Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
209/13.7GAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
ADVERTÊNCIA
AUDIÊNCIA NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
REPRESENTADO
DEFENSOR
NULIDADE
JULGAMENTO
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADA NULA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º C), 382º, Nº6 E 385º N.2, AL. A) CPP
Sumário: O julgamento, em processo sumário de um arguido, na sua ausência, sem que previamente haja sido advertido de que mesmo seria realizado ainda que não comparecesse, sendo representado por defensor, enferma da nulidade insanável estabelecida na alínea c) do artº 119º CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

nos presentes autos de processo sumário, foi proferida sentença com o seguinte DISPOSITIVO:

- condena-se o arguido, A.... , pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pelo período de 2 (dois) anos, devendo atender-se ao disposto no n.º 6 do mesmo artigo; e ---

- pela prática de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.

- Efectuando o cúmulo jurídico, condena-se o arguido na pena única de 9 (nove) meses de prisão efectiva e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 2 (dois) anos.

*

Recorre o arguido, formulando as seguintes CONCLUSÕES (síntese):

- Deve ser declarada a nulidade, nos termos do art. 119º al. c) do CPP, da sessão da audiência de discussão e julgamento;

- Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se coloca, deverá concluir-se pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade; ou ainda

- Caso não seja este o entendimento, o que por mera hipótese se coloca, deverá ser suspensa a execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado.

*

Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido sustentando a improcedência do recurso.

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se no mesmo sentido.

Já após a conclusão do recurso ao relator o arguido veio juntar documento, notificado ao MºPº, com data de 06.05.2014, emitido pela Comunidade Vida e Paz, no qual se declara que o arguido se encontra internado desde 07.01.2014 no Centro de Recuperação para Pessoas sem abrigo, Toxicodependentes e/ou alcoólicos daquela comunidade, em Moimento, Fátima.

Corridos vistos, cumpre apreciar os fundamentos do recurso.


***

II.

1. Vêm colocadas pelo recorrente à consideração deste Tribunal as seguintes questões: -nulidade do julgamento realizado sem a presença do arguido; ou, subsidiariamente: - aplicação de uma pena não privativa da liberdade; ou - suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado.

Passemos desde já á apreciação da primeira.

2. Nulidade do julgamento

Sob a epígrafe “Nulidades insanáveis”, postula o 119º do CPP:

Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento:

(…)

c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

Por outro lado, nos termos do art. 332º, nº1 do CPP “É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos artigos 333º nºs 1 e 2 e 334, nºs 1 e 2”.

No âmbito específico do processo sumário, postula ainda com relevo, para a questão que nos ocupa, o Artigo 382º:

(…)

6 – O arguido que não se encontre sujeito a prisão preventiva é notificado com a advertência de que o julgamento se realizará mesmo que não compareça, sendo representado por defensor para todos os efeitos legais.

E o artigo 385º

2 – No caso de libertação nos termos do número anterior, o órgão de polícia criminal sujeita o arguido a termo de identidade e residência e notifica-o para comparecer perante o Ministério Público, no dia e hora que forem designados para ser submetido:

a) A audiência de julgamento em processo sumário, com a advertência de que a mesma se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor;

b) A primeiro interrogatório judicial (…)

A regra geral do julgamento é a da obrigatoriedade da presença do arguido, proibindo-se, por regra os julgamentos à revelia do CPP de 1929, apenas sendo admitido, excepcionalmente, o julgamento na ausência, nos casos e nas circunstâncias expressamente previstas na lei.

Tendo em vista a forma de processo especial – processo sumário – importa ter presentes as especificidades desta forma de processo no que toca à presença do arguido ou à possibilidade de realização da audiência na sua ausência.

Ora, decorre dos preceitos reproduzidos que a realização do julgamento sem a presença do arguido apenas é admissível desde que o arguido tenha sido notificado nos termos dos aludidos preceitos - com a advertência de que a mesma se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor – cfr. art. 382º, nº6 e 385º n.2, al. a), supra reproduzidos.

Consagrando tais disposições, no âmbito do processo sumário, o condicionalismo da excepção ao princípio geral, enunciado no art. 332º, da obrigatoriedade, por regra, da presença do arguido.

Com efeito, a presença perante o tribunal constitui um direito fundamental do acusado reconhecido no quadro do direito a um processo justo e equitativo previsto no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Designadamente nos actos onde a personalidade do acusado tem um papel importante na formação da decisão – cfr. Irineu Cabral Barreto, Convenção Europeia dos Direitos do Homem anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 138, citando o Acórdão Colozza do TEDH de 12.02.1985.

E a audiência é, indubitavelmente, o caso por excelência do acto onde a personalidade do acusado tem um papel importante na formação da decisão, em particular quando se perspectiva a aplicação de pena efectiva de prisão. 

Daí que, no processo comum, a realização do julgamento na ausência do arguido pressupõe que este tenha sido “regularmente notificado” – cfr. n.º 1 do art. 333º do CPP.

