Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
157/16.9T8LSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RECURSO
CONCLUSÕES
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃOPROCEDIMENTO CAUTELAR
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - LOUSÃ - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.369, 371, 376, 635, 639, 640 CPC
Sumário: 1. O tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso, sendo que, tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respectivo corpo.

2. Decorre do disposto nos art.ºs 635º, 639º, n.º 1 e 640º, n.º 1 do CPC que deverão constar das “conclusões” da alegação de recurso, nomeadamente, a indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e a posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

3. Quando a matéria adquirida no procedimento cautelar permite formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado (prova stricto sensu) e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal.

4. Aquela prova stricto sensu do fundamento da providência determina, necessariamente, uma inversão do contencioso; o requerido poderá obstar à consolidação daquela tutela como tutela definitiva através de uma acção de impugnação (art.ºs 369º, n.º 1e 371º, n.º 1 do CPC).

5. No que respeita às providências especificadas é a própria lei que determina aquelas onde pode ser requerida a inversão do contencioso (art.º 376º, n.º 4 do CPC).

6. A inversão do contencioso só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e apenas se a providência cautelar requerida (nominada ou inominada) não tiver um sentido manifestamente conservatório.

Decisão Texto Integral:     








       
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Assembleia de Compartes (...) , representada pelo respectivo Conselho Directivo, instaurou o presente procedimento cautelar de embargo de obra nova (“Trabalho e Serviços Novos”), na Comarca de Coimbra (Instância Local da Lousã), contra A (…) e mulher, M (…), pedindo o embargo dos trabalhos e serviços identificados em 12º a 15º, 17º e 19º da petição inicial (p. i.) [a)], a notificação dos embargados ou de quem os substituir no local dos trabalhos [b)], que o resultado dos trabalhos com o número, diâmetro e espécies de árvores cortadas nas áreas referidas em 14º e 17º da p. i., onde os mesmos foram executados, bem como os estradões ali abertos e respectivos comprimentos e larguras, sejam descritos e fotografados minuciosamente [c)] e que seja dispensado à requerente, o ónus da propositura da acção principal nos termos do art.º 369º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC) [d)].

            Alegou, em síntese: desde a data da sua constituição, tem vindo a administrar, conjuntamente com a Freguesia de Pampilhosa da Serra, todos os baldios ou terrenos comunitários situados no limite da povoação de K (...) ; tais terrenos baldios foram inventariados como “baldios municipais” desde 1939 e eram explorados e administrados pela Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra e usufruídos pela comunidade local (v. g., apascentando gado e cortando matos e lenhas), numa área contínua de muitos hectares; em 1954/1955, os baldios pertencentes à povoação do K (...) foram incluídos no Projecto Florestal do concelho de Pampilhosa da Serra; os requeridos ordenaram o corte de árvores aludido nos art.ºs 12º e seguintes da p. i. numa parcela de terreno baldia em discussão na acção n.º 78/07.6TBPPS (instaurada pelos requeridos contra, entre outros, a aqui requerente), localizada a poente da aldeia do K (...) e noutra parcela de terreno localizada na mesma encosta, numa zona mais inferior.

            Por despacho de 20.4.2016, nos termos das normas conjugadas dos art.ºs 11º, n.ºs 2 e 3, 12º, 13º, n.ºs 2 e 3, 15º, n.ºs 1, alínea o) e 2, ´a contrario`, 16º, n.º 2, 20º, n.º 3 e 21º, alínea h) da Lei n.º 68/93, de 04.9 (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 89/97, de 30.7, Lei n.º 72/2014, de 02.9 e Rectificação n.º 46/2014, de 29.10), a Mm.ª Juíza a quo concedeu o prazo de cinco dias, ao requerente, para “juntar a respectiva Acta da Assembleia de Compartes na qual conste deliberação de ratificação do recurso a juízo pelo seu Conselho Directivo neste específico processo, bem como da respectiva representação judicial (constituição de mandatário)”.

            A requerente juntou cópia da “acta n.º 24”, de 23.4.2016, referente a reunião extraordinária da “Assembleia de Compartes dos Baldios de K (...) ”, na qual foi aprovado, por unanimidade, ratificar o recurso ao tribunal pelo Conselho Directivo através do procedimento cautelar (n.º 157/16.9T8LSA) e nomear mandatário com plenos poderes para representar a Assembleia de Compartes (fls. 175).

            Os requeridos, citados, deduziram oposição, alegando, em resumo, por excepção, desconhecer a existência de uma Assembleia de Compartes legalmente constituída (pois não há compartes moradores na povoação de K (...) para a poder validamente constituir e não tomou conhecimento de qualquer convocatória como manda o art.º 18º da Lei n.º 68/93) e a ineptidão da p. i. por falta de causa de pedir, bem como, por impugnação, que os terrenos onde se procedeu ao dito corte de árvores pertencem aos requeridos. Concluíram pela improcedência do procedimento e pediriam a notificação da requerente para “apresentar “o inventário de 1939, onde estão inventariados os ´baldios municipais` que referem”.

