Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41/16.6IDCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: NE BIS IN IDEM
UNIDADE DE RESOLUÇÃO CRIMINOSA
FRAUDE FISCAL
Data do Acordão: 11/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 29.º, N.º 5, DA CRP; ARTS. 103.º, N.ºS 1, ALS. B) E C), E 104.º, N.ºS 1 E 2, AL. A), DO RGIT
Sumário: I – Constatando-se, no cotejo entre duas acusações proferidas em processos autónomos, a identidade, para além dos arguidos, dos factos, quer no que respeita às facturas inscritas na contabilidade, quer no que concerne ao grosso dos cheques emitidos como meio de pagamento, sendo igual o modus operandi e o mesmo o “fornecedor” das facturas (fictícias), fazendo-se, nos dois libelos acusatórios, desde logo, menção expressa à “formação do propósito”, da “estratégia”, conducente “à resolução de angariar faturas emitidas por terceiros, em nome da sociedade arguida, que não se reportavam a qualquer negócio ou prestação de serviço, e utilizar tais “documentos” na contabilidade do ente colectivo, deduzindo o valor do “IVA” neles constantes como tendo sido pago, e aumentando ficticiamente os custas da sua actividade, com a consequente diminuição do lucro tributável, em sede de IRC”, perante este quadro, configura-se, globalmente, um só crime de fraude fiscal qualificada, cometido através do mesmo artifício, mediante um único desígnio criminoso, embora com repercussão em dois impostos distintos (IVA e IRC).

II – De facto, apelando ao critério de valoração social do acontecimento ou comportamento trazido a juízo, o “pedaço de vida” descrito em ambas as acusações é o mesmo, não assumindo, no condicionalismo verificado, relevância a circunstância de estarem em causa dois impostos distintos e de o prejuízo e consequente lucro obtido não ser (num e noutro caso) exactamente coincidente.

III – Consequentemente, comprovado que pelo mesmo crime, porquanto assente nos mesmos factos, em data anterior à acusação formulada num dos processos, já havia sido deduzida acusação noutro, e, bem assim, que por ocasião do início da produção de prova em julgamento no processo a que respeitam os presentes autos já os arguidos tinham sido julgados no domínio de processo diverso, existe violação do princípio ne bis in idem.

Decisão Texto Integral:












Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 41/16.6IDCTB do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, C. Branco – JL Criminal – Juiz 1, mediante acusação pública, foram os arguidos A. e B. submetidos a julgamento, sendo-lhes então imputada a prática, ao último em autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.º 1, alínea a) e c) e n.º 2, e 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do RGIT.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 13.02.2019 o tribunal decidiu [transcrição parcial]:

a) Condenar a sociedade arguida A., pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de 01 (um) crime de fraude (fiscal) qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.º 1alíneas a) e c) e n.º 2, e 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo o total de € 3 500,00 (três mil e quinhentos euros).

b) Condenar o arguido B., pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de 01 (um) crime de fraude (fiscal) qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2, e 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 02 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 04 (quatro) anos, subordinado ao dever de proceder ao pagamento durante o período da suspensão, junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, de parte da vantagem patrimonial obtida, no valor de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros), de um total de € 49.039,58 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), em prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 150,00 (cento e cinquenta euros) cada uma, devendo apresentar nos autos, a cada seis meses, os comprovativos de tal pagamento [cf. artigos 50.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal, e artigo 14.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho)].

[…].

3. Iniciada a audiência de discussão e julgamento (ata de 06.11.208, a fls. 979 a 980) a Ilustre Defensora dos arguidos, alegando estarem em causa factos idênticos aos julgados no processo n.º 22/17.2T9CTB, podendo encontrar-se o tribunal “impedido de proceder ao presente julgamento sob pena de se estar a violar o princípio do “ne bis in idem” do qual decorre a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos” (sic), requereu fosse solicitado a este processo informação sobre o estado dos autos e certidão dos respetivos articulados.

3. Na sequência do que o tribunal a quo, por forma a analisar a “situação exposta pela defesa e ainda apurar qual o concreto estado do processo n.º 22/17.2T9CTB(sic), determinou que fosse oficiado ao mesmo com vista à remessa de certidão da acusação proferida e, bem assim, a obter informação sobre o estado dos autos, declarando em consequência prejudicado o início da audiência de julgamento.

4. Apresentado (em mão) o processo n.º 22/17.2T9CTB, por despacho de 03.12.2018 o tribunal concluiu “pela não verificação da violação do princípio da proibição da dupla incriminação na medida em que não se está perante a mesma factualidade(sic), indeferindo “o requerido”, determinando o prosseguimento do processo com a realização da audiência de discussão e julgamento.

5. Inconformados com o despacho de 03.12.2018 recorreram ambos os arguidos formulando as seguintes conclusões:

1. Tem o presente recurso por incidência o douto Despacho proferido pelo Tribunal a quo que indeferiu o invocado pelos arguidos, concluindo pela não verificação da violação do princípio da dupla incriminação.

2. Isto porque, aferindo-se concretamente à matéria vertida na acusação deduzida nos presentes autos e à matéria constante da acusação do processo n.º 22/17.2T9CTB, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Local Criminal – Juiz 2, conclui-se serem agora imputados aos arguidos o cometimento dos mesmos factos.

3. No entanto tal não poderá ser admissível, pois tal comportaria a violação do caso julgado e da garantia constitucional do art.º 29.º, n.º 5 da CRP que estabelece que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

4. Decorrendo da enunciação deste princípio a proibição de aplicar mais de uma sanção com base na prática do mesmo crime e, também, a de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base no mesmo facto delituoso.

5. Sendo que a delimitação do objeto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo.

6. Assim sendo, deverá declarar-se a exceção de caso julgado por violação do princípio ne bis in idem e determinar o arquivamento dos presentes autos.

7. Isto porque, observa-se a absoluta identidade da materialidade fáctica vertida em ambos os processos, estando-se aqui perante uma 2.ª acusação por um facto anteriormente julgado, o qual se encontra a aguardar o proferimento de decisão final.

8. Pois, efetivamente, todo este comportamento foi especificamente apreciado no 1.º processo, pelo que terá que se considerar exaurido por ter sido já objeto de julgamento (proc. n.º 22/17.2T9CTB).

9. Não podendo esta factualidade ser novamente conhecida neste novo processo que ora nos ocupa, pois que integrando o crime de fraude fiscal qualificada imputado aos recorrentes, comportaria a violação do caso julgado e da garantia constitucional do ne bis in idem.

