Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1804/12.7TBTNV-B.EI.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
CULPA
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SANTARÉM - TORRES NOVAS - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 140 CPC, 487, 799 CC
Sumário: 1.- O justo impedimento abarca as situações em que a omissão ou o retardamento da parte se haja devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria.
2.- A culpa é apreciada nos termos do disposto no art.487º, nº2, do Código Civil.

3.- Não é desculpável o comportamento da parte que entrega o formulário do apoio judiciário, na Segurança Social, com dúvidas sobre o seu teor, enganando-se na quadrícula que respeitava à sua intenção, pois tinha ao seu alcance a eliminação de tais dúvidas.

Decisão Texto Integral:           

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Os Réus alegaram o justo impedimento para a prática da contestação fora do prazo legalmente previsto, dizendo, em síntese:

Foram citados em 25.1.2013 e o prazo para oferecer a Contestação terminava no dia 19.2.2013.

Tendo consciência do seu erro no dia 1.3.2013 (sexta-feira), no dia 4.3.2013 dirigiram-se à Sra. Juíza a dar conta da razão porque não contestaram atempadamente e pediram que lhes concedesse 10 dias para contestar.

Estavam convencidos que os requerimentos que entregaram no processo contemplavam a nomeação de patrono e, informados que esse pedido fazia parar o prazo para contestar e levaria à sua notificação prévia de novo prazo, ficaram descansados.

Afinal, eles não tinham posto a cruz na modalidade de “Nomeação e pagamento da compensação de patrono”.

Ao dirigirem-se ao Tribunal na tarde de 28.2.2013, ao Sr. Funcionário que lidava com o seu Processo, com o ofício da Segurança Social que lhes falava em pagar a prestações, pretendendo tão só saber o número das prestações, estando certos que lhes iriam atribuir advogado e disso falaram, como que lateralmente, ao dito funcionário, este disse-lhes que não estava no processo o pedido da nomeação do patrono e que vissem o que se estava a passar.

Não percebendo todo o alcance de tal informação, no dia seguinte chegaram à fala com o Advogado que foi ver o processo e constatou o problema.

Os Autores responderam, dizendo que os Réus bem sabiam o que pediram na Segurança Social – a dispensa do pagamento de preparos e custas e não a nomeação de patrono. Por outro lado, desde sempre os Réus se apresentaram em juízo como tendo advogado.

O incidente foi indeferido liminarmente e os Réus recorreram para esta Relação que determinou a produção da prova apresentada.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão a julgar improcedente o incidente do justo impedimento invocado.


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            Inconformados, os Réus recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

(…)


*

            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            Questões a decidir:

Reapreciação da matéria de facto, apurando se está provado o seguinte:

- Os RR. citados para a presente ação não se dirigiram a qualquer advogado para contestarem e procuraram que o Estado lhes atribuísse um advogado para os defender e os dispensasse do pagamento das custas;

- Os RR. preencheram e fizeram entrar na Segurança Social o impresso, que no seu convencimento, se destinava a obter tal benefício;

- A correspondência da Segurança Social tendente à audição prévia do R., junta como doc. 1 do requerimento dos RR., tem a data de 25/02/2013.

            Consideração da existência de justo impedimento.


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Reapreciação da matéria de facto.

(…)

Pelo exposto, julgando a impugnação da matéria de facto procedente, decide-se:

Alterar a data assente sob o nº 2.1.4., sendo a correta a de 25.2.2013;

Julgar provados os seguintes factos:

Citados para a ação, os Réus procuraram que o Estado lhes atribuísse um advogado para os defender e os dispensasse do pagamento das custas.

Para o efeito, os RR. preencheram e fizeram entrar na Segurança Social o impresso previsto para o pedido de apoio judiciário, que no seu convencimento se destinava a obter tal benefício.

Os Réus convenceram-se que o prazo para apresentarem a sua contestação se iniciaria com a notificação das decisões relativas aos seus pedidos de protecção jurídica.

Erradamente, os Réus não colocaram uma cruz na quadrícula prevista para a nomeação de patrono.

Foi a 28.2.2013 que os Réus se dirigiram ao tribunal para esclarecer a notificação emitida a 25.2.2013.

Foi a 1.3.2013 que os Réus reuniram com o Dr. (…)..

Em consequência, decide-se eliminar o facto não provado sob o nº 2.2.5.


