Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1486/08.0PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: ATO PROCESSUAL
CORREIO ELECTRÓNICO
PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 05/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO CRIMINAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 112º NºS 1, 5, 6 E 7 CRP, D.L. N.º 303/2007, DE 24/08, D.L. N.º 324/2003, DE 27/12, 138º- A Nº 1 E 150º CPC, PORTARIA N.º 114/2008, PORTARIA N.º 642/2004, DE 16/06, 7º Nº 2 CC
Sumário: 1.- Uma portaria, enquanto ato regulamentar do Governo, ocupa na hierarquia das fontes normativas uma posição inferior ao decreto-lei que visa regulamentar, sendo dele mero complemento, a si, necessariamente subalternizado, subordinado e vinculado, nunca, pois, a respetiva disciplina podendo contrariar, como claramente resulta das disposições ínsitas sob os nºs. 1, 6 e 7 do art.º 112.º da Constituição Nacional;

2.- Havendo o D.L. n.º 303/2007, de 24/08, alterado a versão anteriormente conferida ao art.º 150.º do Código de Processo Civil pelo D.L. n.º 324/2003, de 27/12, pela substituição do modo de envio a juízo de atos processuais escritos por correio eletrónico, com aposição de assinatura eletrónica avançada, pelo de transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º-A, ou seja, pela enunciada Portaria n.º 114/2008, e, assim, tácita e inequivocamente revogado a Portaria n.º 642/2004, de 16/06, daquela anterior versão regulamentadora – como postulado pelo modificado n.º 2 do citado art.º 150.º, cujo texto obviamente foi suprimido –, cuja razão-de-ser no particular deixou, por tal sorte, evidentemente de existir, como incontornavelmente estabelecido pelo n.º 2 do art.º 7.º do Código Civil, constituirá uma desconcertante perversão jurídica qualquer entendimento tendente à consideração de que a 27.ª norma da sucedente Portaria n.º 114/2008 – com mera natureza regulamentar – teria virtualidade para, sobrepondo-se ao próprio diploma legislativo a cuja regulamentação precisamente se destina – D.L. n.º 303/2007, de 24/08, concretamente à versão por ele introduzida ao art.º 138.º-A do CPC –, subvertendo a própria ordem constitucional de hierarquia das fontes normativas e, ademais, por maioria de razão, a proibição expressa pelo n.º 5 do enunciado art.º 112.º da Constituição, fazer repristinar o texto e valor jurídico-normativo da anterior versão do dito dispositivo 150.º – decorrente do D.L. 324/2003, de 27/12 –, bem como da Portaria n.º 642/2004, de 16/06, que as als. d) e e) do referente n.º 1 visava regulamentar/disciplinar, e isto apenas para, assim enviesada e tortuosamente, se procurar sustentar a legalidade da apresentação de peças processuais por correio-electrónico em processo criminal.

Decisão Texto Integral: RECLAMAÇÃO DE DECISÃO-SUMÁRIA

***

         Acordamem conferênciana 4.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – INTRODUÇÃO


1 – Recorreu o sujeito-arguido A..., por peça ínsita em ficheiro informático expedido a juízo por anexo a referente mensagem de correio-electrónico (reproduzida e junta a fls. 437/438, cujos dizeres nesta sede se têm por reproduzidos), da sentença da sentença documentada na peça de fls. 420/428v.º, que, na sequência de pertinente julgamento, o condenou à pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na respectiva execução por idêntico período (3 anos), a titulo punitivo do comparticipativo (em co-autoria) cometimento dum crime de furto qualificado, [p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), do C. Penal], pugnando pela pessoal absolvição, em essencial razão de lobrigada corrupção do julgado pelo vício lógico-silogístico de erro notório na apreciação da prova – prevenido sob a al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do C. P. Penal –, associado a afirmada violação do princípio constitucional de presunção de inocência, estabelecido no n.º 2 do art.º 32.º da CRP, e do correlato in dubio pro reo, (vd., máxime, 9.ª a 11.ª conclusões), e, subsidiariamente, pela mera condenação por furto simples, a pena substancialmente reduzida/atenuada, (vd., máxime, 12.ª a 14.ª conclusões).

2 – Realizado o pertinente exame preliminar, em conformidade com o estatuído no n.º 6, al. b), do art.º 417 do C. P. Penal, por decisão-sumária do desembargador-relator – exarada a fls. 547/553 – foi o recurso rejeitado, em razão de ajuizada ilegalidade/invalidade do uso de tal meio – correio-electrónico – para apresentação a juízo da peça recursória.

