Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4541/13.1TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
SUSPENSÃO
ACÇÕES
DÍVIDA
DEVEDOR
AVALISTA
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 17º-E, Nº 1, DO CIRE
Sumário: A suspensão das acções para cobrança de dívidas durante o decurso das negociações em processo especial de revitalização – determinada pelo art. 17º-E, nº 1, do CIRE – apenas se reporta à pessoa que figura nesse processo como devedora, não abrangendo as acções que se encontrem pendentes contra os seus condevedores e terceiros garantes das suas obrigações e, designadamente, contra os seus avalistas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

O Banco A..., S.A., com sede na (...), Lisboa, instaurou processo de execução contra B... , S.A. com sede na (...), Leiria e contra C... , residente na (...), Leiria, pedindo o pagamento da quantia de 1.346.372,26€, com fundamento em duas livranças subscritas pela 1ª Executada e avalizadas pelo 2º Executado.

Tendo sido constatado que corria termos um processo especial de revitalização referente à Executada, B..., no qual já havia sido proferido o despacho a que se refere a alínea a) do nº 3 do art. 17º-C do CIRE, foi proferido despacho – em 05/12/2013 – que suspendeu o processo de execução e que, na parte relevante, tem o seguinte teor: “Suspendo o presente processo de execução, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE, até à decisão final de homologação ou não homologação do plano de recuperação a tomar no processo n.º 4471/13.7TBLRA, do 2.º Juízo deste tribunal, suspensão essa que, atenta a finalidade do PER e a posição de avalista do co-executado C..., abrangerá ambos os executados (uma vez que pode resultar do PER a modificação objectiva da dívida relativamente a ambos)”.

Discordando dessa decisão, o Exequente veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª – A execução tem como títulos executivos duas livranças, com os valores de 671.454,88 € e 668.199,29€, subscritas por B... S.A. e avalizadas por C...;

2ª – Como decorrência da admissão da B...a Processo Especial de Revitalização, o Tribunal a quo proferiu despacho através do qual suspendeu a execução, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17º-E nº1 do CIRE, suspensão que abrange o executado C...;

3ª - Dispõe o artigo 17º-E nº1 do CIRE que “A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.” (sublinhado do ora subscritor);

4ª – Não há fundamento no referido artigo, antes pelo contrário, para que seja determinada a suspensão da execução quanto ao executado não sujeito a Processo Especial de Revitalização, uma vez que o legislador expressamente previu que a suspensão opera apenas quanto ao devedor;

5ª – Ainda que viesse a ser aprovado plano de recuperação no âmbito do Processo Especial de Revitalização, tal facto não afectaria a exigibilidade do crédito do Recorrente junto do executado C..., nos exactos termos existentes à data do seu vencimento;

6ª - A finalidade do Processo Especial de Revitalização é apenas a “aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor” (artigo 17º-F do CIRE);

7ª – É aplicável ao Processo Especial de Revitalização, ex vi artigo 17º-F nº5 do CIRE, a norma contida no nº4 do artigo 217º do CIRE: “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.”

8ª - “O avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. […] A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal.

9ª - “Não seria razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são insolventes, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram.

10ª - Do Processo Especial de Revitalização da B..., independentemente do seu desfecho, não poderá resultar qualquer modificação na obrigação do executado C...;

11ª – Carece de fundamento legal o despacho que determinou a suspensão da execução quanto ao executado C...;

12ª – A decisão através da qual o Tribunal a quo suspendeu a execução quanto ao executado C... é ilegal, por violar o disposto nos artigos 269º nº1 e 272º nº1 do Código de Processo Civil, nos artigos 17º-A nº1, 17º-E nº1, 17º-F nº5 e 217º nº4 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, e ainda o disposto no artigo 32º da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças.

Assim, conclui, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão que suspende a execução quanto ao executado C....

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a pendência de um processo especial de revitalização referente à Executada, B..., determina ou não a suspensão da presente execução relativamente ao seu avalista, o Executado, C....


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III.

Entrando na apreciação do objecto do recurso, cabe dizer, desde já, que a razão está com o Apelante, porquanto não existe fundamento legal para suspender a execução no que toca ao Executado, C....