            Na sequência do despacho de 27.6.2016, no qual, além do mais, se ordenou a notificação da requerente para juntar o inventário mencionado no art.º 2º da p. i. e comprovar documentalmente a sua regular constituição (acta da assembleia constituinte e data e forma da convocatória subjacente) e a actual composição dos seus órgãos de administração (art.º 11º da Lei n.º 68/93, de 04.9), a requerente esclareceu que já havia apresentado o dito “inventário” como a p. i. e juntou novos documentos relativos às áreas em causa, “acta da Assembleia constituinte” de 15.8.1997, “acta n.º 1” de 21.02.1998 e “actual composição dos órgãos de administração da requerente”/“acta n.º 21” de 28.3.2015 (fls. 259 e seguintes).[1]

            Realizada a audiência final, o Tribunal a quo, por decisão de 03.3.2017, julgou o procedimento cautelar procedente e, em consequência, determinou o embargo de obra nova requerido e a imediata suspensão dos trabalhos efectuados pelos requeridos no prédio do requerente; declarou as “parcelas 125 e 126” como Baldios do K (...) , administradas pela requerente, assim a dispensando de propor a respectiva acção para a sua apreciação, nos termos do disposto no art.º 369º, n.º 1, do CPC.

            Foi cumprido o disposto no art.º 400º, do CPC (fls. 486).

            Inconformados, os requeridos interpuseram a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Deve ser dado como provado o disposto na alínea d) da matéria de facto não provada, justamente nos mesmos termos em que foi dado como provado o disposto no n.º 26) da matéria de facto provada (violação do art.º 615º c) do CPC).

            2ª - A decisão da sentença que considerou legítima a assembleia de compartes é nula, por falta de fundamentação, violação do art.º 615º, b) e c) do CPC.

            3ª - É nula ainda, por omissão de pronúncia, por não ter conhecido a questão da eleição sem convocatória e sem constar da ordem de trabalhos, violação do art.º 615º d) do CPC.

            4ª - A requerente deve ser considerada parte ilegítima porque não está regularmente eleita, facto confessado pela “acta 21” junta em 11.7.2016 (foram violados os art.ºs 25º e 30º do CPC e 18º da lei 68/93).

            5ª - A requerente é ainda parte ilegítima porque não está constituída por compartes moradores, mas por pessoas que residem e moram fora do K (...) , em Lisboa, incumprindo a exigência dos art.ºs 1º e 3º da lei 63/98 e por serem apenas 4 pessoas, os moradores, os quais se não podem sequer constituir em assembleia, por serem insuficientes para constituírem o Conselho Directivo, mesa da assembleia e a comissão de fiscalização (violação dos art.ºs 1º, 3º, 16º, 20º e 24º da lei 68/93).

            6ª - Os requeridos são donos e legítimos proprietários da propriedade constante da escritura de 1944, sita à Fonte, limite da povoação do K (...) , confrontando a norte e poente com visos, sul com A (...) e nascente com caminho.

            7ª - Na encosta que vai da povoação ao viso norte e que vem assinalada no mapa do Projecto florestal a amarelo como logradouro e com legenda de perímetro em dúvida, existem várias propriedades particulares, que vão da povoação ao viso norte.

            8ª - Os modos de adquirir a propriedade são apenas os constantes do art.º 1316º do CC, pelo que não pode colher a pretensão de se reconhecer a propriedade com base em qualquer outro título não aí previsto, como é o caso de um mapa elaborado pela Direcção Geral dos Serviços Florestais.

            9ª - Não deveria ter sido decidido o embargo, que deverá ser revogado.

            10ª - Não se verificam os pressupostos legais para a inversão do contencioso, quer por a prova da requerente ter sido escassa e perfunctória, quer porque a providência decretada não permite regular definitivamente o litígio.

            A requerente respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente: a) nulidades da sentença; b) legitimidade da requerente; c) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (incumprimento dos “ónus”; erro na apreciação da prova); d) decisão de mérito e inversão do contencioso.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1) A requerente, desde a data da sua constituição, em 15.8.1997, tem vindo a gerir, administrar e a fiscalizar, conjuntamente com a Junta de Freguesia da Pampilhosa da Serra, todos os baldios ou terrenos comunitários situados no limite da povoação do K (...) , da freguesia e concelho da Pampilhosa da Serra.

            2) Nesses terrenos a comunidade local apascentava e apascenta gados, cortava e corta mato e lenhas para seu próprio uso.

            3) A Câmara Municipal da Pampilhosa da Serra fez arrematações em hasta pública para venda de torgas desses terrenos para extracção de carvão vegetal.

            4) Em 1954/1955 os terrenos baldios foram incluídos no Projecto de Arborização para todo o concelho da Pampilhosa da Serra, elaborado pelos Serviços Florestais da época, Plano esse aprovado em Conselho de Ministros de 02.11.1955.

            5) Previa-se a arborização por sementeira e plantação dos baldios inventariados em 1939 e constantes desse Plano Florestal e, de entre esses baldios, os terrenos que se destinavam a logradouro comum das povoações.

            6) Afectos à povoação do K (...) estão inscritos no Plano Florestal de 1954/1955, por referência ao Inventário de 1939, os baldios descritos nas verbas n.º 28 a 44 inclusive e 119 a 134, inclusive.

