Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
513/10.6TBACN-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: VENDA
ANULAÇÃO
FUNDAMENTOS
IRREGULARIDADE
PUBLICIDADE
Data do Acordão: 09/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 908º, N.º 1 DO CPC
Sumário: I - O artigo 908º, n.º 1 do CPC contempla como fundamentos de anulação da venda apenas os vícios do direito transmitido ou os vícios da coisa transmitida.

II – As irregularidades dos actos que publicitaram a venda estão fora da previsão do n.º 1 do artigo 908º do CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Nos presentes autos de insolvência foi vendida, em 28 de Março de 2012, à sociedade A..., Limitada, a fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 1º andar D, composto por 4 divisões assoalhadas, cozinha, 2 casas de banho, despensa e hall, sito na (...) Alcanena, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcanena sob a ficha n.º (...), da freguesia de Alcanena, e inscrita na matriz sob o artigo n.º (...) da mesma freguesia.

Em 21 de Janeiro de 2013, a sociedade compradora pediu a nulidade da venda com a seguinte alegação: encontrava-se apreendida nos autos de insolvência somente metade da fracção que se propôs adquirir; tinha sido publicitada a venda da integridade de tal imóvel; à requerente só interessava a fracção no seu todo.

      O pedido de anulação da venda foi indeferido pelo tribunal a quo.

      As razões da decisão foram, em síntese, as seguintes:
1. O administrador da insolvência fora também encarregado de proceder à venda da metade do imóvel que estava penhorada no processo de execução que corria termos no tribunal recorrido sob o n.º 432/06.1tbacn e nesse processo de execução foi determinado que se procedesse à venda do sobredito imóvel, no âmbito destes autos de insolvência, na totalidade.
2. A circunstância de a adquirente não ter sido alertada especificamente para este facto em nada bulia com a validade da venda efectuada, já que tal não obstaria ao registo da aquisição a seu favor;
3. A identidade dos proprietários não era nenhum ónus ou limitação que devesse ser tomada em consideração nem se estava perante um caso de erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade com o bem vendido com o que foi objecto dos editais e anúncios, únicos fundamentos legais que podem sustentar, de harmonia com o preceituado no artigo 908º do CPC, a anulação da venda.

      A sociedade A..., Limitada, não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição do despacho por outro que determinasse a nulidade da publicidade da venda e consequentemente da venda da verba n.º 1.

      Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Por muito respeito que mereça o vertido no despacho com a referência 1067923, que conheceu do requerimento apresentado pela ora recorrente em 16/04/2012, com o mesmo não se pode concordar.
2. Através de requerimento (referência 9910711) junto do tribunal a quo a recorrente requereu a declaração de nulidade da venda da verba n.º 1, a qual lhe foi adjudicada, porquanto a mesma se encontrar arrendada e não ter sido feita referência no Edital/anúncio de venda a existência de tal encargo, sob a fracção. Sucede que, no âmbito das diligências de prova ordenadas por via do Acórdão proferido por esse Venerando Tribunal de Relação, em 23/10/2012 (vide processo 513/10.6TBACN-G.C1 - 1ª Secção), apenas metade do prédio pertence à massa insolvente.
3. Isto é, o prédio urbano adjudicado à ora recorrente é detido em compropriedade pela forma seguinte: metade indivisa a favor da insolvente C... e apreendida a favor dos presentes autos; metade indivisa a favor de B... e penhorada a favor do processo executivo n.º 423/06.1TBACN, da Secção Única do tribunal judicial de Alcanena.
4. Porém, a publicidade da venda não reflecte esta realidade do prédio, designadamente os anúncios publicados não fazem qualquer referência ao facto do prédio ser detido em compropriedade pelos insolventes e por uma terceira pessoa que nenhuma relação tem com os autos de insolvência.
5. Na verdade, o despacho de que se recorre sopesou o facto de ter sido proferido no processo executivo despacho que determinou a venda da totalidade do prédio, e que aqui citamos “Efectivamente, e por força da natureza do processo de insolvência, determino que a venda do imóvel prossiga na totalidade (e após a venda concretizar-se-á a quantia correspondente à ½ da aqui executada para satisfação deste exequente) nomeando o sr administrador como encarregado da venda. No mais, deve a execução prosseguir nos termos solicitados pelo exequente devendo notificar-se a srª solicitadora do teor deste despacho e do requerimento referência supra.”
6. Ainda que tenha sido ordenada a venda do prédio na totalidade, o certo é que nenhuma referência é feita ao facto do prédio ter dois proprietários, a insolvente nestes autos e uma terceira pessoa.
7. Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos concordar com o vertido no douto despacho, pois o facto de não ter sido publicitado que o prédio tem dois proprietários distintos, que não os insolventes, afecta a validade da venda, inquinando-a de nulidade tal como invocado pela ora recorrente.
8. O n.º 3 do artigo 890º da CPC estipula que “Do anúncio constam o nome do executado, a identificação do agente de execução, o dia, hora e local da abertura das propostas, a identificação sumária dos bens e o valor a anunciar para a venda, apurado nos termos do n.º 2 do artigo anterior.
9. Desde logo, os anúncios publicados violam o referido artigo, pois nenhuma referência fazem ao facto do bem ser detido em compropriedade por dois sujeitos distintos.
10. Apesar de ter sido ordenado no processo executivo que a venda fosse efectuada na totalidade nos autos de insolvência, tal não dispensa o cumprimento do disposto na lei, identificando claramente o bem em venda e os titulares da propriedade do mesmo.
11. O artigo supra referido é taxativo ao elencar que do anúncio consta o nome do executado e a identificação do bem.
12. Tal obrigação advém do facto da notícia da venda interessar não só aos credores desconhecidos que possam apresentar-se ao concurso de pagamento do produto da venda, como também aos eventuais interessados na compra dos bens, sendo certo tanto ao exequente como ao executado e aos credores munidos de garantia real aproveita o maior valor possível da venda.
13. No caso a identificação dos proprietários do bem em venda (executada e insolventes) tem relevância para a ora recorrente na medida não só a da correcta identificação do bem, mas também para acautelar a existência de terceiros com eventuais direitos de preferência ou outros sobre o bem cuja venda foi anunciada.
14. Além de que, como já se disse, o prédio é detido em compropriedade, e nos termos do artigo 1409º, n.º 1 do Código Civil o comproprietário goza de direito de preferência na venda.
15. Os titulares de direitos sobre o prédio ficaram vedados de participar na praça, dado o anúncio de venda ter omitido o nome do executado proprietário do bem.
16. Sucede que o que a recorrente não pode tolerar é que não tendo sido cumpridos os formalismos de publicidade da venda, veja limitado o seu direito de propriedade sobre o bem, pois, nada impede que venham a mover-lhe acção de preferência, ao abrigo do disposto no artigo 892º, n.º 4 do CPC.
17. O objecto social da recorrente é a compra e venda de imóveis, sendo que, conhecendo que não foram cumpridos os formalismos de publicidade da venda, não está a acautelar os seus interesses enquanto adquirente, nem as legitimas expectativas daqueles a quem irá no futuro vender o imóvel, pois potencialmente podem perder a titularidade sobre o prédio.
18. Não restam dúvidas que aquando da publicação dos anúncios, o Sr. Administrador de Insolvência tinha conhecimento que a fracção era detida em compropriedade, metade pelos insolventes e metade por terceira pessoa e ainda assim não fez constar dos anúncios tal ónus, criando nos proponentes a errada convicção de que o imóvel estaria livre de ónus ou encargos, o que não acontecia nem acontece.
19. Pelo exposto, salvo o devido respeito, que é muito, mal andou o Tribunal “a quo” quando considerou que “ A mera circunstância de a adquirente não ter sido alertada, especificadamente, para esse fato em nada bule com a validade da venda efectuada ….” Não é menos verdade que a identidade do(s) proprietário(s) não é nenhum ónus ou limitação que devesse ser tomado em consideração ou estamos perante um caso de erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade do bem vendido com o que foi objecto dos editais e dos anúncios.”
20. Entendemos que, de facto, os anúncios e os editais estão desconformes com o bem vendido e com o previsto na lei para a publicidade a dar à venda nos termos do artigo 890º do CPC.
21. Não resulta dos anúncios ou dos editais, cujas cópias foram juntas aos autos, (i) que tenha sido dado publicidade ao nome da executada proprietária de metade do bem adjudicado à ora recorrente, (ii) que a verba em venda não pertencia na totalidade aos insolventes, (iii) que a venda estava a ser efectuada na totalidade pois metade indivisa da verba em venda encontrava-se penhorada nos autos de execução em que é executada B..., (iiii) quem são comproprietários da verba em venda.
22. Como tal, sendo o anúncio de venda e os editais omissos quanto a elementos essenciais da identificação dos titulares da verba em venda, não tendo publicitado que o imóvel é detido em compropriedade, não havendo referência ao nome do comproprietário B..., deveria o Tribunal “a quo” ter declarado nula a venda, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 890º, n.º 3, 908º, n.º 1 CPC, aplicáveis por força do artigo 17º do CIRE.
23. Mais, não tendo sido dada informação quanto à existência de tal fato, em tempo útil para os interessados, incluindo a recorrente, de formar correctamente a sua vontade com vista à apresentação das propostas, não procedeu o Sr. AI à publicação da informação sobre a mencionada circunstância.
24. A referida omissão de informação, relevante no âmbito da publicitação da venda para que a recorrente pudesse formar correctamente a sua vontade com vista à apresentação da respectiva proposta e bem assim para acautelar eventuais exercícios de direitos de preferência, constitui nulidade com relevância, a que se reporta o artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil.
25. Impõe-se, por isso, a declaração de nulidade da publicidade da venda por omissão das formalidades prevista no artigo 890º, n.º 3 do CPC, com a consequente anulação do ato de adjudicação à recorrente da referida verba.
26. Como tal, as omissões de publicidade cometidas pelo Sr. AI e pelo Tribunal a quo devem ser sancionadas como nulidade porque susceptíveis de influir no exame e decisão da causa.
27. O despacho em crise, ao julgar improcedente a arguição de nulidade da venda, fez uma incorrecta interpretação e aplicação das normas do 890º, n.º 3, 892º, o nº 1 do artigo 908º do CPC e do 201º n° 1 do CPC (aplicável ex. vi do artigo 17 do CIRE) e do artigo 164º, do CIRE, pelo que, não poderá deixar de ser revogado e substituído por outro que determine a nulidade da publicidade da venda e, consequentemente, da venda da verba n.º 1 à ora recorrente.

