Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3106/20.6T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 498.º, N.º 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Prescreve no prazo previsto na lei criminal o direito de indemnização emergente de acidente de viação imputável a condutor que conduzia sem carta de condução.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

A “A...”, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra

AP..., Companhia de Seguros S. A.”, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar-lhe o montante indemnizatório de € 12.500,00, acrescido de juros de mora contabilizados desde a citação e até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese:

- a existência de um acidente de viação, ocorrido em 06/09/2015, em que foram intervenientes um veículo especial ambulância, pertença da A., que seguia em marcha de urgência assinalada, por transportar um utente em maca com destino ao hospital, e um veículo ligeiro de mercadorias, seguro na R.;

- tendo o acidente ocorrido por responsabilidade exclusiva do condutor do veículo seguro, dele resultaram diversos danos, no valor peticionado, cuja indemnização cabe à R. suportar, por força da transferência de responsabilidade civil decorrente do dito seguro (seguro obrigatório automóvel);

- por força do acidente em causa, o condutor do veículo seguro/sinistrante foi acusado e condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física e por um crime de condução sem habilitação legal, no âmbito de processo comum singular com o n.º 169/15...., do Juízo Local Criminal ..., razão pela qual, nos termos do disposto no art.º 498.º, n.º 3, do CCiv., o prazo prescricional é de cinco anos, não estando o peticionado direito indemnizatório prescrito.

A R. contestou, defendendo-se por impugnação e pugnando pela sua absolvição, para o que, ademais, excecionou a prescrição daquele direito indemnizatório, por entender que o prazo prescricional aplicável é o de três anos (não o de cinco anos), previsto no n.º 1 do aludido art.º 498.º.

Deduziu ainda, ao abrigo do art.º 321.º e segs. do NCPCiv., incidente de intervenção acessória de AA (menor, condutor do veículo seguro) e de BB e mulher, CC (pais daquele condutor menor), o que veio a ser deferido, sem que tenham os Chamados apresentado oposição ou tomado qualquer posição.

A A., no exercício do contraditório, veio pugnar pela improcedência da exceção da prescrição ([1]).

Dispensada a audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, conhecendo da matéria da invocada prescrição, pelo qual esta exceção foi julgada procedente, por provada, com a consequente absolvição da R. do pedido.

Desta decisão absolutória vem a A., inconformada, interpor o presente recurso, apresentando alegação respetiva e as seguintes

Conclusões ([2]):

«1. Nos presentes autos está em causa um acidente de viação ocorrido em 06/09/2015, que deu origem a um processo comum conforme decorre da sentença junta aos autos;

2. Do ilícito levado a cabo pelo condutor do veículo segurado pela ré resultaram danos à integridade física do doente transportado no veículo (ambulância) da autora e bem assim danos ao veículo da autora;

3. A autora é assim, perante o ilícito praticado pelo condutor do veículo seguro pela ré, lesada e nessa qualidade beneficia do prazo mais longo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498º do Código Civil;

4. A presente ação deu entrada em 20/08/2020 e a ré foi citada em, 26/08/2020, pelo que à data da instauração da ação ainda não havia decorrido o prazo mais longo referido;

Sem prescindir,

5. A acusação que deu origem à sentença já junta aos autos, foi deduzida apenas em 14/05/2018 (conforme cópia junta aos autos), sendo que só após tal data é que começa a correr o prazo de prescrição, na medida em que antes de tal prazo a autora, lesada, não estava em condições de exercer o seu direito.

6. Pelo que, também por tal fundamento legal, previsto no artigo 306º do Código Civil não se verifica a exceção de prescrição.

7. A sentença recorrida viola o disposto no n.º 3 do artigo 498º e bem assim o disposto no artigo 306º ambos do Código Civil.

8. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se a decisão proferida e julgando a exceção de prescrição não provada e improcedente, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

Assim fazendo V.ªs Ex.ªs a acostumada JUSTIÇA!».

Contra-alegou a parte recorrida, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.

*

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos tais regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

II – Âmbito do recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado nos articulados das partes, está em causa na presente apelação saber se ocorre, ou não, a prescrição do direito indemnizatório invocado na ação.

                                                           *

III – Fundamentação

            A) Quanto à matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como assente:

«1. A autora é dona e legítima possuidora do veículo especial, ambulância, ... 313CDI, com a matrícula ...-...-ZJ.

