Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1009/11.4TBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
REPARTIÇÃO
CRITÉRIO LEGAL
CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES
GUARDA CONJUNTA
GUARDA PARTILHADA
PRINCÍPIO GERAL
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – 1ª SEC. F. MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1905º E 1906º, Nº 7, AMBOS C.CIVIL; 158º, Nº 1, AL. C), 180º E 182º DA OTM.
Sumário: I – A norma da alínea c) do nº 1 do art.158º da OTM (aprovada pelo DL nº 314/78, de 27/10), ao estabelecer que “as declarações e os depoimentos não são reduzidos a escritos”, foi tacitamente revogada pela norma geral do art. 155º do CPC.

II - O critério legal de atribuição ou repartição das responsabilidades parentais é o “superior interesse da criança“ - arts.1905º CC, 180º da OTM, e 3º, nº 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança -, devendo ter-se presente ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da continuidade das relações familiares e da convivência familiar e o princípio da igualdade dos pais.

III - A acção de alteração das responsabilidades parentais está prevista e regulada no art.182º da OTM, tratando-se de acção autónoma, a que corresponde processo especial (tutelar cível).

IV - Para aferir das “circunstâncias supervenientes” deve recorrer-se ao critério estabelecido no art. 988º, nº 1 do CPC, que consagra tanto a superveniência objectiva (factos ocorridos posteriormente à decisão), como a subjectiva (factos anteriores não alegados por ignorância ou outro motivo ponderoso).

V - Na falta de acordo, e como princípio geral, não é legalmente admissível a guarda conjunta ou partilhada, como parece resultar do art.1906º, nº 7 do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

            1.1.- A requerente – D... – instaurou acção de alteração das responsabilidades parentais do menor R..., com forma de processo especial, contra o requerido – J...

            Alegou, em resumo:

            Por acordo homologado por sentença de 16/5/2011, o menor R..., filho de ambos, ficou a residir com o pai que passou a exercer as responsabilidades parentais da vida corrente, em virtude da mãe se encontrar a trabalhar e a residir no estrangeiro.

            Porém, o pai foi trabalhar para França e deixou o menor aos cuidados da sua irmã e tia paterna do menor, S..., que passou a tomar todas as decisões relativas ao menor, sem dar conhecimento à requerente.

Esta situação não acautela os interesses do menor, sendo que actualmente a mãe apresenta todas condições para ter consigo o menor pois tem um emprego estável com um horário adequado a cuidar dele.

Pediu a alteração da regulação das responsabilidades parentais do menor, no sentido de lhe ser confiada a guarda.

O requerido opôs-se, alegando, em resumo, que a sua ausência é temporária e o menor está bem integrado, devendo manter-se o regime fixado.

1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, que decidiu julgar improcedente a acção.

1.3.- Inconformada, a requerente recorreu de apelação, com as seguintes questões:

Nulidade por falta da gravação da prova em audiência ( arts. 155 nº1 e 2, 195 CPC);

Impugnação dos factos provados nºs 6, 27, 28, 36, 41, 42, 43, 46;

Impugnação dos factos não provados III, V, VIII, XI, XII;

A sentença violou os arts.1906 e 1907 CC, devendo ser alterada a regulação das responsabilidades parentais.

O requerido contra-alegou, no sentido da improcedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.2.- O objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

            A nulidade processual pela ausência de gravação da prova;

            A impugnação de facto;

            A alteração das responsabilidades parentais do menor R.

2.2.- Os factos provados

1. O menor R... nasceu no dia 12 de Outubro de 2007.

2. Requerente e Requerido são à data ainda marido e mulher, estando ainda assim separados de facto, sendo que no período em que nasceu o menor habitavam em B..., Suíça lá trabalhando.

3. Quando o R... tinha seis meses de idade, requerente e requerido deixaram-no vir de avião da Suiça a Portugal com a tia S..., passar um mês com a mesma e os avós paternos.

4. Em data não concretamente apurada, a Requerente regressou para Portugal com o menor, por motivos pessoais respeitantes ao seu casamento com o Requerido.