            7) O requerido incumbiu V (...) , industrial de madeira, de proceder ao corte das árvores existentes nas “parcelas 125 e 126” da B (...) , dos baldios do K (...) , por venda das mesmas à empresa de que este é sócio-gerente – J (...) , Lda., com sede na Pampilhosa da Serra.

            8) Tal corte, sob ordens e instruções do requerido, iniciou-se no dia 16.02.2016 e terminou no dia 18 do mesmo mês na parcela de terreno em discussão no Processo n.º 78/07.6TBPPS, localizada a Poente, na aldeia do K (...) , junto às ... do K (...) , próximo da cumeada ou viso ali existente.

            9) E estende-se para o lado Nascente, descendo a encosta, numa área aproximada entre 25 000 m2 a 30 000 m2.

            10) No dia 05.4.2016, o requerido reiniciou os trabalhos de corte através do mesmo industrial de madeira, noutra parcela de terreno localizada na mesma encosta, numa zona mais inferior, numa extensão de 8 080 m2, tendo cortado árvores da espécie pinuspinastere pinusnigra.

            11) Os trabalhos de corte foram interrompidos pela presença da GNR no local, tendo sido cortados cerca de 2 m3 de madeira.

            12) No dia 06.4.2016 os trabalhos recomeçaram por ordem do requerido.

            13) Nesse mesmo dia, cerca das 15 horas, P (...) (membro do Conselho Directivo da requerente), acompanhado de testemunhas ((…), dirigiu-se ao local do corte das árvores e aos trabalhadores da empresa J (...) , Lda., ali presentes e comunicou-lhes para pararem, de imediato, o corte de árvores.

            14) Mais esclareceu que aquele local se insere na área baldia administrada e gerida pela requerente, sendo os pinheiros ali plantados pertencentes à comunidade do K (...) , representada pelo Conselho Directivo da Assembleia de Compartes que ele próprio integra e representa.

            15) Contactado telefonicamente o legal representante da empresa e após algumas diligências, este acabou por acatar a ordem e mandou retirar os trabalhadores do local e parar o trabalho de corte.

            16) Há mais de 50, 60, e 100 anos que, ininterruptamente,

            17) à vista de toda a gente,

            18) sem oposição de ninguém,

            19) conscientes de exercerem um direito próprio e comunitário

            20) e de não lesarem outrem

            21) os Povos da comunidade do K (...) que a A. representa, têm vindo a usar e fruir em comum dos terrenos onde os requeridos mandaram cortar as árvores.

            22) Neles apascentando rebanhos, roçando o mato, apanhando e aproveitando lenha, plantando e cortando árvores e autorizando a exploração florestal por parte dos Serviços Florestais do Estado em 1954/1955.

            23) As populações da freguesia, mesmo após ter sido implementado o projecto de arborização de 1955, continuaram a aproveitar o mato, lenhas secas, os destojos das limpezas dos povoamentos florestais e apascentar gados, a transitar a pé e de carro e inclusivamente com animais, nos terrenos baldios submetidos ao Regime Florestal, incluindo os terrenos onde os requeridos actuaram.

            24) Os requeridos e seus antecessores nunca praticaram qualquer acto em parte ou na totalidade dos terrenos em discussão.

            25) No final da década de 90, o requerido tentou inscrever uma faixa de terreno na matriz predial, como prédio omisso, com uma área de 171 000 m2.

            26) Consta de escritura pública que A (…) comprou a J (…)uma terra de semeadura e sobreiros, sita à Fonte, limite do lugar de K (...) , confinando de Nascente com caminho, Poente e Norte com visos e do Sul com A (...) e herdeiros; comprou também metade indivisa de uma terra de semeadura e sobreiros, sita ao Alqueve de trás das casas, limite e freguesia ditos, confinando no seu todo pelo Nascente com herdeiros de J (...) e Poente só com os mesmos herdeiros de J (...) , Norte com os visos e pelo Sul com o caminho público.[2]

            27) Os requeridos têm arrendada uma parcela de um terreno a uma empresa onde foram instalados dois aerogeradores, recebendo as rendas, há mais de 10 anos.

            2. E deu como não provado:

            a) Que a madeira já cortada e levada daqueles locais ascendesse a valor não inferior a € 7 000.

            b) Os requeridos, na acção judicial de demarcação n.º 3/94, do Tribunal Judicial de Pampilhosa da Serra, desistiram do pedido contra todos os Réus.

            c) Os terrenos onde a empresa J (...) , Lda., procedeu ao corte da madeira foram adquiridos pelos requeridos em 1993, por doação de uma sua tia, viúva de A (…)

            d) Que A (…), em 1944, os tenha adquirido por compra a J (…)

            e) Desde 1944 que os antecessores dos requeridos adquiriram e vêm usufruindo destas propriedades, com os limites que constam da escritura, como qualquer proprietário, cultivando a parte agrícola e gerindo a parte florestal por sementeira como é uso naquelas serranias, sem oposição de quem quer que fosse e de forma pública.

            f) Assim como os requeridos.

            g) Que a parcela de terreno dita em 27) faça parte do prédio em causa nestes autos.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1, do CPC[3]), ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir – as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).

            Ora, o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objectiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação[4], sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respectivo corpo.[5]

As conclusões servem assim para delimitar o objecto do recurso (art.º 635º), devendo corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo, constando normalmente, na sua parte final, se se pretende obter a revogação, a anulação ou a modificação da decisão recorrida.