10. E nessa medida geradora de um vício que determina a nulidade de todos os atos processuais subsequentes.

11. Devendo, assim, a final, reconhecer-se e como tal se declarar, a nulidade do processado e do despacho ora recorrido e, consequentemente, procedente e provado o presente recurso, desta forma se fazendo Justiça!

6. Foi proferido despacho de admissão do recurso, a subir com o que viesse a ser interposto da decisão final (cf. fls. 1002).

7. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu:

1.ª) Consideram os arguidos que «aferindo-se concretamente à matéria vertida na acusação deduzida nos presentes autos e à matéria constante da acusação do processo n.º 22/17.2T9CTB, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Local Criminal – Juiz 2, conclui-se serem agora imputados aos arguidos o cometimento dos mesmos factos, implicando a violação do caso julgado e da garantia constitucional do art.º 29.º n.º 5 da CRP que estabelece que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”».

2.ª) No entanto, aderimos ao entendimento do douto despacho judicial que considera no processo n.º 22/17.2T9CTB vem imputada aos arguidos A. e B., a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 6.º, 103.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 2, alínea a), e 7.º, n.º 1, todos do Regime Geral da Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho), crime relativo à emissão de faturas por (…), donde constava a realização de serviços prestados a favor da sociedade arguida, o montante do preço devido e, bem assim, o respetivo IVA à taxa legal.

3.ª) O arguido subtraiu o montante de IVA inscrito nas faturas em questão, como se tivesse sido suportado pela sociedade arguida, ao montante de IVA por si liquidado nas prestações de serviços, assim reduzindo o montante de IVA a entregar ao Estado e obtendo uma vantagem patrimonial no valor total de € 45.116,56 (quarenta e cinco mil, cento e dezasseis euros e cinquenta e seis cêntimos), no que respeita ao exercício do ano de 2012”.

4.ª) Nestes autos está em causa a imputação aos mesmos arguidos de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.ºs 1, alíneas a) e c) e 2, 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho).

5.ª) Está, uma vez mais, a emissão de faturas por (…), donde constava a realização de serviços prestados a favor da sociedade arguida e o montante do preço devido, tendo as mesmas sido introduzidas na contabilidade da sociedade arguida. Sucede que «ao imputar aos custos da atividade da sociedade arguida o valor liquido daquelas faturas, logrou alterar os valores correspondentes aos custos efetivos da atividade da mesma, inseridos nas declarações periódicas de rendimentos do exercício fiscal no ano de 2012», fazendo o valor do lucro tributável da sociedade arguida, e, consequentemente, o montante de IRC a entregar nos cofres do Estado – prejudicando o Estado no valor de € 49.039,57 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos)».

6.ª) É imputada uma consequência diversa – no processo n.º 22/17.2T9CTB está em causa a redução do montante de IVA a entregar ao Estado, com o consequente locupletamento indevido; os nossos autos n.º 41/16.6IDCTB tratam da questão da diminuição do montante de IRC a entregar nos cofres do Estado.

7.ª) No primeiro caso, o prejuízo patrimonial do Estado ascendeu a € 45.116,56 (quarenta e cinco mil, cento e dezasseis euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescidos de juros compensatórios, enquanto que no segundo caso, esse valor fixou-se em € 49.039,57 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos), também acrescidos do valor devido a tútulo de juros compensatórios.

8.ª) Não existe, destarte, violação do caso julgado e da garantia constitucional do art.º 29.º n.º 5 da CRP que estabelece que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” nem qualquer vício que determine a nulidade de todos os atos processuais subsequentes.

Termos em que, confirmando-se a decisão recorrida, se fará Justiça.

8. Não se conformando com a decisão final recorreram os arguidos, desta feita concluindo:

I. O recorrente entende que, proferida a sentença ora recorrida, foi violado o princípio constitucional ne bis in idem quando cotejada com o teor da certidão da sentença proferida no processo 22/15.7IDCTB (junta ao processo 41/16.6IDCTB como prova documental) vide ponto 36 dos factos provados.

II. Quer os presentes autos quer os autos do processo 22/15.7IDCTB tiveram origem em relatório da Administração tributária, vide fls.6 dos autos proposto para instauração de processo de inquérito, no qual se apurou e constam de fls. 7 os valores que foram apurados em sede de IRC (€49.039,58) referente ao ano de 2012., e com base no qual foi instaurado o processo de inquérito 22/15.7 IDCTB remetido aos serviços do MPO de Castelo Branco em, 18.11.2015.

III. Onde se conclui que “ afastados os factos de 2012, relativos a IVA e IRC, os presentes autos prosseguiram apenas pelo cometimento do facto consubstanciado em sede de IRC, na devida in contabilização como custos do exercício do ano de 2011… constante das faturas elencadas… por se indiciar que as mesmas não titulam operações reais.”

IV. O RIT, de 8-10-2014, que deu origem ao processo 22/.15.7IDCTB já continha, vide fls. 57 e 58 o conhecimento que as faturas identificadas a fls. 58 (ponto 15 dos factos provados no processo 41/16.6IDCTB) não titulavam operações efetivamente realizadas relativamente a este exercício (2012) e à semelhança do que aconteceu em 2011, o que se encontra exposto no ponto III.1.1 b) foram efetuadas as mesmas diligências realizadas para esse exercício, tendo-se concluído, pelos mesmos motivos, que estas faturas,

V. Quer os factos do processo 22/15.7IDCTB, quer os dos presentes autos configuram:

O recebimento de faturas falsas, sem que tenha existido transação, Com a mesma intenção (diminuição das receitas tributárias do estado), Com mesmo modus operandi (inscrição na contabilidade de faturas que não correspondem a qualquer operação ou serviços prestados, com vista a aumentar os custos contabilísticos da mesma), Com o mesmo fim (diminuir o valor dos pagamentos ou aumentar o valor do reembolso), E um único tipo de ilícito típico (crime de fraude fiscal qualificada).