Não houve resposta.


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      A exposição acabada de fazer mostra que a recorrente pede a revogação e a substituição do despacho recorrido por outro que determine a nulidade da publicidade da venda e, consequentemente, da venda da verba n.º 1 à ora recorrente.

Uma vez que o pedido que o despacho recorrido indeferiu foi o pedido de nulidade da venda, e não o pedido de nulidade da publicidade da venda e que a venda e a publicidade da venda, embora estreitamente relacionados entre si, são actos processuais diferentes, importa começar por averiguar se a recorrente pode arguir em sede de recurso a nulidade da publicidade da venda e alcançar através dela a satisfação da pretensão que o despacho recorrido indeferiu.   

A resposta é negativa.

Como é sabido, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais [artigo 676º, n.º 1, do CPC – a referência, neste acórdão ao CPC deve entender-se feita para o CPC que vigorava na altura em que foi proferida a decisão e que, entretanto, foi revogado pela lei n.º 41/2003, de 26 de Junho], o que significa, por um lado, que o que é objecto do recurso é a decisão recorrida e não a questão por esta julgada e, por outro, que está vedado ao recorrente servir-se do recurso para deduzir novas questões, ou seja, novas pretensões ou novos meios de defesa, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso dessas questões [artigo 660º, n.º 2, do CPC aplicável aos acórdãos por força da remissão do artigo 713º, n.º 2, do CPC].

No caso, embora a recorrente tenha indicado, no requerimento com que interpôs o recurso, que a decisão com que não se conformava era a que tinha indeferido o pedido nulidade da venda [decisão com a referência 1067923], terminou as conclusões da alegação pedindo a revogação do despacho recorrido por decisão que determinasse a nulidade da publicidade da venda e, consequentemente, da venda da verba n.º 1 à recorrente.