            4. a) No arrazoado da alegação de recurso e respectivas “conclusões”, os requeridos afirmam que “a sentença deu como provado e não provado o mesmo facto” - mais concretamente, no dizer dos recorrentes, o que consta dos pontos II. 1. 26) e II. 2. d), supra [“deve ser dado como provado o disposto na alínea d) da matéria de facto não provada, justamente nos mesmos termos em que foi dado como provado o disposto no n.º 26) da matéria de facto provada”] -, e bem assim que, relativamente à excepção da ilegitimidade da requerente/Assembleia de Compartes (...) , a Mm.ª Juíza a quo não fundamentou o decidido nem conheceu da questão suscitada, ou seja, “a de os corpos gerentes existentes à data da propositura da [acção] não estarem regularmente eleitos, outorgando ainda o mandato sem poderes para tal, pois foram eleitos em assembleia não convocada e sem ordem de trabalhos para tal”, pelo que se verificam as nulidades previstas no art.º 615º, n.º 1, alíneas b), c) e d).

Preceitua o referido art.º que “é nula a sentença quando: não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (b); os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (c); o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (d)”.

b) Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis, é recorrente a afirmação de que o vício da mencionada alínea b) apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.[6]

No entanto, no actual quadro constitucional (art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, para que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório[7].

c) No tocante à referida alínea c) o vício em causa verifica-se sempre que exista contradição dos fundamentos com a decisão, quanto os fundamentos de facto e de direito invocados conduzirem logicamente a resultado oposto ou diverso daquele que integra o respectivo segmento decisório, ou se ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

            Isso significa que os fundamentos de facto e de direito da sentença devem ser logicamente harmónicos com a pertinente conclusão ou decisão e que tal se não verifica quando haja contradição entre esses fundamentos e a decisão nos quais assenta.

Contudo, uma coisa é a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão da sentença [vício na construção da sentença, vício lógico nessa peça processual], e outra, essencialmente diversa, o erro de interpretação dos factos ou do direito ou na aplicação deste [a errada valoração da prova produzida ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis/o erro de julgamento/a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário] que não raro se confunde com aquela contradição.[8]

d) E a previsão da mencionada alínea d) relaciona-se com o dispositivo do art.° 608°, n.° 2, do mesmo Código[9], e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade (omissão de pronúncia) tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda (excesso de pronúncia) reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, devendo a palavra “questões” ser tomada em sentido amplo: compreenderá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.

Contudo, é incorrecto inferir-se que a sentença deverá examinar toda a matéria controvertida, ainda que o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável – neste sentido haverá que compreender-se a fórmula da lei “exceptuadas aquelas questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (art.º 608º, n.º 2).[10]

e) Perante o descrito enquadramento normativo e analisada a sentença sob censura, concluiu-se que a Mm.ª Juíza a quo indicou adequadamente (de forma clara e com desenvolvimento bastante) os fundamentos de facto e de direito subjacentes à decisão proferida; a respectiva fundamentação conduz à solução encontrada para a problemática submetida à apreciação do Tribunal, ou seja, a conclusão decisória está logicamente encadeada com a motivação fáctico-jurídica desenvolvida pelo Tribunal recorrido; foram conhecidas todas as questões em discussão nos autos, decidindo-se em conformidade com a fundamentação tida por adequada.

Ademais, e independentemente da aparente confusão entre nulidades de sentença e impugnação da decisão sobre a matéria de facto [problemática a versar infra], os requeridos/recorrentes apostam, apenas, em fazer valer a sua perspectiva, sem levar em conta os demais factos dados como provados ou como não provados [cf., designadamente, II. 1. 7), 8), 10) e 13) e II. 2. alíneas c) e g), supra] e sendo que o Tribunal a quo conheceu das excepções invocadas na oposição ao procedimento cautelar [onde, lembra-se, os requeridos afirmaram desconhecer a existência de uma Assembleia de Compartes legalmente constituída[11] – cf. ponto I, supra], tendo em conta a factualidade considerada provada, a qual, como se verá, não foi validamente impugnada.

Por conseguinte, não ocorrem os apontados vícios na decisão recorrida, os quais, como se sabe, não se confundem com eventuais falhas/erros da decisão de facto ou “erros de julgamento”.

            5. Quiçá alheados da posição expressa nas alegações da audiência final [o Exmo. Mandatário dos requeridos chegou a afirmar que a invocada ilegitimidade da requerente “não é relevante”, “a relevância dela não é coisa que nos apoquente…”], os requeridos dizem que a requerente deve ser considerada parte ilegítima porque não está regularmente eleita, facto confessado pela “acta 21” junta em 11.7.2016 (foram violados os art.ºs 25º e 30º do CPC e 18º da lei 68/93) e porque não está constituída por compartes moradores, mas por pessoas que residem e moram fora do K (...) , em Lisboa, incumprindo a exigência dos art.ºs 1º e 3º da lei 63/98 e por serem apenas 4 pessoas, os moradores, os quais se não podem sequer constituir em assembleia, por serem insuficientes para constituírem o Conselho Directivo, mesa da assembleia e a comissão de fiscalização (violação dos art.ºs 1º, 3º, 16º, 20º e 24º da lei 68/93).