VI. Em ambos os processos as pessoas físicas e jurídicas envolvidas foram as mesmas; Quer o emitente das faturas quer quem se servia das mesmas eram as mesmas pessoas físicas e jurídicas, O arguido teve uma única resolução criminosa, repetida ao longo do ano de 2011 e 2012, mas fruto de uma única resolução criminosa e, portanto, de um dolo único, sendo alheio a esta a razão de ter existido separação de processo:

VII. E ainda, como resulta da fundamentação de facto a testemunha (…). Esclareceu que os presentes autos tiveram origem no processo n.º 22/15.7IDCTB, cujo auto de notícia abarcava as prestações de IVA e de IRC referentes aos anos de 2011 e de 2012 – nessa medida, começou por se determinar a separação dos processos entre os anos de 2011 (compreendido no processo n.º 22/15.7IDCTB) e de 2012.

VIII. O artigo 29.º n.º 5 da CRP dispõe que ninguém pode ser julgado mais do que ma vez pela prática do mesmo crime.

IX. O princípio ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, por um lado tendo em vista assegurar a sua paz jurídica e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado.

X. Esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal mas, também, a qualquer outro ato processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa.

XI. Nesta perspetiva, a delimitação do objeto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo. Como refere Henrique Salinas, «a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior.

XII. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objeto.»

XIII. Por outro lado, conforme lembra Frederico Isasca, «o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que diretamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efetivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados.

XIV. Quer porque enquanto isoladamente considerados não seriam suscetíveis de se consubstanciarem como objeto de um processo. Quer porque a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado. Quer ainda porque, fornecendo o Código de processo Penal, todos os mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e portanto a possibilidade de se alcançar a verdade material e consequentemente uma justa decisão do caso concreto, far-se-ia responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pelos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por frustrar totalmente as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado, comprometendo assim, inabalavelmente, o respeito pela própria dignidade da pessoa humana.

XV. O efeito consuntivo dar-se-á mesmo naquelas situações em que os factos integradores da conduta criminosa tenham mas não deveriam ter permanecido totalmente estranhas ao conhecimento do juiz que primeiramente dela conheceu. E isso é assim tanto no caso da continuação criminosa como também, por maioria de razão, nos casos em que parte da conduta não foi conhecida pelo juiz mas, com a que foi, está coberta pelo mesmo e único dolo do agente.

XVI. A sentença recorrida violou o n.º 5 do artigo 29 da CRP e o princípio ne bis in idem devendo a sentença recorrida ser revogada assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.

9. Do requerimento de interposição de recurso (fls. 1141 e ss.), extrai-se manter o arguido interesse no conhecimento do recurso intercalar, só assim se justificando a menção à respetiva “pendência”.
 

10. Foi proferido despacho de admissão do recurso (cf. fls. 1157).

11. Reagindo ao recurso, o Ministério Público concluiu:

1) Foi o arguido/recorrente condenado por douta sentença de 13.02.2019, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de 01 (um) crime de fraude (fiscal) qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a9 e c) e n.º 2, e 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 02 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 04 (quatro) anos, subordinado ao dever de proceder ao pagamento durante o período da suspensão, junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, de parte da vantagem patrimonial obtida, no valor de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros), de um total de € 49.039,58 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), em prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 150,00 (cento e cinquenta euros) cada uma, devendo apresentar nos autos, a cada seis meses, os comprovativos de tal pagamento [cf. artigos 50.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal e artigo 14.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de junho)];

2) Considera o arguido que a sentença recorrida violou o n.º 5 do artigo 29.º da CRP e o princípio ne bis in idem com base, em síntese, que em ambos os processos as pessoas físicas e jurídicas envolvidas foram as mesmas; quer o emitente das faturas quer quem se servia das mesmas pessoas físicas e jurídicas, o arguido teve uma única resolução criminosa, repetida ao ano de 2011 e 2012, mas fruto de uma única resolução criminosa e, portanto, de um dolo único, sendo alheio a esta a razão de ter existido separação de processo;

3) Pelo contrário, entendemos que estão em causa crimes diversos, respeitantes a diferentes períodos temporais.

4) O inquérito n.º 22/15.7IDCTB teve por objeto a imputação dos custos efetuados pela A. na sua atividade do valor líquido das faturas emitidas por (…), alterando os valores correspondentes aos custos da sua atividade empresarial inseridos nas declarações periódicas de rendimentos dos exercícios fiscais do ano de 2010 e 2011, tendo sido deduzida acusação contra B. e sociedade arguida, pelo recebimento indevido de IVA 4.º Trimestre do ano de 2011, relativo a faturas emitidas por (…) (as quais não correspondem a qualquer transação efetivamente realizada).

5) O presente processo teve origem na certidão extraída do processo de inquérito n.º 22/15.7IDCTB, estando em causa, nestes autos, os factos relativos ao IRC do ano de 2012.

6) Assim, no âmbito dos presentes autos, está em causa a imputação aos mesmos arguidos, nomeadamente ao arguido B., de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.ºs 1, alíneas a) e c) e 2, 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de junho).

7) É certo que em causa está, uma vez mais, a emissão de faturas por (…), donde constava a realização de serviços prestados a favor da sociedade arguida e o montante do preço devido, tendo as mesmas sido introduzidas na contabilidade da sociedade arguida.

Mas neste caso, o que está em apreciação são os factos relativos ao IRC do ano de 2012.

Em suma, estão em causa duas condutas diferentes, reportadas a períodos temporais diferentes.

8) A testemunha T (...) explicou, de facto, que «os presentes autos tiveram origem no processo n.º 22/15.7IDCTB, cujo auto de notícia abarcava as prestações de IVA e de IRC referentes aos anos de 2011 e de 2012 – nessa medida, começou por se determinar a separação dos processos entre os anos de 2011 (compreendido no processo n.º 22/15.7IDCTB) e de 2012».

Ora, não se vislumbra por que motivo o facto de um auto de notícia dar conta de vários crimes em que, por motivos de conveniência da investigação, se determinou a extração de certidão, ao invés de serem todos investigados no mesmo processo, conduz à violação do ne bis in idem, sendo certo que se trata de crimes diversos.

9) Com efeito, os arguidos mediante a obtenção de faturas reportadas a serviços que não lhes foram prestados, «as quais verteram nas respetivas declarações junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, tornaram credível a existência de despesas, na prática inexistentes, e que, uma vez equacionadas em sede tributária, acarretaram um prejuízo patrimonial para a Administração Tributária, mediante a obtenção de uma vantagem patrimonial indevida no valor de 49 039,58€ (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos) relativo ao ano de 2012.