5. O Requerido permaneceu a trabalhar na Suíça, tendo posteriormente também regressado a Portugal.

6. Durante o tempo em que Requerente e Requerido residiram juntos em Portugal, eram os avós paternos e a tia S... que auxiliavam o casal a tratar do R.

7. Requerente e Requerido separaram-se de facto em finais de Janeiro ou princípios de Fevereiro de 2011, tendo à data o menor ficado a residir com a Requerente na Figueira da Foz.

8. O requerido ficou a viver com os seus pais e irmã (S...) na Rua ...

9. Neste período a Requerente trabalhava para a “F... – Indústria e Comércio Alimentares”, fazendo trabalho por turnos.

10. A mãe da Requerente ajudava-a a cuidar do menor.

11. O requerido ia com regularidade à Figueira da Foz buscar o R... para passar fins de semana consigo, com os seus pais e irmã com quem residia.

12. No dia 24 de Fevereiro de 2011 o R... foi internado no Hospital ... para ser submetido a uma intervenção cirúrgica, onde permaneceu até ao dia 4 de Março desse mesmo ano.

13. Do dia 24 a 27 a mãe permaneceu com ele no Hospital, após o que transmitiu ao requerido e sua família (sogros e cunhada) que não poderia aí continuar e foi para a Figueira da Foz, tendo o Requerido, a avó paterna e a tia e madrinha S... acompanhado o R..., dia e noite, no Hospital.

14. Após o R... sair do Hospital e passar o fim de semana com o requerido, avós paternos e tia, esta foi levá-lo à Figueira da Foz para o entregar à mãe.

13. Em Abril de 2011, por causa das suas obrigações laborais conflituantes com o regular cuidado a prestar ao menor, a Requerente considerou que o menor ficaria, na altura, melhor entregue ao Requerido, visto ele estar desempregado e habitar com a sua mãe e irmã, tendo assim auxílio financeiro e tempo para melhor acompanhar o menor.

14. De Abril de 2011 até Agosto de 2011 o R... era levado e trazido pelo requerido, sua irmã e avó materna aos fins de semana, quando solicitado pela requerente, à Figueira da Foz para passar o fim de semana com a mãe.

15. Naquela altura o R... apresentava-se com uma alimentação não adequada à sua idade e necessidades e com um comportamento muito introvertido.

16. Em Abril de 2011 a “F... – Indústria e Comércio Alimentares”, atravessava graves dificuldades financeiras, tendo os funcionários salários em atraso, tendo esta empresa sido declarada insolvente, no Processo ...

17. A Requerente tem família em França, nomeadamente a irmã em Paris, e um irmão e prima a 3 horas de distância que a poderiam auxiliar a estabelecer-se.

18. Em Agosto de 2011 a Requerente ficou desempregada e foi viver para Paris, França, a fim de encontrar trabalho.

19. Por saber que naquelas circunstâncias o melhor interesse do menor era ficar em Portugal com o pai que, apesar de desempregado, tinha auxílio financeiro da mãe e irmã e tinha também tempo para cuidar do menor, a Requerente chegou, em Maio de 2011, a um acordo com o pai quanto à regulação das responsabilidades parentais do menor R..., nos termos que constam a fls. 9 e 10 do respectivo apenso.

20. A requerente sempre soube que o R... era e é cuidadosamente cuidado não só pelo requerido como pelos seus avós paternos e tia S..., com quem sempre residiu desde Abril de 2011 e com quem mantém laços afectivos muito fortes e, por ter essa consciência, é que a requerente entregou o R... para viver com o requerido e seus familiares, avós paternos pais e tia.

21. Em Maio de 2011, quando foi regulado as responsabilidades parentais, o R... já se encontrava a residir com o requerido, seus avós paternos e sua tia/madrinha S..., na mesma residência onde hoje ainda se encontra.

22. Em França a Requerente encontrou trabalho estável como baby-sitter a partir de finais do primeiro semestre de 2012.

23. A Requerente vive em ..., num estúdio que inclui apenas uma sala de estar com uma cozinha, um quarto de banho, uma marquise, um mezanino, uma varanda e um arrumo na cave.

24. Aufere virtude do contrato de trabalho que tem, a remuneração mínima permitida por lei em França de aproximadamente 1400€ (mil e quatrocentos euros).