E que no processo sumário, tendo em vista a natureza deste e a agilização de procedimentos inerente, a excepção à presença do arguido dependa, do cumprimento, pela notificação das formalidades tendentes à salvaguarda do núcleo fundamental daquele direito – assegurado, no caso, pela garantia, mínima, da advertência de que a audiência se realizará mesmo que não compareça, exigida pelos artigos 382º, nº6 e 385º n.2, al. a) do CPP.

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Ora, resulta dos autos:

O arguido, detido em flagrante delito, no dia 14.09.2013, foi libertado e submetido a termos de identidade pela entidade policial e “notificado nos termos do art. 385º, nº3 do CPP para comparecer nos Serviços do MºPº do Tribunal da Figueira da Foz no dia 16.09.2013 pelas 10:00 h. para ser submetido a julgamento em processo sumário ou a 1º interrogatório” – cfr. auto de notícia, a fls. 5;

No dia 16.09.2013 pelas 10:00, nos Serviços do MºPº do Tribunal da Figueira da Foz, realizada a chamada, verificou-se que o arguido não se encontrava presente – cfr. Auto de fls. 40;

O MºPº deduziu acusação para julgamento do arguido em processo sumário (fls. 17-20) e, distribuídos os autos, foi designado julgamento, de imediato, nomeando-se defensor ao arguido, sem notificação pessoal ou qualquer diligência no sentido de dar conhecimento ao arguido;

Aberta a audiência, considerando o arguido devidamente notificado, não tendo justificado a falta, foi condenado em multa e, considerando não se afigurar imprescindível a presença do arguido desde o início da audiência, nos termos do art. 333º, nº2 do CPP, foi determinado o início da audiência, fincado o arguido representado pela sua ilustre defensora – cfr. acta a fls.45;

Finda a produção de prova, após alegações orais, foi proferido despacho (cfr. acta a fls.45) no qual, ponderando os antecedentes criminais do arguido e por forma a ponderar a pena a aplicar foi determinado proferir a sentença por escrito, designado para a sua leitura o dia 20.09.2013 às 09.15 horas – despacho notificado apenas à ilustre defensora.

Na data designada, encontrando-se presente a defensora nomeada, foi lida a sentença recorrida – cfr. acta a fls. 64.

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Resulta do exposto que, no caso, a única notificação efectuada ao arguido foi aquela realizada pela entidade policial em 14-09, para comparecer nos serviços do MºPº dois dias mais tarde, em 16-09 “para ser submetido a julgamento em processo sumário ou a 1º interrogatório”.

Dessa notificação não consta nem a marcação do julgamento (comparência nos serviços do MºPº) nem sequer a certeza, para o notificado, de que iria ser submetido a julgamento (…ou a 1º interrogatório).

Por outro lado, aquela notificação (única) efectuada ao arguido não contem qualquer advertência de o julgamento seria realizado mesmo que não compareça, sendo representado por defensor. Exigência imposta pelos já referidos artigos 382º, nº6 e 385º n.2, al. a) do CPP, como pressuposto da realização da audiência sem a presença do arguido.

Assim a audiência foi realizada na ausência do arguido, numa situação em que a lei exigia o cumprimento de uma formalidade essencial, para aquele efeito, que não foi cumprida.

Pelo que a audiência não podia realizar-se, no condicionalismo em que o foi, sem a presença do arguido.

O que consubstancia a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c) do CPP.

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Acresce que se o arguido tivesse sido ouvido em audiência, podia ter sido detectada a perspectiva de internamento no Centro de Recuperação para Pessoas alcoólicas que veio ser invocado na fase de recurso que poderia ter alterado a perspectiva sobre a execução da prisão.

Aliás a aplicação de prisão efectiva assenta essencialmente em que o arguido conta com três condenações anteriores.

Ora, verifica-se em relação às duas últimas:

- sentença proferida em 23/04/2012, no âmbito do processo n.º 121/12.7GAFIG, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, transitada em julgado em 28/05/2012, pela prática, no dia 21/04/2012, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de violação de proibições;

- sentença proferida em 07/05/2012, no âmbito do processo n.º 132/12.2GAFIG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, transitada em julgado em 06/06/2012, pela prática, no dia 24/04/2012, de um crime de desobediência e, no dia 25/04/2012 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de violação de proibições.

Assim, quando o arguido praticou os crimes da última condenação (24/04/2012 e 25/04/2012) não tinha transitado em julgado a anterior condenação (transitada em julgado no dia 28/05/2012).

Pelo que, nos termos do art. 78º do C.P., existia uma relação de concurso de crimes que impunha a realização de cúmulo jurídico.

Daqui resulta que, quando praticou o crime dos autos, considerando duas e não três condenações anteriores, ficariam alterados os pressupostos da decisão recorrida.

O que densifica os fundamentos do juízo anulatório a que se chegou.


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III.

Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se julgar procedente o recurso, declarando-se nula a audiência de discussão e julgamento bem como os ulteriores termos do processo. ---

Sem tributação.

Belmiro Andrade (Relator)

Abílio Ramalho