10) Pelo contrário, em sede do processo n.º 22/15.7IDCTB, o arguido utilizou faturas emitidas, a favor da sociedade arguida que não correspondiam a quaisquer operações/serviços prestados na contabilidade da sociedade arguida, dessa forma fazendo aumentar os custos da sua atividade no período de 2011, diminuindo o lucro tributável da mesma, assim como aumentando o valor do IVA a deduzir.

Neste caso, os arguidos obtiveram uma vantagem patrimonial correspondente ao valor do prejuízo causado ao Estado, no montante de 48.713,60€, sendo 19.853,69€ a título de IRC e 28.859,91€ a título de IVA – vide factos provados na douta sentença do processo n.º 22/15.7IDCTB.

11) Não existe, destarte, qualquer violação do n.º 5 do artigo 29.º da CRP nem do princípio ne bis in idem devendo a sentença recorrida ser mantida.

Termos em que, confirmando-se a decisão recorrida, se fará Justiça.

12. Na Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

13. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP não houve reação.

14. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos

Sendo por intermédio das conclusões que se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso concreto cabe apreciar:

(i) Recurso intercalar [despacho de 03.12.2018]:

- Se a instauração/prosseguimento dos presentes autos (n.º 41/16.6IDCTB), alegadamente por factos já anteriormente objeto de acusação e julgamento no âmbito do processo comum singular n.º 22/17.2T9CTB viola o princípio ne bis in idem.

(ii) Recurso da decisão final

- Se foi violado o artigo 29.º, n.º 5 da CRP por os factos em causa nos presentes autos já haverem sido objeto de julgamento no âmbito do processo com singular n.º 22/15.7IDCTB.

2. As decisões recorridas

(x) Despacho de 03.12.2018

Ficou a constar do despacho em crise:

[…]

Concatenados os processos n.º 22/17.2T9CTB e 41/16.6IDCTB, verifica-se que, apesar de se estar perante factos praticamente idênticos, praticados durante o mesmo lapso temporal, não se pode, ainda assim, concluir que se esteja perante uma situação que se revele suscetível de violar o princípio da proibição da dupla incriminação – vulgo ne bis in idem.

Com efeito, no processo n.º 22/17.2T9CTB vem imputada aos arguidos A. e B., a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 6.º, 103.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 2, alínea a), e 7.º, n.º 1, todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de junho).

Apura-se que está em causa, desde logo, a emissão de faturas por (…), donde constava a realização de serviços prestados a favor da sociedade arguida, o montante do preço devido e, bem assim, o respetivo IVA à taxa legal.

Mais se imputa aos arguidos que muito embora as faturas em questão não correspondessem a quaisquer operações ou serviços prestados, ainda assim foram introduzidas na contabilidade da sociedade arguida, imputando-se assim aos custos da atividade desta o valor das referidas faturas.

Finalmente, mais se refere, naqueles autos, que ao atuar da forma descrita, o arguido subtraiu o montante de IVA inscrito nas faturas em questão, como se tivesse sido suportado pela sociedade arguida, ao montante de IVA por si liquidado nas prestações de serviços, assim reduzindo o montante de IVA a entregar ao Estado e obtendo uma vantagem patrimonial no valor total de € 45 116, 56 (quarenta e cinco mil cento e dezasseis euros e cinquenta e seis cêntimos), no que respeita ao exercício do ano de 2012.

Por seu turno, no âmbito dos presentes autos, está em causa a imputação aos mesmos arguidos de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.ºs 1, alíneas a) e c) e 2, 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de junho).

Em segundo lugar, verifica-se que em causa está, uma vez mais, a emissão de faturas por (…), donde constava a realização de serviços prestados a favor da sociedade arguida e o montante do preço devido, tendo as mesmas sido introduzidas na contabilidade da sociedade arguida.

Em face do exposto, ao imputar aos custos da atividade da sociedade arguida o valor liquido daquelas faturas, logrou alterar os valores correspondentes aos custos efetivos da atividade da mesma, inseridos nas declarações periódicas de rendimentos do exercício fiscal no ano de 2012.

Por conseguinte, o Ministério Público em sede de despacho de acusação conclui que o coarguido, ao agir da forma descrita, fez diminuir o valor do lucro tributável da sociedade arguida, e, consequentemente, o montante de IRC a entregar nos cofres do Estado – prejudicando o Estado no valor de € 49 039,57 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos).

Por conseguinte, em face do exposto, há que concluir que, apesar de se estar perante um mesmo comportamento – a emissão de faturas em nome da sociedade arguida, por (…), as quais foram depois vertidas na contabilidade daquela sociedade, durante o exercício fiscal de 2012 – não se pode evitar que aos arguidos é imputada uma consequência diversa. No processo 22/17.2T9CTB, a redução do montante de IVA a entregar ao Estado, com o consequente locupletamento indevido; no processo n.º 41/16.6IDCTB, a diminuição do montante de IRC a entregar nos cofres do Estado. No primeiro caso, o prejuízo patrimonial do Estado ascendeu a € 45 116,56 (quarenta e cinco mil cento e dezasseis euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescidos de juros compensatórios, enquanto no segundo caso, esse valor fixou-se em € 49 039,57 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos), também acrescidos do valor devido a título de juros compensatórios.

Assim, verifica-se que a partir de uma mesma ação, aos arguidos são imputadas duas condutas diferentes (relacionadas com duas prestações tributárias diferentes e com procedimentos junto da Autoridade Tributária também diversos, como, aliás, se infere dos dois despachos de acusação em análise), muito embora ambas subsumíveis ao mesmo tipo legal de crime de fraude fiscal qualificada.

Destarte, pelos expostos fundamentos de facto e de Direito, concluindo-se pela não verificação da violação do princípio da proibição da dupla incriminação na medida em que não se está perante a mesma factualidade, indefere-se o requerido, concluindo-se que os autos continuam em condições para que seja realizada a respetiva audiência de discussão e julgamento nos presentes.

[…].

(x) Decisão final

Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]:

A). Matéria de Facto Provada:

Realizada a audiência de discussão e julgamento, dela resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

1. No ano de 2012, a sociedade arguida A. [adiante (…)], tinha o número de identificação fiscal (...) , sede no (...) , concelho de (...) , e tinha como objeto social a exploração florestal, transformação de cortiça e seus derivados.

2. A sociedade arguida encontrava-se, para o ano de 2012, enquadrada no regime de tributação normal de periodicidade trimestral de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), e no regime geral de contabilidade organizada em imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC).