O pedido de nulidade da publicidade da venda é uma pretensão nova. Nova no sentido de que foi deduzida apenas em sede de recurso, quando podia e devia ter sido deduzida perante o tribunal a quo.

Vejamos.

A arguição da nulidade da publicidade da venda estava sujeita às regras gerais sobre a nulidade dos actos processuais previstas nos artigos 201º, 203º e 205º, todos do CPC.

Dos n.ºs 1 e 3 do artigo 205º resulta o seguinte quanto ao tribunal perante o qual deve ser arguida a nulidade dos actos processuais:

Em princípio, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal onde foi cometida a nulidade.

Só assim não será quando o processo onde for cometida a nulidade processual for expedido em recurso antes de findar o prazo para arguir a nulidade. Nesta hipótese, pode a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição.

Segue-se deste regime que a recorrente só poderia arguir a nulidade da publicitação da venda se o processo tivesse sido expedido em recurso antes de findar o prazo para a recorrente arguir a nulidade.

 Sucede que esta condição não está verificada, pois este processo foi expedido em recurso em 17 de Julho de 2013 [fls. 85] e o prazo para a recorrente arguir a nulidade da publicitação da venda terminou em 31 de Janeiro de 2013, como se verá de seguida.

O prazo para a arguição das nulidades previstas pelo n.º 1 do artigo 201º do CPC é o seguinte [n.º 1 do artigo 205 do CPC].

Se a parte estiver presente por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o acto não terminar.

Se a parte não estiver presente por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, o prazo para a arguição – que é o prazo geral de 10 dias fixado no n.º 1 do artigo 153º do CPC – conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dele pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.  

No caso, embora ignoremos quando é que a recorrente teve conhecimento dos factos que fundamentam a arguição da nulidade – factos que consistem, em síntese, na omissão de informação de que a fracção posta à venda era objecto de compropriedade, pertencendo metade indivisa à insolvente e metade indivisa a B... -, sabemos, no entanto, que em 21 de Janeiro de 2013, arguiu a nulidade da venda com a alegação de que nos presentes autos havia sido apreendia apenas metade da venda e que foi posta à venda a totalidade do imóvel.

Com base nesta arguição, é de presumir que, pelo menos na referida data, o requerente sabia que a fracção posta à venda estava em situação de compropriedade, situação esta que não era mencionada nos editais e anúncios através dos quais se publicitou a venda.

A partir da referida data dispunha de 10 dias, ou seja, até ao dia 31 de Janeiro de 2013, para arguir a nulidade da publicidade da venda. Uma vez que o processo foi expedido em recurso em 17 de Julho de 2013, é inequívoco que estava vedado à recorrente arguir a nulidade da publicidade da venda em sede de recurso.

Assim, não irá conhecer-se da arguição de nulidade da publicidade da venda.

Excluída esta questão do objecto do conhecimento do tribunal, a questão a que importa dar resposta é a de saber se, ao indeferir o pedido de nulidade da venda, o despacho recorrido fez uma incorrecta interpretação e aplicação do artigo 890º n.º 3, do artigo 892º, do n.º 1 do artigo 908º, todos do CPC, e do artigo 164º do CIRE.

      Quanto aos factos relevantes para a decisão desta questão, eles são constituídos pelos descritos no relatório e ainda pelos seguintes:
1. Nos presentes autos de insolvência foram apreendidos, entre outros bens, ½ da fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 1º andar D, composto por 4 divisões assoalhadas, cozinha, 2 casas de banho, despensa e hall, sito na (...) Alcanena, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcanena sob a ficha n.º610, da freguesia de Alcanena e inscrito na matriz sob o artigo n.º 2119 da mesma freguesia.
2. A outra metade indivisa da fracção havia sido penhorada nos autos de execução que correm termos do tribunal judicial de Alcanena sob o n.º 423/06.1TBACN.
3. Nesse processo de execução, o Meritíssimo juiz, sob requerimento da exequente [Hefesto, STC, SA], determinou, por força da natureza do processo de insolvência, que a venda do imóvel prosseguisse na sua totalidade [e após a venda concretizar-se-ia a quantia correspondente a ½ da aqui executada para satisfação do exequente) nomeando-se o administrador da insolvência como encarregado da venda.
4. Nos anúncios que publicitaram a venda constava que se procederia à venda judicial por meio de propostas em carta fechada dos bens aí descritos, nos quais se incluía sob a verba n.º 1, a “fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 1º andar D, composto por 4 divisões assoalhadas, cozinha, 2 casas de banho, despensa e hall, sita na (...) Alcanena, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcanena sob a ficha n.º (...), da freguesia de Alcanena, e inscrita na matriz sob o artigo n.º (...)º da mesma freguesia”, com a menção de que se travam de bens apreendidos no âmbito da insolvência de D... e C... cujo processo com o n.º 513/10.6TBACN corria termos no tribunal judicial de Alcanena.


