Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2551/12.5TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CARTÃO DE CRÉDITO
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 45, 46, 804 CPC, DL Nº 287/93 DE 20/8
Sumário: 1.Constitui título executivo, integrado na previsão do artº 46 nº 1 c) do C.P.C. o contrato de utilização de cartão de crédito assinado pelas partes que revela a existência da obrigação do executado e a constituição da dívida, nos termos do clausulado no contrato.

2.Por a obrigação estar dependente da prestação do exequente, nos termos do artº 804 nº 1 do C.P.C. tal contrato tem de ser complementado com documento, como o extracto de conta, de onde resulte que o cartão foi utilizado e consequentemente mutuada a quantia que dele consta, cujo pagamento foi solicitado ao executado, no cumprimento do contrato celebrado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

A Caixa Geral de Depósitos, S.A., vem intentar a presente execução contra os executados C (…), Ldª, PC (…) NM (…) e AA (…)

Para tanto, alegou a exequente que, no exercício da sua actividade comercial, celebrou com a executada “Conta Líquida” uma proposta de adesão de utilização de cartão de crédito, a qual foi aceite e ainda que, em sua execução, foi emitido cartão de crédito que identifica, com um limite inicial de crédito concedido e autorizado de € 10.000,00, o qual deveria ser reembolsado por débito em conta. Desde o extracto de 20/02/2010 que a sociedade executada não cumpre o pagamento dos movimentos a débito efectuados com o seu cartão. Os executados pessoas singulares constituíram-se fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido por força da utilização de tal cartão de crédito. Os executados não procederam a qualquer pagamento apesar de interpelados para o efeito.

Como título executivo, juntou a exequente os seguintes documentos: “condições gerais de utilização do cartão de crédito” assinadas pelo utilizador, cópia de “Recibo de cartão/NIP”, cópia de nota de débito no valor de € 6.139,98 e documento denominado “contrato de garantias acessórias” assinado por todos os Executados.

O solicitador de execução teve dúvidas sobre a suficiência do título executivo, tendo remetido os autos para despacho liminar.

Cumprido o contraditório a Exequente veio pronunciar-se no sentido de ser proferido despacho a admitir liminarmente a execução, protestando juntar o extracto da conta do cartão, o que veio fazer mais tarde.

O tribunal proferiu decisão a indeferir liminarmente o requerimento executivo, por considerar não ter sido apresentado título executivo legítimo.

É desta decisão que a Exequente não se conforma e vem interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1ª - O título dado à execução, numerado de Doc. 1, 2 e 3 juntos como o requerimento executivo, revela-se como um documento particular assinado pelos devedores, cujo montante seja determinado ou determinável por simples

cálculo aritmético de acordo com a cláusulas dele constantes, pelo que se enquadra na alínea c) do nº 1 do artigo 46º do C.P.C.

2ª - O Doc. 1 junto com o requerimento executivo consubstancia-se como uma proposta de adesão a cartão de crédito em nome da devedora “Conta Liquida – (…), Lda.” e assinada pelos seus representantes legais, que intervieram no contrato, aceitando as condições gerais de utilização do cartão de crédito – vide Doc. 1 junto aos autos a fls. ..., nomeadamente, que este é um meio de pagamento e um meio de utilização do limite de crédito atribuído ao titular.

3ª - A utilização do cartão de crédito prevê a possibilidade de pagamentos com recurso a um adiantamento de disponibilidade contabilística na conta de depósitos à ordem aberta em nome da devedora, sem que para tanto na mesma exista saldo para o efeito, devendo o valor utilizado ser reembolsado após envio do extracto mensal – vide Cláusulas 1.1, 1.2, 5, 26, 27, 28, 29, 29.1 e 30 do Doc. 1 junto com o requerimento executivo.

4ª - Nos termos das cláusulas 27 e 28 do Doc. 1, o extracto mensal da conta cartão é enviado para a morada do titular do cartão, considerando-se a dívida reconhecida se não for recebida qualquer reclamação, por escrito, no prazo de 7 dias seguidos, contados da data de recepção do extracto.

5ª - Os extractos, mormente o que titula a quantia exequenda, foi enviado para a devedora não tendo sido apresentada qualquer reclamação, pelo que, a dívida dele constante tem-se por reconhecida – vide cláusula 28.

6ª- Encontrando-se as partes vinculadas por um contrato, em que numa das cláusulas se prevê que, em determinadas condições, se uma delas nada disser, o seu silêncio vale como aceitação, este comportamento, puramente negativo, deve revelar como declaração de vontade negocial.

7ª- Existindo uma antecedente convenção das partes que atribuiu ao silêncio de uma delas o valor de declaração negocial, não tendo uma delas reclamado (o executado), por escrito, do teor dos sucessivos extractos bancários mensais que lhe eram endereçados pela outra parte (ora exequente), para a sua morada, quis significar a esta que reconhecia a dívida resultante do contrato com ela celebrado.

8ª- O que importa é a constituição de título executivo, onde se reconheça a constituição de obrigação de pagamento e que seja determinável o valor dessa obrigação de pagamento.

