Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
224/12.8TBCTB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRESUNÇÃO
REGISTO
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1311º DO C. CIVIL; 7º DO C. R. PREDIAL.
Sumário: i. A norma do art.º 1311.º do Código Civil possibilita ao proprietário do bem exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

ii. Na acção de reivindicação não basta ao autor reivindicante demonstrar a aquisição derivada, provando, por ex., que comprou a coisa, já que a compra não é constitutiva, mas apenas translativa do direito de propriedade, antes se lhe impondo a prova de que o direito já existia no transmitente, anterior proprietário.

iii. E daí que se exija ao reivindicante que prove as aquisições dos sucessivos alienantes, na cadeia ininterrupta que se mostre existir até que termine na aquisição originária de um deles, como sucede, para os imóveis, com a acessão e, por excelência, com a usucapião.

iv. Porque essa prova será as mais das vezes muito ou extremamente difícil é entendimento comum dos aplicadores do direito de que ao reivindicante basta alegar a presunção derivada do registo para cumprir o ónus da alegação da propriedade na acção de reivindicação.

v. Mostrando-se que, no registo predial, a aquisição do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada se encontrava inscrita a favor do transmitente à data em que o autor dele a adquiriu derivadamente, não necessita o autor de produzir afirmações acerca da aquisição pelo transmitente desse direito, nem de provar essas afirmações. A lei presume, directamente, a existência do direito do transmitente e, assim, ultrapassada está a prova diabólica, porque encontrado o vendedor originário.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

B…, LDA, sociedade comercial por quotas, com sede na Rua …, veio, nos termos do artigo 146.º do CIRE, intentar a presente ACÇÃO DECLARATIVA SOB A FORMA DE PROCESSO SUMÁRIO, DE SEPARAÇÃO E RESTITUIÇÃO DE BENS DA MASSA INSOLVENTE, contra;

- J…, insolvente e nos autos melhor identificado - MASSA INSOLVENTE de J… -, identificado nos autos, a citar na pessoa da Administradora da Insolvência, representante legal da massa insolvente;

- CREDORES, melhor identificados a fls. 64 dos autos principais e

- Credor hipotecário – G…, SA, com sede na R …;

Pedindo que seja ordenada a restituição ao Autor do veículo com a matrícula …-UB, declarando-se o mesmo como proprietário do mesmo e ordenando-se o cancelamento da hipoteca registada pela AP… de 01/02/2007.

Alegou, para o efeito, que adquiriu, mediante contrato celebrado com a empresa Jeep…, S.A., a viatura apreendida nos autos de insolvência com o n.º de processo 224/12.8TBCTB, da qual a presente ação constitui apenso, a qual se encontra registada em nome do insolvente, desconhecendo que a mesma se encontra onerada com uma hipoteca constituída a favor da ré G…, SA, tendo passado, desde meados de 2008, a utilizar tal veiculo, à vista de toda a gente, pelo que o mesmo lhe pertence e não ao insolvente, pois que o mesmo lhe foi entregue e por ele pagou o preço acordado.

Defende, também, que não obstante se encontrar registada a hipoteca, esta é nula, uma vez que se trata de hipoteca de bens alheios.

A ré G…, SA contestou alegando, em síntese, que a hipoteca sobre o veículo em causa a favor da Demandada G… encontra-se registada desde 01.02.2007 e nos termos do disposto no n.º 1 do art. 5º do CRP, os factos sujeitos a registo produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (aplicável ex-vi do art. 29º do CRAutomóvel), pelo que a hipoteca é, desde essa data, oponível a terceiros.

Alega que no verão de 2008 a autora poderia e deveria, através de simples consulta na Conservatória do Registo Automóvel, verificar quer a identidade do proprietário registado, quer a existência de ónus e encargos que impendiam sobre o veículo automóvel que pretendia adquirir.

Acrescenta que a autora não tem qualquer direito de retenção sobre o veículo em causa, dado que não se encontra preenchido um único dos requisitos estabelecidos na lei para o efeito, além de que a autora não faz qualquer prova quanto aos pagamentos supostamente efectuados, às despesas tidas ou aos danos causados pelo veículo automóvel.