25. Para além das normais despesas quotidianas, despende, mensalmente, €591 (quinhentos e noventa e um euros) com a renda da casa e demais encargos; 88€ (oitenta e oito euros) para despesas de luz; €145 (cento e quarenta e cinco euros) em crédito de móveis e carro; e €80 (oitenta euros) a título de pensão de alimentos para o menor.

26. A Requerente vive com o seu companheiro chamado ..., com quem planeia ter filhos.

27. O Requerido decidiu ir trabalhar para a Suiça em Maio de 2012, inicialmente por breves períodos, por não conseguir emprego em Portugal.

28. A situação do Requerido como emigrante é, em princípio, temporária, consoante os contratos de trabalho que tem surgido.

29. O requerido atualmente encontra-se a trabalhar na Suiça, auferindo um salário mensal de cerca de CHF3.600.

21. Foram os avós paternos, assim como a sua tia/madrinha S..., que sempre ajudaram o requerido a tratar do R..., nomeadamente com a alimentação, cuidados de higiene, saúde e educação, sendo, inclusive a tia S... que o levava ao Infantário e hoje continua a levar à escola primária e a todas as actividades que atualmente frequenta, o que sempre foi do conhecimento da requerente.

22. O R... é uma criança que padece de doença crónica, nomeadamente bronquite asmática, necessitando de cuidados redobrados  como medicação diária e por vezes deslocações ao Hospital para administração de corticoides e oxigénio, sendo acompanhado pela médica de família, Drª ..., e por uma especialista Drª ..., a qual tem feito um estudo da doença e ajudado a minorar as crises.

23. Desde que foi entregue ao requerido em Abri de 2011 e ficou ao cuidado deste e seus avós paternos e tia S..., o R... nunca esteve hospitalizado

24. Pela doença crónica que padece, asma e rinite, com agravamento no Inverno e asma de esforço, o R... está a ser acompanhado regularmente pela especialidade no Hospital ..., tendo já marcada a próxima consulta para o mês de Fevereiro de 2014, assim como faz medicação diária com singulair 4 mg e flixotaide inalado, sendo também muito  importante determinados cuidados diários na  higiene dos espaços  que frequenta, assim como ausência de peluches ou materiais semelhantes.

25. O R... já desde o ano de 2009 tem sido sempre acompanhado às consultas médicas pela tia S..., o que é do conhecimento da requerente.

26. O menor vive na mesma casa e com as mesmas pessoas desde Abril de 2011 e naquela casa tem o seu próprio quarto e todas as condições necessárias ao seu saudável desenvolvimento.

27. O menor  R...  mostra-se  muito  feliz,  afetuoso,  com  um  comportamento exemplar, educado e dócil, encontrando-se muito bem inserido na comunidade com o seu grupinho de amigos e bem integrado na Escola.

28. O R... frequenta o 1º ano da EB de ..., assim como as atividades de enriquecimento curricular, nomeadamente actividade física e desportiva, inglês e atividade lúdico expressiva, tendo aí sido inscrito pelo requerido.

29. Em 31 de Agosto de 2013 foi dada às entidades competentes a informação de que o R... se encontra a residir com os avós paternos e tia S..., ficando esta, no período de ausência do requerido na Suíça, como encarregada de educação.

30. O R... pratica futebol, o que gosta particularmente, na Associação Social Desportiva, Recreativa, Educativa e Cultural de ...

31. A inscrição do R... foi feita sem prévio consentimento da mãe e sem esta ter sido previamente, ou mesmo posteriormente informada.

32. A Requerente não concorda com a escolha da actividade desportiva por motivos de saúde do filho.

33. O menor frequenta também o 1º ano de catequese na Paróquia de ..., contra a vontade da mãe.

34. Como é conhecimento do Requerido a Requerente, não é católica praticante e era firmemente contra a inscrição do filho na catequese por acreditar que a seu tempo o mesmo iria criar a ideologia religiosa que preferisse, não devendo ser influenciado ou pressionado nessa escolha.

35. Apesar da ausência física regular dos pais, o R... tem-nos presentes, fala de ambos e sabe diferenciar o grau de parentesco entre estes e os avós paternos e a tia com quem reside há mais de 3 anos.

