Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3077/19.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ERRO DE ESCRITA
SUA CORREÇÃO
CASO JULGADO
SUA VERIFICAÇÃO
FALTA DE ELEMENTOS DE VERIFICAÇÃO DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. C. CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 146º, Nº 1, E 508º DO NCPC
Sumário: 1. - Ocorre manifesto erro de escrita no petitório da ação – revelado no teor e contexto da peça processual –, cuja correção é admissível ao abrigo do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do NCPCiv., se o autor intenta ação condenatória indemnizatória contra dois réus, alegando factos integrantes da causa de pedir de forma abrangente aos dois demandados, mas por lapso de redação pede que seja «a demandada condenada» em vez de referir «os demandados condenados».

2. - Só ocorre caso julgado na medida/limite do que foi apreciado e decidido em anterior ação judicial transitada em julgado.

3. - A decisão, em saneador-sentença, da exceção do caso já julgado, no sentido da sua procedência, com decorrente absolvição da instância, pressupõe o estabelecimento dos fundamentos fácticos necessários para o efeito (fixação da matéria de facto), com base em prova documental, traduzida em certidão judicial com nota de trânsito em julgado, por haver exigência de tal documento escrito, mesmo que as partes aceitem reciprocamente o que foi alegado nesse âmbito.

4. - Julgada procedente tal exceção sem demarcação de uma parte fáctica da decisão e sem obtenção da dita certidão judicial, resta revogar a decisão, para prosseguimento dos autos, com obtenção dessa necessária prova documental, sem a qual o Tribunal ad quem não poderia decidir o recurso.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

V... (incapaz, representado pela sua tutora M...), com os sinais dos autos, intentou a presente ação declarativa condenatória, com processo comum, contra

1.ª - “A...”, com os sinais dos autos, e

2.º - C..., também com os sinais dos autos,

pedindo que seja a ação «julgada procedente por provada e, consequentemente, a demandada condenada a pagar ao demandante a quantia de €90.000,00 e juros de mora à taxa legal a partir da citação até integral pagamento».

Alegou que:

- em 2005 a 1.ª R. concedeu um empréstimo à sociedade «O..., S. A.» (doravante, sociedade construtora) para construção de um edifício em prédio rústico que identifica, tendo, para garantia, sido constituída hipoteca – com registo provisório em 07/09/2005, convertido em definitivo em 29/11/2005 –, a favor da mutuante sobre tal prédio rústico;

- a sociedade construtora deixou caducar o alvará de construção, não respeitou as áreas de construção previstas, a localização e a cércea e excedeu o prazo de construção, situação que não foi ultrapassada;

- a 1.ª R. acompanhou a construção do edifício, pelo que podia ter controlado a execução da obra, sendo ainda que nada obsta a que venham a ser apresentados novos elementos para avaliação da possibilidade de legalização do edifício construído;

- em 30/01/2008 o A. celebrou com a sociedade construtora um contrato promessa de compra e venda, pelo qual convencionaram a venda ao demandante de um apartamento daquele edifício (de tipologia «T3» correspondente ao 2.º andar esq.º), livre que quaisquer ónus ou encargos, sendo o preço convencionado de €112.500,00 e com prestação de sinal;

- após o pagamento pelo A. de diversas quantias, no âmbito daquele contrato, a sociedade construtora, em março de 2009, entregou-lhe o apartamento em causa, o qual o mobilou e o passou a habitar em permanência, sendo, porém, que aquela sociedade nunca se disponibilizou a outorgar o contrato prometido, tendo entretanto sido extinta, sem qualquer património;

- a 1.ª R. instaurou execução contra aquela sociedade (Proc. ...), no âmbito do qual foi penhorado o imóvel hipotecado, onde se encontrava implantado o apartamento negociado pelo A., vindo aquele prédio a ser vendido à 1.ª R. por €297.500,00, impedindo o demandante, embora credor da dita sociedade no valor de €90.000,00, de exigir o cumprimento do contrato promessa;

- por isso gozava o A. do direito de retenção sobre o aludido apartamento, nos termos dos art.ºs 754.º e segs. do CCiv., direito esse que prevalece sobre a hipoteca, permitindo-lhe reclamar créditos, sendo, porém, que não interveio naquela execução, em que foi agente de execução (AE) o solicitador ora 2.º R.;

