Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
132/11.0TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PROCESSO DE EXECUÇÃO
Data do Acordão: 07/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – SECÇÃO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 281.º DO CPC
Sumário: 1 - Em todas as hipóteses de deserção da instância consideradas no art. 281.º do CPC se exige e alude à “negligência das partes”.

2 - Assim, embora o art. 281.º/5 do CPC, a propósito do processo de execução, diga que se “considera deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial”, tal não obsta a que, por despacho, se proceda à apreciação da imputação subjectiva da paralisação processual.

3 - Estando apenas retratado nos autos, em termos de paralisação processual, a ausência de actos por parte do agente de execução, tal é insuficiente para, sem notificar o exequente para se pronunciar sobre tal paralisação processual, estabelecer a sua negligência na paragem do processo.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório
A... , SA, com sede em Lisboa, intentou execução para pagamento de quantia certa contra B... e C... , identificados nos autos, para haver deles a quantia de € 7.260,20 e juros; indicando como agente de execução D... , com domicílio na (...) , em Lisboa.
Não havendo lugar a despacho liminar (a execução deu entrada em 15/02/2011), foi notificada a Sra. AE indicada para iniciar as diligências de penhora, diligências que conduziram à penhora de 1/3 do vencimento do executado; até que – prosseguindo a Sra. AE em diligências com vista ao apuramento de bens susceptíveis de penhora – a Sra. AE, em 24/04/2015, notificou o Exequente do resultado da consulta efectuada ao Banco de Portugal (nos termos do art. 749º/6 do CPC), solicitando-lhe informação sobre quais os bancos que pretendia notificar para efeitos de penhora, tendo o Exequente, em 08/05/2015, informado não ter interesse na penhora de saldos bancários e solicitado que se “efectuassem novas pesquisas à base de dados da Autoridade Tributária e da Conservatória do Registo Predial ao abrigo do art. 9º do DL n.º 4/2013, de 11/01, a fim de apurar eventuais bens imóveis da propriedade dos Executados”.

Em 29/02/2016 – sem que, após 8/05/2015, os autos espelhem quaisquer diligências efectuadas pela Agente de Execução – foi o exequente notificado pela secretaria do tribunal (uma vez que os autos se encontravam a aguardar o impulso processual há mais de seis meses) da extinção da instância, nos termos dos art. 277º, alínea c), e 281º, nº 5, ambos do CPC.

Ao que o exequente “respondeu”, em 04/03/2016, sustentando que os autos não aguardam o seu impulso processual, mas sim a realização pela Sra. Agente de Execução das diligências solicitadas em 08/05/2015.

Foi então aberta conclusão, tendo a Exma. Juíza, em 04/04/2016, proferido o seguinte despacho:

“ (…) Reclamação da deserção da instância: Veio o exequente reclamar da deserção da instância, verificada por cota datada de 29.2.2016, alegando, para o efeito e síntese, que se encontra a aguardar que o sr. AE localize bens penhoráveis, nomeadamente os que indicou no requerimento de 8.5.2015.

A última intervenção do exequente data de 8.5.2015. Desde então e até à notificação da cota supra referida que o exequente nada requereu (nomeadamente quanto ao comportamento do AE).

Razão pela qual e estando os autos sem qualquer movimentação há bem mais de seis meses, não pode concluir-se de outra forma que não seja pela negligência do exequente (em última linha, dado que que lhe cabe reagir contra eventuais paragens nas diligências executivas não podendo ficar a aguardar, indefinidamente, por comunicações do AE, sendo-lhe exigível uma atitude activa na condução e acompanhamento do processo), pelo que confirmo o acto da secretaria e julgo deserta a presente instância – art. 281º, n.º 1 e 5, do NCPC. (…)”

Inconformado com tal decisão, interpôs o exequente o presente recurso, visando que a mesma seja “revogada e substituída por outra que ordene a notificação ao Exequente de que os autos se encontram sem impulso processual há mais de seis meses, para requerer o que tiver por conveniente, sendo remetida em simultâneo notificação ao Sr. AE para informar o resultado das diligências solicitadas pelo Exequente em 08/05/2015

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A) Entende o MM Juiz de Direito que os autos se encontram sem impulso processual desde 08/05/2015, e que desde então o Exequente nada requereu, pelo que estariam os autos sem tramitação há mais se seis meses, e nos termos do artigo 277º, alínea c) e artigo 281º, nº 5, ambos do CPC, extinguiu a instância.