De acordo com o disposto no art. 17º-E, nº 1, do CIRE, “a decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.

Tal como decorre da norma citada, o que aí se determina é que a decisão que dá início ao processo especial de revitalização obsta à instauração ou ao prosseguimento das acções para cobrança de dívidas contra o devedor, ou seja, contra a pessoa a quem se reporta o processo de revitalização e que aí figura como devedora, e que, no caso sub judice, é apenas a Executada, B.... Não resulta, portanto, da norma citada que o processo de revitalização referente a determinado devedor possa determinar a suspensão das acções para cobrança de dívidas que se encontrem pendentes contra qualquer outra pessoa, designadamente, contra os condevedores ou terceiros que tenham garantido o cumprimento da obrigações do devedor ao qual respeita o processo de revitalização.

Consequentemente, a suspensão da presente execução no que toca ao Executado, C..., não encontra qualquer apoio na norma supra citada, uma vez que este executado não figura naquele processo de revitalização como devedor.

Considerou-se, porém, na decisão recorrida que a suspensão da execução também deveria abranger esse Executado, uma vez que, dada a sua posição de avalista, poderia resultar do PER a modificação objectiva da sua dívida.

Não será, no entanto, correcto esse entendimento, pelas razões que passamos a mencionar.

O art. 217º, nº 4, do CIRE determina que “as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação…”.

É certo, no entanto, que essa disposição se reporta ao plano de insolvência e não ao plano de recuperação em processo de revitalização.

A verdade é que, ainda que, formalmente, o plano de insolvência e o plano de recuperação aprovado no âmbito de um processo especial de revitalização sejam realidades jurídicas distintas, a diferenciação entre essas duas realidades é muito pouca e, na prática, decorre apenas da circunstância de se inserirem em processos distintos (processo de insolvência ou processo de revitalização), sendo que, no primeiro caso, o plano incide sobre um devedor já declarado insolvente, incidindo, no segundo caso, sobre um devedor que está em situação de insolvência meramente iminente. Mas, no que toca ao seu conteúdo e objectivos, tais realidades são muito semelhantes, visando essencialmente a adopção de um conjunto de providências que se destinam a satisfazer os direitos dos credores pela forma que se entenda necessária para permitir a efectiva recuperação e viabilidade económica do devedor (cfr. arts. 1º e 17º-A do CIRE) e é por isso que o art. 17º-F, nº 5, do CIRE determina que o juiz, na decisão a proferir sobre a homologação ou não do plano de recuperação, deve aplicar, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, importando notar que, nesse título IX, estão incluídas as normas referentes ao conteúdo do plano, bem como o art. 217º supra citado.

De qualquer forma, ainda que se considere que o citado art. 217º do CIRE não é directamente aplicável ao plano de recuperação aprovado no âmbito do processo especial de revitalização, a verdade é que a solução consagrada na 1ª parte do seu nº 4 não poderá deixar de ser aplicável ao aludido plano por força de outras regras e princípios.

De facto e como decorre do disposto no art. 17º-A do citado diploma legal, o processo especial de revitalização tem como objectivo a negociação e a conclusão de um acordo entre a pessoa que aí figura como devedora e os seus credores, tendo em vista a recuperação ou revitalização da devedora. Ora, como parece evidente, esse acordo apenas vale entre as partes envolvidas (o devedor e os respectivos credores), não tendo aplicação a outros condevedores que, enquanto tal, nele não tiveram intervenção e relativamente aos quais os credores nada acordaram e a nada se vincularam. O processo de revitalização e o plano de recuperação nele homologado visam apenas a revitalização do concreto devedor a que se reporta e não a revitalização de qualquer outro devedor que responda solidariamente pela mesma obrigação, não podendo este – como decorre do disposto no art. 514º do C.C. – opor ao credor um meio de defesa que é pessoal do seu condevedor, como é o caso da modificação do crédito decorrente do plano de recuperação aprovado e homologado em processo de revitalização a este respeitante.    

Reportemo-nos agora à situação dos avalistas, uma vez que é essa a situação dos autos.