A ré MASSA INSOLVENTE de J…, identificado nos autos, representada pela Sr.ª Administradora de Insolvência, contestou, alegando que os “hipotéticos negócios” existentes entre a Autora e o Insolvente foram posteriores á data da constituição da hipoteca, pelo que a existirem prevalece a esta última.

A Sr.ª Juiz do 2.º Juízo do Tribunal de Castelo Branco profere, a final, a seguinte decisão:

“Em face do exposto, vistas as já referidas normas jurídicas e os princípios indicados, o Tribunal julga a acção totalmente improcedente e absolve as rés dos pedidos formulados pela autora.”.

A autora, B…, LDA, dela interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões: …

2. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções dos apelantes cumpre apreciar as seguintes questões:

Aferir se o bem apreendido nos autos de Insolvência, de que a presente ação constitui apenso, é pertença da autora e se esta pode pedir a sua entrega, apreendido que foi para a massa insolvente.

A 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

1. Por sentença de 10/02/012, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de J...

2. A sentença foi publicada no DR, III Série, de ...

3. Nos autos de insolvência com o n.ºs 224/12.8TBCTB foi indicada na relação de bens da massa falida, o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Mercedes, modelo E 220 CDI, matrícula …-UB.

4. O veículo identificado em 3. tem inscrito como proprietário o insolvente e está onerado com uma hipoteca a favor de G…, SA, conforme consta das Apresentações 07303, em 01/02/2007 e 7304 em 01/02/2007, respetivamente.

5. A 19/12/2006 o insolvente adquiriu, mediante contrato verbal de compra e venda, o veículo a J...

6. Foi celebrado um contrato de mútuo e constituição de hipoteca voluntária, em 12/12/2006, com base no qual foi registada a hipoteca sobre o veículo identificado em 3., em 01/02/2007.

7. No contrato de mútuo figura como fornecedor do bem financiado ao insolvente a sociedade JEEP...

8. Em 2008 o veículo referido em 3.º encontrava-se nas instalações da referida sociedade, de que o insolvente era gerente e administrador.

9. Mediante documento denominado “proposta de compra e venda”, em Maio/Junho/Julho de 2008 ajustou com a sociedade “Jeep…”, através do insolvente, a compra do referido veículo pelo preço de 29.000,00 euros.

10. A título de sinal e princípio de pagamento a Autora entregou naquela data, ao insolvente e à sociedade deste, o montante de € 5.000,00.

11. O remanescente do preço, teve lugar como acordado, tendo a Autora entregue mais €4.000,00 em 2008 e o restante em 2009.

12. O que Autora, fez.

13. Paga a totalidade do preço, o insolvente deu à Autora o documento que se junta sob doc. n.º 4, para que esta procedesse ao registo do veículo referido em 3.º.

14. A Jeep… entregou ao insolvente o veículo marca Mercedes, matrícula …-PI, a título de retoma, por conta do sinal e antecipação do pagamento do preço estipulado, à qual atribuíram o valor de €10.500,00, tendo a dita firma entregue o veículo supra referido à Autora, que com ele passou a circular, assim como emitiu uma autorização para circulação.

15. O insolvente em 2008, com o sinal e princípio de pagamento, e a retoma do veículo entregou o veículo identificado em 3. à Autora, bem como a respetiva autorização de circulação.

16. Sendo que actualmente tem ainda um registo de penhora a favor da Fazenda Nacional.

17. A Autora desconhecia que se encontrava inscrita hipoteca a favor de terceiro.

18. A Autora continuou a utilizar o veículo desde o verão de 2008.

19. Não foi efectuado registo provisório da hipoteca anterior à aquisição do veículo.

20. A hipoteca voluntária foi levada ao registo a 01/02/2007.

21. A credora hipotecária G…, SA pagou a quantia referida no contrato de mútuo à sociedade “Jeep…”.

22. A credora hipotecária resolveu o contrato de mútuo face ao incumprimento em 2009.

23. A autora passou a circular com o veículo, à vista de toda a gente, desde meados de 2008.

24. No verão de 2008 o veículo automóvel de marca Mercedes-Benz, modelo Classe E Diesel, com a matrícula …-UB, era propriedade do Insolvente e encontrava-se registado em nome deste, existindo igualmente uma hipoteca registada a favor da Demandada G...