3 – Manifestando-se inconformado, dela o id.º arguido/recorrente reclamou para a conferência, em argumentário vertido na peça junta a fls. 567/570 (cujos dizeres nesta sede se têm outrossim por reproduzidos): [a)] contra-afirmando a legalidade/validade de tal modo de comunicação a juízo da vontade/motivação recursória, nuclearmente para tanto argumentando com a manutenção em vigor, no âmbito do processo criminal, da Portaria n.º 642/2004, de 16/06, supostamente por efeito do art.º 27.º da Portaria n.º 114/2008, de 06/02, que estatuiu no sentido da revogação daqueloutra apenas quanto às acções previstas no respectivo art.º 2.º[1], no seu entendimento mantendo em vigor a anterior redacção do art.º 150.º do Código de Processo Civil, na redacção decorrente do D.L. 324/2003, de 27/12; e [b)] arguindo a sua pretensa nulidade por pseudo afrontação da vedação à Relação de alteração do alcance e estabilidade jurídica (por trânsito-em-julgado-formal) do despacho judicial de 1.ª instância de fls. 505 (despacho de admissão do recurso por legal e tempestivo)


II – AVALIAÇÃO

§ 1.º


Como é do presumível conhecimento de qualquer jurista, a reapreciação – em conferência – por órgão colegial do acto decisório reclamado não tem por finalidade uma eventual desautorização do relator fundada num qualquer ideado critério de força – de autoridade resultante de virtual somatório de diferentes sensibilidades da maioria –, mas antes, evidentemente, a ponderação de pertinente argumentação jurídica que o reclamante de novo necessariamente aduza no respectivo acto de reclamação, no sentido demonstrativo da ilegalidade da concernente apreciação e decisão pelo relator, posto que, pela própria natureza e definição, a figura jurídica de reclamação, prevenida no n.º 8 do art.º 417 do CPP – como em qualquer ramo do direito cuja disciplina a contemple –, sempre se haverá de constituir numa prerrogativa legal, procedimental de controlo, de impugnação dalgum dos actos decisórios enunciados nos ns. 6 e 7 do citado normativo 417.º, posta à disposição do próprio destinatário da respectiva decisão que por ela se considere prejudicado, tendente à referente revogação, modificação ou substituição por ilegalidade[2], por si exercitável, se e enquanto se não tiver conformado – expressa ou tacitamente – com o atinente acto[3].

§ 2.º


Porém, com o devido respeito, no caso sub judice, o argumentário do id.º sujeito-reclamante desmerece o propugnado acolhimento, por assentar em clamoroso/basilar vício de raciocínio jurídico, axiomaticamente corruptor do próprio silogismo, e, logo, inidóneo à modificação do sindicado despacho do relator, pela seguinte essencial ordem-de-razões:

1 – Como aí (decisão-sumária) se esclareceu – e pressupostamente deverá ser, aliás, dominado por qualquer iniciado à aprendizagem do direito nacional –, uma portaria, enquanto acto regulamentar do Governo, ocupa na hierarquia das fontes normativas uma posição inferior ao decreto-lei que visa regulamentar, sendo dele mero complemento, a si (decreto-lei) necessariamente subalternizado, subordinado e vinculado, nunca, pois, a respectiva disciplina podendo contrariar, como claramente resulta das disposições ínsitas sob os ns. 1, 6 e 7 do art.º 112.º da Constituição Nacional[4]/[5].

Por conseguinte, havendo o D.L. n.º 303/2007, de 24/08, alterado (pelo respectivo art.º 1.º) a versão anteriormente conferida ao art.º 150.º do Código de Processo Civil pelo D.L. n.º 324/2003, de 27/12, pela substituição do modo de envio a juízo de actos processuais escritos por correio electrónico, com aposição de assinatura electrónica avançada, pelo de transmissão electrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º-A, (aditado pela Lei n.º 14/2006, de 26/04, e identicamente modificado pelo D.L. n.º 303/2007, de 24/08), ou seja, pela enunciada Portaria n.º 114/2008, (de 06/02)[6], e, assim, tácita e inequivocamente revogado a Portaria n.º 642/2004, de 16/06, daquela anterior versão regulamentadora – como postulado pelo modificado n.º 2 do citado art.º 150.º, cujo texto obviamente foi suprimido –, cuja razão-de-ser no particular deixou, por tal sorte, evidentemente de existir, como incontornavelmente estabelecido pelo n.º 2 do art.º 7.º do Código Civil[7], constituirá uma desconcertante perversão jurídica qualquer entendimento tendente à consideração de que a 27.ª norma da sucedente Portaria n.º 114/2008 – com mera natureza regulamentar – teria virtualidade para, sobrepondo-se ao próprio diploma legislativo a cuja regulamentação precisamente se destina – D.L. n.º 303/2007, de 24/08, concretamente à versão por ele introduzida ao art.º 138.º-A do CPC –, subvertendo a própria ordem constitucional de hierarquia das fontes normativas e, ademais, por maioria de razão, a proibição expressa pelo n.º 5 do enunciado art.º 112.º da Constituição[8], fazer repristinar o texto e valor jurídico-normativo da anterior versão do dito dispositivo 150.º[9] – decorrente do D.L. 324/2003, de 27/12 –, bem como da Portaria n.º 642/2004, de 16/06, que as als. d) e e) do referente n.º 1 visava regulamentar/disciplinar, e isto apenas para, assim enviesada e tortuosamente, se procurar sustentar a legalidade da apresentação de peças processuais por correio-electrónico em processo criminal (!).