36. É dado à mãe conhecimento de todo o seu desenvolvimento apenas quando esta entra em contacto.

37. O menor R... manifesta uma grande ligação emocional quer ao requerido, quer aos avós paternos quer a tia S... que, com inteira disponibilidade, o acompanham em todas as atividades.

38. O R... demonstra sentir-se muito amado não só pelo Requerido como também pelos avós paternos e tia S... que cuidam dele no dia a dia.

39. Ainda que estando ausente do país, a Requerente sempre procurou ligar ao menor para falar com ele e saber como se encontrava.

40. Desde que a requerente foi viver para França, em Agosto de 2011, o R... tem estado com a mãe quando esta se desloca a Portugal em gozo de férias, duas vezes por ano, e pelo período máximo de três semanas intercaladas, sendo sempre levado e trazido dessas visitas pela tia S... à Figueira da Foz, quando a requerente o solicita .

41. O Requerido tem-se deslocado com frequência a Portugal para estar com o filho, telefona várias vezes por semana para acompanhar a rotina e desenvolvimento do mesmo.

42. A requerente nunca contribuiu para as despesas médicas medicamentosas (diárias) e escolares do filho, não obstante ter perfeito conhecimento da medicação diária que este tem que fazer.

43. Tal contribuição nunca lhe foi solicitada.

44. A título de pensão de alimentos, entregou as seguintes quantias: Em Outubro de 2011 - € 40,00; Dezembro de 2011 - € 150,00; Janeiro de 2012 - €80,00; Fevereiro de 2012- € 250,00; Agosto de 2012 – entregou € 40,00; Novembro de 2012 - € 80,00; Dezembro de 2012 - €80,00; Fevereiro de 2013 - € 80,00; Abril de 2013 - € 160,00; Julho de 2013 - €160,00; Agosto de 2013 € 160,00 e Outubro de 2013 - € 80,00.

45. Estas quantias foram entregues pela requerente sempre por transferência bancária para a conta bancária da tia do R..., S..., que é titular no Banco ...

46. A Requerente tem perfeito conhecimento que só de mensalidade o R... pagava € 80,00 (oitenta euros) no Infantário, que carece de medicação diária, e que, na data em que entregou o R... ao pai, avós paternos e tia, aquele encontrava-se desempregado,

47. Parte das quantias entregues pela requerente, nomeadamente no montante de € 680,00 (seiscentos e oitenta euros) encontram- se depositadas numa conta que o R... é titular no Banco ...

2.3.- Os factos não provados

- Em fins de Maio de 2010, a Requerente regressou para Portugal com o menor.

- A Requerente, enquanto trabalhadora da “F... – Indústria e Comércio Alimentares” fazia horários pesados e exaustivos, trabalhando das 06h até às 18, tendo apenas conseguido ter consigo o menor devido à ajuda da sua mãe.

-Por esse motivo, em Abril de 2011 a Requerente foi obrigada a entender que o menor ficaria, na altura, melhor entregue ao Requerido, visto ele estar desempregado e habitar com a sua mãe e irmã, tendo assim auxílio financeiro e tempo para melhor acompanhar o menor.

- A Requerente deslocou-se a Viseu todos os fins-de-semana para estar com o menor, sendo que por impossibilidade por duas vezes suportou as despesas do Requerido vindo este trazer-lhe o Menor.

- Em Agosto de 2011 a Requerente ficou desempregada e foi mesmo forçada a abandonar o País, tendo-se estabelecido em Paris.

- Em Paris, encontrou o apoio e auxilio financeiro que necessitava e que não tinha em Portugal, visto a família em Portugal não ter capacidade para tal, tendo sido acolhida pela sua irmã, que lhe emprestou todo o dinheiro que necessitou dado que num período inicial, apenas conseguiu prestar serviços por algumas horas, não tendo conseguido um trabalho estável.

- O emprego estável que encontrou permitiu-lhe pagar o empréstimo que generosamente a sua irmã lhe tinha feito

- A residência da Requerente situa-se a uma hora de Paris, nos arredores onde pode ter uma vida mais recatada e segura.