- este procedeu à penhora, não afixou – e devia tê-lo feito – edital no edifício, não citou nem informou o A. da execução e da penhora, enquanto a 1.ª R. sabia, por seu lado, que apenas havia sido penhorado um terreno e que ali se encontrava construído um edifício, bem sabendo que a venda não incluía as construções;

- a omissão da penhora das construções e da demais informação devida ao A. é imputável à exequente (1.ª R.), a qual sabia que o A. ocupava o espaço referido;

- esta responde com base no enriquecimento sem causa e na responsabilidade civil;

- a 1.ª R. instaurou contra o aqui A., em 2017, uma ação declarativa de reivindicação do apartamento aludido (Proc...), tendo ali o ora A. deduzido contestação-reconvenção, invocando o seu direito de retenção, bem como abuso do direito da contraparte, vindo a ser proferida sentença de condenação (do ora demandante) a restituir o apartamento, julgando improcedente o pedido reconvencional, por a venda judicial ser efetuada livre de ónus.

Oferecendo provas, pugna pela procedência da ação.

Contestou a 1.ª R., invocando a exceção do caso julgado, com referência ao decidido naquele Proc..., e defendendo-se por impugnação, tudo para concluir pela improcedência da ação.

O 2.º R., apesar de citado, não contestou.

O A. exerceu o contraditório:

- esclarecendo que, relativamente à 1.ª R., a causa de pedir se traduz na responsabilidade civil e no enriquecimento sem causa, enquanto em relação ao 2.º R. é a responsabilidade civil, sendo este solidariamente responsável com a 1.ª R. pelos danos causados, havendo, assim, lapso de escrita quanto ao pedido, a poder ser corrigido, devendo, então, passar o pedido da ação a reportar-se à condenação solidária dos RR.;

- bem como que, mesmo a entender-se que tal implica alteração do pedido, tratar-se-á de desenvolvimento do pedido inicial, como tal, admissível ao abrigo do disposto no art.º 265.º, n.º 2, do NCPCiv.;

- e pugnando pela improcedência da exceção de caso julgado, por inexistir repetição de causas de pedir e de pedidos.

Em audiência prévia (realizada em 10/09/2020) foi decidido:

a) Indeferir o pedido do A. «de correcção de lapso ou de ampliação do pedido, não subsistindo qualquer pretensão deduzida contra o réu C...»;

b) Julgando, por falta de indicação do pedido, «inepta a petição relativamente ao réu C...», assim o absolvendo da instância;

c) Absolver «a ré A... da instância», «seja por procedência da invocada excepção de caso julgado, seja por efeito preclusivo decorrente da autoridade de caso julgado inerente à decisão proferida no processo ...».

Inconformado, o A. recorre do assim decidido, apresentando alegação recursiva, onde formula as seguintes

Conclusões ([1]):

...

Contra-alegou a 1.ª R., pronunciando-se pela improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([2]), tendo sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados. 

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, está em causa na presente apelação conhecer das seguintes questões:

a) Lapso manifesto de escrita na formulação do pedido da ação, devendo corrigir-se o pedido, em termos de inclusão da dimensão condenatória do 2.º R. (conclusões 1.ª a 3.ª), com as legais consequências;

b) Caso julgado (conclusões 4.ª a 10.ª).

III – FUNDAMENTAÇÃO

          A) Da correção de lapso manifesto de escrita

Já se viu que o A. considera ter incorrido em manifesto lapso de escrita na formulação do pedido da ação, por este último apenas aludir à condenação da «demandada» quando são dois os RR. (uma demandada, a 1.ª R., “A...”, e um demandado, o 2.º R., solicitador C...), lapso esse que pediu fosse considerado corrigido/retificado.

Porém, o Tribunal a quo não admitiu tal retificação, pelo que, não só indeferiu a pretensão «de correcção de lapso ou de ampliação do pedido», considerando «não subsisti[r] qualquer pretensão deduzida contra o réu C...», como ainda julgou, em coerência, por falta de indicação do pedido, «inepta a petição relativamente ao réu C...», assim o absolvendo da instância.

Argumenta, assim, em síntese, aquele Tribunal:

«Tudo ponderado, entendo que a definição de contra quem deve ou não ser dirigido, na petição, um determinado pedido – concretamente, se contra um réu se contra dois, em regime de solidariedade – não é uma questão meramente formal, susceptível de ser alterada, a posteriori, pelo juiz, por se considerar devida unicamente a lapso de escrita.».

