Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO SANTOS | ||
Descritores: | VENDA ANULAÇÃO FUNDAMENTOS IRREGULARIDADE PUBLICIDADE | ||
Data do Acordão: | 09/17/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | ALCANENA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 908º, N.º 1 DO CPC | ||
Sumário: | I - O artigo 908º, n.º 1 do CPC contempla como fundamentos de anulação da venda apenas os vícios do direito transmitido ou os vícios da coisa transmitida. II – As irregularidades dos actos que publicitaram a venda estão fora da previsão do n.º 1 do artigo 908º do CPC. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Nos presentes autos de insolvência foi vendida, em 28 de Março de 2012, à sociedade A..., Limitada, a fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 1º andar D, composto por 4 divisões assoalhadas, cozinha, 2 casas de banho, despensa e hall, sito na (...) Alcanena, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcanena sob a ficha n.º (...), da freguesia de Alcanena, e inscrita na matriz sob o artigo n.º (...) da mesma freguesia. Em 21 de Janeiro de 2013, a sociedade compradora pediu a nulidade da venda com a seguinte alegação: encontrava-se apreendida nos autos de insolvência somente metade da fracção que se propôs adquirir; tinha sido publicitada a venda da integridade de tal imóvel; à requerente só interessava a fracção no seu todo. O pedido de anulação da venda foi indeferido pelo tribunal a quo. As razões da decisão foram, em síntese, as seguintes: A sociedade A..., Limitada, não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição do despacho por outro que determinasse a nulidade da publicidade da venda e consequentemente da venda da verba n.º 1. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: Não houve resposta. * A exposição acabada de fazer mostra que a recorrente pede a revogação e a substituição do despacho recorrido por outro que determine a nulidade da publicidade da venda e, consequentemente, da venda da verba n.º 1 à ora recorrente. Uma vez que o pedido que o despacho recorrido indeferiu foi o pedido de nulidade da venda, e não o pedido de nulidade da publicidade da venda e que a venda e a publicidade da venda, embora estreitamente relacionados entre si, são actos processuais diferentes, importa começar por averiguar se a recorrente pode arguir em sede de recurso a nulidade da publicidade da venda e alcançar através dela a satisfação da pretensão que o despacho recorrido indeferiu. A resposta é negativa. Como é sabido, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais [artigo 676º, n.º 1, do CPC – a referência, neste acórdão ao CPC deve entender-se feita para o CPC que vigorava na altura em que foi proferida a decisão e que, entretanto, foi revogado pela lei n.º 41/2003, de 26 de Junho], o que significa, por um lado, que o que é objecto do recurso é a decisão recorrida e não a questão por esta julgada e, por outro, que está vedado ao recorrente servir-se do recurso para deduzir novas questões, ou seja, novas pretensões ou novos meios de defesa, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso dessas questões [artigo 660º, n.º 2, do CPC aplicável aos acórdãos por força da remissão do artigo 713º, n.º 2, do CPC]. No caso, embora a recorrente tenha indicado, no requerimento com que interpôs o recurso, que a decisão com que não se conformava era a que tinha indeferido o pedido nulidade da venda [decisão com a referência 1067923], terminou as conclusões da alegação pedindo a revogação do despacho recorrido por decisão que determinasse a nulidade da publicidade da venda e, consequentemente, da venda da verba n.º 1 à recorrente. O pedido de nulidade da publicidade da venda é uma pretensão nova. Nova no sentido de que foi deduzida apenas em sede de recurso, quando podia e devia ter sido deduzida perante o tribunal a quo. Vejamos. A arguição da nulidade da publicidade da venda estava sujeita às regras gerais sobre a nulidade dos actos processuais previstas nos artigos 201º, 203º e 205º, todos do CPC. Dos n.ºs 1 e 3 do artigo 205º resulta o seguinte quanto ao tribunal perante o qual deve ser arguida a nulidade dos actos processuais: Em princípio, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal onde foi cometida a nulidade. Só assim não será quando o processo onde for cometida a nulidade processual for expedido em recurso antes de findar o prazo para arguir a nulidade. Nesta hipótese, pode a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição. Segue-se deste regime que a recorrente só poderia arguir a nulidade da publicitação da venda se o processo tivesse sido expedido em recurso antes de findar o prazo para a recorrente arguir a nulidade. Sucede que esta condição não está verificada, pois este processo foi expedido em recurso em 17 de Julho de 2013 [fls. 85] e o prazo para a recorrente arguir a nulidade da publicitação da venda terminou em 31 de Janeiro de 2013, como se verá de seguida. O prazo para a arguição das nulidades previstas pelo n.