9ª - Por requerimento datado de 27 de Novembro de 2012, a ora Apelante juntou aos autos cópia dos extractos remetidos ao titular do cartão, com um saldo devedor de €4.701,01, correspondente a €4.624,71 de capital, €50,49 de juros e €25,81 de comissões e o extracto de 20 de Agosto de 2012, remetido ao titular do cartão, com um saldo devedor de €6.139,98, valor este correspondente ao valor da presente execução comum.

10ª - No momento em que a decisão sobre a existência de título executivo foi proferida constavam nos autos todos os elementos necessários, v. g., os respectivos extractos, pelo que, os mesmos não poderiam ser ignorados, sendo por estes determinável o valor da obrigação com referência ao título constitutivo da obrigação (DOC. 1 – contrato de adesão a cartão de crédito).

11ª - Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão de 24/04/2012, disponível em www.dgsi.pt: “Com efeito, a exequente juntou aos autos um extracto (...) de onde se infere, claramente, que a quantia que o executado solicitou que lhe fosse mutuada lhe foi efectivamente entregue (...) vários débitos não pagos por falta de provisão na conta que suportava o débito em conta autorizado (...)”.

12ª - Também neste sentido entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 07/02/2012, disponível me www.dgsi.pt “que se tem entendido que, por si só (o contrato), não satisfaz os requisitos de exequibilidade, por ser indispensável a demonstração da entrega do crédito ao mutuário, através de documentação complementar (por ex., extracto da conta corrente), sem o qual não há prova da existência da obrigação”.

13ª - Constitui título executivo um contrato de utilização de cartão de crédito, assinado pelo devedor, com indicação do montante concedido e autorizado e da forma de pagamento, complementado por extracto de conta corrente, que demonstre a concretização das operações subsequentes de disponibilização do capital à devedora.

14ª – Também nos termos do disposto no artigo 9º, nº 4 do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto “os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”.

15ª- Relativamente à suficiência do título executivo junto como DOC. 3 com o requerimento executivo, o mesmo trata-se de um contrato particular de constituição e reconhecimento de uma obrigação de garantia pessoal - fiança -, pela qual os contraentes declararam assumir responsabilidade como fiadores solidários e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido à ora Apelante no âmbito do supra referido contrato de adesão a cartão de crédito.

16ª - Do mesmo resulta a identificação precisa da obrigação que declararam garantir, remetendo o seu valor, a determinar, para o contrato garantido, pelo que havendo conexão entre o contrato de prestação de fiança com o contrato garantido, sendo este último título executivo, por maioria de razão também aquele o é.

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 a 3 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine:

- da suficiência do título executivo apresentado, por se enquadrar no artº 46 nº 1 al. c) do C.P.C.

III. Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a apreciação da questão submetida a apreciação, são os que constam do relatório elaborado.

IV. Razões de Direito

- da suficiência do título executivo apresentado, por se enquadrar no artº 46 nº 1 al. c) do C.P.C.

Vejamos então se os documentos apresentados pela exequente constituem título executivo válido, sendo certo que, para além de qualquer controvérsia, se tratam de documentos particulares.

Toda a execução tem por base um título que determina o fim e os limites da acção executiva, conforme estabelece o artº 45 nº 1 do C.P.C.

Diz-nos Lebre de Freitas, in. Código de Processo Civil Anotado, pág. 87, que: “O título executivo constitui pressuposto de carácter formal da acção executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor.”

O artº 46 do C.P.C. no seu nº 1 dispõe sobre as espécies de título executivo, sendo que, no caso em presença, apenas poderá estar em causa a alínea c) de tal artigo, já que não estamos perante nenhuma sentença condenatória, documento exarado ou autenticado por notário ou por outras entidades ou profissionais competentes para tal, ou documentos a que seja atribuída força executiva por legislação especial.

A referida al. c), na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto Lei 226/2008 de 20 de Novembro, vem permitir que sirvam de base à execução os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou prestação de facto.”

No caso em presença temos as condições gerais de utilização de cartão de crédito, com a assinatura do utilizador e documento também por ele assinado relativo ao recebimento do cartão; em segundo lugar uma demonstração da nota de débito, com a liquidação de juros e descriminação da quantia de capital em dívida, juros e outros débitos; em terceiro lugar um contrato de garantias acessórias de constituição de fiança, assinado por todos os executados, aí se referenciando o contrato de atribuição e utilização de cartão de crédito e a concessão de crédito no valor aí limitado. Finalmente há que ter em conta que mais tarde, é junto pela Exequente o extracto de conta relativo ao cartão em causa, com a indicação do saldo em dívida, relativo às operações realizadas com o cartão que foi remetido ao titular do mesmo, conforme clausulado no contrato.