Ex adverso, esgrime o Apelante que a interpretação de todo o texto da petição inicial, referente à identificação dos demandados, à descrição dos factos e à formulação do pedido, revela a existência de lapso de escrita no pedido, na parte onde diz “a demandada condenada”, por dever constar “demandados condenados”, assim pugnando, à luz do disposto no art.º 146.º do NCPCiv., por dever a redação do pedido passar a referir “os demandados condenados a pagar”.

É certo dispor o n.º 1 daquele art.º 146.º que é admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada. E o n.º 2 acrescenta dever o juiz, ainda, admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, contanto que não haja dolo ou culpa grave e a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa.

Como escrevem Abrantes Geraldes e outros ([4]), estamos perante «preceito novo pautado (…) pelo objetivo de evitar, tanto quanto possível, que aspetos meramente técnicos ou formais possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio», sendo fundamental que «o erro de cálculo ou de escrita se revelem no contexto da peça processual, seja pelo seu próprio teor, seja pelo teor de peças ou documentos com que tenha conexão». Já o n.º 2 daquele art.º 146.º refere-se a casos em que «o vício ou a omissão tenham natureza meramente formal, isto é, que não contendam com a sustância do ato praticado.».

A lei comporta, então, neste âmbito, duas categorias de vícios supríveis por retificação: os erros de cálculo ou de escrita (n.º 1) e os vícios ou omissões puramente formais (n.º 2), como alertam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro ([5]).

Na verdade, «tal como a sentença e, por extensão, qualquer outro despacho, a peça processual da parte pode conter erros materiais», desde logo, os ditos erros de cálculo ou de escrita, uma vez revelados no contexto do próprio escrito apresentado “ou de outras peças para que aquele remeta”, mas também «pode ocorrer omissão ou expressão defeituosa (“vício”) que, embora não revelada pelo contexto, seja puramente formal, isto é, cuja correção não afete o sentido substancial do pensamento expresso» ([6]).

Vejamos, pois, se pode dizer-se que há erro de escrita, revelado, de forma manifesta, no contexto da própria petição inicial, posto ser esta a modalidade de deficiência formal invocada pelo Recorrente.

Ora, tem de convir-se que é manifesto que existiu um erro na petição, posto a ação ser intentada contra dois demandados e o petitório formulado apenas se reportar literalmente a um deles (pede-se a condenação da «demandada», omitindo-se o outro demandado), pelo que importa ver o contexto dessa peça processual.

Do respetivo texto articulado constam diversas referências ao outro demandado (o 2.º R.), embora sejam muito mais numerosas as alusões alegatórias à 1.ª R., aquela que foi contemplada no petitório.

Assim, o 2.º R. (logo identificado como solicitador no cabeçalho da petição) apenas é mencionado a propósito da «execução n.º ... e do direito de retenção», isto é, no âmbito do alegado sob os art.ºs 63.º e segs. da petição (de si, aliás, extensa, com um total de 105.º artigos).

Alega ali o A./Recorrente que a 1.ª R. instaurou aquela execução contra a sociedade construtora e outros, com realização da penhora já mencionada, seguida de venda àquela mesma R., ficando o demandante credor e com direito de retenção, contexto em que afirma não lhe ter sido dado conhecimento da execução, da penhora e da venda judicial, sendo que a 1.ª R. nomeou o 2.º R. como agente de execução.

Este último, nessa veste, procedeu à penhora, mas não afixou edital no edifício – e devia tê-lo feito –, nem citou ou informou o demandante da execução e da penhora, tendo havido erro na penhora («deveria ter sido penhorado e vendido um prédio urbano formado por um edifício, já construído ou em construção»), sendo ainda que o «demandante deveria ter sido constituído depositário» e «deveria mesmo ter sido citado», o que não ocorreu, omissões, assim, praticadas pelo AE (o 2.º R.).

Ora, tratando-se aqui de ação indemnizatória por invocados danos sofridos, decorrentes também daquela execução e das omissões/ilegalidades ali alegadamente praticadas, designadamente pelo AE, o dito 2.º R., e conjugando esta evidência alegatória com o cabeçalho da petição, de onde se retira serem demandados dois RR. – também aquele 2.º R. –, manifesto se torna que a demanda contra ambos não constitui um lapso, posto ser sustentada em factualidade de suporte alegada.