º 1 do artigo 201º do CPC é o seguinte [n.º 1 do artigo 205 do CPC]. Se a parte estiver presente por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o acto não terminar. Se a parte não estiver presente por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, o prazo para a arguição – que é o prazo geral de 10 dias fixado no n.º 1 do artigo 153º do CPC – conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dele pudesse conhecer, agindo com a devida diligência. No caso, embora ignoremos quando é que a recorrente teve conhecimento dos factos que fundamentam a arguição da nulidade – factos que consistem, em síntese, na omissão de informação de que a fracção posta à venda era objecto de compropriedade, pertencendo metade indivisa à insolvente e metade indivisa a B... -, sabemos, no entanto, que em 21 de Janeiro de 2013, arguiu a nulidade da venda com a alegação de que nos presentes autos havia sido apreendia apenas metade da venda e que foi posta à venda a totalidade do imóvel. Com base nesta arguição, é de presumir que, pelo menos na referida data, o requerente sabia que a fracção posta à venda estava em situação de compropriedade, situação esta que não era mencionada nos editais e anúncios através dos quais se publicitou a venda. A partir da referida data dispunha de 10 dias, ou seja, até ao dia 31 de Janeiro de 2013, para arguir a nulidade da publicidade da venda. Uma vez que o processo foi expedido em recurso em 17 de Julho de 2013, é inequívoco que estava vedado à recorrente arguir a nulidade da publicidade da venda em sede de recurso. Assim, não irá conhecer-se da arguição de nulidade da publicidade da venda. Excluída esta questão do objecto do conhecimento do tribunal, a questão a que importa dar resposta é a de saber se, ao indeferir o pedido de nulidade da venda, o despacho recorrido fez uma incorrecta interpretação e aplicação do artigo 890º n.º 3, do artigo 892º, do n.º 1 do artigo 908º, todos do CPC, e do artigo 164º do CIRE. Quanto aos factos relevantes para a decisão desta questão, eles são constituídos pelos descritos no relatório e ainda pelos seguintes: * Expostos os factos passemos à apreciação dos fundamentos do recurso. O principal fundamento do recurso é constituído pela alegação de que, sendo os anúncios e os editais, que publicitaram a venda da fracção autónoma, omissos quanto à situação de compropriedade da fracção autónoma que foi objecto de venda e quanto à identificação dos comproprietários, devia o tribunal a quo ter declarado nula a venda, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 890º, n.º 3, e 908º, n.º 1, ambos do CPC, aplicáveis por força do artigo 17º do CIRE. Antes de mais, não podemos deixar de registar que não foi esta a argumentação que levou a recorrente a pedir a declaração de nulidade da venda. Recorde-se que o que levou a recorrente a pedir a declaração de nulidade foi a discrepância entre o bem que estava apreendido no processo de insolvência [que era metade da fracção autónoma] e o bem cuja venda fora publicitada [fracção autónoma na sua totalidade], sendo que, referiu na altura a ora recorrente, só lhe interessava a “fracção no seu todo”. Vendo naufragar a sua pretensão com esta argumentação, a recorrente voltou-se para nova argumentação[1]. Nova argumentação que está votada ao fracasso. Vejamos. Nos termos do artigo 908º, n.º 1, do CPC – aplicável à venda no processo de insolvência por força da remissão efectuada pelo artigo 17º do CIRE - se, depois de efectuada a venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir no processo de execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sendo aplicável o artigo 906º do Código Civil. Vê-se da norma acabada de transcrever que o comprador tem a faculdade de pedir a anulação da venda quando tenha havido erro da sua parte. Erro sobre a existência de algum ónus ou limitação a que estiver sujeito o direito transmitido ou erro sobre a coisa transmitida. O 1º erro respeita aos vícios do direito transmitido; o 2º aos vícios da coisa transmitida. No que diz respeito aos vícios do direito, os “ónus ou limitação” a que estiver sujeito o direito transmitido só relevam como fundamento de anulação se não tiverem sido tomados em consideração no momento da venda e se excederem os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria do que foi transmitido. Como exemplo de limitação ao direito transmitido cita-se o direito pessoal de gozo que não deva caducar com a venda e como exemplo de ónus o ónus de redução eventual de doação sujeita a colação [José Lebre de Freitas, A acção executiva Depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, página 342, nora 35]. Como exemplos de ónus ou limitações que não excedem os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, o autor citado aponta na mesma obra, página 343, nota 36, os seguintes: “as limitações gerais ao direito de propriedade, restrições provenientes de providências administrativas gerais e abstractas, ónus resultantes de planos de urbanização e as servidões legais não constituídas”. Quanto ao erro sobre a coisa transmitida é necessário, para relevar para efeitos de anulação, que provenha da falta de conformidade entre a coisa que tenha sido vendida e aquela que foi anunciada. Falta de conformidade que tanto pode dizer respeito à identidade da coisa como às suas qualidades. Fora da previsão do n.