            Relevando, naturalmente, a factualidade dada como provada nos autos - e não propriamente a “leitura” dos factos e a “apreciação” da prova apresentadas pelos requeridos, na forma que melhor se analisará de seguida… - importa atentar, principalmente, nos seguintes normativos da Lei dos Baldios (Lei n.º 68/93, de 04.9, na redacção conferida pela Lei n.º 72/2014, de 02.9, aplicável à situação em apreço):

            - São baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais (art.º 1º, n.º 1). Para os efeitos da presente lei, comunidade local é o universo dos compartes (n.º 2). São compartes os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril (n.º 3). São ainda compartes os menores emancipados que sejam residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos terrenos baldios (n.º 4).

            - Os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, excepto nos casos expressamente previstos na presente lei (art.º 4º, n.º 1). A declaração de nulidade pode ser requerida: a) Pelos órgãos do baldio ou por qualquer dos compartes; b) Pelo Ministério Público; c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio nos termos dos artigos 22º e 23º; d) Pelos arrendatários e cessionários do baldio, nos termos do artigo 10º (n.º 2). As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respectiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore (n.º 3).

            - Os baldios são administrados, por direito próprio, pelos respectivos compartes, nos termos dos usos e costumes locais, através de órgãos democraticamente eleitos (art.º 11º, n.º 1). As comunidades locais organizam-se, para o exercício dos actos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes baldios, através de uma assembleia de compartes, um conselho directivo e uma comissão de fiscalização (n.º 2). Os membros da mesa da assembleia de compartes, bem como do conselho directivo e da comissão de fiscalização, são eleitos pelo período de quatro anos, renováveis, e mantêm-se em exercício de funções até à sua substituição (n.º 3) [12].

            6. Perante o descrito enquadramento fáctico e normativo é irrecusável que os recorrentes deixaram cair a fundamentação primeiramente invocada (mas não provada ou indiciada) no que concerne à pretensa ilegitimidade da requerente, o que leva a concluir que também eles consideram estar demonstrada a sua constituição em 1997 [cf., sobretudo. II. 1. 1), supra, e a acta reproduzida a fls. 259].

            Ao contrário do sustentado pelos recorrentes, nada nos diz que os compartes que têm vindo a integrar os diversos órgãos de administração/gestão dos terrenos baldios em causa não reúnam os requisitos previstos da lei[13].

            E o comparte com directa intervenção no âmbito dos factos dos autos e que representou e representa os demais, inclusive, nestes autos (cf. fls. 21 e 264), preenche inequivocamente os necessários requisitos, o que, diga-se, não vem questionado pelos próprios recorrentes [por exemplo, decorre do arrazoado da fundamentação das alegações de recurso que nada se opõe ao consignado em 13) e 14) dos “factos provados”].

            Verificando-se, porventura, qualquer irregularidade na eleição dos novos órgãos na Assembleia de Compartes de 28.3.2015, conforme foi sustentado pelos recorrentes a fls. 273 (a partir da “acta n.º 21”, reproduzida a fls. 261 a 265) isso não determinaria um qualquer hiato na existência de compartes, da respectiva assembleia e dos demais órgãos (cf. o art.º 11º, n.º 3 da Lei dos Baldios)[14], além de que, antes de actuar as consequências de uma qualquer excepção dilatória, sempre caberia ao tribunal providenciar pelo seu suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou convidando as partes a praticar os actos tendentes a essa sanação (cf., v. g., os art.ºs 6º, n.º 2 e 29º, n.º 1).

            Ademais, ante a periódica substituição ou renovação dos órgãos de gestão/administração dos baldios (cf. o art.º 11º, n.º 3 da Lei dos Baldios), tendo em conta o exposto e desconhecendo-se, inclusive, a composição desses órgãos ao longo de todo o período em causa (desde 1997 a 2015), também se poderá concluir que os recorrentes não invocaram e não demonstraram o suporte fáctico necessário à afirmação da dita excepção de ilegitimidade.

            Assim, face aos elementos disponíveis e ao referido quadro normativo, forçoso é concluir que a requerente tem interesse directo em demandar (art.º 30º, n.º 1), qualidade e posição já “reconhecida”, pelos próprios recorrentes, como autores, na acção judicial n.º 78/07.6TBPPS… [dita, v. g., em II. 1. 8), supra].

7. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art.º 640º, n.º 1).

No caso previsto na citada alínea b), observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes (n.º 2 do mesmo art.º).

            8. Tais requisitos da impugnação da decisão de facto justificam-se pela simples razão de que importa alegar o porquê da discordância, devendo o recorrente concretizar as suas divergências.

Trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário atendendo, por um lado, a que ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância [pelo que deverá indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos] e qual a concreta divergência detectada [e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas], e, por outro lado, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar, assim se garantindo o efectivo cumprimento do princípio do contraditório [cf. os art.ºs 638º, n.º 5 e 640º, n.º 2, alínea b)], obviando-se, pois, à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.[15]

A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto deve verificar-se quando, nomeadamente, falta a indicação dos concretos meios de prova constantes do registo sonoro que fundamentam a discordância, e/ou a indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda e/ou a posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, tratando-se de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.[16]

9. Os recorrentes, ao invocarem a “nulidade” da decisão recorrida, disseram que “deve ser dado como provado o disposto na alínea d) da matéria de facto não provada, justamente nos mesmos termos em que foi dado como provado o disposto no n.º 26) da matéria de facto provada” [cf. a “conclusão 1ª”, ponto I, supra].