25. O veículo automóvel em causa está registado em nome do Insolvente.

26. O referido veículo encontra-se onerado com uma hipoteca a favor da credora G…, registada desde 1-2-2007.

Avançando.

O direito de separação dos bens apreendidos para a massa insolvente existe, designadamente, no que concerne aos “bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa” – art.º 141, nº 1, c), do CIRE.

Declarada a insolvência, ordenada a imediata apreensão de bens e entrega ao administrador nomeado - art. 36º, alínea g) - e fixado o prazo para as reclamações de créditos - art.º 36º, alínea j -, quem se sinta ofendido na sua posse e/ou direito de propriedade, em consequência da apreensão tem ao seu dispor mecanismos próprios para fazer valer o seu direito à restituição e separação dos bens indevidamente apreendidos para a massa insolvente, nomeadamente, através de acção proposta contra a massa insolvente, em verificação ulterior, lavrando-se termo de protesto no processo principal de insolvência, nos termos do art.º 146º.

A acção para separação e restituição de bens tem como fundamento a apreensão de bens para a insolvência que se revela ilícita porquanto, designadamente, estes são da exclusiva propriedade de terceiro.

Ou seja, regula-se aqui o exercício do direito de fazer separar da massa esses bens, o prazo de que o titular dispõe para o efeito e o processo a seguir.

Com esta ferramenta processual, visa-se a tutela de terceiros que tenham visto bens seus indevidamente apreendidos para a massa, sendo certo que a procedência da reclamação será apreciada de acordo com as regras de direito substantivo aplicáveis em cada caso, regulando-se em tal preceito tão só as condições e termos do exercício do direito à separação.

Como todos sabemos, a norma do art.º 1311.º do Código Civil – que será o diploma a citar sem menção de origem - possibilita ao proprietário do bem, exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence – é o direito natural de sequela.

Tal acção pressupõe uma situação material incompatível com o direito, que se analisa na circunstância de a coisa se encontrar, não na posse do seu proprietário, ou de quem a detenha com permissão deste, mas na de terceiro, sendo, pois, proposta pelo proprietário não possuidor, contra o detentor ou possuidor, não proprietário.

O pedido próprio desta acção é o do reconhecimento judicial da propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e a consequente restituição do que lhe pertence, sendo que a causa de pedir, emerge dos factos concretos de que decorreu a aquisição pelo reivindicante do domínio sobre a coisa.

Na acção de reivindicação não basta ao autor reivindicante demonstrar a aquisição derivada, provando, por ex., que comprou a coisa, já que a compra não é constitutiva, mas apenas translativa do direito de propriedade, antes se lhe impondo a prova de que o direito já existia no transmitente, anterior proprietário - Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil, Anotado”, III, pág. 115.

Ora, na acção de reivindicação compete ao autor, em primeiro lugar, provar que é proprietário da coisa, e em segundo lugar, que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado, competindo a este, se for o caso, provar que é titular de um direito que legitime a recusa da restituição - art.º 342º.

Com efeito, os direitos de que uma pessoa è titular no confronto de outra têm a sua origem em factos jurídicos que os constituem, pelo que se elas deles se pretenderem valer em juízo têm, em regra, de os alegar e provar, ou seja, devem demonstrar a sua realidade.

Escreve, neste particular, a recorrente:

“A apelante não se resigna com o enquadramento jurídico normativo do Tribunal “a quo”, na fundamentação da sentença, no momento em enquadra a presente acção como uma Acção de Reivindicação” e aplica o instituto jurídico “ da usucapião”.

A autora adquiriu o veículo mediante a celebração de um contrato de compra e venda (cfr. artigo 874.º do Código Civil) - cfr. pontos 9. A 15. da matéria de facto provada (…) Os factos provados, ou melhor, nenhum dos factos provados, ou alegados, referem que o veículo alguma vez tenha saído da posse da autora desde 2008, nem se provou, como refere a sentença, qualquer facto do qual decorresse qualquer indício de violência na posse exercida pela autora.