2. No dia 06-09-2015, pelas 17h e 30m, AA, à data com 16 anos de idade, conduzia, sem habilitação legal para o efeito, o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca ..., modelo ..., de cor ..., com a matrícula ...-...-NU, na Estrada ..., em ..., ..., no sentido ... - ....

3. Seguia no mesmo sentido, a ambulância da autora com a matrícula ...-...-ZJ, em marcha de urgência, devidamente assinalada.

4. No decurso de uma manobra de ultrapassagem pela ambulância da autora com a matrícula ...-...-ZJ, veio esta a ser embatida na sua parte dianteira pela viatura automóvel com a matrícula ...-...-NU.

5. Em consequência do embate, DD, que na altura seguia de ambulância na célula sanitária, deitado na maca, sofreu dores traumatismo cervical e ferimentos ao nível da coluna.

6. Na sequência do sinistro referido em 4 e 5, veio o veículo especial, ambulância, ... 313CDI, com a matrícula ...-...-ZJ, a precisar de reparação cujo custo ascendeu a 4.617,35€ (quatro mil, seiscentos e dezassete euros e trinta e cinco cêntimos).

7. Ao tempo do sinistro referido em 4 e 5., responsabilidade civil pelos danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula ...-...-NU, encontrava-se transferida para a ré através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...70...

8. Por carta datada de 05-05-2016, que deu entrada na sede da autora, pelo menos em 19-05-2016, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões – Fundo de Garantia Automóvel reportando-se ao acidente ocorrido em 06-09-2015 em ..., em que foram intervenientes o “veículo lesante ......NU” e veículo lesado “......ZJ”, informou que “(…) em conformidade com a informação arquivada no nosso processo, existe seguro para o veículo lesante na AP... – C..., S.A., titulado pela apólice ...70... Assim queira(m) V. Exa(as) contactar a referida empresa de seguros. Consequentemente, procedemos ao encerramento do nosso processo.”.

9. Em 14-05-2018, foi deduzida acusação pública contra AA pelos factos referidos em 2, 4 e 5, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3º, nº 1 e nº 2 do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

10. Por sentença do Juízo Local Criminal ... (Juiz 1) do tribunal Judicial da Comarca ... de 21-02-2019, transitada em julgado em 26-03-2019, foi AA condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), e de um crime condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 6,00€ (seis euros), em cúmulo jurídico, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), o que perfez a quantia global de 720,00€ (setecentos e vinte euros).

11. A presente ação foi intentada em 20-08-2020 e a ré foi citada para contestar em 26-08-2020.» ([3]).

                                                           *

B) O Direito

Da contagem do prazo prescricional e respetiva duração

Julgada procedente, no saneador-sentença, a exceção da prescrição do direito indemnizatório – invocado com fundamento em responsabilidade civil decorrente de acidente de viação – que se pretendia fazer valer na ação, vem a A./Apelante pugnar pela improcedência dessa exceção, por se dever considerar, desde logo, que o prazo prescricional apenas pode ser contado após a dedução da acusação que deu origem à sentença proferida no âmbito do processo penal, acusação essa apenas deduzida em 14/05/2018, sendo que anteriormente a tal prazo a A./lesada não estava em condições de exercer o seu direito.

Ademais, a Recorrente invoca mesmo que o prazo de prescrição aplicável é o – alargado – de cinco anos, em vez do prazo de três anos a que alude a R./Apelada (cfr. art.º 498.º, n.ºs 1 e 3, do CCiv.), prazo esse alongado que não foi ultrapassado (acidente ocorrido em 06/09/2015 e citação da R. em 26/08/2020).

A contraparte alicerça a sua argumentação em contrário no pressuposto de que em nada releva aqui o processo penal, por nenhum crime ter sido cometido contra a A./Recorrente.

Assim, afirma a Recorrida:

«O crime que releva para efeitos do alargamento do prazo de prescrição de três para cinco anos é o de ofensas à integridade física e não o de condução sem habilitação legal.

(…)

Quanto aos danos da viatura da autora não há crime nenhum.

O mesmo vale para o crime de condução sem habilitação legal. Trata-se de um crime de mera actividade. O mesmo não pressupõe qualquer dano.

Este crime não constitui facto ilícito cível. Ou seja: o facto ilícito gerador da responsabilidade civil do agente no processo penal que correu seus termos, em relação à Autora não constitui crime, porque em relação a esta apenas houve danos materiais.