No corpo da alegação de recurso mostram ainda o seu pretenso inconformismo quanto à factualidade dada como “provada” em II. 1. 1) a 4), 6), 7), 9) a 11) e 16) a 24), supra, e tida como “não provada” em II. 2. d) e e), supra.

Também aí se reportaram a alguns excertos dos depoimentos (transcritos parcialmente) das testemunhas (…) e aludiram a alguns documentos juntos aos autos, pugnando, na generalidade, por uma resposta negativa àquela materialidade [de II. 1., supra].

            10. Aparentando questionar parte significativa da factualidade dita em II. 1. e 2., supra, e, principalmente, a apreciação e a valoração da prova pessoal, os requeridos/recorrentes desrespeitam, assim, ostensivamente, as exigências que a lei claramente consagra para uma válida impugnação da decisão de facto, porquanto acabam por descurar, totalmente, o ónus que sobre eles impendia de dizer, na “fundamentação/corpo” da alegação de recurso e, também, nas respectivas “conclusões” (reproduzidas em I., supra), de forma clara e inequívoca, a concreta divergência detectada e a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

            11. Sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, verifica-se, pois, ostensivo desrespeito pelas exigências claramente estabelecidas na lei sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

            Os recorrentes dizem discordar do decidido mas não indicam as passagens da gravação, nem concretizam/especificam a matéria de facto impugnada e a decisão que consideram dever ser proferida.

            Os recorrentes deviam ter dado cumprimento ao preceituado no art.º 640º levando ainda em atenção o regime de alegação mencionado em II. 3., supra, ao invés de optarem por uma alegação relativamente complexa e difusa; denotaram o seu pretenso inconformismo mas postergaram, assim, exigências cujo incumprimento a lei reprova e fulmina com a rejeição da impugnação.

12. Perante a essencialidade da prova pessoal apresentada, a conjugar com a prova documental junta aos autos (insuficiente para introduzir qualquer modificação), importa assim atender à factualidade dada como provada em 1ª instância.

            13. Contudo, tendo em vista uma melhor reapreciação da problemática da “inversão do contencioso” (art.ºs 369º e seguintes) e, num plano secundário, admitindo que algum relevo pudesse ser dado àquela “heterodoxa” impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sempre se dirá que os meios de prova disponíveis apontam, com suficiente segurança, para a insubsistência material do demais alegado pelos recorrentes.

            14. a) Ouvidos os depoimentos produzidos em audiência, temos por inteiramente correcta a apreciação/valoração da prova efectuada pela Mm.ª Juíza a quo, mormente quando se refere (introduzem-se, entre parêntesis rectos, alguns elementos visando uma melhor explicitação):

 (…)

            c) As demais testemunhas revelaram desconhecimento dos factos ou trouxeram-nos uma versão totalmente avessa à realidade, principalmente, o Fernando Dias[17], pois tudo nos diz que, antes da intervenção dos Serviços Florestais, no local, também existiam “terras despidas” que “não eram de ninguém nem as pretendiam” [recorrendo a expressões utilizadas pela requerente na resposta à alegação de recurso], a não ser para apascentamento e recolha do que não se lograsse obter nos terrenos (particulares) de cota inferior.

            d) A respeito da prova documental, dir-se-á, ainda, que dela decorre com suficiente clareza que os requeridos pretenderam “alargar”, exponencialmente, as áreas que se fizeram constar das matrizes prediais [chegando a atingir quarenta vezes mais![18] – cf., v. g., fls. 105/438, 136, 137, 337, 343, 346, 384, 390 e II. 1. 25), supra], com o simples fundamento da existência de erro nos procedimentos levados a cabo pelos “louvados/avaliadores” (cf., v. g., fls. 334, 339, 341, 345 e 358), quando tudo aponta no sentido de que apenas visavam “integrar”, nas respectivas propriedades, áreas que manifestamente lhes não correspondiam!

            E se os documentos supra referidos aludem à existência de baldios no limite do povoado de K (...) , essa mesma realidade decorre das actas da Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra de 1939 (cf. o documento de fls. 361/428).