A massa insolvente não é possuidora nem detentora do veículo, e o mesmo foi relacionado apenas por se encontrar ainda registado em nome do insolvente, à data da sentença de insolvência, inexistindo acção de reinvidicação, se o autor, estando já na posse da coisa, se limita a pedir o reconhecimento do direito de propriedade, tornado duvidoso por qualquer circunstância”.

Ao abrigo do artigo 408.º/1 do CC, que consagra o princípio da consensualidade – consensos parit proprietatem – a constituição ou transferência dos direitos reais sobre uma coisa certa ocorre, em regra, por mero efeito do contrato.

O tribunal recorrido errou na determinação da norma aplicável na dupla variante de erro na qualificação e erro na subsunção, ao aplicar o instituto da usucapião e ao subsumir factos que não integram a acção de reinvindicação, respectivamente.

Ao abrigo do disposto no artigo 408/1.º do CC o tribunal deveria, face aos factos assentes, ter reconhecido a autora como proprietária do veículo, e ordenado que o mesmo não integrasse a massa insolvente”.

A Sr.ª Juiz do 2.º Juízo do Tribunal de Castelo Branco, para justificar a improcedência da acção, escreve assim:

“Face à factualidade dada como provada, o veículo em causa encontra-se registado em nome do insolvente.

Nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial, sob a epígrafe presunções derivadas do registo, “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

Estabelece-se aqui uma presunção “juris tantum”, o que significa que quem tem a seu favor o registo beneficia da presunção de que o direito lhe pertence, escusando de provar o facto que a ela conduz (cfr. art. 350, nº 1 do Cód. Civil).

Cabe, por isso, ao interessado em ilidir a presunção legal decorrente do registo alegar e provar factos demonstrativos do contrário (cfr. arts. 350, nº 2 e 344 do Código Civil).

No caso dos autos, ficou demonstrado que a autora adquiriu o veículo em causa mediante um contrato celebrado com a sociedade de que o insolvente era sócio gerente, tendo, por ele, pago o preço acordado, mediante a entrega do da viatura referida em 3. da matéria de facto provada.

Na verdade, muito embora o veiculo tenha sido adquirido pelo insolvente, em cuja titularidade ainda se mostra registado, este encontrava-se exposto para venda nas instalações da sociedade “Jeep…”, sendo certo que, o contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual e a obrigatoriedade do registo é meramente declarativa ou funcional, considerando o acordo das partes (cfr. pontos 9. a 15. da matéria de facto provada), e, ainda, a prática, comummente reconhecida da omissão do registo em nome das sociedades que se dedicam com escopo lucrativo à venda de veículos automóveis (com vista a obstar á desvalorização das viaturas transacionadas), tendo ainda como certo que o insolvente era sócio gerente da dita sociedade (cfr. ponto 8. da matéria de facto provada), representando-a, entende-se que não nos encontramos perante uma venda a non domino.

Temos, assim, que a autora adquiriu o veículo mediante a celebração de um contrato de compra e venda (cfr. artigo 874º do Código Civil) e, portanto, de forma derivada.

Ora, de acordo os pedidos formulados de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel apreendido nos autos de insolvência supra referidos e de restituição do mesmo, configura-se a presente ação como uma verdadeira acção de reivindicação.

Numa acção desta natureza ao autor não basta invocar uma forma de aquisição derivada, como são, por exemplo, a compra e venda e a doação, uma vez que estas não se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito.

É, assim, necessário que o autor alegue uma forma de aquisição originária da propriedade, como é a usucapião (…)

No caso concreto em análise, está provado que a autora passou a circular com o veículo, à vista de toda a gente, desde meados de 2008, presumindo-se o animus, nos termos do art. 1252º, n.º 2 do Código Civil.

Por isso, há que concluir ter o autor a posse (corpus e o animus) do referido veículo.

A posse, porém, só conduz à usucapião se for pública e pacífica (arts. 1293º, al. a), 1297º e 1300º, n.º 1 do Código Civil) – os restantes requisitos apenas influem no prazo necessário à usucapião - Cfr. Henrique Mesquita, “Posse”, Polis, 4, Verbo, p. 1432.

A posse pública está provada como resulta dos factos constantes, ou seja, uma posse exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados, uma posse exercida à vista de toda a gente (art. 1262º do Código Civil).

Não se provou qualquer facto do qual decorresse qualquer indício de violência na posse exercida pela autora.