- A Requerente gosta muito do seu trabalho de baby-sitter.

- Despende mensalmente €114 (cento e catorze euros) de despesas de transporte; € 15€ (quinze euros) de telefone; 96€ (noventa e seis euros) de seguro de saúde; e €150 (cento e cinquenta euros) para alimentação.

- A Requerente só aceitou o Acordo de Regulação das Responsabilidades porque tinha na altura um horário exaustivo no qual era impossível acompanhar o menor, acrescido ao facto de já na altura existirem salários em atraso estando a mesma numa situação de fragilidade financeira e por isso estar já a planear emigrar, em busca de uma vida melhor.

- A Requerente foi afastada de todas as decisões importantes da vida menor e não foi informada das mesmas.

- O Requerido foi trabalhar para Suíça e não informou a Requerente.

- O menor tem sido pressionado e influenciado em sentido de criar uma crispação e distanciamento com a sua mãe, tendo mesmo a determinada altura o menor dito que a avó lhe havia dito “para não querer ir morar com a mãe”.

- Cumpriu sempre o seu dever de pagamento da pensão de alimentos pagando em numerário, enquanto esteve em Portugal, tendo mesmo de para tal pedir dinheiro emprestado à sua Mãe.

- Ajudou com as despesas que lhe foram comunicadas.

- O menor mostrava grande dificuldade de adaptação a viver com a mãe.

- O R... não se adaptou a viver com a mãe, chorava muito e, por isso, em Abril de 2011 a requerente entrega-o ao requerido e sua família com quem vivia para que cuidassem dele.

- Quando o requerido decidiu ir trabalhar para a Suiça, em Maio de 2012, não ponderou levar o menor consigo porque o clima não é favorável à doença crónica de que o R... padece e foi até causa, de ambos os pais terem deixado a Suiça onde viveram durante algum tempo, por recomendação médica, já que o clima desse país assim como o de França, onde se encontra a requerente a residir atualmente, com Invernos muito rigorosos, é muito prejudicial à saúde do R..., agravado pela poluição das grandes cidades.

            2.4.- 1ª QUESTÃO

            A Apelante arguiu a nulidade processual pela falta de gravação dos depoimentos prestados em audiência, dizendo, em suma, ser obrigatória a gravação, por força do disposto no art. 155 nº1 nCPC.

            Objecta o Apelado com a norma do art.158 nº1 c) da OTM proíbe a gravação da prova.

            A acção de alteração das responsabilidades parentais está prevista e regulada no art.182 da OTM, tratando-se de acção autónoma, a que corresponde processo especial (tutelar cível).

            O art.158 da OTM que contém o regime sobre a audiência de discussão e julgamento no âmbito dos processos cíveis, estatui na alínea c) que “as declarações e os depoimentos não são reduzidos a escrito”, significando o afastamento do registo da prova.

            Regulando-se os processos especiais pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns (art. 549 nº1 CPC), a disposição do art.155 CPC  (que impõe a obrigatoriedade da gravação) sendo geral também se aplica aos processos especiais. Daqui resulta um conflito de normas: entre a do art.158 nº1 c) da OTM e a do art.155 nº1 CPC.

            Uma das soluções passará por convocar o critério da especialidade para afirmar que aquela é especial em relação a esta, visto regular a matéria na norma específica do regime da audiência, prevista na legislação especial, logo com prevalência. A ser assim, a falta de gravação não consubstancia a preterição de formalidade essencial, com influência na decisão da causa, e, portanto, não ocorre qualquer nulidade processual.

            No entanto, a solução mais correcta, e que aqui se adopta, é a de considerar derrogada a norma do art.158 nº1 c) da OTM por força da norma posterior do art.155 nº1 do CPC, impondo-se, por isso, a obrigatoriedade da gravação.

            Com efeito, o registo da prova produzido em audiência é obrigatório e nem sequer depende agora do requerimento das partes, assentando num novo paradigma do processo civil moderno, com a possibilidade do efectivo controle da decisão de facto, densificando, também por esta via, o direito a um processo equitativo.