3. O arguido B. exercia as funções de gerente da sociedade arguida, agindo em seu nome e interesse, dirigia a atividade da sociedade, celebrava contratos com fornecedores e clientes e efetuava recebimentos e pagamentos, sendo, como tal, o único responsável pelo giro comercial e gestão financeira, incluindo no que respeita ao cumprimento das respetivas obrigações fiscais.

4. No exercício dessas funções e no interesse da sociedade arguida, o arguido B. decidiu utilizar na contabilidade desta, faturas que não correspondiam a quaisquer operações ou a serviços prestados, com vista a aumentar os custos contabilísticos da mesma, e, desta forma, diminuir o valor dos pagamentos ou aumentar o valor de reembolso a que a sociedade está sujeita, designadamente, de IVA e IRC.

5. Com tal desígnio, o arguido B. tomou a resolução de angariar faturas emitidas por terceiros, em nome da sociedade arguida, que não se reportavam a qualquer negócio ou prestação de serviço, e utilizar as mesmas na contabilidade desta, deduzindo o valor do IVA nelas constantes como tendo sido pago, e aumentando ficticiamente os custos da sua atividade, com a correspondente diminuição do lucro tributável, em sede de IRC.

6. Em cumprimento desta estratégia, o arguido B. solicitou a (…) que emitisse faturas donde constassem a realização, por este, de serviços prestados a favor da sociedade arguida, o montante do preço devido e o respetivo IVA, à taxa legal.

7. Como contrapartida pela emissão e entrega de tais faturas, o arguido B. entregou a (…) determinada quantia monetária, cujo montante concreto não se logrou apurar.

8. (…) aceitou emitir faturas em nome da sociedade arguida nessas condições, apesar de saber que as mesmas se destinavam aos fins acima descritos.

9. (…) possui atividade registada na Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em nome individual de comércio por grosso de cortiça e bruto.

10. No período de 2010 a 2012, (…) não entregou à AT as declarações de remimentos modelo 3 de IRS, nem as declarações periódicas de IVA.

11. (…) não possui trabalhadores, estaleiros, máquinas ou veículos para transporte de materiais, necessários à prestação dos serviços descritos nas faturas que emitiu a favor da sociedade arguida.

12. Com vista a lograr o propósito acima referido, o arguido B. recebeu de (…) diversas faturas emitidas em nome da sociedade arguida, as quais não correspondiam a quaisquer operações ou a quaisquer serviços prestados e introduziu-as na contabilidade desta.

13. Imputando aos custos da atividade da sociedade arguida o valor líquido das faturas em questão, assim alterando os valores correspondentes aos custos efetivos da atividade da mesma, inseridos nas declarações periódicas de rendimentos do exercício fiscal no ano de 2012.

14. Ao atuar da forma descrita, o arguido B.:

a. Fez diminuir o valor do lucro tributável da sociedade arguida e, consequentemente, o montante de IRC a entregar nos cofres do Estado;

b. Subtraiu o montante de IVA inscrito nas faturas emitidas por (…), como se tivesse sido suportado pela sociedade arguida, ao montante de IVA por si liquidado nas prestações de serviços, de modo a reduzir o montante de IVA a entregar ao Estado.

15. Através da conduta do arguido (…), a sociedade arguida registou na sua contabilidade, no exercício do ano de 2012, seis faturas que lhe foram entregues por (…), como sendo relativas à compra e venda de lenhas e cortiças, prestação de serviços de tiragem de cortiça e cargas e descargas, no valor total de € 241 274,84 (duzentos e quarenta e um mil, duzentos e setenta e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos), assim, discriminados:

Data
Número de factura e recibo
Cópia das facturas a fls.
Base Tributável

IVA

(euros)

TOTAL

(euros)

31.05.2012
80
27
€ 65 447,15
€ 15 052,85
€ 80 500,00
21.06.2012
82
28
€ 9 756,85
€ 2 244,00
€ 12 000,00
18.10.2012
85
29
€ 31 910,56
€ 7 339,44
€ 39 250,00
29.10.2012
87
30
€ 12 723,57
€ 2 926,43
€ 15 650,00
10.11.2012
88
31
€ 18 321,00
€ 4 213,84
€ 22 534,84
28.11.2012
89
32
€ 58 000,00
€ 13 340,00
€ 71 340,00
TOTAIS
€ 196 158,28
€ 45 116,56
€ 241 274,84

16. Ao lucro tributável do exercício de 2012 acresce o montante de € 196 258,28 (cento e noventa e seis mil, duzentos e cinquenta e oito euros e vinte e oito cêntimos), que corresponde ao somatório da base tributável das faturas emitidas, e registadas na contabilidade da sociedade arguida, a que corresponde o imposto de IRC em falta, no montante de € 49 039,58 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos).

17. Montante que resulta da aplicação da taxa de IRC de 25%, vigente à data, ao total dos valores faturados (sem IVA), nas aludidas faturas no total de € 196 158,28 (cento e noventa e seis mil, cento e cinquenta e oito euros e vinte e oito cêntimos).

18. Ao contabilizar o valor das faturas emitidas por (…) na contabilidade e declarações de rendimentos da sociedade arguida, relativas ao ano de 2012, o arguido B. aumentou ficticiamente os custos da atividade da sociedade arguida, provocando uma diminuição do lucro tributável e consequentemente uma diminuição do imposto (IRC) a pagar, prejudicando patrimonialmente o Estado no valor de € 49 039,58 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), sendo devidos juros compensatórios de € 2 649,10 (dois mil, seiscentos e quarenta e nove euros e dez cêntimos), referentes àquele montante.

19. Nenhuma dessas faturas corresponde a transações efetivamente realizadas, tendo sido utilizados por (…) dois livros de faturas distintos, e não tendo as mesmas sido emitidas de forma sequencial.

20. Nas faturas números 80, 82, 85, 87, 88 e 89, encontra-se identificada a atividade de compra e venda de lenhas e cortiças, não sendo mencionado o local onde os serviços foram prestados, o valor do preço unitário, a viatura utilizada, o local e hora da carga e descarga.

21. O arguido B. lançou as referidas faturas na contabilidade da sociedade arguida como se os serviços tivessem sido prestados e o preço pago por esta, no valor de € 241 274,84 (duzentos e quarenta e um mil, duzentos e setenta e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos), sendo o total do IVA de € 45 116,56 (quarenta e cinco mil, cento e dezasseis euros e cinquenta e seis cêntimos).