Demonstrado que está, pois, tal absurdo jurídico, dispensamo-nos de outras considerações a propósito, recordando, porém, ainda, ao sujeito-reclamante – ou a quem mais aproveitar – que, como enfatizado no reclamado despacho, num estado-de-direito democrático, como no desta nação portuguesa, todos se haverão de escrupulosa e rigorosamente subordinar ao ordenamento jurídico constitucionalmente/validamente aprovado, (cfr. art.º 3.º, ns. 2 e 3, da Constituição)[10], absolutamente irrelevando a individual manifestação opinativa de referente desconhecimento e/ou discordância, (cfr. arts. 6.º e 8.º, n.º 2, do Código Civil)[11], e/ou, doutra-sorte, a ilícita invocação, por quem-quer-que-seja, duma qualquer – eventual – indevida e censurável infiscalização do respectivo respeito/acatamento, posto que, evidentemente, nunca a ilegítima tolerância tácita dalgum acto desconforme à lei, ainda que reiterada, conferirá ao respectivo infractor a aquisição da concernente licitude (quiçá por usucapião!?).

2 – O pretenso fundamento jurídico da suscitada invalidade (nulidade) do referido acto decisório é incontornavelmente neutralizado pelo n.º 3 do art.º 414.º do C. P. Penal – normativo mantido pelas sucessivas revisões legais operadas ao próprio compêndio pela Assembleia da República, mormente pela recente Lei n.º 20/2013, de 21/02, e aí (decisão-sumária) convocado, (cfr. II, § 2, a fls. 552), porém, quiçá displicentemente, desconsiderado pelo id.º reclamante –, que expressamente estabelece a invinculatividade do tribunal superior à decisão de 1.ª instância que, máxime, admita o recurso[12].


III – DISPOSITIVO


Como assim – sem outras considerações, por inócuas –, o órgão colegial judicial reunido para o efeito em conferência neste Tribunal da Relação de Coimbra, julgando/declarando a improcedência da avalianda reclamação, delibera:

1 – A confirmação da afrontada decisão-sumária, em razão da ajuizada invalidade jurídica da comunicação a juízo por meio de correio-electrónico – inequivocamente eliminado do ordenamento jurídico nacional, como modalidade de apresentação a juízo de actos processuais escritos das partes/sujeitos no âmbito do processo cível e criminal, pelo art.º 1.º do D.L. n.º 303/2007, de 24/08 – da intenção e motivação recursória da questionada sentença (de 1.ª instância) documentada a fls. 420/428v.º, cujo trânsito-em-julgado assim se reafirma;

2 – A condenação do id.º recorrente/reclamante A... ao pagamento da sanção pecuniária equivalente a 3 (três) UC, a título de taxa de justiça, pelo respectivo decaimento, (cfr. ainda normativos 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13/02).


***

 (Abílio Ramalho, relator)

 (Luís Ramos)


[1] Acções declarativas cíveis, procedimentos cautelares, notificações judiciais avulsas, acções executivas cíveis, e – por força da posterior alteração da referida Portaria 114/2008 pela 195-A/2010, de 08/04 – processos da competência dos tribunais ou juízos de execução das penas.
[2] Em direito administrativo também por inconveniência, (cfr. art.º 159.º do Código de Procedimento Administrativo).
[3] Vide, a propósito da reclamação no domínio do direito administrativo, arts. 158.º, ns. 1 e 2, al. a), 159.º, 160.º e 53.º, n.º 4, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), e, por todos, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral – Actividade Administrativa, Tomo III, 1.ª Edição (Fevereiro de 2007), Editora Dom Quixote, pags. 207/211].
[4] Artigo 112.º (Actos normativos)
1. São actos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais.
[…]
6. Os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes.
7. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão;
[…]
[5] Vide, a propósito, máxime, Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, 10.ª edição, págs. 81/84, e Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, págs. 256/278.
[6] Instituinte do denominado sistema informático CITIUS.
[7] Artigo 7.º (Cessação da vigência da lei)
1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
[…]
[8] […]
5. Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
[…]
[9] Artigo 150.º (Apresentação a juízo dos actos processuais) – versão do D.L. nº 324/2003, de 27/12
1 - Os actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por uma das seguintes formas:
a) Entrega na secretaria judicial, valendo como data da prática do acto processual a da respectiva entrega;
b) Remessa pelo correio, sob registo, valendo como data da prática do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal;
c) Envio através de telecópia, valendo como data da prática do acto processual a da expedição;
d) Envio através de correio electrónico, com aposição de assinatura electrónica avançada, valendo como data da prática do acto processual a da expedição, devidamente certificada;
e) Envio através de outro meio de transmissão electrónica de dados.
2 - Os termos a que deve obedecer o envio através dos meios previstos nas alíneas d) e e) do número anterior são definidos por portaria do Ministro da Justiça.
[…]
[10] Artigo 3.º (Soberania e legalidade)
[…]
2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.
3. A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.
[11] Artigo 6.º (Ignorância ou má interpretação da lei)
A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.
***
Artigo 8.º (Obrigação de julgar e dever de obediência à lei)
[…]
2. O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo.
[…] 
[12] Artigo 414.º (Admissão do recurso)
[…]
3 – A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior.
[…]