Então – urge concluir –, o erro tem de estar no petitório: o A. esqueceu-se de formular pedido contra o dito 2.º R.. Mas, tratando-se de ação indemnizatória, o erro/lapso, que se depreende do contexto, reporta-se à não inclusão desse R. no formulado pedido indemnizatório.

Assim, por interpretação contextualizada, nota-se que, existindo o pedido, o mesmo só foi dirigido literalmente à 1.ª R., omitindo-se o 2.º R. (por defeituosa redação), quando, obviamente, se pretendia incluir este, pois, doutro modo, não se deduziria ação contra ele.

Bem se compreende que, após a contestação – onde a 1.ª R. (única contestante) chamou a atenção para a situação –, tenha vindo o A. invocar, ainda em sede de articulados, o lapso de escrita e pedir a respetiva correção, pretendendo que, onde escreveu «a demandada condenada», passasse a constar os demandados condenados (mudança do singular para o plural, visto haver pluralidade de demandados).

Ora, vigoram hoje no novo processo civil os princípios da prevalência do fundo sobre a forma e do máximo aproveitamento possível dos atos processuais, no escopo da descoberta da verdade e da boa decisão da causa, mediante a obtenção de soluções de justiça material, fim último do processo, cabendo ao Tribunal um papel essencial na condução/orientação do processo para esse objetivo.

Do exposto, pode concluir-se – salvo sempre o devido respeito por diverso entendimento – que houve efetivamente um lapso na formulação do pedido, já que este, visto em termos literais, deixou incompreensivelmente de fora um dos dois demandados ([7]).

Da leitura da causa de pedir, nos seus múltiplos factos alegados, retira-se que a dedução da ação contra os dois aqui RR. não resultou de um lapso ou do acaso, antes tendo de reconhecer-se que o A. pretende a responsabilização de ambos os RR. no quadro da ação indemnizatória intentada contra ambos.

E, se assim quis demandar ambos os RR., então a formulação do pedido, por lapso de escrita, não é consentânea com essa intenção de demandar (escopo de pluralidade passiva de sujeitos).

Há, pois, erro de escrita, um lapso que deve ser considerado manifesto, a dever ainda poder ser suprido, como requerido, tendo em conta o disposto no art.º 146.º, n.º 1, do NCPCiv., e à luz daqueles princípios estruturantes do novo processo civil, no «objetivo de evitar, tanto quanto possível, que aspetos meramente técnicos ou formais possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio» (citação dos Autores mencionados, com que se concorda).

Assim, procede nesta parte a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida que decidiu em contrário, com admissão/deferimento da pretendida correção de erro de escrita no petitório, que passará a reportar-se a serem os demandados condenados em vez de «a demandada condenada».

Em consequência, passando a haver pedido contra ambos os RR., cai também o julgamento de ineptidão da petição relativamente ao R. C... e a sua decorrente absolvição da instância, R. este que haverá de ser notificado da admissão da correção do pedido, posto aquando da sua citação o petitório não o contemplar, importando observar cabalmente o princípio do contraditório.

B) Do quadro fáctico da causa e do caso julgado

Quanto à parte remanescente do impugnado saneador-sentença, onde a 1.ª R. viria a ser absolvida da instância, por se julgar procedente a exceção invocada do caso julgado, tem, desde logo, de reconhecer-se que da decisão recorrida não consta (um demarcado) elenco de factos provados ou não provados.

Ora, é líquido que são invocadas outras ações judiciais, designadamente a ação em cujo âmbito foi proferida a decisão que se considera constituir caso já julgado, o que implicou a ponderação comparativa entre sujeitos, pedidos e causas de pedir em ambas as ações (a presente e aqueloutra que já terá sido julgada, com trânsito em julgado).

Porém, não se mostram juntas certidões judiciais correspondentes, mormente daquela ação onde foi proferida a sentença que terá passado em julgado e que fundamenta a decretada procedência da exceção de caso julgado (ou autoridade do mesmo), bem como efeito preclusivo a desfavorecer o aqui A., por conduta omissiva naqueloutra ação.

Mas se o destino da presente ação dependeu, nesta parte, desse circunstancialismo – mormente o que se passou (em termos de alegação, pedidos e decisão final/definitiva) naqueloutra ação –, importaria fixar os factos pertinentes de suporte, de molde a dar consistência fáctica/prática efetiva à decisão, para o que, salvo o devido respeito, seria imprescindível a correspondente certidão judicial com nota de trânsito em julgado.