B) Em 08/05/2015, juntou aos autos comunicação com referência nº 1028170, na qual solicitava a realização de outras diligências, no entanto, a AE não efectuou as diligências solicitadas, ou quaisquer outras.

C) Pelo que, o último acto processual foi praticado pelo Exequente, restando saber se tal ausência de tramitação processual é imputável ao exequente, ainda que a título de negligência.

D) A resposta deverá ser negativa. Pese embora caiba ao exequente acompanhar o processo e impulsionar os autos, a verdade é que, o agente de execução exerce as funções em regime de profissão liberal, não estando no processo em concurso de mandato com o mandatário judicial do exequente, mas como auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente.

E) Logo a sua actuação omissiva, pela não realização das diligências solicitadas, não poderá ser imediata e irreversivelmente imputada ao exequente, havendo que notificar este último para se pronunciar sobre a paralisação processual.

F) Não resulta da lei que o Exequente tenha sempre que impulsionar os autos e reagir contra toda e qualquer aparente paralisação superior a seis meses, ainda que tal paralisação não lhe possa ser imputada, nem lhe tenha sido comunicada, mas apenas e tão só, quando os autos se encontrem a aguardar o impulso do próprio exequente, o que não se verifica no caso dos autos.

G) Na verdade, só após a notificação de 29/02/2016, que determinou a deserção dos autos, o Exequente foi confrontado com o estado dos autos, e com a não realização pela Sra. AE das diligências requeridas.

H) Não se poderá concluir que o exequente, por inércia ou descuido, haja negado o necessário impulso à execução mas, contrariamente, que era ao agente de execução que incumbia informar a exequente das diligências solicitadas.

I) Não se cumprindo tal formalismo, não se pode afirmar que exista qualquer negligência da exequente em promover o andamento processual.

J) Concluindo-se que o não andamento do presente processo não pode ser, desde já, imputado à falta de impulso do Exequente e/ou à sua negligência; e que, em consequência, não podia ser declarada a deserção e extinta a instância executiva.

K) Razão pela qual o despacho recorrido violou o artigo 281º nº 5 do Código de Processo Civil devendo ser revogado, o que a final se requer.

Não foi apresentada qualquer contra alegação.

Dispensados os vistos cumpre decidir.


*

II – Fundamentação

A – Os elementos factuais pertinentes são os que já constam do relatório precedente.

B – Quanto à discussão de direito:

Quando, em 04/04/2016, foi proferido o despacho de que se recorre, estava o processo – está fora de questão e o exequente/apelante não o discute – sem andamento objectivo há mais de 6 meses.

A questão – toda a questão da apelação – está pois em saber se tal não andamento pode ser imputado à negligência do exequente/apelante.

Em acórdão proferido em 02/06/2015, na apelação n.º 432/09.C1 do T. F. e Menores da Comarca de Viseu (Lamego), sustentámos o seguinte:

“ (…) Importa começar por notar que se começa a desenhar jurisprudência que se afasta da aplicação cega e automática do art. 281.º/1 do CPC, ou seja, não obstante a semelhança de redacção entre o actual art. 281.º/1 do CPC e o art. 285.º do anterior CPC (este, é certo, respeitante à suspensão da instância), entende-se que não se deve ligar, automática e cegamente, ao mero decurso do prazo, o efeito agora previsto na lei; compreensivelmente, uma vez que não é a mesma coisa suspender automaticamente “apenas” a instância (como se fazia, antes, no art. 285.º do CPC) e extingui-la automaticamente (como agora sucede com o art. 281.º/1 do novo CPC).