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Os factos provados são então os seguintes, agora com outra sequenciação:

1. O Réu M (…) recebeu a correspondência tendente à citação do mesmo e da Ré M (…) no dia 28 de Janeiro de 2013, da qual consta o seguinte: “Nos termos do disposto no art.º 236.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª citado para, no prazo de 20 dias, contestar, querendo, a acção acima identificada com a advertência de que a falta de contestação importa a confissão dos factos articulados pelo(s) autor(es). Ao prazo de defesa acresce uma dilação de: 0 dias. No caso de pessoa singular, quando a assinatura do Aviso de Recepção não tenha sido feita pelo próprio, acrescerá a dilação de 5 dias ( art.ºs 236.º e 252.º - A do CPC). A citação considera-se efectuada no dia da assinatura do AR. O prazo é contínuo suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais. Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte. Fica advertido de que é obrigatória a constituição de mandatário judicial. Juntam-se, para o efeito, um duplicado da petição inicial e as cópias dos documentos que se encontram nos autos”.

2. Citados para a ação, os Réus procuraram que o Estado lhes atribuísse um advogado para os defender e os dispensasse do pagamento das custas.

3. Para o efeito, os RR. preencheram e fizeram entrar na Segurança Social o impresso previsto para o pedido de apoio judiciário, que no seu convencimento, se destinava a obter tal benefício.

4. Os Réus convenceram-se que o prazo para apresentarem a sua contestação se iniciaria com a notificação das decisões relativas aos seus pedidos de protecção jurídica.

5. Erradamente, os Réus não colocaram uma cruz na quadrícula prevista para a nomeação de patrono.

6. No dia 5 de Fevereiro de 2013, os Réus juntaram aos autos cópia dos requerimentos de protecção jurídica que apresentaram nos Serviços de Segurança Social, no qual formularam pedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo para contestar a presente acção.

7. No dia 26 de Março de 2013, foi proferida decisão de indeferimento do mencionado pedido de apoio judiciário formulado pelo Réu M (…), com o seguinte fundamento: “Aplicados os critérios previstos na Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 8 de Agosto, apurou-se que não têm direito a protecção jurídica na modalidade requerida, mas apenas na modalidade de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo no valor mensal de €60,00. Foi efectuada audiência prévia informando da intenção de indeferimento, “na falta de resposta declarando aceitar expressamente aceitar a modalidade proposta de pagamento faseado”. O Requerente nada disse, pelo que a proposta de decisão se converteu em definitiva”; tal decisão foi comunicada ao Tribunal em 1 de Abril de 2013.

8. A correspondência tendente à audiência prévia do Réu M (…) nos moldes anteriormente enunciados foi emitida em 25 de Fevereiro de 2013.

9. No dia 8 de Abril de 2013, foi proferida decisão de indeferimento do mencionado pedido de apoio judiciário formulado pela Ré M (…), com o seguinte fundamento: “Aplicados os critérios previstos na Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 8 de Agosto, apurou-se que não têm direito a protecção jurídica na modalidade requerida, mas apenas na modalidade de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo no valor mensal de €60,00. Foi efectuada a audiência prévia informando da intenção de indeferimento, “na falta de resposta declarando aceitar expressamente aceitar a modalidade proposta de pagamento faseado”. O Requerente nada disse, pelo que a proposta de decisão se converteu em definitiva”; tal decisão foi comunicada ao Tribunal em 11 de Abril de 2013.

10. Após receberem a correspondência emitida a 25.2.2013, os Réus M (…) e M (…) dirigiram-se à Secção de Processos do 2.º Juízo deste Tribunal, no dia 28.2.2013, a fim de aquilatarem qual o valor global da taxa de justiça e, em consequência, qual o número de prestações no valor de €60,00 (sessenta euros) devidas pelos mesmos.

11. Nesta sequência, no dia 4 de Março de 2013, os Réus, representados pelo Ilustre Mandatário Dr. (…), apresentaram em juízo o requerimento inicial do presente incidente de justo impedimento.

12. Previamente, no dia 1.3.2013, os Réus M (…) e M (…) reuniram com o Ilustre Mandatário Dr. (…), que lhes explicou que os mesmos não haviam formalizado o aludido pedido de nomeação de patrono para contestar a presente acção e que, inclusivamente, o prazo fixado para a apresentação da contestação se encontrava exaurido.


*

Consideração da existência de justo impedimento.

Os Réus foram citados para a ação.

Pretenderam eles o apoio judiciário e o apoio de um advogado e a dispensa das taxas de justiça do processo.

Ao preencherem o formulário junto da Segurança Social, os Réus não colocaram a cruz na parte relativa ao patrocínio judiciário.

Os Réus levaram depois ao processo a certificação do pedido feito na Segurança Social.

Aqueles perceberam o seu erro já depois de passado o prazo da contestação.

Em face disto, nota-se existir uma divergência entre a vontade (pedir o patrocínio) e a declaração (pedir apenas a dispensa das taxas) ou um erro na formulação da vontade.

Este erro incide sobre um ato com incidência processual.

Na teoria geral do direito, este ato deve ser classificado como ato processual, escapando aos juízos sobre o erro nos negócios jurídicos. (M. Pinto, Teoria Geral, 4ª edição, Coimbra Editora, páginas 355 e seguintes e 417; A. Castro, Processo Civil, vol.III, Almedina, 1982, páginas 9 a 26.)