Porém, nem tal certidão foi junta – que se veja – pelas partes, nem o Tribunal recorrido a fez juntar, oficiosamente, aos autos.

É certo que as partes (as intervenientes no rumo da ação, A. e 1.ª R.), no plano alegatório, parecem, no essencial, concordes relativamente ao que ocorreu naqueloutra ação, aos pedidos e causas de pedir ali apresentados, ao sentido da respetiva sentença e ao respetivo trânsito em julgado, bem como aos respetivos sujeitos. Todavia, não assim quanto ao 2.º R., que se manteve revel ([8]).

O preceito do art.º 574.º, n.º 2, do NCPCiv., quanto ao ónus de impugnação, exclui da admissão por acordo por via de não impugnação (confissão ficta) os factos que só puderem ser provados por documento escrito, visto prevalecerem aqui «interesses de ordem pública» ([9]).

Assim, quando se tratar de factos que «careçam de prova documental», «esse documento não é dispensável, pelo que o silêncio da parte, tal como a declaração expressa de confissão, não pode sobrepor-se-lhe» ([10]).

E o art.º 364.º, n.º 1, do CCiv. – quanto à exigência legal de documento escrito –, estabelece que, se a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

Já o n.º 2 do mesmo artigo preceitua que, se resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.

Poderá a admissão de A. e 1.ª R. em sede de articulados substituir, para o efeito de decisão da exceção do caso julgado, a certidão judicial em falta?

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela ([11]), «se a lei exige documento autêntico, já não vale um documento autenticado, pois este tem apenas o mesmo valor probatório (cfr. art. 377.º), nem vale igualmente a prova por confissão» ([12]).

Parece-nos, salvo o devido respeito, fora de dúvida que no caso se exige documento autêntico – a certidão judicial das pertinentes peças processuais daqueloutra ação, incluindo articulados e decisão final/definitiva, com nota de trânsito em julgado ([13]) – para que, com a segurança que se impõe, possam estabelecer-se os factos, do mundo judicial/processual, de que depende a decisão sobre a exceção do caso julgado e o efeito preclusivo, com base nos quais se julgou no sentido da improcedência da presente ação ([14]).

Assim, faltando documento escrito/autêntico essencial para efeitos probatórios (certidão judicial), nem o Tribunal recorrido podia estabelecer, de forma demarcada, a factualidade assente para a decisão – e não o fez –, nem este Tribunal ad quem o pode fazer, com a necessária segurança, a exigível a este nível de discussão processual/judicial.

Falta, pois, um específico elenco de factos provados da decisão (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv., também aplicável ao proferido saneador-sentença), como falta a documentação de suporte do estabelecimento desses factos, essenciais para a decisão da causa, o que sempre tornaria deficiente a decisão de facto, por não constarem do processo, como sempre teria de concluir-se em apreciação oficiosa, todos os elementos que permitam a sindicância da matéria de facto em que se suporta a decisão da causa (cfr. art.º 662.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv.).

É certo ainda que o juiz deve, sem prejuízo dos ónus que cabem às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (art.º 6.º, n.º 1, do NCPCiv.), podendo convidar as partes a praticar os atos necessários, também no âmbito probatório, ao bom andamento do processo, em clima de cooperação e no escopo da obtenção da justiça material, fim último do mesmo (cfr. n.º 2 daquele art.º 6.º e art.º 7.º, ambos do NCPCiv.).

Aliás, nos termos do disposto no art.º 411.º do NCPCiv. (princípio do inquisitório), incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

Ora, sendo o caso julgado uma exceção dilatória, trata-se de inequívoca matéria de conhecimento oficioso do Tribunal (cfr. art.ºs 577.º, al.ª i), e 578.º, ambos do NCPCiv.).

Em suma, o conhecimento da exceção do caso julgado – e/ou da autoridade do caso julgado e do efeito preclusivo convocado – sempre exigiriam, salvo o devido respeito, até pelas suas implicações sobre a sorte dos autos, o estabelecimento de uma decisão assente em bases inquestionavelmente sólidas, também (e desde logo) no plano fáctico, para o que era imprescindível a certidão judicial aludida, incluindo da sentença/acórdão proferido, com nota de trânsito em julgado (por ser este um dos casos em que deve entender-se haver exigência legal de documento autêntico, não bastando, pois, o acordo, mais ou menos tácito, das partes em sede de articulados).