            Conforme se justificou no Ac RC de 10/7/2014, relatado pelo Des. Teles Pereira (proc. nº 64/13.7T6AVR), disponível em www dgsi.pt “o artigo 155º, nº 1 do CPC apresenta uma forte vocação de generalidade que não nos parece ceder perante razões específicas – lei especial – da adjectivação tutelar prevista na OTM, nos termos em que a gravação se coloca presentemente em relação à redução a escrito de depoimentos excluída pelo artigo 158º, nº 1, alínea c) da OTM. Com efeito, se a redução a escrito de declarações e depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento realizada nestes processos (a alínea c) do nº 1 do preceito vem da redacção originária do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro) bulia com o carácter expedito e desformalizado pretendido imprimir a este tipo de procedimentos, no paradigma processual de 1978, a simples gravação é absolutamente compatível com esse carácter e potencia um efectivo direito ao recurso, no quadro processual actual”.

            Por conseguinte, em face da imperatividade do regime (geral) estabelecido no art. 155 CPC pode concluir-se pela revogação tácita da norma do art. 158 nº1 c) da OTM, porque a intenção do legislador processual comum foi a de ampliar o regime da documentação da prova ( registo fonográfico).

            Refira-se que a recente Lei nº 141/2015, de 8/9, que aprovou o Regime do Processo Tutelar Cível, com entrada em vigor no dia 8 de Outubro, estabelece ( art.29 nº3) a obrigatoriedade da gravação da audiência.

Nesta perspectiva, já ocorre clara nulidade processual, carecida de arguição no prazo legal. E por se tratar de total omissão da gravação da audiência, deve ser arguida no acto, caso a parte se aperceba, ou no prazo de dez dias partir de então ( arts. 149 nº1 e 199 CPC), o que não foi feito.

Ainda que fosse aplicável o prazo de dez dias, nos termos previstos no art.155 nº4 CPC, como sustenta a apelante, tal significa que o prazo se iniciou com a notificação de fls. 302 (datada de 18/9/2014) a informar que a audiência não foi gravada.

            Sucede que a Apelante arguiu a nulidade, não através de reclamação dirigida ao tribunal recorrido, mas já nas alegações de recurso.

            Perante o tribunal recorrido a Apelante apenas invocou a nulidade da sentença, indeferida por despacho de fls. 413 e segs.

            A arguição da nulidade processual no tribunal superior só é admissível quando o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo, começando então a correr desde a distribuição (art.199 nº3 CPC), mas a norma reporta-se às nulidades processuais cometidas durante a fase de interposição e expedição do recurso, visando conciliar os interesses da parte e da celeridade processual.

            Uma vez que a nulidade não foi sancionada por despacho, o meio próprio para a sua arguição é a reclamação e não o recurso, dentro da máxima “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se” (cf. Alberto dos Reis, Comentários, vol.II, pág.507, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.393; Ac STJ de 24/3/1992, BMJ 415, pág.552, de 9/3/1993, BMJ 425, pág.448, Ac da RC de 4/5/2004, www dgsi.pt/jtrc ).

            Por isso, considera-se intempestiva a arguição da nulidade, ficando sanada.

            2.5.- 2ª QUESTÃO

            A Apelante pretende a alteração de facto.

Conforme consta da funfamentação, o tribunal justificou a convicção na ponderação global da prova documental e testemunhal.

            Não tendo havido gravação da prova, fica inviabilizado o recurso de facto.

            2.6.- 3ª QUESTÃO

As responsabilidades parentais apresentam-se como um efeito da filiação (art.1877 e segs. do CC), sendo concebidas como um conjunto de direitos e deveres (poderes funcionais) que competem aos pais relativamente à pessoa e bens dos filhos.

            Na verdade, as crianças têm o direito fundamental à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral (art.69 nº1 da CRP e Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/89, assinada por Portugal em 26/1/90, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº20/90 de 12/9 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº49/90, ambos publicados publicada no DR I Série nº211/90, de 12/10/90.

Como é sabido, a regulação do exercício das responsabilidades parentais comporta três aspectos: a guarda, o regime de visitas e os alimentos.

O critério legal de atribuição ou repartição das responsabilidades parentais é o “superior interesse da criança“ - arts.1905 CC , 180 da OTM, 3 nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança.