Nesta linha de raciocínio, suavizando a aparente severidade resultante do art. 281.º/1 do CPC, começa a sustenta-se que a negligência das partes não deve/pode ser presumida e, em consequência, que sobre tal questão (e para dela apurar) deve ser aberto um contraditório prévio, nos termos do art. 3.º/3 do CPC[1].

Concordamos que o actual art. 281.º/1 do CPC não deve ser interpretado/aplicado com a “rigidez” e “automatismo” do antigo art. 285.º do CPC[2]; assim como também admitimos que haverá casos em que o contraditório prévio se mostra, em face de elementos resultantes dos autos, desnecessário e inútil, tanto por a negligência ser já patente, como por ser evidente a falta dela.”

E em acórdão mais recente, proferido em 01/12/2015, na apelação n.º 2.061/10.C1 da Comarca de Castelo Branco, acrescentámos o seguinte:

“Embora o caso dos autos/recurso tenha a ver com um processo de execução e seja subsumível ao 281.º/5 (e não ao 281.º/1), a verdade é que em todas as hipóteses de deserção consideradas no art. 281.º do CPC se exige e alude à “negligência das partes”.

Efectivamente, importa ter presente o seguinte:

Dantes, no CPC revogado, a deserção da instância pressupunha um anterior despacho de interrupção da instância, de natureza constitutiva, onde podiam/deviam ser apreciadas as razões da paralisação[3]; razão por que, depois, a deserção podia operar, no CPC revogado, ope legis.

Agora, embora o art. 281º/4 do NCPC corresponda, ipsis verbis, ao art. 291º/4 do VCPC, face ao desaparecimento do prévio despacho de interrupção da instância, a apreciação das razões da paralisação tem que ser feita quando se profere o despacho de deserção[4] ou quando, como é o caso do art. 281.º/5, se é chamado a dizer/declarar a instância do processo executiva como estando já deserta.

De facto, embora o art. 281.º/5 do NCPC diga que “considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial”, também alude/exige a “negligência das partes”, pelo que a aparente inconciliabilidade se resolve pela negação da natureza constitutiva a um tal despacho, mas sem que tal obste a que no mesmo se proceda à apreciação das razões da paralisação na data, passada, em que a deserção possa ter produzido os seus efeitos.

É justamente por tudo isto que, para apurar da negligência das partes, no âmbito de despacho a proferir nos termos do art. 281.º/5 do NCPC, é normalmente conveniente sujeitar a contraditório o que objectivamente resulta dos autos.

É – tem que ser – o caso dos autos.

Apenas está retratada nos autos, em termos de paralisação processual, a mera ausência de actos por parte do agente de execução; objectividade que, a nosso ver, é insuficiente para estabelecer a negligência do exequente na paragem do processo.

É verdade que incumbe ao exequente acompanhar o processo e impulsionar os autos (e o agente de execução), porém, importa não esquecer que o agente de execução, sendo embora escolhido pelo exequente (e exercendo as funções em regime de profissão liberal), não tem com ele um contrato de prestação de serviços, não está no processo “como mandatário do exequente, ainda que sem representação, mas como auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente”[5].

E, sendo esta a veste do agente de execução, a sua actuação omissiva, consistente em não andar com o processo, não se “repercute” automática e irreversivelmente sobre o exequente – sem que este seja notificado para se pronunciar sobre a paralisação processual decorrente de tal actuação omissiva – e não pode valer e ser iuris et de iure considerada como inobservância, por negligência, do ónus de impulso processual por parte do exequente.

É quanto basta para concluir que o não andamento do presente processo não pode ser, desde já, imputado à falta de impulso do banco exequente e/ou à sua negligência; e que, em consequência, não podia ser declarada a deserção e extinta a instância executiva.