Quanto ao decurso de tempo, da matéria de facto provada resulta que tal a posse da autora existe desde meados de 2008.

Tratando-se o bem em causa de um móvel sujeito a registo, sendo certo que inexiste qualquer registo a favor da autora, apenas a posse com duração igual ou superior a dez anos poderia conduzir á aquisição originária do bem, v.g., por usucapião – cfr. artigo 1298º do Código Civil.

Ora, dúvidas não restam de que tal prazo não ocorreu ainda e, como tal, vetada ao insucesso fica a pretensão da autora, sendo a sua posse insusceptível de conduzir à aquisição originária do bem, logo, devendo improceder a presente ação de separação e restituição de bens da massa insolvente”.

Será assim?

Defende a apelante que não estamos perante uma acção de reivindicação, mas de simples apreciação positiva, tendo provado a existência do seu direito de propriedade, pelo que a acção deveria proceder.

No que concerne à natureza da acção, a recorrente não tem razão, como parece evidente.

A acção não é, manifestamente, de simples apreciação positiva, uma vez que não tem apenas por fim obter unicamente a declaração da existência de um direito ou de um facto – art. 4º nº 2 a) do Código do Processo Civil -.

Para se concluir assim, basta analisar os pedidos formulados na acção pela autora.

Termina assim o seu articulado:

“Nestes termos e nos demais de Direito e sempre com o douto suprimento de V. Ex.ª deverá a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência:

Ser ordenada a restituição ao Autor do veículo matrícula …-UB, declarando-se o mesmo como proprietário do mesmo e ordenando-se o cancelamento da hipoteca registada pela AP.7304 de 01/02/2007”.

Com todo o respeito pelo alegante, tais palavras configuram acção de reivindicação, sabido que esta, como todas as acções de condenação, comporta dois pedidos: o de reconhecimento do direito de propriedade e o de condenação na restituição.

No caso dos autos, é incontroverso que a autora, B…, LDA, pretende em termos substantivos accionar a reivindicação do seu veículo automóvel.

Agora, se era necessária tal forma complexa para defesa do seu direito de propriedade é questão que aqui não interessa dirimir – nomeadamente se o veículo se encontra já apreendido para a massa insolvente -, atenta a vinculação deste Tribunal à causa de pedir/pedido formulado pela autora.

Sendo certo que a qualificação pertence ao juiz, não pode, contudo, substituir a causa de pedir invocada pelos autores por uma outra, desde logo, em razão da amplitude com que tem que ser encarado o princípio do contraditório da parte contrária – Acórdão do STJ de 24.10.95, BMJ 450.ºpág. 443 e, mais recentemente, Acórdão do STJ de 11.10.07, retirado do site www.dgsi.pt.-.

Aliás e também decisivamente, como decorre do art.º 273.º do Código do Processo Civil, na falta de acordo só na réplica pode ser alterada a causa de pedir, jamais em alegações de recurso.

Ora, como todos sabemos, o direito de propriedade adquire-se - além do mais aqui não relevante - por contrato, que é uma forma de aquisição derivada, e por usucapião e acessão, que são formas de aquisição originária.

Mas, para a causa de pedir se mostrar completa haveria, desde logo, que alegar, quanto ao decurso de tempo - tratando-se o bem em causa de um móvel sujeito a registo -, posse com duração igual ou superior a dez anos.

Ora da matéria de facto provada resulta que tal a posse da autora existe apenas desde meados de 2008, logo, não poderia a autora usucapir.

Mas, não ocorrendo tal facto – até porque não foi alegado pela autora, porque ainda não se verificava – não poderia a 1.º instância, com todo o respeito pela ilustre julgadora, concluir pela improcedência total da acção.

Senão vejamos.

Pede-se que seja ordenada a restituição à Autora do veículo com a matrícula …-UB, declarando-se a mesma como proprietária do mesmo e ordenando-se o cancelamento da hipoteca registada pela AP.7304 de 01/02/2007.