O que constituiu crime foi o resultado na pessoa do ofendido DD que foi vitima de ofensa à sua integridade física. Quanto à autora da presente acção não há – repete-se – crime nenhum. Por isso, para efeitos do artigo 498º, nº 3, o facto ilícito que fundamenta a pretensão da autora /recorrente na presente acção é meramente civil.».

E parece líquido que, efetivamente, nenhum crime foi cometido contra a própria A./Recorrente, posto esta apenas ter sido vítima de danos materiais e estar fora de causa a prática pelo agente, nesse âmbito, de um crime de dano (crime este não imputado, pelo qual o agente não foi julgado e que só seria punível na forma dolosa, que não foi alegada). Trata-se, como é consabido, quanto ao elemento subjetivo do tipo, de um crime doloso, ficando afastado o cometimento a título de negligência ([4]).

Nesta perspetiva, é também claro que o crime de ofensa à integridade física teve outrem como lesado/vítima e o crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal também não foi cometido especificamente contra a aqui A., que não foi nele visada.

Mas é certo, por outro lado, que o acidente de viação ocorreu, que foi alegado na petição ter sido causado, culposamente, pelo condutor do veículo seguro na R., provocando, assim, danos materiais à demandante, e que tal condutor/agente foi julgado e condenado, para além do mais e com trânsito em julgado, pela prática, aquando do acidente, de crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal ([5]).

E este crime é punível com pena «de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias» (art.º 3.º, n.º 2, do DLei n.º 2/98, de 03-01), pelo que o respetivo prazo de prescrição é de 5 (cinco) anos ([6]).

Poderá este crime – comprovadamente praticado – aproveitar à A./Recorrente para o efeito de alongamento do prazo prescricional (de três para cinco anos) pelo ilícito cível de que esta alegadamente foi vítima?

Na decisão recorrida entendeu-se que não pode, com a seguinte fundamentação, que cabe agora sindicar:

«Ora, a autora não alegou nem provou que a conduta do condutor do veículo seguro pela aqui ré tenha consubstanciado uma conduta prevista e punida pela Lei Penal.

A autora agarra-se sim aos referidos factos provados n.ºs 9 e 10 da sentença condenatória penal acima transcritos, mas parece olvidar que tal factualidade é relativa aos elementos objectivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física por negligência.

É verdade que repisou ainda autora nos seus requerimentos (de 25-05-2021 e de 31-08-2021) parte do facto provado n.º 10 da sentença proferida no processo crime, isto é, que “o embate ficou a dever-se a exclusiva e manifesta falta de perícia do arguido AA” para denotar que o acidente em causa foi causado pelo condutor do veículo seguro pela ré e que os crimes em juízo geraram os danos que pretende agora ver indemnes. Porém, repise-se, não são esses crimes – pelos quais o condutor foi acusado e sentenciado – que geraram os danos por si peticionados, não sendo, além do mais, aquele comportamento o comportamento citado per se consubstanciador de qualquer crime.

(…) no caso decidendo, a autora não alegou nem provou que a factualidade por si invocada corresponda a um tipo legal de crime (…).».

E, quanto ao crime de condução sem habilitação legal, expendeu-se assim:

«Convém ter, desde logo, presente que com este crime procura-se tutelar a segurança de circulação rodoviária, sendo um “crime comum e de perigo abstracto. Comum porque pode ser cometido por qualquer pessoa. De perigo, porque a consumação não exige a efectiva lesão do bem jurídico, abstracto, porque o perigo não faz parte do tipo, sendo apenas motivo da proibição, fundando-se a tipificação da conduta na sua perigosidade típica – o que dispensa a prova do perigo no caso concreto –, para o bem jurídico” (…).

(…) este crime não tem ínsito a produção de qualquer dano, não se podendo, como tal, dizer que o crime de condução sem habilitação legal corresponda a um facto ilícito para efeitos da responsabilidade aquiliana aqui em juízo. Ou dito e visto de outra maneira, a condução sem habilitação legal até pode vir a causar danos, mas a conduta de onde eles advieram, o facto ilícito imputado ao agente, não é aquele crime tipificado na lei penal extravagante.».

Que dizer?

Desde logo, é indispensável que se mostre serem os factos consubstanciados em acidente de viação passíveis de fundar, para além de responsabilidade civil, responsabilidade penal, para o que haverão de ser alegados e provados os factos integrantes do eventual crime praticado ([7]).