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Expostos os factos passemos à apreciação dos fundamentos do recurso.

O principal fundamento do recurso é constituído pela alegação de que, sendo os anúncios e os editais, que publicitaram a venda da fracção autónoma, omissos quanto à situação de compropriedade da fracção autónoma que foi objecto de venda e quanto à identificação dos comproprietários, devia o tribunal a quo ter declarado nula a venda, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 890º, n.º 3, e 908º, n.º 1, ambos do CPC, aplicáveis por força do artigo 17º do CIRE.

Antes de mais, não podemos deixar de registar que não foi esta a argumentação que levou a recorrente a pedir a declaração de nulidade da venda. Recorde-se que o que levou a recorrente a pedir a declaração de nulidade foi a discrepância entre o bem que estava apreendido no processo de insolvência [que era metade da fracção autónoma] e o bem cuja venda fora publicitada [fracção autónoma na sua totalidade], sendo que, referiu na altura a ora recorrente, só lhe interessava a “fracção no seu todo”.

      Vendo naufragar a sua pretensão com esta argumentação, a recorrente voltou-se para nova argumentação[1]. Nova argumentação que está votada ao fracasso. Vejamos.

Nos termos do artigo 908º, n.º 1, do CPC – aplicável à venda no processo de insolvência por força da remissão efectuada pelo artigo 17º do CIRE - se, depois de efectuada a venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir no processo de execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sendo aplicável o artigo 906º do Código Civil.

Vê-se da norma acabada de transcrever que o comprador tem a faculdade de pedir a anulação da venda quando tenha havido erro da sua parte. Erro sobre a existência de algum ónus ou limitação a que estiver sujeito o direito transmitido ou erro sobre a coisa transmitida. O 1º erro respeita aos vícios do direito transmitido; o 2º aos vícios da coisa transmitida.     

No que diz respeito aos vícios do direito, os “ónus ou limitação” a que estiver sujeito o direito transmitido só relevam como fundamento de anulação se não tiverem sido tomados em consideração no momento da venda e se excederem os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria do que foi transmitido.

Como exemplo de limitação ao direito transmitido cita-se o direito pessoal de gozo que não deva caducar com a venda e como exemplo de ónus o ónus de redução eventual de doação sujeita a colação [José Lebre de Freitas, A acção executiva Depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, página 342, nora 35].   

Como exemplos de ónus ou limitações que não excedem os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, o autor citado aponta na mesma obra, página 343, nota 36, os seguintes: “as limitações gerais ao direito de propriedade, restrições provenientes de providências administrativas gerais e abstractas, ónus resultantes de planos de urbanização e as servidões legais não constituídas”.

Quanto ao erro sobre a coisa transmitida é necessário, para relevar para efeitos de anulação, que provenha da falta de conformidade entre a coisa que tenha sido vendida e aquela que foi anunciada. Falta de conformidade que tanto pode dizer respeito à identidade da coisa como às suas qualidades.

Fora da previsão do n.º 1 do artigo 908º do CPC estão as nulidades relativas a actos do processo de execução. Embora estas nulidades possam fazer com que a venda fique sem efeito, a previsão das que têm este efeito encontra-se no artigo 909º, designadamente nas alíneas b) e c) do n.º 1 [respectivamente, falta ou nulidade da citação do executado e anulação da venda nos termos do artigo 201º].