Alegou, para o efeito, que adquiriu, mediante contrato celebrado com a empresa Jeep…, S.A., a viatura apreendida nos autos de insolvência com o n.º de processo 224/12.8TBCTB, da qual a presente acção constitui apenso, a qual se encontra registada em nome do insolvente, desconhecendo que a mesma se encontra onerada com uma hipoteca constituída a favor da ré G…,SA, tendo passado, desde meados de 2008 a utilizar tal veiculo à vista de toda a gente, pelo que o mesmo lhe pertence e não ao insolvente, pois que o mesmo lhe foi entregue e por ele pagou o preço acordado.

É certo que ao reivindicante, para fazer a prova de que adquiriu a propriedade, não basta, porém, alegar que a adquiriu por contrato realizado com o transmitente, insuficiência esta que decorre do facto de bem poder suceder que este não fosse o proprietário para lhe poder transmitir tal propriedade.

E daí que se exija ao reivindicante que prove as aquisições dos sucessivos alienantes, na cadeia ininterrupta que se mostre existir até que termine na aquisição originária de um deles, como sucede, para os imóveis, com a acessão e, por excelência, com a usucapião.

Porque essa prova será as mais das vezes, muito, ou extremamente difícil é entendimento comum dos aplicadores do direito o de que ao reivindicante basta alegar a presunção derivada do registo para cumprir o ónus da alegação da propriedade na acção de reivindicação - escreve-se no Acórdão do STJ de 7.7.99, - lido na CJ/STJ, Tomo II, pág. 164 que, para preencher a causa de pedir no aspecto em referência, basta a invocação da aquisição do prédio reivindicado e a da correspondente inscrição no registo, referindo concretamente: “A articulação entre esta exigência de prova de uma aquisição originária a fundamentar a existência do direito de propriedade invocado, por um lado, e a força da presunção resultante da inscrição registral de aquisição, por outro, faz-se no sentido de que a dita inscrição registral dispensa o seu titular de provar a aquisição originária, bem como a eventual cadeia de aquisições derivadas anteriores à aquisição que conseguiu fazer inscrever.

Só duas palavras acerca do contrato de compra e venda.

O artigo 408º do Código Civil diz-nos que “A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”.

O nosso direito perfilhou assim a solução da eficácia real imediata desses contratos, já acolhida como regra no Código de Seabra - artigo 715º (Alienação de coisas certas e determinadas) o qual determinava que, “nas alienações de coisas certas e determinadas, a transferência da propriedade opera-se entre os contraentes, por mero efeito do contrato, sem dependência de tradição ou de posse, quer material, quer simbólica, salvo havendo acordo das partes em contrário” -, em detrimento da eficácia meramente obrigacional oriunda da tradição romanística, a que o Código Civil alemão, por exemplo, se mantém nuclearmente fiel.

Como sabemos, este efeito real de transferência do domínio sobre a coisa, do vendedor para o comprador verifica-se desde logo pela mera celebração do contrato e no momento desta - aliás por remissão especialíssima do artigo 1317º, alínea a), a norma justamente vocacionada para a definição do momento de aquisição do direito de propriedade por modo de contrato.

No caso dos autos ficou demonstrado que a autora adquiriu o veículo em causa mediante um contrato celebrado com a sociedade de que o insolvente era sócio gerente, tendo, por ele, pago o preço acordado, mediante a entrega do da viatura referida em 3. da matéria de facto provada.

Mais, na verdade, muito embora o veículo tenha sido adquirido pelo insolvente, em cuja titularidade ainda se mostra registado, este encontrava- se exposto para venda nas instalações da sociedade “Jeep…”, sendo certo que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual e a obrigatoriedade do registo é meramente declarativa ou funcional, considerando o acordo das partes (cfr. pontos 9. a 15. da matéria de facto provada), e, ainda, a prática, comummente reconhecida, da omissão do registo em nome das sociedades que se dedicam com escopo lucrativo à venda de veículos automóveis (com vista a obstar á desvalorização das viaturas transacionadas), tendo ainda como certo que o insolvente era sócio gerente da dita sociedade (cfr. ponto 8. da matéria de facto provada), representando-a, entende-se que não nos encontramos perante uma “venda a non domino”.