E o “interesse superior da criança“, enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral (art.69 nº1 da CRP), reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência (cf. Ac RC de 3/5/2006, proc. nº681/06 - do aqui relator - disponível em www dgsi.pt).

            O exercício das responsabilidades parentais deve ter presente ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, legitimador do menor enquanto sujeito de direitos e não como mero objecto, o princípio da continuidade das relações familiares e da convivência familiar e o princípio da igualdade dos pais.

A Lei nº61/2008 de 31/10 (com entrada em vigor em 31 de Novembro de 2008), ao regular o novo regime jurídico do divórcio procedeu também à alteração dos arts.1901 a 1912 do CC, atinentes ao exercício das responsabilidades parentais.

É fundamento da alteração da regulação das responsabilidades parentais, em nova acção autónoma, “quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido“ – art.182 nº1 da OTM.

            O que deve entender-se por “ circunstâncias supervenientes”?

            Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, tem aqui aplicação o critério estabelecido no art.988 nº1 do CPC - “ dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão, como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”.

            Consagra-se tanto a superveniência objectiva (factos ocorridos posteriormente à decisão), como a subjectiva (factos anteriores não alegados por ignorância ou outro motivo ponderoso).

            A alteração reclamada reporta-se, no essencial, à guarda do menor, cujo regime consta do acordo de Maio de 2011, judicialmente homologado.

            A sentença recorrida desatendeu a pretensão, argumentando:

            (i)As duas situações de incumprimento (frequência da catequese e inscrição no futebol, sem o consentimento da requerente) não são de molde a impor a alteração da guarda;

            (ii)A circunstância de o requerido ter ido trabalhar temporariamente para a Suiça, ficando o menor no seio familiar (avós paternos e tia S...) , onde está plenamente integrado, não justifica a alteração da guarda, porque “foi o acordo dos pais que originou este perqueno mundo onde o menor vive”.

            A Apelante objecta dizendo que o requerido violou o acordo sobre as responsabilidades parentais ao confiar a terceirras pessoas o menor, sem o consentimento dela.

A lei portuguesa instituiu o modelo da guarda única, unilateral ou exclusiva, atribuindo-a ao cônjuge que esteja em melhores condições de salvaguardar o interesse do menor (“critério da competência“). É que o exercício conjunto das responsabilidades parentais e o duplo consentimento nas questões de particular importância distingue-se da chamada guarda conjunta ou da guarda alternada.

Na falta de acordo, e como princípio geral, não é legalmente admissível a guarda conjunta ou partilhada, como parece resultar do art.1906 nº7 do CC .

Problematiza-se no recurso não a aplicação do modelo de guarda conjunta, e muito menos alternada, mas apenas a questão de saber a quem deve ser atribuída a guarda única, ou seja, com quem deve o menor passar a residir, se deve manter-se a actual situação, visto estar plenamente integrado, ou se deve ser confiado à mãe e ir residir para França.

Temos para nós, ressalvando o devido respeito, que o interesse do menor R... justifica que continue à guarda do pai, tal como se decidiu na sentença.

Com toda a pertinência, diz a sentença:

 “ O que ficou estabelecido foi que o menor residiria habitualmente com o pai. Atento o contexto em que tal cláusula foi fixada a mesma pressupunha que o menor residiria habitualmente com o pai no local onde este vivia à data. Há mais de dois anos que o pai não vive no local onde o menor continuou a residir com a família paterna. Neste período o menor cresceu de forma saudável, sendo feliz no local e com as pessoas com quem reside habitualmente – os avós paternos e a tia Susete. Neste período nenhum dos progenitores se demitiu das suas responsabilidades parentais. A questão que, então se coloca, é a de saber as circunstâncias supervenientes atrás referidas exigem a alteração do que ficou estabelecido no sentido pretendido com a mãe, ou seja, que o menor passe a residir habitualmente consigo.