Há, no entanto, uma diferença entre os fundamentos de anulação da venda previstos no n.º 1 do artigo 908º e os constantes do artigo 909º. Enquanto aqueles visam a defesa do comprador, razão pela qual só a ele aproveita, os previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 909º aproveitam, respectivamente, ao executado ou a uma das partes no processo [a favor deste entendimento cita-se José Lebre de Freitas, na obra supra citada página 344].    

Uma vez que a norma do n.º 1 do artigo 908º contempla, como fundamentos de anulação da venda, ou vícios do direito transmitido ou vícios da coisa transmitida, é bom de ver que ela não dá guarida à pretensão da recorrente pois esta radica exclusivamente em alegadas irregularidade do conteúdo dos anúncios e do edital, ou seja, dos actos processuais que publicitaram a venda.

Segue-se daqui que não colhe contra a decisão recorrida a alegação segundo a qual a omissão da situação de compropriedade e da identificação dos comproprietários nos anúncios e no edital importava a limitação do direito transmitido, pois, por força dessa omissão, nada impedia que terceiros viessem a mover-lhe acção de preferência ao abrigo do disposto no artigo 892º, n.º 4, do CPC [16ª conclusão].

A recorrente labora em manifesto erro ao relacionar a possibilidade da acção de preferência com as alegadas irregularidades dos anúncios e do edital. É que o que dá origem à acção de preferência é o incumprimento do dever de notificação dos preferentes para exercerem o seu direito [artigos 892º, n.º 1 e 2, do CPC]. Assim, não havendo qualquer relação causal entre as irregularidades do conteúdo dos anúncios e do edital e a acção de preferência, não se vê como se pode sustentar que tais irregularidades constituíram uma limitação ao direito de propriedade transmitido.

Também não colhe contra a decisão recorrida a alegação de que a circunstância de os anúncios e o edital não mencionarem a situação de compropriedade da fracção e a identificação dos comproprietários faz com que o imóvel não esteja livre de ónus ou encargos [18ª conclusão].

Uma vez que a recorrente não concretiza os ónus ou encargos que alegadamente incidem sobre o direito que lhe foi transmitido e como não cabe ao tribunal entrar em suposições ou conjecturas sobre o que terá levado a recorrente a afirmar que o imóvel não está livre de ónus ou encargos, estamos perante uma alegação destituída de qualquer fundamento.

Também não colhe contra a decisão recorrida a alegação de que os anúncios e o edital estão desconformes com o bem vendido [20ª conclusão]. Diga-se que compreende-se mal esta alegação, à luz do princípio da boa fé processual [artigo 266º-A do CPC], uma vez que a recorrente não pode ignorar que o bem que foi vendido foi a totalidade da fracção autónoma e o bem cuja venda foi anunciada foi precisamente a totalidade da fracção autónoma.

Conclui-se, assim, que a decisão recorrida, ao indeferir o pedido de nulidade da venda, não violou nem o artigo 890º, n.º 3, nem o artigo 908º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.

Como não violou o artigo 890º e o n.º 3 do artigo 892º, ambos do CPC e o artigo 164º do CIRE, sendo que, em relação a estas normas, não faz sequer sentido imputar a sua violação à decisão recorrida. Com efeito, em relação a qualquer decisão recorrida, só faz sentido imputar-lhe a violação das normas que ela tenha aplicado como fundamento jurídico do que foi decidido [artigo 685º-A, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC]. Ora, o exame da decisão mostra, sem qualquer dúvida, que as normas atrás indicadas não constituíram fundamento jurídico do indeferimento do pedido de nulidade da venda.

Por todo o exposto, é de manter a decisão recorrida.


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      Decisão:

      Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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As custas do recurso serão suportadas pela recorrente

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Emídio Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria Domingas Simões 


[1] As peças processuais que instruíram o presente recurso dão conta de que a recorrente começou por pedir a declaração de nulidade da venda [em 16 de Abril de 2012] com a alegação de que a fracção autónoma fora dada de arrendamento e que tal situação não figurava no edital e no anúncio que publicitaram a venda. A pretensão não teve acolhimento pois, embora a fracção tivesse sido dada de arrendamento, o contrato de arrendamento havia cessado antes da publicitação da venda.