Sendo certo que para tais atos processuais, em regra, se exige apenas a consciência e vontade do ato, sendo irrelevante a vontade e a representação dos seus efeitos, como assinala este último citado Autor, “há que ter em conta a

possibilidade de suprimento do acto, quer através da invocabilidade dos factos objectiva ou subjectivamente supervenientes e do justo impedimento, quer da rectificação e de certa modificabilidade dos actos.” (Página 22 da obra citada.)

No caso do apoio judiciário, não é irrelevante a representação ou consciência da diferenciação das modalidades do mesmo, para que se defina aquela que se quer.

Para o acto processual em geral, não relevará o vício na manifestação da vontade porque a parte está tecnicamente acompanhada por advogado.

Mesmo assim, em casos pontuais, a lei admite rectificações.

Mas se a parte não estiver acompanhada tecnicamente, o juízo sobre o erro admissível deve ser mais cuidadoso. A possibilidade de desculpabilidade será então diferente.

É neste enquadramento dogmático que devemos analisar o invocado “justo impedimento”.

“Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.”

O artigo 140º, nº1, do Código de Processo Civil define assim o conceito, de forma idêntica ao anterior artigo 146º, aquele que era referência no momento da sua invocação.

A redação do preceito pelo Decreto-Lei nº 329-A/95 eliminou o requisito de evento “normalmente imprevisível”, como constava anteriormente.

Como se salienta no Código de Processo Civil Anotado de L. de Freitas, J. Redinha e R. Pinto, em anotação ao artigo, passou-se “o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade para a sua não imputabilidade à parte ou ao seu mandatário”, pretendendo-se, como consta do preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95, flexibilizar “a definição conceitual de «justo impedimento», em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia de culpa, que se afastem da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam.”

A flexibilização fez-se “de modo a permitir abarcar situações em que a omissão ou o retardamento da parte se haja devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria” (página 273 da obra citada).

Pode então admitir-se que terá acontecido um facto (o engano) que pode não envolver um juízo de censura à parte que o praticou ou nele incorreu. Se for desculpável, deverá admitir-se a retificação da situação.

Como ajuizar sobre esta culpa?

Tratando-se do cumprimento de um ónus processual devido pela parte, valerão as normas dos arts.799º e 487º, nº2, do Código Civil. (Neste sentido, L. Freitas, ob. cit., página 274; acórdão do STJ de 15.1.2014, no proc. 1009/06, em www.dgsi.pt.)

Assim, a culpa é presumida e avalia-se em abstrato, pela diligência de “um bom pai de família”, nas circunstâncias do caso.

Comecemos por considerar, na burocracia dos serviços do Estado, facilmente encontramos situações de pessoas com dificuldade em lidar com os papéis e com o português e, quantas vezes, com a relativa falta de disponibilidade dos serviços em explicar tudo o que está em causa.

Mas atentemos no caso concreto:

Erradamente, os Réus não colocaram uma cruz na quadrícula prevista para a nomeação de patrono.

Ajudam na compreensão deste erro, as seguintes considerações instrumentais, retiradas da motivação da matéria de facto:

Os Réus não são analfabetos.

A Ré preencheu os papéis com dificuldades; as suas colegas tiveram também dificuldade em interpretar os papéis.

Do depoimento da Ré resulta que sabe ler mas teve dificuldades no vocabulário; teve dificuldades nas cruzinhas a preencher; recebeu algumas informações dos serviços da Segurança Social.

Ora, neste contexto, entendemos que os Réus (e especificamente a Ré, quem preencheu o formulário) podiam e deviam ter agido de outra forma.

Se a Ré não dispunha de toda a capacidade interpretativa das quadrículas, o que pode ser ainda aceitável, nota-se que percebeu as suas dificuldades e que as ajudas das colegas não estavam a ser completas; sentindo as dúvidas, a sua obrigação era eliminá-las antes da entrega do formulário, estando ao seu alcance vias seguras para o conseguir: na Segurança Social ou no Tribunal.

Não esteve em causa o preenchimento geral do formulário (bem preenchido) mas sim e apenas uma quadrícula do mesmo.

Ao avançar, com dúvidas e dificuldades, a Ré (e presumindo-se a confiança do Réu nela) foi negligente, sendo censurável a sua falta de cuidado.

Numa questão tão séria, o “homem médio”, no dizer da lei “o bom pai de família”, teria perguntado sobre a quadrícula correta.

Ora, se o evento é imputável à parte, se o engano envolve um juízo de censura à parte que o praticou ou nele incorreu, não há justo impedimento.

Embora com fundamento diverso, a decisão recorrida deve ser confirmada.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Coimbra, 2015-3-24

Fernando Monteiro ( Relator )

Luís Cravo

Carvalho Martins