            15. Não importando tecer especiais considerando sobre a problemática dos baldios em geral (e as particularidades de um regime jurídico que, ao longo dos séculos, sempre foi assaz discrepante da realidade)[19], sempre se dirá que a Lei Fundamental prevê o denominado sector comunitário, o qual compreende “os meios de produção comunitários, possuídos e geridos pelas comunidades locais” (art.º 82º, n.º 4, alínea b), da Constituição da República Portuguesa), pretendendo-se assim abranger e individualizar os meios de produção possuídos e geridos por comunidades territoriais sem personalidade jurídica (“povos”, “aldeias”, “lugares”), que são sobrevivências (ou, talvez melhor, resquícios) de antigas formas de propriedade comum da terra e dos meios de produção necessários à vida colectiva/comunitária, entre as quais releva o caso dos baldios, enquanto terrenos originariamente destinados ao uso colectivo (“logradouros comuns dos povos”), sobretudo, para pastagens e colheita de lenhas por parte, naturalmente e principalmente, dos não donos ou possuidores de outras formas de propriedade.[20]  

            Não obstante as consideráveis transformações ocorridas na sociedade Portuguesa, principalmente, desde o início da segunda metade do séc. XX, continua inteiramente válida aquela que foi a doutrina mais autorizada e dominante do séc. XX em matéria de baldios, que os identificava como «uma fortuna de propriedade comunal», pertencendo «à colectividade indivisível dos moradores vizinhos a quem está afecta a respectiva fruição»[21]; os baldios constituíam propriedade comunal dos moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas[22].

            16. Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de trinta dias, a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente (art.º 397º, n.º 1).

            Pesem embora as sucessivas alterações verificadas na mais recente legislação aplicável em matéria de baldios (que aqui não importa apreciar com maior detalhe), dúvidas não restam quanto à natureza baldia/comunitária dos terrenos onde os requeridos realizaram o corte e demais procedimentos supra referidos [cf., designadamente, II. 1. 7) e 16) a 21), supra] e que, atendendo ao consequente prejuízo advindo para a propriedade comunitária, impunha-se, naturalmente, o decretamento da providência em análise.

            Na verdade, resulta da matéria de facto apurada que os terrenos sobre os quais foram praticados os actos (lesivos), a que se quis pôr cobro, são terrenos comunitários/baldios sitos nas imediações do povoado de K (...) , terrenos que a requerente, em representação dos Compartes (...) , administra e gere (cf. o art.º 1º, n.º 5 da Lei dos Baldios)[23].

            Dentre os baldios geridos e administrados pela requerente, temos as “parcelas 125 e 126”, onde existiam árvores, plantadas ao abrigo do Projecto de Florestação de 1954/1955 e que os requeridos, para seu proveito próprio, decidiram mandar cortar.

            Ao actuarem da forma descrita, os requeridos desrespeitaram o direito de propriedade (comunitária) da requerente sobre as ditas parcelas de terreno.

            A requerente fez valer o seu direito observando os correspondentes requisitos adjectivos.

            17. Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio (cf. o art.º 369º, n.º 1, sob a epígrafe “inversão do contencioso”).

            O regime de inversão do contencioso é aplicável, com as devidas adaptações, à restituição provisória da posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios, ao embargo de obra nova, bem como às demais providências previstas em legislação avulsa cuja natureza permita realizar a composição definitiva do litígio (art.º 376º, n.º 4, sob a epígrafe “aplicação subsidiária - das normas do ´procedimento cautelar comum` - aos procedimentos cautelares”).

            18. A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.

            Entende-se, pois, que nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito acautelado - (prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar) - e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal; aquela prova stricto sensu do fundamento dessa providência determina, necessariamente, uma inversão do contencioso. O requerido poderá obstar à consolidação daquela tutela como tutela definitiva através de uma acção de impugnação (cf. os art.ºs 369º, n.º 1e 371º, n.º 1[24]).

            E no tocante às providências especificadas é a própria lei que determina aquelas onde pode ser requerida a inversão do contencioso (art.º 376º, n.º 4), sendo de concluir que a inversão se revela possível e ajustada quando a providência cautelar requerida - de carácter nominado ou inominado - não tiver um sentido manifestamente conservatório, situação em que claramente se encontra o embargo de obra nova.[25]

            19. In casu, discutia-se a propriedade de determinados terrenos.

            Ficou demonstrada a natureza comunitária ou baldia dos terrenos onde os recorrentes procederam ao corte de madeira (baldios da comunidade do K (...) ).

            Daí, impunha-se dispensar a requerente de intentar a correspondente acção principal, invertendo o contencioso (art.ºs 369º, n.º 1 e 371º, n.º 1).

            20. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pelos requeridos/apelantes.


*

12.9.2017

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Vítor Amaral


[1] Na decisão do presente procedimento, a Mm.ª Juíza a quo veio a considerar que a questão da «ineptidão da p. i.» (por falta de causa de pedir), “fruto da resposta ao convite ao aperfeiçoamento, datada de 11.7.2016 [existe lapso manifesto porquanto se trata do despacho de 27.6.2016 – cf. fls. 251 e 256], ficou (…) ultrapassada pois foram alegados factos bastantes (com a identificação do local onde ocorreram os cortes e sua correspondência às parcelas dos baldios)”.
[2] Cf. o documento de fls. 146 verso/207 verso (escritura de compra e venda de 02.8.1944).
[3] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[4] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respectivamente.
[5] Cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.
[6] Veja-se o Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, Vol. V, pág. 140.
[7] Neste sentido, o acórdão do STJ de 02.3.2011-processo 161/05.2TBPRD.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[8] Vide, de entre vários, Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 671 e os acórdãos do STJ de 21.5.1998, 22.6.1999, 30.9.2004-processo 04B2894 e 06.7.2011-processo 7295/08.0TBBRG.G1.S1, in CJ-STJ, VI, 2, 95; BMJ 488º, 296 e “site” da dgsi, respectivamente.
[9] Preceitua-se no referido normativo: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
[10] Vide, de entre vários, A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 142 e seguinte e Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 670.