Sem o que não poderá o lesado beneficiar de prazo mais longo de prescrição, nem do diferimento, para efeitos de contagem, do início do prazo prescricional.

Dúvidas não restam, pois, de que compete ao lesado, enquanto autor na ação indemnizatória, para afastar a prescrição (beneficiando do alongamento do prazo ou do diferimento do início da sua contagem), uma vez invocada pela contraparte, alegar – para depois poder provar, enquanto matéria de contra-exceção ([8]) – os factos consubstanciadores de um crime, da dita responsabilidade penal para além da meramente civil ([9]).

Perspetivando, então, a argumentação do Tribunal a quo, deve dizer-se que, mesmo não se tratando de um crime de dano (mas de perigo), para cujo cometimento/consumação não se exige a efetiva lesão do bem jurídico ou um qualquer dano concreto a outrem, o certo é que da sua prática podem resultar danos concretos, como os que a A./Recorrente alegou ter sofrido (danos materiais). Como o próprio Tribunal recorrido reconhece, «a condução sem habilitação legal até pode vir a causar danos», danos esses que a A./lesada invoca nos autos.

E também é inequívoco que este crime foi cometido e, de acordo com o alegado – suportado até em sentença penal condenatória já transitada –, influiu no acidente e deste resultaram os danos.

Por isso, o crime de condução sem carta praticado não é, em concreto, indiferente – mormente na lógica do alegado pela demandante – ao acidente, antes pelo contrário.

E, olhando ao concretamente ocorrido (dinâmica apurada do acidente, no âmbito do processo penal), em linha com o alegado pela A., esse crime, englobando-se no ilícito concretamente gerador dos danos (também os danos alegadamente sofridos pela A.), insere-se no processo causal que levou a tais danos.

Dito de outro modo, o ilícito global concretamente gerador dos danos – aqui se contemplando, quanto à ação, a conduta do agente/condutor lesante, o modo como conduzia, as manobras adotadas, não sendo titular de carta de condução para automóveis, pelo que se presume não estar preparado para o exercício de tal condução, uma atividade consabidamente com elevado nível/potencial de perigosidade, com infração ao disposto em normas estradais (como imputado pela A.) e, em matéria criminal, ao dito art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do DLei n.º 2/98, de 03-01 – compreende também a condução sem carta.

Esta, influindo no desencadear do acidente, contribuiu, em concreto, para o ocasionar dos respetivos danos, inserindo-se no processo causal gerador dos mesmos ([10]), mesmo que em abstrato se trate de um crime de perigo.

Assim, aos danos alegadamente sofridos pela A. não é indiferente a dita condução sem carta e o correspondente ilícito criminal, importando aqui, como dito, perspetivar o caso em concreto, mais que um juízo qualificativo abstrato de normas e decorrentes ilícitos.

Dispõe o n.º 3 do art.º 498.º do CCiv. – por reporte ao n.º 1 – que, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.

Tal implica, em matéria de prescrição ([11]) do direito indemnizatório decorrente de responsabilidade civil extracontratual, que a conduta do agente (autor da lesão/dano) constitua um ilícito civil (à luz do disposto no art.º 483.º do CCiv.) e também um ilícito criminal.

Ora, nos termos alegados pela A., a conduta do aludido condutor do veículo seguro constitui um ilícito civil e nela está também consubstanciado o dito ilícito criminal de condução sem habilitação legal, influindo na produção do acidente e em todos os decorrentes danos.

O acidente – nos moldes alegados pela A. (que a sentença condenatória penal não veio infirmar) – ocorreu mediante a prática de um crime, o crime de condução de automóvel sem habilitação legal, dele resultando os danos, termos em que a mesma ação do condutor lesante (os factos que lhe são imputados) consubstancia ambos os ilícitos, o civil e o penal, daí emergindo o acidente e, consequentemente, os danos a que se reporta o peticionado direito indemnizatório.

Como sinalizado por jurisprudência dos Tribunais superiores, para a verificação do alargamento do prazo prescricional (n.º 3 do dito art.º 498.º) «é mister que se alegue e prove na acção cível que os factos que são imputados ao lesante integram determinado tipo criminal» ([12]), «(…) bastando a verificação que [a] factualidade geradora de responsabilidade civil e da respectiva obrigação de indemnizar preencha os elementos de um tipo legal de crime, relativamente ao qual a lei penal admite o seu apuramento judicial em prazo mais alargado que o previsto no art.º 498º, n.º 1, do C. Civil.» ([13]).