22. Nalgumas faturas foi aposta a indicação da numeração dos cheques que teriam servido de base a pagamento das mesmas.

23. No entanto, na generalidade de tais cheques, encontram-se emitidos ao portador, pela sociedade arguida, representada pelo arguido B., e foram levantados por este.

Fls. dos autos
N.º Cheque
Banco
Valor

(€)

Data do Cheque/da Comp./Pagamento
À ordem de
Associado à Factura n.º
124, 224 e ss., 265 e ss.
3552396302
CGD
€ 3 000,00
2013.03.15
(…)
89, de 28.11.2012
156; 250
2652396303
CGD
€ 3 000,00
2013.02.15
(…) fls. 388)
89, de 28.11.2012
119; 156, verso e ss.
6352396245
CGD
€ 500,00
2012.12.13
Levantado por (…)
87, de 29.10.2012
119; 157, verso, e ss.
5452396246
CGD
€ 5 500,00
2012.12.14
Idem
87, de 29-10-2012
119; 158, verso, e ss.
2552396260
CGD
€ 500,00
2012.12.26
Idem
87, de 29.10.2012
119; 159, verso, e ss.
9052396242
CGD
€ 550,00
2012.12.10
Idem
87, de 29.10.2012
160, verso, e ss.
1852396250
CGD
€ 6 500,00
2012.12.19
Idem
87, de 29.10.2012
161, verso, e ss.
2052396239
CGD
€ 500,00
2012.12.07
Idem
87, de 29.10.2012
588; 839
2360835990
BPN
€ 600,00
Idem
87, de 29.10.2012
588; 839; 846
1460835991
BPN
€ 1 000,00
Depositado na conta de (…)
87, de 29.10.2012
122; 162, verso, e ss.
2352396271
CGD
€ 400,00
2013.01.04
Levantado por (…)
88, de 10.11.2012
122; 163, verso, e ss.
9352396274
CGD
€ 2 500,00
2013.01.10
Idem
88, de 10.11.2012
126; 164, verso, e ss.
8452396275
CGD
€ 800,00
2013.01.11
Idem
88, de 10.11.2012
123; 165, verso, e ss.; 322; 803
5752396278
CGD
€ 374,84
2013.01.16
Valor depositado na conta do beneficiário (ao portador, beneficiário: (…)
88, de 10.11.2012
123; 166, verso, e ss.
1252396283
CGD
€ 2 650,00
2013.01.18
Levantado por (…)
88, de 10.11.2012
123; 167, verso, e ss.
4652396290
CGD
€ 2 700,00
2013.01.25
Idem
88, de 10.11.2012
124; 168, verso, e ss.
2652396292
CGD
€ 300,00
2013.01.28
Idem
88, de 10.11.2012
124; 169, verso, e ss.
8952396296
CGD
€ 2 800,00
2013.02.01
Idem
88, de 10.11.2012
284; 285
7859495972
BPN
€ 14 000,00
2012.06.01
Idem
80, de 31.05.2012
286; 287
4259495976
BPN
€ 14 000,00
2012.06.08
Idem
80, de 31.05.2012
288; 299
0659495980
BPN
€ 16 000,00
2012.06.15
Idem
80, de 31.05.2012
300; 301
5859495985
BPN
€ 16 000,00
2012.06.22
Idem
80, de 31.05.2012
302; 303
2259495989
BPN
€ 13 500,00
2012.06.29
Idem
80, de 31.05.2012
115; 304; 305
4459495868
BPN
€ 1 250,00
2012.03.01
Idem
85, de 18.10.2012
115; 306; 307
6759495887
BPN
€ 1 000,00
2012.03.30
Idem
85, de 18.10.2012
116; 308; 309
5759495942
BPN
€ 3 000,00
2012.05.11
Idem
85, de 18.10.2012
310; 311
2959495999
BPN
€ 15 000,00
2012.07.13
Idem
85, de 18.10.2012
312; 313
2059496000
BPN
€ 3 000,00
2012.07.13
Idem
85, de 18.10.2012
712
6559495995
BPN
---
2012.07.11
(…)
85, de 18.10.2012
113
6360466103
BPN
€ 6 000,00
2012.08.13
(…)
82, de 21.06.2012

24. O arguido B. apresentou à Administração Fiscal a declaração de IRC da sociedade arguida, referente ao ano de 2012.

25. Com a conduta supra descrita, os arguidos obtiveram uma vantagem patrimonial ilegitimamente obtida e prejudicaram patrimonialmente o Estado no valor total de € 49 039,58 (quarenta e nove mil e trinta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), no que respeita ao exercício do ano de 2012, a título de IRC.

26. Tal quantia foi, por decisão do arguido B., integrada no seu património e no património da sociedade arguida.

27. O arguido B., ao emitir ou mandar emitir as faturas supra identificadas e ao integrá-las na contabilidade da sociedade que representa, sabia que as mesmas titulavam transações inexistentes, já que não correspondiam a quaisquer serviços prestados por (…) à sociedade arguida e por esta liquidados e, ainda assim, não se absteve de agir da forma supra descrita.

28. O arguido B. agiu com o propósito concretizado de defraudar a Fazenda Nacional, em sede de IRC, obtendo para si e para a sociedade arguida, que representa, proveito económico que sabia não lhes ser devido, o que conseguiu, consciente de que, desse modo, diminuía as receitas tributárias.

29.Tinha o arguido B. consciência que as faturas fictícias que inseriram no registo contabilístico da sociedade arguida eram elementos fiscalmente relevantes.

30. Contudo, ainda assim, o arguido B. utilizou as faturas do modo que se deixou descrito e inseriu no registo contabilístico da sociedade arguida dados que não correspondiam à realidade, com o intuito conseguido de obter benefícios económicos em sede de IRC, tudo à custa do defraudamento do património do Estado Português.

31. Com a atuação que se deixou descrita, procurou o arguido B. fazer crer, perante terceiros, que os elementos constantes nas faturas por si utilizadas e da contabilidade das sociedades correspondiam à verdade, que haviam sido efetuados serviços por (…) em benefício da sociedade arguida, colocando desta forma em causa a veracidade e a credibilidade que aquelas revestem, abalando a confiança que as mesmas assumem perante a generalidade das pessoas, assim causando um prejuízo ao Estado e a terceiros, o que quis e conseguiu.

32. Ao atuar da forma descrita, o arguido B. agiu com o intuito conseguido de aumentar o acervo de bens da sociedade arguida e o seu património pessoal à custa do património fiscal do Estado e dos demais contribuintes.

