pág. 20.
[16] Isabel Pereira Mendes, “Código do Registo Predial”, Anotado e Comentado, 17ª ed., pág. 129.
[17] Cadernos de Direito Privado, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, Janeiro/Março 2005, pág. 8.
[18] Acs. STJ de 4.04.2002, in CJ/STJ, tomo 1, pág. 154; de 14.01.2003, in CJ/STJ, tomo 1, pág. 19.
[19] Quirino Soares, ibidem, pág. 10.
[20] Isabel Pereira Mendes, ibidem, pág. 124.
[21] Isabel Pereira Mendes, Estudos sobre Registo Predial”, 1998, pág. 122.
[22] Isabel Pereira Mendes, ibidem, págs. 124 e 125.
[23] Isabel Pereira Mendes, ibidem, págs. 126 e 127.
[24] Isabel Pereira Mendes, Código do Registo Predial cit., pág. 229.
[25] José Alberto González, “Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário”, 4ª ed., págs. 243 e 244.
[26] José Alberto González, ibidem, pág. 248.
[27] Antunes Varela e Henrique Mesquita, RLJ 127º, p.26
[28] Antunes Varela e Henrique Mesquita, ibidem, pág. 32.
[29] Antunes Varela e Henrique Mesquita, ibidem, pág. 21