Temos assim documentos que revelam a celebração de um contrato de utilização de cartão de crédito e contrato de garantias acessórias que dele faz parte integrante assinado pelos executados, dele emergindo o reconhecimento dos executados da obrigação do cumprimento do valor pecuniário, que venha a resultar da utilização de tal cartão, nos termos previstos no clausulado de tal contrato. Refere a decisão sob recurso que o documento apresentado pelo Banco mais tarde, que certifica o crédito, não comporta a assinatura do devedor, ao invés é um documento emitido unilateralmente pelo Exequente e por outro lado os contratos juntos que comportam a assinatura dos executados, em si não demonstram a constituição da dívida da quantia exequenda, desconhecendo-se, em rigor se os mesmos foram objecto de cumprimento ou incumprimento.

Contudo, o documento que constitui o contrato assinado revela a existência da obrigação do executado e a constituição da dívida, que fica, no entanto, dependente da prestação do exequente, nos termos do artº 804 nº 1 do C.P.C. tal documento tem assim se ser complementado com o extracto de conta, que foi junto aos autos, de onde resulta que o cartão foi utilizado, e consequentemente mutuada a quantia que dele consta, cujo pagamento foi solicitado ao executado, no cumprimento do contrato celebrado e nos termos do seu clausulado.

Da análise de tais elementos, conjugados com o contrato assinado pelo devedor, resulta que foi constituída/reconhecida uma obrigação pecuniária, cujo montante está determinado ou é determinável por simples cálculo aritmético, de acordo com as cláusulas constantes do contrato- vd. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/04/2012, in. www.dgsi.pt

Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/03/2012, in. www.dgsi.pt  nos diz que: …estaremos por certo perante um título executivo, se o exequente tiver apresentado, além da proposta de contrato de crédito, o documento em que concedeu o crédito e os documentos (extracto de conta bancária) reveladores da utilização do crédito.”

Neste caso, o documento particular que constitui o contrato de utilização de cartão de crédito, foi posteriormente acompanhado de documento que revela a concretização das operações subsequentes de disponibilização de valor pelo Banco, na sequência da utilização do cartão, resultando do contrato a forma de pagamento de tais valores.

Se é certo que o exequente não apresentou inicialmente o documento que constitui o extracto de conta de utilização do cartão, tendo o Sr. Agente de Execução manifestado dúvidas quanto ao título executivo, a verdade é que tal falta veio mais tarde a ser suprida, com a junção do documento em falta, não podendo ser ignorado no momento em que foi proferida a decisão, porque já lá estava. Aliás, até é controversa na jurisprudência a questão de saber se deve haver lugar a despacho de aperfeiçoamento a determinar a junção de tal documento, caso o mesmo não acompanhe o requerimento executivo logo de início.

Assim, por força de tal contrato o banco fica desde logo vinculando à concessão do crédito até ao limite acordado e o utilizador ao seu pagamento, nos termos estabelecidos. É certo que só a utilização posterior de tal cartão irá definir ao certo o montante da obrigação pecuniária de pagamento, que depende da medida em que o cartão vai sendo utilizado e do correspondente crédito concedido, mas tal não constitui obstáculo à consideração de tal documento como título executivo, desde que acompanhado de documento, como seja o extracto de conta, que permita determinar tal valor, tendo em conta o disposto no artº 804 do C.P.C., que no seu nº 1 dispõe que: “Quando a obrigação esteja dependente de condição suspensiva ou de uma prestação por parte do credor ou de terceiro, incumbe ao credor provar documentalmente, perante o agente de execução, que se verificou a condição ou que se efectuou ou ofereceu a prestação.”

Este entendimento é expresso por Lopes do Rego, in. Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 83, quando defende que no caso de exigibilidade da obrigação prevista no artigo 804.º do CPC, por exemplo, por a obrigação estar dependente de uma prestação por parte do credor, se pode fazer a sua prova complementar, podendo valer como título executivo o contrato de concessão de crédito, determinando-se, por essa prova, a real concessão do crédito ainda não pago.

Por tudo quanto fica exposto, conclui-se pela suficiência do título executivo, nos termos do disposto no artº 46 c) e 804 nº 1 do C.P.C., na sequência do que se revoga a decisão sob recurso que se substitui por outra que considera válido o título executivo apresentado e determina o prosseguimento da execução.

V. Sumário:

1. Constitui título executivo, integrado na previsão do artº 46 nº 1 c) do C.P.C. o contrato de utilização de cartão de crédito assinado pelas partes que revela a existência da obrigação do executado e a constituição da dívida, nos termos do clausulado no contrato.

2. Por a obrigação estar dependente da prestação do exequente, nos termos do artº 804 nº 1 do C.P.C. tal contrato tem de ser complementado com documento, como o extracto de conta, de onde resulte que o cartão foi utilizado e consequentemente mutuada a quantia que dele consta, cujo pagamento foi solicitado ao executado, no cumprimento do contrato celebrado.

VI. Decisão:

Em face do exposto, julga-se procedente o recurso intentado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. revogando-se o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento executivo e substituindo o mesmo por outro que considera válido o título executivo apresentado, determinando-se o prosseguimento da execução.

Custas pela parte vencida a final.

Notifique.

                                              

                                               Maria Inês Moura (relatora)

                                               Luís Cravo (1º adjunto)

                                               Maria José Guerra (2ª adjunta)