[11] Tendo a Mm.ª Juíza a quo decidido da seguinte forma: «Antes de mais e porque vem suscitada, em sede de oposição, a questão da ilegitimidade da requerente, cumpre esclarecer que, de acordo com a acta de constituição, datada de 15.8.1997 (cf. doc. de fls. 258 v e ss.), a Assembleia de Compartes (...) foi composta e constituída de acordo com o disposto nos arts. 14º e ss. da Lei dos Baldios, pelo que a mesma se encontra validamente em juízo e goza de legitimidade.»
[12] Na redacção originária da Lei n.º 68/93, de 04.9, rezava o mesmo n.º 3: Os membros da mesa da assembleia de Compartes (...) , bem como do conselho directivo e da comissão de fiscalização, são eleitos por períodos de dois anos, renováveis, e mantêm-se em exercício de funções enquanto não forem substituídos.
[13] E o legislador tem providenciado pelo alargamento da definição de “comparte” – cf. os art.ºs 4º da Lei n.º 39/76, de 19.01 [São compartes dos terrenos baldios os moradores que exerçam a sua actividade no local e que, segundo os usos e costumes reconhecidos pela comunidade, tenham direito à sua fruição], 1º, n.º 3 da Lei n.º 68/93, de 04.9 (versão primitiva) [São compartes os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio] e a actual redacção do mesmo artigo (introduzida pela Lei n.º 72/2014, de 02.9) [São compartes os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril].
   Vide, a propósito, Jaime Gralheiro, Comentário à Nova Lei dos Baldios, Almedina, 2002, págs. 11 e seguinte.
[14] Vide Jaime Gralheiro, ob. cit., págs. 145 e seguinte.

[15] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 15.09.2011-processo 1079/07.0TVPRT.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[16] Vide A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 127 e seguintes.
    De resto, quando o legislador introduziu um efectivo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL n.º 39/95, de 15.02, deixou expresso no preâmbulo deste diploma, nomeadamente:
   «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
   Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
   A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
(…)
   Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado (…).»

[17] O que o Fernando Dias disse, não difere do que o requerido afirmou como “testemunha” [perante situação similar da aldeia de Decabedelos/concelho de Pampilhosa da Serra] em audiência de julgamento da acção em que aquele era interessado: “naquela zona não havia baldios…” [cf. o acórdão desta Relação de 17.6.2014-processo 17/09.0TBPPS.C1, transitado em julgado, subscrito pelo aqui relator].
[18] Numa singular manifestação do carácter hiante e voraz do direito de propriedade… – vide, a propósito, Orlando de Carvalho, “Continuação” da obra Direito das Coisas, Colecção Perspectiva Jurídica/Universidade, Coimbra, 1977, sob o enquadramento “As grandes formas de ordenação do domínio. Modalidades de direitos das coisas”, ponto 6.

[19] Cf. o acórdão da RC de 02.02.2016- Apelação 2682/14.7T8VIS-D.C1 (também subscrito pelos aqui relator e 1ª adjunta), publicado no “site” da dgsi.
[20] Vide, entre outros, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, págs. 988 e seguinte.
[21]Vide Rogério E. Soares, Sobre os baldios, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, pág. 295.

[22] Cf. o Parecer n.º 37/87 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in DR, 2ª série, n.º 39, de 17.02.1988.

[23] Preceitua o referido normativo: “Os compartes usufruem os baldios conforme os usos e costumes locais e gerem de forma sustentada, nos termos da lei, os aproveitamentos dos recursos dos respectivos espaços rurais, de acordo com as deliberações tomadas em assembleia de compartes.”

[24] Preceitua tal normativo: Sem prejuízo das regras sobre a distribuição do ónus da prova, logo que transite em julgado a decisão que haja decretado a providência cautelar e invertido o contencioso, é o requerido notificado, com a advertência de que, querendo, deve intentar a acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado nos 30 dias subsequentes à notificação, sob pena de a providência decretada se consolidar como composição definitiva do litígio.

[25] Vide, sobre este ponto, entre outros, Carlos Lopes do Rego, Os princípios orientadores da Reforma do Processo Civil, in “Julgar”, n.º 16, págs. 109 e seguintes; Miguel Teixeira de Sousa, blogue do IPPC/Providências cautelares; garantia autónoma; medida da prova; inversão do contencioso necessária - comentário ao acórdão da RL de 08.9.2015-processo 74/14.7T8LSB.L1-7 (publicado no “site” da dgsi).

   Cf., ainda, o acórdão da RP de 19.5.2014-processo 2727/13.8TBPVZ.P1 [com o seguinte sumário: «I - A inversão do contencioso prevista no art.º 369º, n.º 1 do CPC só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e, tendo em conta o elenco previsto no art.º 376º, n.º 4 do mesmo diploma legal, apenas se a providência cautelar requerida de carácter nominado ou inominado - não tiver um sentido manifestamente conservatório. II - A inversão não é, deste modo, aplicável às restantes providências especificadas previstas no CPC, nomeadamente, ao Arresto, ao Arrolamento e ao Arbitramento de Reparação Provisória.»], publicado no “site” da dgsi.