É expressiva, nesse sentido, a motivação da Sr.ª Juiz do Tribunal de Castelo Branco, quando escreve:

“O insolvente elucidou o tribunal acerca dos termos do negócio celebrado com a autora, relativamente á venda do veículo a que se referem os autos, confirmando o preço da venda, o qual foi integralmente pago, tendo o veiculo sido entregue à autora, bem como a autorização de circulação respetiva. O insolvente, precisou, contudo, que a venda foi efetuada não por si, em nome individual, mas pela empresa da qual, à data, era sócio-gerente, a “Jeep…”.

No depoimento da testemunha D…, contabilista da autora, referiu que assistiu às negociações referentes á aquisição da viatura, tendo ficado acordados pagamentos parciais, sendo pago veiculo na totalidade assim que fossem entregues os documentos da viatura, já em nome da autora.

Referiu que o contrato foi com a JEEP… e não com o insolvente.

Referiu que lhe foram exibidos os documentos da viatura, designadamente o livrete e o registo de propriedade e o carro estava em nome de uma senhora, cuja declaração de venda, aliás já se encontrava assinada, inexistindo, naquela documentação, qualquer ónus ou encargo sobre a viatura.

A testemunha A… referiu que a autora, através do respetivo sócio gerente, desde que adquiriu o veículo passou a utilizá-lo, perante toda a gente, comportando-se como se fosse seu proprietário.

A testemunha B…, antigo sócio gerente da firma “JEEP…”, confirmou que em 2008 a viatura em causa se encontrava para venda nas instalações da empresa, desconhecendo em nome de quem se encontrava registado, tendo, depois sido vendido á autora, representada pelo seu sócio gerente, O Sr. C...

A testemunha M…, funcionário da ré “G…”, confirmou todos os elementos relativos ao contrato relativo ao financiamento da aquisição, pelo insolvente, da viatura em causa, tendo o montante correspondente ao financiamento sido entregue à fornecedora do bem, a “JEEP…” por meio de cheque e os pagamentos das, correspetivas, prestações mensais, foram, eram pagos pelo insolvente, através de desconto num conta bancária daquele.

Acrescentou que o insolvente deixou de efetuar pagamentos a partir de 2009, sendo que, a partir da 25ª prestação mais nada foi pago e o contrato foi resolvido.

Confirmou, ainda, que o financiamento foi garantido por hipoteca sobre a viatura vendida.

De referir que todos os testemunhos se apresentaram credíveis e circunstanciados, denotando isenção e objetividade, pelo que, todos eles se reputaram credíveis aos olhos do tribunal.

O tribunal alicerçou, igualmente, a sua convicção no teor dos documentos de fls. 12 e seguintes (certidão emitida pela Conservatória do Registo Automóvel relativa ao veiculo de matricula …-UB), 14 e seguintes (documentação relativa à venda do veiculo em causa ao insolvente), documento de fls. 16 e seguintes (documentação relativa ao registo da hipoteca que impende sobre a viatura), documentos de fls. 18 e seguintes (contrato celebrado entre o insolvente e a credora “G…”), o documento único automóvel de fls. 23, o auto de penhora de fls. 24, a proposta de compra e venda de fls. 25 e seguintes, a documentação bancária de fls. 26 que atesta o pagamento, pela autora, de €5.000,00, o requerimento de registo automóvel, do qual consta o insolvente como vendedor do veiculo em causa, a fls. 27 e seguintes, contrato de financiamento automóvel celebrado entre o insolvente e a credora “G…” relativamente à aquisição do veiculo em causa nos autos e documentação anexa ao mesmo a fls. 80 v.º e seguintes dos autos, cheque que comprova o pagamento do veiculo emitido pela referida credora ao vendedor do bem (JEEP…) a fls. 86 dos autos, declaração de entrega do veiculo a fls. 86 v.º, autorização de débito direto em conta a fls. 87, interpelação escrita de 25/05/2009, ao insolvente para proceder ao pagamento das mensalidades em divida, com a advertência de que o não pagamento da quantia solicitada iria determinar o vencimento de todas as prestações, nos autos a fls. 88 e, por fim, a autorização de circulação do veiculo com a matricula …-UB, constante de fls. 96, datada de 8/05/2008, apenas assinada pela gerência da “Jeep…”.

