Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
297/19.2T(FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ÓNUS DA PROVA
EXISTÊNCIA DE BENS
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 342, 610, 611, 612, 616 CC
Sumário: I – Para efeitos de verificação (ou não) do requisito de procedência da impugnação pauliana previsto na alínea b) do art. 610.º do CC (a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa possibilidade) e por força do disposto no art. 611.º do CC, cabe ao autor o ónus de provar o montante das dívidas, cabendo ao réu devedor (ou ao terceiro interessado na manutenção do acto) o ónus de provar que o obrigado/devedor possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.

II – Para cumprir o ónus que a lei coloca a seu cargo, o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do acto terão que alegar e provar a existência de bens que, por estarem integrados no património do devedor e por não serem bens impenhoráveis à luz do disposto na lei, estão em efectivas condições de responder pela satisfação das dívidas que resultem demonstradas.

III – A existência de uma penhora – efectuada no âmbito de uma execução instaurada pelo autor contra o réu devedor – sobre um imóvel cuja aquisição nem sequer está registada a favor do réu/executado não constitui garantia ou presunção de que o bem em questão pertença efectivamente ao devedor e que, como tal, está em condições de responder pelo pagamento das suas dívidas.

IV – Nessas circunstâncias, a mera alegação – por parte dos réus – da existência dessa penhora, sem a alegação ou reconhecimento de que o bem em questão pertence ao réu/devedor, não basta para que se considere cumprido o ónus de alegação e prova que a lei coloca a cargo do devedor ou do terceiro interessado na manutenção do acto.

V – A procedência da impugnação pauliana não determina – pelo menos em regra – a efectiva restituição dos bens ao património do devedor, determinando apenas que, na medida do seu interesse, o credor possa executar os bens no património do obrigado à restituição.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

J (…), residente (…), concelho do (...) , veio instaurar acção, com processo comum, contra L (…), residente (…) (...) e contra P (…) e esposa J (…), residentes (…) em França, pedindo que seja decretada a ineficácia em relação ao Autor de uma doação, realizada no dia 20 de Outubro de 2017, por via da qual o 1.º Réu doou um imóvel ao 2.º Réu (seu filho) e que os Réus P (…) e esposa J (…) sejam condenados na restituição do sobredito prédio doado de modo a que o crédito do Autor, acrescido das custas e encargos da execução de sentença aludida no artigo 4º, possa realizar-se à custa desse mesmo prédio.

Alega, em resumo, para fundamentar essa pretensão: que, no âmbito de execução para prestação de facto que instaurou contra o 1.º Réu, o custo das obras destinadas à realização da prestação a que o Réu havia sido condenado por decisão transitada em julgado foi avaliado em 1.263,00€ acrescido de IVA, valor que foi notificado ao Réu em 10/07/2017; que, uns meses antes, haviam sido adjudicados ao 1.º Réu – no âmbito de partilha de bens comuns do casal – dois imóveis, 1/6 indiviso de outro imóvel e um veículo automóvel; que o 1.º Réu desfez-se de todo esse património, por via de vendas e doações, com o único propósito de prejudicar os seus credores, tendo doado ao 2.º Réu um dos referidos imóveis por escritura de doação celebrada em 20/10/2017; que, por força desses factos, não foram encontrados bens penhoráveis que respondessem pela quantia devida na execução supra mencionada e que ambos os Réus tinham perfeito conhecimento do prejuízo que tal doação causariam ao Autor na medida em que não são conhecidos outros bens do primeiro Réu que possam responder pelo crédito do Autor. 

Contestando, os Réus, além de invocarem a ilegitimidade da Ré J (…), alegam: que o crédito do Autor é posterior à data em que foi celebrada a doação, uma vez que esse crédito apenas se formou em 21 de Março de 2018 com a notificação do despacho que validou a peritagem que havia sido efectuada; que a referida doação não determinou a impossibilidade de satisfazer integralmente o crédito do Autor nem determinou o agravamento dessa impossibilidade, sendo certo que, na sequência da indicação à penhora pelo Autor em 26/11/2018, foi penhorado na referida execução – em 21/03/2019 – um imóvel ao qual foi atribuído o valor de 50.000,00€ e cuja venda já foi requerida pelo Autor; que a presente acção foi instaurada depois de o Autor ter sido notificado dessa penhora, não podendo o Autor requerer em processo executivo a venda dum prédio urbano penhorado, cujo valor garante a totalidade do seu crédito e ao mesmo tempo impugnar uma doação anterior invocando que da mesma resulta a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade da satisfação do seu crédito e que, à data da escritura, os 2.ºs Réus desconheciam que o 1.º Réu tivesse alguma obrigação para com o Autor e que, como tal, estavam a prejudicá-lo com a doação.

Com estes fundamentos, concluem pedindo: a procedência da excepção da ilegitimidade, a improcedência da acção e a condenação do Autor por litigância de má-fé.

O Autor respondeu, sustentando a improcedência da matéria de excepção deduzida pelos Réus e negando a existência de qualquer litigância de má-fé da sua parte.

Foi realizada a audiência prévia e proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade da Ré J (...) .

Foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, decidiu absolver os Réus do pedido e absolver o Autor do pedido de litigância de má-fé formulado pelos Réus.

Inconformado com tal decisão, o Autor veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

Os Réus apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

● Saber se os Réus lograram ou não fazer a prova – que a lei coloca a seu cargo (art. 611.º do CC) – de que o 1.º Réu continua a possuir bens penhoráveis suficientes para satisfazer o crédito do Autor, o que, no caso, se reconduz a saber se a mera alegação e prova da existência de uma penhora sobre determinado imóvel (penhora efectuada no âmbito de uma execução instaurada pelo Autor contra o 1.º Réu) é bastante para que considere feita aquela prova;

● Saber, em função da resposta dada à questão anterior, se devemos ter como verificado o requisito previsto na alínea b) do art. 610.º do CC e se, como tal, a impugnação pauliana está em condições de proceder.


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III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. Resulta da sentença, datada de 15 de Janeiro de 2014, transitada em julgado em 17 de Novembro de 2014, proferida nos autos de processo comum singular, com o n.º 67/12.9TAFND, que correu termos, pelo designado na altura, 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Fundão, que o primeiro Réu L (…) foi condenado a: “reconstruir imediatamente o muro de blocos de cimento com a extensão, localização e características físicas aludidas na acusação particular”.

2. Na referida acusação particular, deduzida nos aludidos autos, o aqui Autor identifica esse muro como: “um muro de blocos de cimento com um metro de altura sensivelmente, construído pelo denunciante (aqui autor) e a ele pertencente, muro esse situado na estrema sul da Tapada ou Rua da Escola, da (então) freguesia do (...) , deste concelho do (...) , e inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 1191 (…) numa extensão de dezanove metros”.

3. Em 20 de Janeiro de 2015, o Autor intentou contra o primeiro Réu L (…) uma execução da sentença, mencionada no ponto 1, da materialidade dada como provada, para prestação do facto, com o n.º 67/12.9TAFND.1.

4. Em 14 de Março de 2017, o primeiro Réu L (…) divorciou-se de M (…), por decisão proferida nos autos de divórcio por mútuo consentimento com o n.º 227 de 2017, que correu termos na Conservatória do Registo Civil do (...) .

5. Nesses mesmos autos, o primeiro Réu L (…) e M (…) procederam à partilha do património comum do casal.

6. Foram adjudicados ao primeiro Réu L (…) todos os bens imóveis e o bem móvel sujeito a registo nesses autos relacionados como património comum:

i. Verba n.º 1: Prédio rústico, no sítio da Tapada do y (...) , da freguesia aludida dos x (...) s, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 194 e descrito na Conservatória do Registo Predial do (...) sob o n.º 204/ (...) ;

ii. Verba n.º 2: Prédio rústico, no sítio do Jardim ou w(...) , freguesia dos x (...) s, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 390 e descrito na aludida Conservatória do Registo Predial sob o n.º 205/ (...) ;

iii. Verba n.º 3: Um sexto indiviso de um prédio rústico, sito no mesmo lugar da Tapada do y(...) , da freguesia dos x (...) s, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 957 e descrito na Conservatória sob o n.º 644/ (...) ”; e

iv. Verba n.º 4: Veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo Passat, com a matrícula (...) .

7. Em 30 de Maio de 2017, o Autor juntou aos autos identificados no ponto 3 da materialidade dada como provada um orçamento e requereu à Sr.ª Agente de Execução que fosse nomeado um perito para efeitos de avaliação do custo das obras.

8. Na execução referida no ponto que antecede, foi nomeado um perito para aferir do custo das obras destinadas à realização da obrigação do executado, o aqui primeiro réu L (…), tendo esse custo sido avaliado em 1.263,00 €, acrescido de IVA.

9. No dia 10 de Julho de 2017, a Sr.ª Agente de Execução, enviou uma carta ao primeiro Réu L (…), na qualidade de executado, com os dizeres: “Fica V.ª Exa. notificado do orçamento apresentado, relativamente às obras necessárias à realização da prestação de facto”, sem junção do dito orçamento.

10. Em 20 de Outubro de 2017, por escritura de doação lavrada de fls. 92 a fls. 93 do Livro de notas n.º 95 do Cartório Notarial da J (...) , a cargo da Notária Dr.ª. (…), o primeiro Réu L (…) declarou doar ao seu filho, o segundo Réu P (…), que declarou aceitar, o prédio identificado no ponto 6, alínea i., encontrando-se registada a aquisição a favor do segundo Réu marido P (…) na respectiva Conservatória do Registo Predial pela apresentação n.º 2223 de 2017.10.24.

11. Em 20 de Outubro de 2017, por escritura de doação, lavrada de fls. 90 a fls. 91 do livro de notas n.º 95 do Cartório Notarial da J (...) , a cargo da mesma Notária Dr.ª. (…), o primeiro Réu L (…) declarou doar ao seu filho, D (…), que declarou aceitar, o prédio identificado no ponto 6, alínea ii., encontrando-se registada a aquisição a favor de D (…) na respectiva Conservatória do Registo Predial pela apresentação n.º 2202, de 2017.10.24.

12. Resulta do despacho de 26 de Janeiro de 2018, no âmbito do processo mencionado no ponto 3, da materialidade dada como provada, que: “Considerando que Sra. Agente de Execução concorda com o orçamento apresentado e competindo-lhe a função de orientação da perícia, deverá a perícia prosseguir em conformidade.”

13. Em 16 de Fevereiro de 2018, a Sr.ª Agente de Execução considerou a peritagem aludida concluída.

14. Resulta do despacho de 20 de março de 2018, no âmbito do processo mencionado no ponto 3, da materialidade dada como provada, notificado às partes processuais em 21 de março de 2019, que: “Conforme se alcança do teor da informação prestada pela Sra. AE (…) a perícia dos autos encontra-se concluída (…).”

15. Em 22 de Novembro de 2018, o autor foi notificado pela Sr.ª Agente de Execução, (…) no âmbito do processo mencionado no ponto 3, da materialidade dada como provada, para indicar bens à penhora do primeiro Réu, L (…), por não ter sido possível determinar a existência de bens penhoráveis.

16. No dia 21 de Março de 2019, no âmbito do processo referido no ponto 3, da materialidade dada como provada, o Autor foi notificado (na pessoa do seu ilustre mandatário) do auto de penhora de prédio urbano sito nos x (...) s (casa de habitação de rés-do-chão, 1.º andar, sótão e logradouro) com a atribuição de um valor de 50.000 € (cinquenta mil euros), no âmbito do processo mencionado no ponto 3, da materialidade dada como provada.

17. O Autor não se opôs ao referido valor e requereu o prosseguimento desses autos para a fase da venda.

18. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial pela apresentação n.º 265 de 2018.05.22 em nome de B (…), irmã do primeiro Réu L (…), a fracção predial de 1/6 indiviso do prédio identificado no ponto 6, alínea iii., por adjudicação no âmbito do processo com o n.º577/16.9T8FND (divisão de coisa comum) que correu termos neste Tribunal.

19. Encontra-se registado em nome de J (…), familiar dos Réus, pela apresentação n.º 00530 de 27 de Setembro de 2017, o veículo automóvel identificado no ponto 6, alínea iv..

E julgaram-se não provados os seguintes factos:

a. O primeiro Réu actuou da forma supra descrita nos pontos 10 a 11, da materialidade dada como provada, com o único propósito de prejudicar os seus credores, mormente o Autor.

b. Os Réus tinham perfeito conhecimento do prejuízo que as doações descritas nos pontos 10 e 11 da materialidade dada como provada, causariam, como causaram, ao Autor, na medida em que resulta de tais actos, senão a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito, pelo menos o agravamento dessa impossibilidade, uma vez que não são conhecidos outros bens ao primeiro Réu L (…)

c. Os segundos Réus souberam da obrigação que o primeiro Réu tinha e tem para com o Autor, e do intuito que aquele tinha em prejudicar o Autor com tais doações.

d. O primeiro Réu L (…) manteve-se na posse dos prédios identificados no ponto 6, alíneas i. e ii.

e. Em 10 de julho de 2017, o valor de 1.263,00 €, acrescido de IVA foi notificado ao primeiro Réu L (…), no âmbito do processo mencionado no ponto 3, da materialidade dada como provada.


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IV.

Através da presente acção, pretende o Autor exercer o direito de impugnação pauliana relativamente à doação que o 1º Réu efectuou ao 2º Réu (seu filho) – por escritura de 20/10/2017 – e que teve por objecto o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial do (...) sob o n.º 204/ (...) .

A esse propósito, dispõe o art. 610º do C.C. que:

Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal, podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

b) resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade”.

A tais circunstâncias acresce ainda – como requisito de impugnação de acto oneroso – a má fé do devedor e do terceiro (art. 612º do C.C.), requisito que, no caso em análise, não é exigível, uma vez que a impugnação é dirigida a um acto gratuito (doação) e, portanto, como decorre do citado art. 612º, não depende de má fé, podendo proceder ainda que o devedor e o terceiro tenham actuado de boa fé.

Assim, a procedência da impugnação em causa nos autos pressupõe:

- Que esteja em causa um acto que não seja de natureza pessoal e que envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito;

- Que o crédito do autor seja anterior ao acto ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

- Que resulte do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade (importando notar que, para efeitos de verificação – ou não – deste pressuposto e conforme dispõe o art. 611º, incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto, a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor).

A sentença recorrida considerou que o acto em causa (doação) não era um acto de natureza pessoal, razão pela qual era impugnável e considerou que o Autor era, efectivamente, titular de um crédito sobre o 1.º Réu que se havia constituído em 17/11/2014 (com o trânsito em julgado da sentença que havia condenado o Réu à prestação do facto positivo cujo incumprimento veio a determinar a necessidade de prestação do facto por outrem com os custos inerentes) e que, como tal, se havia constituído antes da doação.

O Recorrente não põe – naturalmente – em causa a verificação desses requisitos ou pressupostos, pelo que tais questões estão excluídas do objecto do recurso.

A sentença recorrida considerou, no entanto – e é a esse segmento que se dirige o presente recurso –, que não se verificava o requisito previsto na alínea b) do citado art. 610.º, porquanto a referida doação não havia impossibilitado – nem agravado a impossibilidade – de satisfação do crédito do Autor. E, para concluir nesses termos, a sentença recorrida considerou que, apesar de caber ao devedor (ou ao terceiro interessado na manutenção do acto) o ónus de provar que possui bens penhoráveis de igual ou maior valor do que as dívidas que tenham sido alegadas e provadas, os Réus haviam feito essa prova na medida em que resultou provado que, no processo executivo instaurado pelo Autor, havia sido penhorado um imóvel cujo valor era suficiente para satisfazer o crédito do Autor.

Sustenta, no entanto, o Apelante – e essa é a única questão suscitada no recurso – que, ao contrário do que se considerou na sentença recorrida, os Réus não alegaram e provaram que o Réu L (…) possui bens penhoráveis de igual ou maior valor que o crédito do Autor, sendo certo que a mera circunstância de o Autor/Apelante ter indicado à penhora um imóvel – que foi efectivamente penhorado – não equivale a dizer que ficou provado que esse imóvel pertence ao devedor (o 1.º Réu) e que esteja efectivamente integrado no seu património, sendo certo que a penhora não faz qualquer prova acerca da titularidade do bem e pode ser posta em causa a todo o tempo. Na verdade – diz – os Réus nunca alegaram – ou reconheceram – que tal imóvel pertencesse, de facto, ao 1.º Réu, pelo que, não tendo cumprido o ónus que a lei coloca a seu cargo, a presente acção teria que ser julgada procedente.

Pensamos que assiste razão ao Apelante.

Conforme referimos supra, a procedência da impugnação pressupõe, em conformidade com a alínea b) da norma citada, que resulte do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa possibilidade e, como decorre do disposto no art. 611º, a verificação deste requisito há-de resultar da conjugação de dois factos: o montante das dívidas do devedor e o valor dos bens penhoráveis ainda existentes no seu património; se o montante das dívidas for superior ao valor dos bens penhoráveis ainda existentes, concluir-se-á que o acto impugnado tem como resultado a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade; se o valor dos demais penhoráveis ainda existentes for suficiente para a satisfação integral das dívidas, o acto praticado não produzirá aquele resultado e, como tal, não ficará sujeito a impugnação. Importa notar, no entanto, que o credor não está onerado com a prova desses dois factos; como decorre do disposto no citado art. 611º, o credor (no caso, o Autor) apenas tem que provar o valor das dívidas e, uma vez provado esse valor, cabia aos Réus o ónus de provar a existência de bens penhoráveis de igual ou maior valor.

Sendo certo que os bens que respondem pelo cumprimento da obrigação são, em princípio, os bens do devedor que sejam susceptíveis de penhora (cfr. art. 601.º do CC e 735., n.º 1, do CPC), serão esses, naturalmente, os bens que relevam para o efeito de concluir pela existência (ou não) de bens penhoráveis de valor suficiente para satisfazer as dívidas que sejam demonstradas, ou seja, os bens que sejam propriedade do devedor e sejam penhoráveis (que não sejam, portanto, impenhoráveis à luz do disposto na lei, designadamente nos arts. 736.º e segs. do CPC).

Cabia, portanto, aos Réus o ónus de alegar e provar que no património do devedor (no caso, o 1.º Réu) ainda existiam bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante das dívidas (no caso, o valor do crédito do Autor, uma vez que nenhumas outras dívidas foram demonstradas).

Ora, os Réus não cumpriram esse ónus, uma vez que não alegaram, em momento algum – e muito menos provaram –, que o 1.º Réu (devedor) fosse proprietário de qualquer bem que, sendo penhorável, fosse suficiente para satisfazer o crédito do Autor.

Na verdade, os Réus limitaram-se a alegar – e provar – que, no âmbito da execução que se encontra em curso com vista à satisfação do crédito do Autor, o Exequente (aqui Autor) havia penhorado um determinado imóvel cujo valor era suficiente para a satisfação integral desse crédito. Sucede que, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, a circunstância de ter sido efectuada essa penhora não basta para que se possa ter como demonstrado que esse imóvel pertence ao devedor (o aqui 1.º Réu) e que, como tal e por estar integrado no seu património, está em efectivas e reais condições de responder pela satisfação do crédito do Autor. Com efeito, essa penhora – que nem sequer foi efectuada por indicação do executado (não envolvendo, por isso, qualquer reconhecimento da sua parte de que o imóvel lhe pertencia) – não constitui qualquer garantia ou presunção de que o bem em questão pertença ao Réu (ali executado) e que, como tal, esteja em condições de responder pelo pagamento da quantia exequenda, podendo ser atacada por quem se arrogue proprietário do bem por via de embargos de terceiro (cfr. arts. 342.º e segs. do CPC) ou por via de uma normal acção de reivindicação cuja procedência determinará que fique sem efeito a venda do bem que venha a ser efectuada na execução (cfr. art. 839.º, n.º 1, alínea d), do CPC).

Ora, a verdade é que os Réus nunca alegaram que o imóvel em questão pertencesse (fosse propriedade) do 1.º Réu e que, como tal, estivesse em condições de responder pelas suas dívidas. Os Réus não o alegaram na sua contestação e, não obstante ser essa a única questão suscitada no presente recurso, os Réus, nas suas contra-alegações, continuam a não afirmar, em momento algum, que o aludido imóvel pertence ao referido Réu (alegam que o Autor beneficia de uma penhora; que essa penhora ficou plenamente provada nos autos; que não resulta do artigo 611º do Código Civil que o legislador tenha pretendido obrigar o devedor a provar que é proprietário de bens de valor suficiente para a satisfação do crédito dos Autores; que os provaram que o Autor já penhorou bens ao Réu L (…)e que os mesmos têm um valor mais do que suficiente para garantir a satisfação do crédito; que o Autor pretende que nesta acção fique provado que o bem que tem penhorado na ação executiva é efetivamente do R., quando é certo que não é esse o alcance e finalidade da ação de impugnação pauliana e que o credor só pode recorrer à impugnação pauliana quando não consegue obter a penhora de bens do devedor, o que aqui não acontece, mas não afirmam nunca que o bem pertença efectivamente ao 1.º Réu). E o facto de os Réus/Apelados terem tido o cuidado de nunca afirmar esse facto é, na nossa perspectiva, elucidativo de que não pretendem reconhecer um qualquer direito do 1.º Réu sobre o referido imóvel (eventualmente por entenderem que tal direito não existe porque o imóvel pertence a outrem), importando notar que, conforme resulta da certidão junta com a contestação, a aquisição da propriedade do imóvel em questão não está inscrita a favor do Réu (ao que parece, o imóvel estaria omisso na matriz e na Conservatória e a sua inscrição/descrição apenas ocorreu na sequência e por força da penhora efectuada) e, portanto, nem sequer se poderá presumir, por força do registo, que o imóvel pertença efectivamente ao Réu.

Para cumprir o ónus que a lei coloca a seu cargo, os Réus teriam que alegar e provar que o devedor (o 1.º Réu) continua a possuir bens penhoráveis de valor suficiente para satisfazer o crédito do Autor e tal significa que tinham que provar a existência de bens que estejam em efectivas condições de responder pelas suas dívidas porque estão integrados no seu património e porque não são bens impenhoráveis à luz do disposto na lei.

Os Réus – como se referiu – não cumpriram esse ónus, uma vez que se limitaram a alegar a existência de uma penhora sobre determinado imóvel sem que tivessem alegado – e consequentemente, sem que tivessem provado – que esse imóvel pertencia ao 1.º Réu e que, como tal, estava em condições de responder pelas suas dívidas.

Assim, estando provado o valor das dívidas (no caso, o crédito do Autor) e não tendo sido feita a prova de que o 1.º Réu possui bens penhoráveis de valor igual ou superior, impõe-se concluir – por efeito de aplicação das regras inerentes ao ónus de prova – pela verificação do requisito enunciado na alínea b) do citado art. 610º.

Concluimos, portanto, em face do exposto:

- O acto em questão (doação) não é de natureza pessoal e envolve diminuição da garantia patrimonial do crédito por implicar uma redução/diminuição do património do devedor, razão pela qual é impugnável pelo credor à luz do disposto no n.º 1 do citado art. 610.º;

- Resultou provada a existência de um crédito do Autor cuja constituição ocorreu em momento anterior à doação, estando, por isso, verificado o requisito previsto na alínea a) da citada disposição legal;

- Resultando provada a existência desse crédito e não tendo os Réus alegado – como era seu ónus em face do disposto no art. 611.º do CC – que o devedor (o 1.º Réu) era possuidor de bens penhoráveis de igual ou maior valor, tem-se também como verificado o requisito previsto na alínea b) do citado art. 610.º;

- Assim, porque estão verificados os pressupostos enunciados no citado art. 610.º e porque, estando em causa um acto gratuito (doação), a procedência da impugnação não exige a má-fé, estão reunidos todos os pressupostos necessários para julgar procedente a impugnação.

Impõe-se, por isso, julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se procedente a impugnação pauliana.

Resta-nos precisar os termos em que a pretensão do Autor deverá ser julgada procedente e que, na nossa perspectiva, não coincidem rigorosamente com os termos em que ela foi formulada pelo Autor (embora esteja aqui em causa uma mera questão de forma e de redacção que não interfere com a essência e a substância da pretensão formulada).

No que toca aos efeitos da impugnação pauliana, determina o artigo 616º, nº 1, do CC: “Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.

A propósito da norma citada, Pires de Lima e Antunes Varela[1] dizem o seguinte: “São três os direitos conferidos pelo nº1: o direito à restituição na medida do interesse do credor, o direito a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e o direito de execução no património do obrigado à restituição. Este último direito é confirmado na segunda parte do artigo 818. A restituição efectiva dos bens dos bens ao alienante não tem, pois, interesse, na generalidade dos casos. Mas pode tê-lo, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida…”.

É indiscutível que a impugnação pauliana não interfere com a validade do acto e os seus efeitos apenas aproveitam ao credor que a tenha requerido (cfr. artigo 616º, nº 4) e apenas na medida dos interesses deste credor.

Significa isso, portanto, que o bem transmitido continuará, pelo menos por regra, a integrar o património do adquirente, ainda que sujeito à agressão do credor do transmitente na exacta medida daquilo que for necessário para satisfazer o seu crédito. E essa agressão – como resulta expressamente da lei – pode ser efectuada directamente no património do adquirente (cfr. artigos 616º, nº 1, e 818º do CC) sem qualquer necessidade de uma efectiva restituição dos bens ao património do devedor.

A restituição dos bens a que alude o citado artigo 616º, nº1, não será, portanto – pelo menos em regra – uma restituição ou retorno efectivo dos bens ao património do devedor, mas sim uma restituição meramente formal ou abstracta no sentido de restabelecer a garantia patrimonial do crédito que havia sido perdida com o acto impugnado e legitimando a afectação desse bem à satisfação do direito do credor apesar de o bem em questão já não se encontrar na titularidade do seu devedor.

Veja-se a este propósito o Acórdão do STJ de 11/07/2013[2] - bem como a doutrina aí citada – que, apesar de admitir na situação que ali estava em causa (onde os devedores haviam sido declarados insolventes) a efectiva restituição dos bens ao património dos devedores, não deixou de assinalar que estava em causa uma situação excepcional, uma vez que, por regra, tal restituição não ocorre, devendo os bens ser executados no património do adquirente (obrigado à restituição).

É certo, portanto, que a procedência da impugnação pauliana não determina a efectiva restituição do prédio ao património do 1.º Réu, determinando apenas que o Autor possa executar esse imóvel no património do 2ª Réu a quem o prédio foi doado.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Para efeitos de verificação (ou não) do requisito de procedência da impugnação pauliana previsto na alínea b) do art. 610.º do CC (a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa possibilidade) e por força do disposto no art. 611.º do CC, cabe ao autor o ónus de provar o montante das dívidas, cabendo ao réu devedor (ou ao terceiro interessado na manutenção do acto) o ónus de provar que o obrigado/devedor possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.

II – Para cumprir o ónus que a lei coloca a seu cargo, o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do acto terão que alegar e provar a existência de bens que, por estarem integrados no património do devedor e por não serem bens impenhoráveis à luz do disposto na lei, estão em efectivas condições de responder pela satisfação das dívidas que resultem demonstradas.

III – A existência de uma penhora – efectuada no âmbito de uma execução instaurada pelo autor contra o réu devedor – sobre um imóvel cuja aquisição nem sequer está registada a favor do réu/executado não constitui garantia ou presunção de que o bem em questão pertença efectivamente ao devedor e que, como tal, está em condições de responder pelo pagamento das suas dívidas.

IV – Nessas circunstâncias, a mera alegação – por parte dos réus – da existência dessa penhora, sem a alegação ou reconhecimento de que o bem em questão pertence ao réu/devedor, não basta para que se considere cumprido o ónus de alegação e prova que a lei coloca a cargo do devedor ou do terceiro interessado na manutenção do acto.

V – A procedência da impugnação pauliana não determina – pelo menos em regra – a efectiva restituição dos bens ao património do devedor, determinando apenas que, na medida do seu interesse, o credor possa executar os bens no património do obrigado à restituição.


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V.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a sentença recorrida e decide-se julgar procedente a presente acção de impugnação pauliana, determinando-se que o Autor ( J (...) ) poderá executar no património dos 2.ºs Réus ( P (...) e esposa) o prédio rústico sito na freguesia dos x (...) s, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 194 e descrito na Conservatória do Registo Predial do (...) sob o n.º 204/ (...) , na medida do seu interesse e, portanto, até ao limite do crédito supra identificado que detém sobre o 1.º Réu ( L (...) ), acrescido das custas e encargos da execução de sentença referida no ponto 3. da matéria de facto.
Custas a cargo dos Apelados.
Notifique.

Coimbra, 10 de Dezembro de 2020.

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora)

Maria João Areias

Freitas Neto


[1] Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Revista e Actualizada, pág. 602.
[2] Proferido no processo nº 283/09.0TBVFR-C.P1.S1, disponível em http://www.dgis.pt.