33. Agiu o arguido B., por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

- Mais se provou, com relevância para os presentes, que:

34. A sociedade arguida A. já foi julgada e condenada por sentença proferida em 21 de Junho de 2017, no processo n.º 22/15.7IDCTB, que correu termos no Juízo Local Criminal de Castelo Branco – Juiz 2, pela prática, no ano de 2011, de 01 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), por referência ao artigo 103.º, n.º 1, alíneas a) e c), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho), na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), perfazendo o total de € 4 000,00 (quatro mil euros).

35. O arguido B. encontra-se atualmente desempregado, tendo exercido atividade na área da exploração florestal.

36. Já foi julgado e condenado por sentença proferida em 21 de Junho de 2017, no processo n.º 22/15.7IDCTB, que correu termos no Juízo Local Criminal de Castelo Branco – Juiz 2, pela prática, no ano de 2011, de 01 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), por referência ao artigo 103.º, n.º 1, alíneas a) e c), ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho), na pena de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, subordinada ao dever de pagar à Administração Tributária, no decurso da suspensão, a quantia de € 5 000,00 (cinco mil euros), por conta da restituição da vantagem patrimonial no valor de € 48 713,60 (quarenta e oito mil, setecentos e treze euros e sessenta cêntimos), no que respeita ao exercício do ano de 2011, em prestações mensais de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), ao longo de todo o período da suspensão, comprovando nos autos, a cada seis meses, o pagamento das prestações em questão.

b) Matéria de Facto Não Provada:

Provaram-se todos os factos com relevância e interesse para a boa decisão da causa, inexistindo factos dados como não provados.

c) Fundamentação da Matéria de Facto e Exame Crítico da Prova.

(…).

3. Apreciação

(a). Recurso intercalar

Inconformados com o despacho proferido em 03.12.2018, no qual o tribunal a quo afastou/indeferiu a alegada violação do princípio ne bis in idem, fundamentada na identidade dos factos em apreço no processo comum singular 22/17.2T9CTB e nestes outros (correspondentes ao presente processo) recorreram os arguidos.

Com efeito, aberta a audiência de discussão e julgamento (ata de fls. 979-980) pela Exma. Defensora dos arguidos, juntando, para tanto, cópia da acusação proferida no processo 22/17.2T9CTB, foi invocada a violação do princípio em referência, solicitando ao tribunal que diligenciasse pela junção aos autos (este processo) de certidão das peças processuais pertinentes (respeitantes ao processo 22/17.2T9CTB, no qual já havia sido realizado o julgamento), o que foi deferido, relegando-se para momento posterior a decisão sobre a questão suscitada e, assim, a realização do julgamento, cuja primeira sessão veio a ocorrer em 29.01.2019, prolongando-se até 13.02.2019.

Não obstante, nunca tais elementos vieram a ser juntos aos presentes autos – tão pouco decorrendo que hajam sido solicitados – antes resultando ter sido o processo 22/17.2T9CTB apresentado em mão ao Exmo. Senhor juiz, o qual deixando consignado haver procedido à respetiva consulta, exarou o despacho em crise. Procedimento que conduziu à necessidade deste tribunal de recurso encetar esforços com vista à junção ao processo da dita certidão.

Isto dito.

Das peças processuais assim adquiridas decorre que no âmbito do processo 22/17.2T9CTB foi deduzida, em 02.11.2017, acusação pública contra os ora arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1, 103.º, n.ºs 1, alínea b) e c) e 2, 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Regime Jurídico das Infrações Tributárias (doravante RGIT), por factos relativos ao recebimento indevido do IVA respeitante ao exercício de 2012, isto em consequência de haverem sido “lançadas” na contabilidade da sociedade arguida faturas correspondentes a serviços que nunca aconteceram, como se efetivamente tivessem ocorrido e o respetivo preço houvesse sido pago, o que possibilitou a apresentação à administração fiscal da declaração de IVA (relativa aos 2.º e 4.º trimestres de 2012), deduzido do IVA inscrito nas faturas “fictícias”, beneficiando, assim, a mesma de um crédito (reembolso) a que não tinha direito. Mais resulta haverem sido os arguidos condenados em primeira instância por sentença proferida em 01.02.2019, da qual foi interposto recurso para a Relação de Coimbra que, por acórdão já transitado em julgado (em 13.11.2019), determinou o reenvio do processo, com vista à apreciação pelo tribunal a quo dos pressupostos de um eventual crime continuado entre os factos objeto do mesmo (processo 22/17.2T9CTB) e aqueles outros julgados no processo n.º 22/15.7IDCTB.

Donde, retomando a questão dos presentes autos, não tendo ocorrido o trânsito em julgado da sentença proferida no processo 22/17.2T9CTB - o reenvio para novo julgamento, ainda que limitado, há-de originar nova sentença -, podermos excluir a exceção do caso julgado material, o qual não dispensa o trânsito em julgado de uma das decisões.

Coisa diferente é saber se efetivamente se verifica violação do ne bis in idem, cujo alcance reveste outra dimensão, transversal a todo o processo na medida em que impede – rectius proíbe - o julgamento, a perseguição penal, de alguém, mais do que uma vez, pela prática do mesmo crime (artigo 29.º, n.º 5 da CRP).

Como escreve Fernanda Palma, “O princípio non bis in idem é a expressão da garantia de que a perseguição criminal mediante o processo penal não é instrumento de arbitrariedade do poder punitivo, utilizável renovadamente e sem limites, mas é antes um modo controlável e garantido de aplicação do Direito Penal (…)” – [cf. Direito Penal, Parte Geral, I, p. 136]. Dito de outro modo o “bis” vedado pelo princípio constitucional não respeita tão só à sanção, estendendo-se antes ao próprio processo, seja qual for o seu resultado.

Orientação seguida no acórdão do TRL de 13.04.2011 (proc. n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, de cujo sumário se respiga: “II - O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material). III – Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. IV – Esta limitação visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.”

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STJ de 15.03.2006 (proc. n.º 05P4403), onde se defende que o que artigo 29.º, n.º 5, da CRP, “proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal”.