É importante que os filhos cresçam na companhia dos pais, de ambos se possível. A presença cuidadora das mães é tão mais importante quanto mais novo for o filho pois trata-se de respeitar e dar continuidade à íntima ligação biológica que é a gestação. Todavia, nem sempre é possível aos pais beneficiarem os filhos com a sua presença física constante, como no nosso caso. Nem por isso os filhos deixam de criar a sua própria identidade. Estes vão somando vivências e criando raízes e ligações que os estruturam como pessoas únicas, tanto quanto a filiação é identificadora. E isto não pode ser ignorado. No caso, o R... tem pais verdadeiros que o amam, que se preocupam com o seu bem-estar, e não se demitem das suas responsabilidades. As necessidades práticas da vida determinaram que primeiro um e depois o outro tivessem que viver longe do local que elegeram para o menor viver. Há, então, que ponderar se é necessário mudar a residência do menor para junto da mãe em França, pois é esta a alteração que vem pedida”.

O menor R... (nascido em 27/10/2007), actualmente com 7 anos e 9 meses de idade, ficou à guarda do pai desde Abril de 2011 (então com 3 anos e 6 meses de idade) num agregado composto pelo pai, pelos avós paternos e pela tia S..., que ajudam o requerido na eduação e cuidados do menor, comprovando-se que estão reunidas as condições necessárias ao seu saudável desenvolvimento.

É certo que o requerido foi trabalhar para a Suiça em Maio de 2012, inicialmente por breve períodos, sabendo-se, porém, tratar-se de uma situação temporária, sendo que se desloca frequentemente a Portugal para estar com o filho e telefona várias vezes por semana para acompanhar a rotina do menor.

Daqui resulta que o requerido, apesar de fisicamente ausente (de modo temporário) continua a acompanhar o filho e o art. 1906 nº4 do CC (redacção da Lei nº 61/2008 de 31/10) permite a delegação relativa aos actos da vida corrente.

O menor R... frequenta a escola, e está plenamente integrado neste meio familiar, e por padecer de doença crónica (bronquite asmática) está a ser acompanhado no Hospital de Viseu, e é a tia S... quem vai com ele às consultas, na asuência do pai.

O menor R... sente-se feliz com a integração na escola e com os amigos, e manifesta grande ligação emocional quer ao requerido quer aos avós paternos e à tia S...

Por seu turno, a requerente tem conhecimento deste ambiente e do bem estar do filho.

Estamos no âmbito de um processo tutelar cível, de jurisdição voluntária (art. 150 OTM) sem que se imponham critérios de legalidade estrita (art. 987 CPC - anterior art. 1410), mas a obtenção da melhor solução para o caso, tendo sempre presente o “superior interesse da criança” (arts.1905 CC , 180 da OTM, 3 nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança ).

Num juízo de ponderação, porque o menor R... se encontra plenamente integrado, com condições propícias para a sua educação, é fundamental que mantenha esta estabilidade, indispensável ao seu desenvolvimento.

Como realçou a sentença, o R... foi criando a sua própria identidade sem a permanente presença física dos pais que se viram obrigados a emigrar, mas mesmo assim não se demitiram das suas responsabilidades parentais, e continuam presentes na vida do menor, com quem contactam.

            2.7.- Síntese conclusiva

 (1)A norma da alínea c) do nº1 do art.158 da OTM (aprovada pelo DL nº 314/78 de 27/10), ao estabelecer que “ as declarações e os depoimentos não são reduzidos a escritos”, foi tacitamente revogada pela norma geral do art. 155 do CPC.

(2) O critério legal de atribuição ou repartição das responsabilidades parentais é o “superior interesse da criança “ ( arts.1905 CC , 180 da OTM, 3 nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança ), devendo ter-se presente ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da continuidade das relações familiares e da convivência familiar e o princípio da igualdade dos pais.

(3)A acção de alteração das responsabilidades parentais está prevista e regulada no art.182 da OTM, tratando-se de acção autónoma, a que corresponde processo especial (tutelar cível ).

(4)Para aferir das “ circunstâncias supervenientes” deve recorrer-se ao critério estabelecido no art.988 nº1 do CPC, que consgra tanto a superveniência objectiva (factos ocorridos posteriormente à decisão), como a subjectiva (factos anteriores não alegados por ignorância ou outro motivo ponderoso).

III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

            Condenar a Apelante nas custas.

            Coimbra, 6 de Outubro de 2015.

 ( Jorge Arcanjo)

 ( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )