Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1145/04.3TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: INVENTÁRIO
LICITAÇÕES
BENS DOADOS
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 3, 266, 456, 1363, 1365, 1370, 1371, 1372 CPC
Sumário: 1.Os bens doados devem ser submetidos a relacionação no inventário com essa menção.

2. Se o donatário de bens doados não se opuser à licitação nesses bens por parte dos outros interessados, aquela fica consentida e tem lugar o desapossamento daquele em relação a tais bens.

3. Considera-se existir consentimento do donatário a respeito da licitação em bens doados quando este, estando presente na conferência de interessados onde tem lugar essa licitação, não expressa por qualquer forma, oposição a esta.

4. Fora da situação prevista no artigo 1372º do Código de Processo Civil, a anulação do acto de licitação é regida em termos substantivos pela lei geral relativa à falta e aos vícios da vontade a que se reportam os artigos 240º a 257º do Código Civil.

5. A condenação da parte como litigante de má fé, sem a sua prévia audição, viola os princípios constitucionais de acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados na Lei Fundamental.

6. A inobservância dessa prévia audição, é geradora de nulidade e conduz à anulação do despacho que proferiu a condenação por litigância de má fé.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

    I- Relatório

     1. Nos presentes autos de inventário procedeu-se à conferência de interessados na qual a interessada e cabeça de casal H (…) e os demais interessados P (…) e A (…) estiveram presentes e houve licitações.

         2. Após prévio acordo dos três interessados na conferência de interessados no sentido da unificação para efeitos de avaliação, licitações e composição dos quinhões de algumas das verbas relacionadas, entre as quais, a verba nº 37 com a verba nº 45 e a verba nº 38 com a verba nº 39 e com a verba nº 43, vieram tais verbas a ser licitadas pela seguinte forma:

         - As verbas nºs 37 e 45, foram licitadas pelo interessado A(...), pelo valor de 85.750,00 euros (oitenta e cinco mil, setecentos e cinquenta euros);

         - As verbas nºs 38, 39 e 43, foram licitadas pela interessada H (...), pelo valor de 389.380,00 euros (trezentos e oitenta e nove mil, trezentos e oitenta euros).

3. Proferido despacho determinativo do modo como devia ser organizada a partilha, houve mapa informativo de excesso de adjudicação.

4. Depois de cumprido o disposto no Art. 1377º Nº1 do CPC veio a interessada e cabeça de casal H (…) requerer a anulação das licitações realizadas sobre as verbas nºs 38, 39 e 43 constantes da relação de bens de fls. 630 a 636 e a exclusão do inventário quanto à verba nº 38 por ter sido doada ao interessado A (…), devendo marcar-se nova conferência a fim de se licitar sobre as verbas 39 e 43.

Alega, em suma, que só agora teve conhecimento de que seus pais falecidos (ora inventariados) no dia 8 de Abril de 1992, outorgaram escritura de justificação notarial e doação, tendo doado ao filho e ora interessado A (…)dois imóveis: a) uma casa de habitação de r/c com 60 m2 e logradouro com 2.740 m2 (com as confrontações melhor descritas na escritura de doação junta aos autos por fotocópia simples, conforme fls. 749 e ss., para onde se remete para os devidos efeitos legais), inscrita na matriz sob o artigo 708º e b) uma casa de r/c amplo, destinado a indústria com 105 m2 e logradouro com 1.875 m2, inscrita na matriz sob o artigo 1181º, os quais não estavam descritos na CRP de Tomar; sucede que o dito artigo 708º deu origem ao actual artigo urbano nº 1968 (correspondente à verba nº 38); esta doação foi mantida em segredo até agora e apenas dela tinha conhecimento o próprio donatário A (…); a licitação não corresponde a qualquer negócio entre os interessados no inventário, mas antes a um acto judicial que permite a escolha de bens e a actualização de valores quando não há acordo sobre o preenchimento dos quinhões; para tanto é condição prévia que o bem a licitar pertença de facto e de direito à herança, o que não é definitivamente o caso; pretende pois anular esta licitação que recaiu sobre as três verbas por erro seu e mais por desconhecimento de vício que recaía sobre tais verbas, nomeadamente por desconhecer que sobre as ditas verbas recaia ónus ou limitações que afectavam a sua manifestação de vontade.

        

5. Notificados os restantes interessados, apenas o interessado A (…), veio responder conforme fls. 764 e ss., requerendo por sua vez também a anulação das licitações que recaíram sobre as verbas Nºs 38, 39 e 43, dizendo que as verbas Nºs 38 e 39 lhe foram doadas por seu pais conforme documento supra referido, devendo a cabeça de casal participar este facto à Fazenda Nacional, referindo que há uma duplicação do artigo 1969º, que corresponde ao antigo 1181º, que por sua vez corresponde ao actual artigo urbano 2.316º que é propriedade deste, devendo realizar-se nova licitação quanto à verba nº 43.

Para tanto e em suma, afirma que conhece a doação que seus pais lhe fizeram mas que pensava que aquela apenas dizia respeito a uma faixa de terreno onde construiu a sua casa e que quem deu azo a toda esta confusão foi a cabeça de casal, porque foi esta que relacionou todos os bens deste inventário e que os bens imóveis são omissos quanto a áreas e confrontações o que teria ajudado a identificar os bens, pelo que foi apanhado de surpresa quanto a esta situação.

        

6. Sobre o assim requerido pela interessada e cabeça de casal H (…) e pelo interessado A (…) foi decidido indeferir tais pedidos de anulação das licitações relativas às verbas nºs 38, 39 e 43.

        

7. Inconformada com o decidido a respeito do requerimento por si apresentado veio a interessada e cabeça de casal H (…) interpor recurso.

8. Na sequência de requerimento apresentado nos autos pelo interessado A (…) no qual, além do mais, o mesmo refere que também à interessada e cabeça de casal H (…) foram doados pelo inventariados seus pais os bens relacionados sobre as verbas Nºs 37 e 45, veio a mencionada cabeça de casal confirmar e reconhecer que efectivamente, por doação verbal ( embora acompanhada de transferência da propriedade) lhe foi dado pelos seus pais  o prédio relacionado sob a verba Nº 45, sendo do conhecimento de todos os herdeiros essa doação verbal cuja regularização jurídica estes nunca viabilizaram, e, ainda, que também o interessado P (…) recebeu de seus pais a quantia de Esc. 10.000.000$00.

9. Sobre o assim trazido aos autos foi igualmente decidido manter a licitação sob a verba Nº 45 e ordenado o acrescento da relação de bens de fls. 630 e ss., por forma a, na rubrica “Dinheiro”, passar a constar, como verba nº 9 - Doação - com menção: “Os inventariados, doaram ao seu filho P (…), a quantia de 10.000.000$00/49.879,79 €.”

Mais se decidindo a condenação dos três interessados, H (…) e A (…) na multa processual de 6 Ucs cada um deles como litigantes de má fé, por se entender que todos eles, de modo propositado, omitiram factos relevantes para a decisão da causa, procurando impedir a descoberta da verdade da causa.

10. Inconformados com o assim decidido vieram a interessada e cabeça de casal H (…) e o interessado P (…) interpor recurso, este último apenas quanto à parte que o condenou como litigante de má fé.

 

11. Admitidos os três recursos ( dois deles interpostos pela interessada e cabeça de casal H (…), conforme aludido em  7. e 10. e um deles interposto pelo interessado P (…) conforme aludido em 10. ) todos eles como agravo, foram apresentadas as respectivas alegações.

A- Nas alegações que interessada e cabeça de casal H (…) apresentou em conjunto quanto aos recursos aludido em 7. e 10., concluiu a mesma nos seguintes termos que se transcrevem:

(…)

B- Nas alegações que o interessado P (…) apresentou relativas ao recurso aludido em 10., concluiu o mesmo nos termos que a seguir se transcrevem:

(…)

14. Não foram apresentadas contra alegações.


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II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas conclusões do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso ( Arts. 684º, nº 3, 685º-A e 660º, nº 2, do CPC ), são as seguintes as questões a decidir:

- Quanto ao recurso apresentado pela agravante H (…):

a) saber se os bens doados pelos inventariados a alguns dos interessados seus filhos devem ser relacionados; 

b) saber se há fundamento para a anulação da licitação sobre as verbas licitadas em conjunto nºs 38, 39 e 43 e sobre as verbas igualmente licitadas em conjunto nºs 37 e 45, com base em erro, pelo facto de não constar da respectiva relacionação a menção de que se tratam de bens doados pelos inventariados a alguns dos interessados seus filhos e essa doação ser conhecida do interessado que neles licita.

c) saber se se verificam os requisitos da litigância de má fé na actuação da interessada e cabeça de casal H (…) pelo facto de só depois das licitações vir a mesma reconhecer que o bem imóvel relacionado sob a verba nº 45 e sobre o qual incidiu licitação de outro interessado, na qual a mesma esteve presente, se trata de um bem que lhe foi doado pelos inventariados seus pais.

- Quanto ao recurso do agravante P (…) saber se se verificam os requisitos da litigância de má fé na actuação do interessado P (…) pelo facto do mesmo omitir ao longo dos autos e também durante a conferência de interessados onde houve licitações que não se encontrava relacionado a quantia de Esc. 10.000.000$00 que lhe foi doada pelos inventariados seus pais.


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III- Fundamentação

A) De Facto

A dinâmica processual que releva no recurso é a constante do relatório supra:

B) De Direito

            A fim de enquadrarmos a situação em apreço relativamente à questão da anulação das licitações suscitada pela recorrente H (…) Santos nos dois recursos por ela interpostos, abordaremos previamente o regime legal do acto de licitação e da sua anulação.

         Na falta do acordo em conferência de interessados quanto à composição de quinhões e resolvidas as questões que o devam ser, abre-se licitação entre os interessados, com a estrutura de uma arrematação, que tem lugar, sempre que possível, no mesmo dia daquela conferência, a seguir a esta, sendo cada verba licitada de per si, salvo se todos os interessados concordarem na formação de lotes para este efeito, ou se houver algumas que não possam separar-se sem inconveniente (artigos 1363º, nº 1, 1370º, nº 1 e 1371º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

            A licitação é, grosso modo, a oferta por cada interessado de valores sucessivamente mais elevados relativamente a bens integrados em determinado património hereditário, para lhe ser adjudicado na partilha judicial.

         Ao referir que a licitação tem a estrutura de uma arrematação, a lei não pretende significar tratar-se de um contrato de compra e venda, mas tão só que se realiza como se de arrematação em geral se tratasse.

         Tendo em conta a forma do acto de licitação e o concernente efeito jurídico, a sua natureza jurídica é a de um negócio jurídico oneroso unilateral tendente à partilha dos elementos integrantes de determinado património indiviso e à concretização do quinhão do respectivo licitante.

         A licitação, protagonizada pelos herdeiros, traduz-se no aumento a arbítrio destes do valor dos bens descritos e avaliados no inventário, que assim se obrigam a levá-los no seu quinhão hereditário pelo preço que licitam – neste sentido vide, João António Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Vol. II, pag. 249.

         No caso em vertente discute-se a licitação havida em bens que tendo sido doados pelos inventariados a dois dos três herdeiros interessados foram licitados por interessados não donatários, sendo que tais bens embora relacionados na relação de bens não vinham nesta mencionados como bens doados.

         E, a questão que importa apreciar é a de saber se a licitação havida sobre tais bens em tal contexto deve ser anulada.

         Iniciaremos a análise de tal questão pela abordagem jurídica da relacionação dos bens doados e da licitação de bens de doados, por se nos afigurar que no seu discurso recursivo, mormente aquele que expressa na conclusão 56ª, a agravante H (…) deixa antever alguma confusão sobre o regime jurídico referente a tais matérias.

         O Art. 1365º do CPC, epigrafado de “Avaliação de bens doados no caso de ser arguida inoficiosidade”, prevê a possibilidade dos herdeiros legitimários declararem que pretendem licitar nos bens doados.

         Sobre tal normativo legal, escreveu o mesmo João António Lopes Cardoso, in ob. cit, pag. 250 a 252 o seguinte (que, não obstante extenso, iremos reproduzir atenta a clareza da explicação): “Largamente discutida antes da entrada em vigor do Código de 1939, a questão de saber se os bens doados pelo inventariado eram ou não susceptíveis de serem objecto de licitação veio a ter resposta afirmativa no seu art. 1406º (primeiro período), de redacção equivalente à que hoje se contém no art. 1365º, nº 1. Por isso tanto aquele como o actual diploma determinaram que ao inventário fossem chamados os donatários, conferentes ou não conferentes, submetendo os bens doados à relacionação, estimação e possível desapossamento dos beneficiados. Mas, claro está como o chamamento dos donatários e tudo quanto respeita à defesa das doações por sua parte só pode ter interesse na medida em que subsista eventual fundamento de redução ou revogação delas, é com vista a averiguar da inoficiosidade que a licitação vai operar. A licitação constitui meio de correcção de valores, enquanto os aumenta, e a rigorosa avaliação de todos os bens do autor da herança, nestes encorporados os doados, determina a quota disponível e leva a concluir pelo respeito ou pela ofensa das legítimas. Portanto, no rigor dos princípios, parece que a determinação dos valores dos bens doados não deve comportar-se de modo diferente ao estabelecido na lei quanto aos demais bens que constituem o património do inventariado: - avaliação, reclamação contra o excesso da avaliação e licitações. Mas a licitação, dada a estrutura que lhe assinala o art. 1371º, nº 1 do CPC, pode implicar o desapossamento do donatário quanto à coisa que lhe foi doada pelo inventariado, e isto verificar-se-á sempre que ele não possa ou não queira licitar. Daí que a lei, antes de mais, fie do arbítrio do donatário a possibilidade de tal desapossamento vir a ter lugar, outorgando-lhe o direito de opor-se à licitação da coisa doada. Se não se opõe, ela ficará consentida, sujeitando-se os bens doados às mesmíssimas vicissitudes dos demais bens da herança. Mas, se a oposição é deduzida, entram em conflito dois interesses: - o dos interessados que buscam valorar os bens doados com o devido rigor, e o do donatário que pretende impedir que essa valoração se obtenha através do mecanismo da licitação a que não pode ou não quer concorrer. As segundas avaliações actuam nesta emergência como justa medida dela, isto com vista a fixar o exacto valor dos bens doados, do mesmo passo que as licitações dos bens que não foram objecto de qualquer liberalidade determinaram o valor destes bens. O somatório de uns e outros valores, abatidos estes das dívidas da herança, nos precisos termos do art. 2162º, nº 1 do CC, define o valor global dela e consequente determinação das quotas legitimária e disponível. Depois, uma de duas: a) ou se conclui que não há lugar a redução da liberalidade; b) ou conclui-se o contrário. No primeiro caso, uma vez que o donatário não é obrigado a repor bens alguns, já não é possível submeter à licitação os bens que o inventariado lhe doou no puríssimo exercício de um seu direito incontestável; tais bens pertencem à pessoa a quem foram doados. Por isso o art. 1365º, nº 2 do CPC diz que “a declaração (da licitação em bens doados) fica sem efeito”, e o art. 1374º, a), manda adjudicá-la ao donatário. No segundo caso, como as doações, seja qual for o donatário, são redutíveis por inoficiosas se envolverem prejuízo da legítima dos herdeiros legitimários do doador (CC, arts. 2168º e 2169º), cumpre proceder a tal redução”, o que se fará nos termos previstos no nº 3 do art. 1365º do CPC.

         Também Domingos Silva Carvalho de Sá, in Do Inventário, Descrever, Avaliar e Partir, pág. 117, refere que o art. 1365º regula “a segunda avaliação de bens doados a requerimento dos interessados, que não o próprio donatário. … E não interessa que o donatário esteja ou não obrigado a conferir a doação, isto é, que esta seja ou não sujeita a colação. Os donatários só poderão ser desapossados dos bens doados pelo mecanismo da redução das liberalidades. Por isso, nesta fase do processo, pretende-se que os bens doados e os não doados atinjam o seu justo valor. Os interesses do donatário e dos demais interessados são conflituantes pelo que o legislador procurou estabelecer regras mediante as quais nenhuns deles possam sair prejudicados”.

         Do que se deixa dito há, pois, que concluir que os bens doados devem ser relacionados e sobre eles podem os interessados não donatários licitar.

         É claro que na relacionação desses bens deve constar na relação de bens a respectiva menção de doados, devendo aditar-se na relação de bens que foram objecto de doação em vida do inventariado através da competente escritura publica a favor do interessado a identificar.

         No caso em vertente, os bens em discussão foram relacionados pela cabeça de casal sem a menção de que se tratavam de bens doados e assim vieram a ser licitados.

         Tal circunstância, por si só, será motivo para a anulação das licitações havidas sobre tais bens?

         Vejamos.

         Os interessados não donatários ( H (…) e A (…) ) que licitaram em tais bens, manifestaram vontade de, através dessa licitação, compor os seus quinhões com os mencionados bens, a interessada H (…) com os bens constantes das verbas nºs 38, 39 e 43 e o interessado A (…) com os bens constantes das verbas nºs 37 e 45, bens esses que tais licitantes conheciam como tendo feito parte do património dos inventariados seus pais, sabendo ainda, ambos os interessados H (…) e A (…) que o bem constante da verba nº 45 ( que o interessado A (…) licitou juntamente com a verba nº 37 ) tinha sido doado verbalmente à interessada H (…)pelos inventariados pais de ambos em vida destes, ou seja, e, ainda, o interessado A (…) - como se inculca da posição que o mesmo assume nos autos de inventário – que os bens constantes das verbas nºs 38 e 39 se tratavam de bens que lhe haviam sido doados pelos inventariados seus pais em vida destes.

         Cientes, nos termos que se deixam expostos, do facto de tais bens se tratarem de bens doados, os mencionados interessados na conferência de interessados em que estiveram presentes e ambos assistidos por advogados permitiram a licitação nos bens de que eram donatários a outros interessados, assim demonstrando não se importar com o respectivo desapossamento desses bens, o que podiam ter evitado, querendo, opondo-se à licitação sobre tais bens nos termos do disposto no Art. 1365º Nº1 do CPC.

         Daqui resulta que o mero desconhecimento da interessada H (…) de que alguns dos bens integrantes das três verbas por ela licitadas conjuntamente se tratavam de bens doados ao interessado A (…), com o conhecimento e sem oposição do interessado donatário, não poderá, por si só, conduzir à anulação dessa licitação, da mesma forma que também o facto do bem integrante da verba Nº45 ter sido licitado na conferência de interessados por outro interessado com o conhecimento e sem oposição do respectivo donatário, não poderá levar à anulação da licitação havida sobre tal bem, desde logo, porque tratando-se a doação desse bem duma doação verbal feita á interessada H (…) a mesma é nula por inobservância de formalidade substancial ( Art. 947º Nº1 CC ), e, sem qualquer efeito, por isso, no inventário.

         Assim decidiu o tribunal recorrido e nada haveria a objectar, pois, os ónus e as limitações alegados até então pela interessada H (…) com vista à anulação da licitação em tais verbas apenas respeitavam ao facto dos bens que as integram se tratarem de bens doados e nada mais, o que, por si só, conforme já referido não poderia justificar a anulação da licitação em relação a tais verbas, pois, ao contrário do pretendido por aquela, dessa circunstância não adviriam ónus ou encargos susceptíveis de afectar a vontade da mesma aquando da licitação em tais bens e o montante por que o fez.

         A verdade é que já depois da decisão que indeferiu a anulação da licitação sobre as ditas verbas nºs 38, 39 e 43 e ainda antes da decisão sobre a requerida anulação da licitação das verbas nºs 37 e 45, a mesma interessada H (…), referindo-se novamente aquelas verbas nºs 38, 39 e 43, a propósito da doação feita das duas primeiras ao interessado A (…), veio adiantar, na tomada de posição que assumiu nos autos em 20.10.2011, que os referidos prédios urbanos que integram as bens 38 e 39 objecto da doação feita ao mencionado interessado Am (...)em 8 de Abril de 1992 se encontram hipotecados a favor do banco que financiou a construção que neles se encontra edificada.

         Foi deste modo que a interessada e licitante H (…) trouxe pela primeira aos autos o conhecimento do facto de estar constituída sobre os referidos prédios doados ao interessado A J(...)em que a mesma licitou um hipoteca bancária, à qual, mais pormenorizadamente, se refere nas alegações e conclusões do recurso e que se comprova pela certidão do registo que junta com o recurso, da qual, efectivamente, se afere o registo de hipoteca sobre tais bens, efectuado em 17.01.1994.

         Perante tais elementos, equaciona-se então a situação que se traduz em a interessada H (…) ter licitado sobre os imóveis que integram o conjunto das verbas Nºs 38, 39 e 43, dois deles doados ao interessado A (…) e sobre os quais foi por este constituída uma hipoteca voluntária para garantia de financiamento bancário contraído por ele junto da CGD, situação essa que, sem dúvida, assenta em circunstâncias que não foram ponderadas pelo tribunal de 1ª instância, nem poderiam ser porque eram desconhecidas nos autos aquando da prolação da decisão que indeferiu a anulação da licitação sobre as ditas verbas nºs 38, 39 e 43.

         Ora, tais novos elementos, sem dúvida que poderiam ter afectado a manifestação de vontade por parte da interessada H (…) aquando da licitação naquelas verbas nºs 38, 39 e 43, desde logo porque, a manter-se em vigor essa hipoteca voluntária ( o que se desconhece, visto que do referido doc. o respectivo registo remonta a 17.01.1994 ), o valor porque foram licitados os imóveis constantes das verbas 38 e 39 poderia e poderá não corresponder aquele que foi tido por conveniente por aquela licitante aquando dessa licitação no pressuposto de que se tratavam de imóveis sem quaisquer ónus ou limitações ( se se mostrar por pagar, no todo em parte, o financiamento que aquela hipoteca se destinou a garantir), e, assim  sendo, também afectar o valor global da licitação da restante  verba  ( Nº 43 ) licitada em conjunto com aquelas ( 38 e 39 ).

         Assim, integrando-se os referidos imóveis num lote de bens licitados em conjunto pela interessada H (…) ( verbas Nºs 38, 39 e 43 ), afigura-se-nos estarmos em presença de uma situação susceptível de poder fundamentar a anulação do acto de licitação devido a falta ou vício da vontade, a qual só poderá ser decidida  depois de se apurar a actualidade e os exactos contornos da referida hipoteca voluntária constituída sobre o imóvel que integra a verba nº 38, no tange ao valor do financiamento que a mesma se destinou a garantir, elementos esses a averiguar pelo tribunal de 1ª instância.

         Com efeito, o artigo 1372º do Código de Processo Civil refere-se a uma particular situação de anulação do acto de licitação a requerimento do Ministério Público, motivada pela ideia de defesa do interesse de incapazes ou equiparados.

         Fora dessa situação, a anulação do acto de licitação é regida em termos substantivos pela lei geral relativa à falta e aos vícios da vontade a que se reportam os artigos 240º a 257º do Código Civil – vide, neste sentido, Ac. do STJ, de 11-10-2005, disponível in www.dgsi.pt.

         Em face do que se deixa dito, nada há a censurar ao despacho recorrido que indeferiu a anulação da licitação sobre as verbas nºs 37 e 45, o qual, por isso se mantém, revogando-se o despacho que inferiu a anulação da licitação sobre as verbas nºs 38, 39 e 43, o qual deverá ser substituído por outro que, depois de averiguados os exactos e actuais contornos da hipoteca voluntária constituída sobre o imóvel que integra a verba nº 38 para os efeitos supra aduzidos, decidirá do fundamento ou não para a anulação dessa licitação.

         Quanto à condenação da agravante H (…) em custas pelos dois considerados incidentes suscitados a propósito da anulação da licitação das referidas verbas nºs 38, 39 e 43, no primeiro dos requerimentos por ela apresentado, e nºs 37 e 45, no segundo desses requerimentos, afigura-se-nos que deverá manter-se por força da improcedência dos fundamentos por ela invocados que conduziram ao respectivo indeferimento nos termos que se deixaram expostos, porquanto, não poderá deixar de considerar-se uma ocorrência anormal ao desenvolvimento a suscitada anulação das licitações na fase processual em que ocorreu e que se colhe do relatório supra, condenação essa que se mostra justificada à luz do disposto nos Art. 1348, n° 6 do CPC e 16°, n° 1 do CCJ. 
         Já quanto à condenação da agravante como litigante de má fé, pretende a mesma que não praticou no processo de inventário qualquer acto ilícito ou reprovável  susceptível de a fazer incorrer em má fé, pois, limitou-se a apresentar dois requerimentos, o primeiro deles a dar conhecimento da doação a favor do interessado A (…)l e a requerer, em consequência, a anulação da licitação relativamente às verbas por si licitadas, por ser brutalmente prejudicada, pois havia licitado de boa fé e desconhecia que as verbas em causa haviam sido por escritura pública alteradas, nas áreas, na configuração e existiam ónus e encargos que sobre eles incidiam, e, o segundo, no exercício do contraditório face à confissão do interessado A (…) requerer a eliminação das verbas 37 e 45, também licitadas em conjunto por tal interessado ( por constituírem um único prédio na Conservatória do Registo Predial), por estas lhe terem sido doadas verbalmente pelos seus pais, existindo assim um erro na forma de arrolamento (deviam ter sido levadas às verbas doadas e por lapso foram identificadas como bens da herança).

         A má-fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 266º, nº 1, 266º-A e 456º, nº 2, c), do CPC, impõem às partes.

         Aliás, no intuito de moralizar a actividade judiciária, o artigo 456º, nº 2, do CPC, oriundo da revisão de 1995, alargou o conceito de má fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência de se não ter razão, motivo pelo qual a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave.

         Escreveu-se na decisão recorrida na parte que dela respeita à condenação da agravante H (…) como litigante de má-fé o seguinte:

         “ De resto, cumpre condenar ainda todos os três interessados, ou seja, H (…), P (…) e A (…), em multa processual atenta a conduta de todos como litigantes de má fé, atendo tudo o que supra se expôs e ainda o nosso anterior despacho já aqui sobejamente referido de fls. 1801 e ss., ou seja, porque nos termos do artigo 456º/1 e 2-b) e d), do CPC, porque como se conclui à saciedade, todos de modo propositado (sendo esta a convicção deste tribunal, até porque acompanhamos in loco todos os trâmites fundamentais destes autos e ainda as várias sessões de conferência de interessados aqui registadas) omitiram factos relevantes para a decisão da causa, procurando impedir a descoberta da verdade da causa.

         Assim sendo e atenta a litigância de má fé, condeno cada um dos interessados em multa processual de 6 UC’s cada um.

         Notifique. “
         A primeira questão que, desde logo, se suscita a respeito da condenação da agravante H (…) e também do agravante P (…) como litigantes de má fé, a propósito do que unicamente este último sustenta o seu discurso recursivo, é a de que essa condenação dos ora agravantes como litigantes de má fé foi decidida pelo tribunal a quo sem que antes os mesmos tivessem tido oportunidade de refutar, querendo, os motivos em que o tribunal veio a fundamentar essa condenação, a qual, como se colhe dos autos, foi decidida oficiosamente pelo tribunal, pois que, nenhum dos interessados no processo de inventário onde tal condenação foi decidida requerer a aplicação de tal sanção aos interessados Helena Maria e Pedro Miguel.

         A este propósito, defendem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 197, em nota ao art. 456º do Código de Processo Civil, que “A condenação como litigante de má fé deve ser precedida de discussão contraditória, em obediência ao disposto no art. 3-3, que proíbe as decisões-surpresa. Por isso, quando não tenha sido objecto de discussão entre as partes, designadamente em alegação que preceda a decisão, deve o tribunal, antes de a proferir, proporcionar o contraditório, ouvindo, nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir a condenação como litigante de má fé.”    

         Assim decidiu o Tribunal Constitucional, com base ainda nas disposições anteriores à revisão de 1995-1996  do Código  (Acs. nº440/94, de 7.6.94, II Série do DR de 1.9.94, n.° 103/95, II Série do DR de 17.6.95, e n.°357/98, de 12.5.98, de 12.5.98, II Série do DR de 16.7.98)”.

            Ao não ter sido dada aos agravantes H (…) e P (…), prévia oportunidade de se pronunciarem sobre a intenção do julgador de os sancionar como litigantes de má fé em multa – já que estando em causa a omissão de formalidade relacionada com o direito de defesa, sendo ilegal a proibição de indefesa, sempre tal omissão tem influência na decisão deste concreto aspecto da causa.  

            A condenação da parte como litigante de má fé, sem a sua prévia audição, violaria os princípios constitucionais de acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados na Lei Fundamental (cfr. os mencionados Acórdãos do Tribunal Constitucional cuja doutrina foi reafirmada mais recentemente no Acórdão nº498/2011, de 26.10.2011, in DR. 2ª Série, nº231, de 2.12.201 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.02.2002, in CJ/STJ 2002, I, 111.

            Assim, inobservada que foi uma regra processual crucial, e porque essa omissão gera nulidade, não apreciará este Tribunal a predita questão substantiva da litigância de má fé suscitada quer no recurso da agravante Helena Maria quer no recurso do agravante Pedro Miguel, impondo-se a anulação do despacho recorrido datado de 11.11.2011 na parte em que condena os ora agravantes como litigantes de má fé na multa processual de 6 Ucs cada um, para que a 1ª instância dê cumprimento ao disposto no n.º3 do Art. 3º do Código de Processo Civil, relativamente aos agravantes, e, estabelecido o contraditório, decida em conformidade – vide no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 11-09-2012, disponível in www.dgsi.pt.


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         IV- Sumário ( Art. 713º Nº7 C.P.C. )

         1. Os bens doados devem ser submetidos a relacionação no inventário com essa menção.

         2. Se o donatário de bens doados não se opuser à licitação nesses bens por parte dos outros interessados, aquela fica consentida e tem lugar o desapossamento daquele em relação a tais bens.

         3. Considera-se existir consentimento do donatário a respeito da licitação em bens doados quando este, estando presente na conferência de interessados onde tem lugar essa licitação, não expressa por qualquer forma, oposição a esta.

         4. Fora da situação prevista no artigo 1372º do Código de Processo Civil, a anulação do acto de licitação é regida em termos substantivos pela lei geral relativa à falta e aos vícios da vontade a que se reportam os artigos 240º a 257º do Código Civil.

         5. A condenação da parte como litigante de má fé, sem a sua prévia audição, viola os princípios constitucionais de acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados na Lei Fundamental.

            6. A inobservância dessa prévia audição, é geradora de nulidade e conduz à anulação do despacho que proferiu a condenação por litigância de má fé.


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         V- Decisão

         Assim, em face do exposto, acorda-se em:

         a) julgar parcialmente procedente o primeiro agravo interposto pela recorrente H (…), revogando-se o despacho recorrido na parte em que indeferiu a anulação das licitações sobre as verbas nºs 38, 39 e 43, o qual deverá ser substituído por outro que diligencie pela obtenção dos exactos e actuais contornos da hipoteca voluntária constituída sobre os imóveis que integram as verbas nºs 38 e 39 para os efeitos supra aduzidos, devendo depois a 1ª instância decidir da existência de fundamento ou não para a anulação dessa licitação.

         b) julgar parcialmente procedente o segundo agravo interposto pela recorrente H (…), na medida em que se mantém a decisão de indeferimento da anulação da licitação sobre as verbas nºs 37 e 45 e de condenação da mesma nas custas do respectivo incidente.

         c) anular o despacho recorrido datado de 11.11.2011 na parte em que condena a agravante H (…) e o agravante P (…) como litigantes de má fé na multa processual de 6 Ucs, a fim de que, após observância do contraditório, se decida essa questão em conformidade.

         Custas, na proporção de metade, pela agravante H (…) e pela massa hereditária

        

                                                                   

Maria José Guerra (Relatora)

Albertina Pedroso

Virgílio Mateus