Continuamos a sustentar o mesmo[6].

Aliás, em acórdão ainda mais recente, proferido em 20/04/2016, na apelação n.º 1/14.1TBVIS.C1 da Comarca de Viseu, voltámos a referir o seguinte:

“ (…) Importa ter presente:

 - Que em todas as hipóteses de deserção consideradas no art. 281.º do CPC se exige e alude à “negligência das partes”.

 - Que, dantes, no CPC revogado, a deserção da instância pressupunha um anterior despacho de interrupção da instância, de natureza constitutiva, onde podiam/deviam ser apreciadas as razões da paralisação; razão por que, depois, a deserção podia operar, no CPC revogado, ope legis.

Ou seja, agora, embora o art. 281º/4 do NCPC corresponda, ipsis verbis, ao art. 291º/4 do VCPC, face ao desaparecimento do prévio despacho de interrupção da instância, a apreciação das razões da paralisação tem que ser feita quando se profere o despacho de deserção; e, no caso do art. 281.º/5 do NCPC, quando se é chamado a dizer/declarar a instância do processo executiva como estando já deserta.

É justamente por tudo isto que, para apurar da negligência das partes, no âmbito de despacho a proferir nos termos do art. 281.º do NCPC, é normalmente conveniente sujeitar a contraditório o que objectivamente resulta dos autos.”

É – tem que ser – o caso dos autos.

Apenas está retratada nos autos, em termos de paralisação processual, a objectiva ausência de impulso/andamento processual; objectividade que, a nosso ver, não permite, sem ouvir o exequente, “decretar” a sua negligência na paragem do processo.

Dito doutra forma, a “solução final” (extinção da instância, por deserção) que se pretende dar ao processo, não pode ser sentenciada sem sujeitar a contraditório o que objectivamente resulta dos autos.

Admitimos que haverá casos em que o contraditório prévio se mostre, aparentemente, em face de elementos resultantes dos autos, desnecessário e inútil, tanto por a negligência ser já patente, como por ser evidente a falta dela; em todo o caso, mesmo em tais hipóteses, há (sempre) que admitir que possa ter acontecido algo que, num plano de normalidade, não se entrevê, pelo que há que conceder ao “visado” a possibilidade de o explanar.


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É quanto basta para concluir que o não andamento do presente processo não pode ser, desde já, imputado à falta, negligente, de impulso do exequente; e que, em consequência, não podia ser, desde já, declarada a deserção e extinta a instância executiva.

*

III – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se que a execução prossiga, designadamente com a notificação do exequente para se pronunciar sobre a paralisação processual, retratada na ausência de actos por parte do agente de execução entre 08/05/2015 e 29/02/2016.

Sem custas.


Coimbra, 06/07/2016

(Barateiro Martins)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)



[1] Cfr. v. g. Ac da Rel. Lisboa de 09/09/2014 e Ac. Rel. Porto de 02/02/2015 e 24/02/2015, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[2] Interpretação que foi pacificamente aplicada nos tribunais ao longo de décadas.

[3] Embora também se entendesse que bastaria um despacho a mandar aguardar o decurso do prazo da interrupção, por o mesmo conter uma decisão implícita (Ac. do STJ de 14.9.06, in dgsi).

[4]Com a extinção da figura da interrupção da instância, o requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transita para a deserção (…) Diferentemente do que ocorria no direito anterior, a instância não se considera deserta "independentemente de qualquer decisão judicial" - Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao CPC, 2013, pág. 249/250.
[5] Rui Pinto, Manual da Execução, pág. 134
[6] Cfr., mais recentemente, Ac. da Rel. Lisboa de 26/02/2015, 12/05/2015, 16/06/2015, 9/07/2015, 15/10/2015 e 4/11/2015 e Ac. Rel. Porto de 28/10/2015, todos consultáveis em www.dgsi.pt.