Ou, como formulado pela Relação de Guimarães ([14]), o dito alongamento do prazo «depende apenas de o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, mais precisamente bastando que a factualidade geradora de responsabilidade civil e da respectiva obrigação de indemnizar preencha os elementos de um tipo legal de crime, relativamente ao qual a lei penal admite o seu apuramento judicial em prazo mais alargado que o previsto no número daquele inciso», sendo ainda que «Verificada a situação que prevê – aplica-se a todos os lesados».

Assim, pode dizer-se que «O artº 498º nº 3 do C. Civil, ao referir que "Se o facto ilícito constituir crime..." não está a apontar para a responsabilidade criminal, mas sim, de forma objectiva, para a qualificação criminal que deriva directamente do facto ilícito. Portanto, o facto articulado pelo demandante na petição inicial, demandante este a quem compete definir a relação jurídica controvertida. É face aos factos, tal como o autor os desenha que se poderá apreciar a excepção em causa. Salvo se forem contestados, hipótese em que a sua apreciação será remetida para a decisão final. De qualquer modo, nesta decisão, para decidir a prescrição, o que o julgador verá é se os factos que comprovadamente são imputados ao responsável civil integram determinado tipo criminal e não se praticou ele esse mesmo crime.» ([15]).

In casu, salvo o devido respeito, o ilícito criminal agora em questão – condução automóvel sem carta – insere-se no processo causal e no ilícito global que levou ao acidente e aos decorrentes danos ([16]), tal como alegado pela A./Apelante (e como já resulta até da sentença penal condenatória). Termos em que os factos imputados ao lesante preenchem também aquele ilícito criminal (para além do ilícito civil).

Donde que, como pretende a Recorrente, colha aplicação o prazo prescricional alongado – 5 anos.

O que afasta, como se torna evidente (ante as datas apuradas de ocorrência do acidente e de citação da R.), a excecionada prescrição do direito indemnizatório.

Ademais, estamos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com as suas atuais tendências, designadamente – e quanto ao que aqui importa – de marcada proteção das vítimas, até por força do Direito da União Europeia (UE), «ante a função social deste seguro» ([17]), não devendo, a nosso ver, a interpretação da norma em discussão – referente à prescrição do direito indemnizatório da vítima/lesado em geral, mas a ser objeto, aqui, de interpretação situada, neste contexto de acidente estradal / sinistralidade rodoviária – ser alheia a tais tendências, em harmonia e coerência com o sistema jurídico no seu conjunto. Antes deve essa interpretação atender àquela função social, tão vincada neste campo ([18]), de modo a afastar interpretações formais e/ou restritivas quanto à substância da dita norma do art.º 498.º, n.º 3 ([19]), as quais, favorecendo a posição do segurador, acabariam por privar o lesado da indemnização do seu dano.

Prejudicada fica a questão remanescente do início do curso da prescrição (art.º 306.º do CCiv.), quanto à invocada data de dedução da acusação penal e seus efeitos, a que se reportam as conclusões 5.ª e 6.ª da Apelante, questão essa de que, por isso, aqui não se cuidará.

Procedendo, pois, a apelação, importa revogar a decisão recorrida, decaindo a exceção deduzida da prescrição.

                                                           *

(…)

                                                           ***

V – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se improcedente a deduzida exceção perentória da prescrição.

Custas pela R./Apelada.

                                                           ***

Coimbra, 17/03/2022

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

            Luís Cravo

                                              

Fernando Monteiro


([1]) Nesse âmbito, alegou expressamente:
«1º
Nos presentes autos está em causa um acidente de viação.

Conforme resulta da sentença junta proferida nos autos de processo Comum n.º 169/15.0GTVIS, “O embate ficou a dever-se a exclusiva e manifesta falta de perícia do arguido Marcelo”, condutor do veículo seguro pela ré.

Ou seja, o acidente em causa foi causado pelo condutor do veículo seguro pela ré, dando-se como integralmente reproduzida a referida sentença.

A conduta do arguido em tal processo consubstanciou a prática de um crime de ofensa è integridade física e de um crime de condução sem habilitação legal, crimes pelos quais foi condenado com sentença transitada em julgado.

Do ilícito levado a cabo pelo arguido resultaram danos à integridade física do doente transportado no veículo (ambulância) da autora e bem assim danos ao veículo da autora.