         Pois, se a 1.ª instância entendeu, e bem, que o veículo embora registado em nome do insolvente, pertencia à empresa “Jeep…” do qual este era sócio gerente, então a autora deverá beneficiar do facto de este se encontrar registado em nome de quem lhe vendeu o veículo automóvel, seguramente nas vestes de sócio gerente da  “Jeep…” – na realidade a pessoa que obrigou a autora a vir aos autos reinvindicar uma coisa que comprou e que pagou o respectivo preço -.

        Ou seja, se o autor beneficiar de presunção legal resultante da posse ou derivar do registo, basta provar a existência desse titulo de aquisição derivada, e, não também que o direito ja existia no transmitente.

        A certidão comprovativa do registo faz prova de que a coisa reivindicada era propriedade da transmitente, uma vez que o registo predial faz presumir, não só a existência do direito, mas também que é titulado pela pessoa em cujo nome se acha inscrito, é bastante a prova de que a transmitente beneficiava da presunção resultante da inscrição do automóvel em seu nome – leia-se, em termos meramente formais, em nome do ora insolvente -.

        Como se escreve no Acórdão do STJ de 24.4.1997, lido na Col. Jur. Ano 1997, tomo 2, pág. 128, “…mostrando-se que no registo predial a aquisição do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada se encontrava inscrita a favor do transmitente à data em que o autor dele a adquiriu derivadamente, não necessita o autor de produzir afirmações acerca da aquisição pelo transmitente desse direito, nem de provar essas afirmações. A lei presume, directamente, a existência do direito do transmitente…”, e, assim, ultrapassada está a prova diabólica, porque encontrado o vendedor originário.

        A presunção estabelecida no art. 7º do Código do Registo Predial, aplicável ao registo de automóveis, não serve, por si só, para demonstrar a titularidade do direito de propriedade sobre a viatura em causa a favor do insolvente, mas também para demonstrar que tal direito existia na titularidade da pessoa de quem a recebeu, encontrando-se, por via disso, aquela dispensada de o provar, de tal forma que, demonstrada a validade e eficácia do negócio jurídico translativo de tal direito, justificador da regularidade da transferência do património do transmitente para o da adquirente/autora, haver-se-á de concluir que esta – a adquirente – é a legítima titular do direito transmitido.

        Assim sendo, na procedência da instância de recurso, revogamos a decisão proferida pela 1.ª instância.

        Quanto à questão da hipoteca a favor da demandada G…, uma vez que a apelante não a colocou no objecto da instância recursiva, vedado está o conhecimento por esta instância.

Apresentamos as seguintes conclusões:

i. A norma do art.º 1311.º do Código Civil possibilita ao proprietário do bem, exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

ii. Na acção de reivindicação não basta ao autor reivindicante demonstrar a aquisição derivada, provando, por ex., que comprou a coisa, já que a compra não é constitutiva, mas apenas translativa do direito de propriedade, antes se lhe impondo a prova de que o direito já existia no transmitente, anterior proprietário.

iii. E daí, que se exija ao reivindicante que prove as aquisições dos sucessivos alienantes, na cadeia ininterrupta que se mostre existir até que termine na aquisição originária de um deles, como sucede, para os imóveis, com a acessão e, por excelência, com a usucapião.

iv. Porque essa prova será as mais das vezes, muito, ou extremamente difícil é entendimento comum dos aplicadores do direito de que ao reivindicante basta alegar a presunção derivada do registo para cumprir o ónus da alegação da propriedade na acção de reivindicação.

v. Mostrando-se que, no registo predial, a aquisição do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada se encontrava inscrita a favor do transmitente à data em que o autor dele a adquiriu derivadamente, não necessita o autor de produzir afirmações acerca da aquisição pelo transmitente desse direito, nem de provar essas afirmações.

A lei presume, directamente, a existência do direito do transmitente, e, assim, ultrapassada está a prova diabólica, porque encontrado o vendedor originário.

4.Decisão

Pelas razões expostas, na procedência da instância recursiva, revogamos a decisão proferida pelo 2.º juízo do Tribunal de Castelo Branco, declarando que a autora B…, LDA é a proprietário do veículo com a matrícula …-UB, ordenando-se a sua restituição à Autora.

Custas a cargo da massa insolvente.

Coimbra, 14 de Janeiro de 2014

(José Avelino - Relator)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)