º 1 do artigo 908º do CPC estão as nulidades relativas a actos do processo de execução. Embora estas nulidades possam fazer com que a venda fique sem efeito, a previsão das que têm este efeito encontra-se no artigo 909º, designadamente nas alíneas b) e c) do n.º 1 [respectivamente, falta ou nulidade da citação do executado e anulação da venda nos termos do artigo 201º]. Há, no entanto, uma diferença entre os fundamentos de anulação da venda previstos no n.º 1 do artigo 908º e os constantes do artigo 909º. Enquanto aqueles visam a defesa do comprador, razão pela qual só a ele aproveita, os previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 909º aproveitam, respectivamente, ao executado ou a uma das partes no processo [a favor deste entendimento cita-se José Lebre de Freitas, na obra supra citada página 344]. Uma vez que a norma do n.º 1 do artigo 908º contempla, como fundamentos de anulação da venda, ou vícios do direito transmitido ou vícios da coisa transmitida, é bom de ver que ela não dá guarida à pretensão da recorrente pois esta radica exclusivamente em alegadas irregularidade do conteúdo dos anúncios e do edital, ou seja, dos actos processuais que publicitaram a venda. Segue-se daqui que não colhe contra a decisão recorrida a alegação segundo a qual a omissão da situação de compropriedade e da identificação dos comproprietários nos anúncios e no edital importava a limitação do direito transmitido, pois, por força dessa omissão, nada impedia que terceiros viessem a mover-lhe acção de preferência ao abrigo do disposto no artigo 892º, n.º 4, do CPC [16ª conclusão]. A recorrente labora em manifesto erro ao relacionar a possibilidade da acção de preferência com as alegadas irregularidades dos anúncios e do edital. É que o que dá origem à acção de preferência é o incumprimento do dever de notificação dos preferentes para exercerem o seu direito [artigos 892º, n.º 1 e 2, do CPC]. Assim, não havendo qualquer relação causal entre as irregularidades do conteúdo dos anúncios e do edital e a acção de preferência, não se vê como se pode sustentar que tais irregularidades constituíram uma limitação ao direito de propriedade transmitido. Também não colhe contra a decisão recorrida a alegação de que a circunstância de os anúncios e o edital não mencionarem a situação de compropriedade da fracção e a identificação dos comproprietários faz com que o imóvel não esteja livre de ónus ou encargos [18ª conclusão]. Uma vez que a recorrente não concretiza os ónus ou encargos que alegadamente incidem sobre o direito que lhe foi transmitido e como não cabe ao tribunal entrar em suposições ou conjecturas sobre o que terá levado a recorrente a afirmar que o imóvel não está livre de ónus ou encargos, estamos perante uma alegação destituída de qualquer fundamento. Também não colhe contra a decisão recorrida a alegação de que os anúncios e o edital estão desconformes com o bem vendido [20ª conclusão]. Diga-se que compreende-se mal esta alegação, à luz do princípio da boa fé processual [artigo 266º-A do CPC], uma vez que a recorrente não pode ignorar que o bem que foi vendido foi a totalidade da fracção autónoma e o bem cuja venda foi anunciada foi precisamente a totalidade da fracção autónoma. Conclui-se, assim, que a decisão recorrida, ao indeferir o pedido de nulidade da venda, não violou nem o artigo 890º, n.º 3, nem o artigo 908º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil. Como não violou o artigo 890º e o n.º 3 do artigo 892º, ambos do CPC e o artigo 164º do CIRE, sendo que, em relação a estas normas, não faz sequer sentido imputar a sua violação à decisão recorrida. Com efeito, em relação a qualquer decisão recorrida, só faz sentido imputar-lhe a violação das normas que ela tenha aplicado como fundamento jurídico do que foi decidido [artigo 685º-A, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC]. Ora, o exame da decisão mostra, sem qualquer dúvida, que as normas atrás indicadas não constituíram fundamento jurídico do indeferimento do pedido de nulidade da venda. Por todo o exposto, é de manter a decisão recorrida. * Decisão: Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida. * As custas do recurso serão suportadas pela recorrente * Emídio Santos (Relator) Catarina Gonçalves Maria Domingas Simões
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