Assim sendo, os autos não estão ainda em condições de prolação de decisão final, devendo prosseguir, desde logo, para aquisição de prova imprescindível (a dita certidão judicial), com observância do contraditório na vertente probatória, só depois podendo, com a necessária segurança, estabelecer-se os relevantes factos de suporte e conhecer-se da exceção do caso julgado, sem o que também a Relação não tem ao dispor a base sólida necessária para se pronunciar.

Devendo, então, os autos prosseguir tramitação, deve revogar-se o saneador-sentença recorrido, na parte em que conheceu da aludida exceção de caso julgado.

Em suma, a apelação é procedente.

IV – SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Ocorre manifesto erro de escrita no petitório da ação – revelado no teor e contexto da peça processual –, cuja correção é admissível ao abrigo do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do NCPCiv., se o autor intenta ação condenatória indemnizatória contra dois réus, alegando factos integrantes da causa de pedir de forma abrangente aos dois demandados, mas por lapso de redação pede que seja «a demandada condenada» em vez de referir «os demandados condenados».

2. - Só ocorre caso julgado na medida/limite do que foi apreciado e decidido em anterior ação judicial transitada em julgado.

3. - A decisão, em saneador-sentença, da exceção do caso já julgado, no sentido da sua procedência, com decorrente absolvição da instância, pressupõe o estabelecimento dos fundamentos fácticos necessários para o efeito (fixação da matéria de facto), com base em prova documental, traduzida em certidão judicial com nota de trânsito em julgado, por haver exigência de tal documento escrito, mesmo que as partes aceitem reciprocamente o que foi alegado nesse âmbito.

4. - Julgada procedente tal exceção sem demarcação de uma parte fáctica da decisão e sem obtenção da dita certidão judicial, resta revogar a decisão, para prosseguimento dos autos, com obtenção dessa necessária prova documental, sem a qual o Tribunal ad quem não poderia decidir o recurso.

V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida, julgando, em substituição do Tribunal a quo:

a) Admissível a pretendida correção de manifesto erro de escrita no petitório da ação, com o pedido a reportar-se à expressão os demandados condenados, em vez de «a demandada condenada»;

b) Em consequência, havendo pedido contra ambos os RR., improcedente a ineptidão da petição relativamente ao R. C..., o qual haverá de ser notificado da admissão da correção do pedido, posto aquando da sua citação o petitório não o contemplar;

c) Devendo os autos prosseguir a sua legal tramitação, com aquisição de prova documental imprescindível – a dita certidão judicial – e observância do respetivo contraditório, só depois podendo conhecer-se da exceção do caso julgado.

Custas da apelação pela Recorrida.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.
Coimbra, 23/02/2021

          Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

          Fernando Monteiro


***


([1]) Que se deixam transcritas.
([2]) Subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, como requerido pelo Recorrente.
([3]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Em Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 175.
([5]) Cfr. Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, p. 160.
([6]) V. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 310.
([7]) O lapso não poderia, lógica e obviamente, traduzir-se na inclusão de um réu que a nenhuma luz devesse estar no processo (não foi um erro quanto aos sujeitos a figurar no lado passivo da ação).
([8]) Ora, é certo que do art.º 568.º, al.ª d), do NCPCiv. se retira a norma no sentido de que o efeito cominatório da revelia (a que alude o art.º 567.º do mesmo Cód.) não se aplica quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito.
([9]) V. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, op. cit., p. 492.
([10]) Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 543 e 544.
([11]) V. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, 323.
([12]) Bem se compreendendo que também ocorra inadmissibilidade de prova testemunhal (art.º 393.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv.).
([13]) Cfr. ainda os art.ºs 619.º e segs. do NCPCiv..
([14]) Ainda que o Tribunal de 1.ª instância tivesse, eventualmente, conhecimento desses factos, de índole processual, «por virtude do exercício das suas funções», ao socorrer-se deles teria de «fazer juntar ao processo documento que os comprove» (art.º 412.º, n.º 2, do NCPCiv.), no caso, em forma de certidão judicial com nota de trânsito em julgado, o que não foi feito. Como referem Abrantes Geraldes e outros (op. cit., p. 485): «No que tange aos factos que o juiz conheça em virtude do exercício das suas funções, constitui condição da sua utilização no concreto processo a demonstração por via documental, o que na prática significa que o juiz deve ordenar oficiosamente a junção da certidão atinente.».