Regressando ao caso em apreço, constata-se que neste processo (41/16.6IDCTB), mediante acusação pública, deduzida em 12.06.2018, foi imputada aos mesmos arguidos (do proc. 22/17.2T9CTB) a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º2, 104.º, n.º 1 e 2, alínea a), todos do RGIT, agora relativo ao IRC do exercício de 2012, decorrente da diminuição do lucro tributável da sociedade arguida em consequência de haverem sido incluídas na sua contabilidade faturas sem qualquer correspondência com transações ou serviços prestados – falsas, portanto -, originando, assim, o aumento fictício dos custos da sua atividade.

No cotejo entre as duas acusações (a proferida no processo 22/17.2T9CTB e a deduzida nestes autos), sem qualquer surpresa, constata-se a identidade, para além dos arguidos, dos factos, isto quer no que respeita às faturas inscritas na contabilidade (vg. respetivos montantes, datas de emissão), quer no que concerne ao grosso dos cheques (vg. número respetivo; bancos; valores; beneficiários) que teriam sido emitidos como meio de pagamento. Por outro lado, o modus operandi descrito foi sempre o mesmo, como o mesmo foi o “fornecedor” das ditas faturas (fictícias), fazendo-se, desde logo, menção expressa à “formação do desígnio”, da “estratégia” por parte do arguido pessoa singular, conducente à “resolução de angariar faturas emitidas por terceiros, em nome da sociedade arguida, que não se reportavam a qualquer negócio ou prestação de serviço, e utilizar as mesmas na contabilidade desta, deduzindo o valor do “IVA” nelas constantes como tendo sido pago, e aumentando ficticiamente os custos da sua atividade, com a consequente diminuição do lucro tributável, em sede de IRC” – [cf. pontos 4 a 6 da acusação deduzida no processo 22/17.2T9CTB e os correspondentes pontos da acusação formulada nos presentes autos].

Perante o quadro que se vem de descrever, afigura-se-nos claro serem os mesmos os factos em apreço em ambos os processos, suscetíveis de configurar um só crime de fraude fiscal qualificada, cometido através de um mesmo artifício, mediante uma única resolução criminosa, embora com repercussão em dois impostos distintos (IVA e IRC), como, aliás, considerando que as faturas “falsas”, reportadas, em qualquer dos casos, ao exercício de 2012, vieram a ser inscritas na contabilidade da sociedade arguida, coincidindo nos processos em “confronto”, quer as faturas, quer os correspondentes meios de pagamento (respetivos montantes) não podia deixar de ser. Na verdade, incluídas as faturas (falsas) na contabilidade automaticamente se assiste a um aumento de custos da atividade e, logo, a uma diminuição do lucro tributável, por um lado; permitindo-se à sociedade subtrair (deduzir) o montante do IVA inscrito nas ditas faturas como se tivesse sido por si suportado, assim originando, a esse título, um “crédito” (a recuperar/reembolso), ao qual não tinha direito, por outro lado.

Se se tiver presente a definição do que seja o “objeto do processo” - imprescindível para se assentar no que se deve ter pelo “mesmo crime” (artigo 29.º, n.º 5 do CPP) - privilegiando nós os critérios de valoração social, em que “decisivo será, quer a valoração social, quer a imagem social do acontecimento ou comportamento trazido a juízo e consequentemente, a forma como o pedaço de vida é representado ou valorado do ponto de vista do homem médio – da experiência social se se preferir -, quer a salvaguarda da posição da defesa do arguido. Sempre que ao pedaço individualizado de vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou uma valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante alteração substancial dos factos”- [cf. Frederico Isasca, in Alteração dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, pág. 143-145; seguindo idêntica orientação vide, entre outros, os acórdãos do STJ de15.03.2006 (proc. n.º 05P4403), 30.10.1997 (proc. n.º 97P230) e de 08.10.2008 (proc. n.º 06P3203) e de 30.10.1997 (proc. n.º 97P230)], a conclusão não pode ser outra senão a de que, em ambos os processos, em causa está o mesmo crime.

Com efeito, os factos que surgem na origem dos presentes autos, concretamente os que sustentaram a acusação e subsequente julgamento pelo crime de fraude fiscal qualificada, já constavam da acusação anteriormente proferida no âmbito do processo 22/17.2T9CTB, cuja acusação e julgamento precedeu o realizado nestes autos, decorrendo inequivocamente que o “pedaço de vida” ali em apreciação em termos de valoração social é o mesmo, não assumindo, nas circunstâncias, na perspetiva que temos por correta, o facto de estarem em causa dois impostos distintos, e de o prejuízo e consequente lucro obtido não ser (num e noutro caso) exatamente coincidente, aspeto decisivo.

Na mesma linha veja-se o acórdão do STJ de 15.03.2006 (proc. n.º 05P4403), o qual, perfilhando o entendimento de que o inciso “mesmo crime” não deve ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico, reportando-se antes a “um comportamento de um agente espácio-temporal delimitado”, defende que o termo “crime” “não deve pois ser tomado ao pé-da letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime” e que o que artigo 29.º, n.º 5, da CRP, “proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal”, esclarecendo que neste domínio o “comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal”, daqui resultando “que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que diretamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do “objeto do processo. Deste modo, de acordo com esta visão naturalística, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, já que a sua apreciação violaria frontalmente a regra do ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado”, defendendo na esteira de Cavaleiro de Ferreira (cf. Curso de Processo Penal, III, 1958, págs. 52/53) que «Os “mesmos factos” (…) serão ainda idêntico facto quando a identidade real não for total, mas apenas parcial».

Em suma, no caso sub judice, verificando-se que pelo mesmo crime, porquanto assente nos mesmos factos, contra os arguidos, em data anterior à acusação formulada nos presentes autos, já havia sido deduzida acusação no processo 27/17.2T9CTB, bem assim que por ocasião do início da produção de prova em julgamento neste processo (41/16.6IDCTB) já tinham sido os mesmos julgados naquele outro (27/17.2T9CTB) só resta decidir pela violação do ne bis in idem.

Resulta, pois, prejudicada a apreciação do recurso interposto da decisão final.

III. Dispositivo

Pelo exposto, na procedência do recurso intercalar, julga-se:

a. Verificada a violação do princípio ne bis in idem com referência aos factos objeto do presente processo e aqueles outros pelos quais os arguidos A. e B. foram acusados e julgados no âmbito do processo comum singular n.º 22/17.2T9CTB e em consequência determina-se o arquivamento dos autos;

b. Prejudicada a apreciação do recurso interposto da sentença.

Sem tributação

Coimbra, 27 de Novembro de 2019

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)