A autora é, perante o ilícito praticado pelo condutor do veículo seguro pela ré, lesada e nessa qualidade beneficia do prazo mais longo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498º do Código Civil.».
([2]) Cujo teor se deixa transcrito.
([3]) Foi ainda exarado, no plano fáctico: «Factos não provados;
§ Com relevância para a boa decisão, não resultaram por provar quaisquer factos.
A restante matéria alegada não foi considerada por se tratar de matéria conclusiva, de Direito ou por não se mostrar relevante para o juízo da questão sub judice.».
([4]) Cfr., por todos, Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 225, Autor que refere que “O Dano só é punível sob a forma de dolo, sendo bastante o dolo eventual. É assim desde a versão de 1982, que pôs termo à punibilidade do Dano negligente”.
([5]) Matéria suficientemente invocada nos articulados da A. (desde logo na petição inicial e, deduzida a exceção da prescrição, na peça processual de exercício do contraditório respetivo).
([6]) Cfr. art.º 118.º, n.º 1, al.ª c), do CPen., segundo o qual o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: «c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos».
([7]) Cfr. o Ac. STJ, de 17/01/1995, Proc. 085758 (Cons. Moreira Camilo), em www.dgsi.pt.
([8]) Os pressupostos de aplicação da norma que lhe é favorável.
([9]) Como já sublinhado, neste contexto, no Ac. STJ, de 07/12/1994, Proc. 086312 (Cons. Torres Paulo), disponível também em www.dgsi.pt, “… compete ao lesado fazer a prova de factos que estruturem um crime …”.
([10]) De acordo com uma lógica de causalidade adequada, não bastando que «o facto tenha sido em concreto causa do dano, em termos de conditio sine qua non», por ser «necessário que, em abstracto, seja também adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas» (vide Luís de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 348 e seg.). Aliás, como ensina M. J. Almeida Costa, no caso de responsabilidade por factos ilícitos culposos, deve entender-se «que o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido unicamente em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais», sendo, por outro lado, que não se exige uma «exclusividade da condição», nem se impõe um nexo causal «directo ou imediato», bastando «uma causalidade indirecta ou mediata» – cfr. Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 764 e 766.
([11]) Na senda do entendimento sufragado por Luís de Menezes Leitão, considera-se que a prescrição configura uma causa de extinção das obrigações (cfr. Direito das Obrigações, vol. II, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 109 e 116), sendo, por isso, a respetiva factualidade de suporte factualismo extintivo do direito de crédito.
([12]) Assim, o Ac. TRL de 16-06-2020, Proc. 1662/19.0T8PDL- L1-7 (Rel. Cristina Silva Maximiano), em www.dgsi.pt.
([13]) Cfr. Ac. TRC de 28/01/2014, Proc. 631/09.3TBPMS.C1 (Rel. Sílvia Pires), em www.dgsi.pt.
([14]) Cfr. Ac. de 08/02/2018, Proc. 1852/17.0T8GMR-A.G1 (Rel. Purificação Carvalho), também em www.dgsi.pt, com itálico aditado.
([15]) V. Ac. STJ de 14/12/2006, Proc. 06B2380 (Cons. Bettencourt de Faria), também em www.dgsi.pt, com destaques aditados.
([16]) Bastando que o lesado «alegue e prove, na acção civil, que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição é superior aos 3 anos (…). Tal alegação e prova é pressuposto essencial e necessário da improcedência da excepção de prescrição (…).» – Ac. STJ de 23/10/2012, Proc. 198/06.4TBFAL.E1.S1 (Cons. Moreira Alves), ainda em www.dgsi.pt.
([17]) Vocacionado, cada vez mais, para «incluir todas as vítimas dos acidentes de viação, garantindo-lhes a correspondente indemnização», o que é notório, por exemplo, face aos «progressivos alargamentos» da «noção de terceiros» (os «terceiros para efeitos de indemnização em matéria de seguro obrigatório automóvel») – cfr., por todos, José Vítor dos Santos Amaral, Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-Fé, Almedina, Coimbra, 2017, ps. 122 e segs..
([18]) Onde deve atender-se «às vertentes da socialização do risco, cada vez mais atuante, direcionada para a reparação de todos os (terceiros) lesados» – cfr., do mesmo autor, Socialização do risco e culpa por acidentes de viação, in Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 197 e segs..
([19]) A norma apenas impõe que o facto ilícito (civil) constitua (também) crime, não exigindo uma causalidade estrita/exclusiva entre o facto criminal e os danos sofridos.