Como decorre do disposto no art. 30º da LULL – aplicável às livranças por força do disposto no art. 77º do mesmo diploma – o aval é o acto pelo qual alguém garante o pagamento da letra (ou livrança) por parte de um dos seus subscritores; o dador do aval assume, portanto, uma obrigação cambiária que, como tal, é autónoma e independente da relação jurídica subjacente ou fundamental, assumindo, perante o titular da letra ou livrança a obrigação de pagar a quantia nela titulada, obrigação que se mantém ainda que a obrigação que garantiu seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma (cfr. art. 32º da LULL). E, como decorre do disposto no art. 47º do citado diploma, o avalista responde perante o portador do título solidariamente com os demais obrigados, assistindo ao portador o direito de accionar todas essas pessoas, individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem pela qual elas se obrigaram.

Estando em causa, portanto, uma obrigação cambiária assumida perante o titular da letra ou livrança, autónoma e independente, nada obsta a que o avalista seja demandado individualmente para o efeito de lhe ser exigida a obrigação cambiária que assumiu (o pagamento da quantia incorporada no título) sem que lhe seja lícito invocar as excepções pessoais que o seu avalizado poderia opor ao portador do título decorrentes de eventuais alterações na relação subjacente que entre estes se estabeleceu e que apenas a estes respeitam.

Escreve-se a este propósito no Acórdão do STJ de 26/02/2013[1], citando o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 11/12/2012, proferido na revista nº 5903/09.4TVLSB.L1.S1, o seguinte:

A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra.

A circunstância da relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária.

A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal”.

Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento (Vaz Serra, R.L.J, Ano 113, pág. 186, nota 2; Ac. S.T.J. de 23-1-86, Bol. 353, pág. 485; Ac. S.T.J. de 27-4-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 2º, 68; Ac. S.T.J. de 19-6-2006, Col. Ac. S.T.J., XV, 2º, 118)”.

 E, com base nessas considerações, conclui o citado Acórdão que a aprovação de um plano de insolvência da sociedade subscritora de uma livrança, onde passou a existir uma moratória para o cumprimento das suas obrigações, quanto ao pagamento dos seus débitos, não é invocável pelos respectivos avalistas, acrescentando que:

Na verdade, o plano de insolvência é constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade insolvente.

Ao votar a favor de tal plano, o credor fá-lo apenas por se tratar de medidas aplicáveis a uma sociedade que está numa particular situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações para com os credores.

Não seria razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são insolventes, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram.

Com efeito, o credor do insolvente, ao votar favoravelmente um plano de insolvência, fá-lo apenas em relação ao insolvente.

Os garantes estão fora do âmbito da insolvência e do que nesta se delibera”.

E tais considerações são inteiramente válidas relativamente ao plano de recuperação aprovado e homologado em processo de revitalização.

A eventual alteração dos créditos que venha a resultar do plano de recuperação reporta-se exclusivamente à subscritora da livrança e não aproveita aos avalistas; tal alteração – se vier a existir – decorre de um plano de recuperação que assenta num acordo celebrado entre a subscritora da livrança e os seus credores, que tem em vista um determinado objectivo (a recuperação da devedora) e que não envolve as obrigações de outros condevedores ou garantes que, nessa qualidade, não tiveram intervenção naquele acordo e relativamente aos quais os credores não deram o seu assentimento para a alteração das suas obrigações

Concluimos, portanto, que a aprovação e homologação do plano de recuperação com vista à revitalização da Executada, B..., não irá afectar ou alterar os direitos do Exequente contra o Executado, C..., que estão a ser exigidos nos presentes autos, porquanto este executado não figura naquele processo de revitalização como devedor e a eventual modificação dos débitos da subscritora das livranças em causa nos presentes autos, decorrente do plano de insolvência que, eventualmente, venha a ser homologado, não implica qualquer alteração dos débitos do Executado, C..., que, na qualidade de avalista, assumiu perante o titular da livrança a obrigação de pagar a quantia nela titulada.

Assim, ainda que o Exequente não possa exigir à Executada, B..., o pagamento do seu crédito – por força das providências que venham a ser adoptadas no plano de recuperação que venha a ser aprovado e homologado no processo de revitalização que está em curso – essa circunstância não impede o Exequente de exigir a totalidade do crédito – nos mesmos termos que o poderia fazer anteriormente – ao Executado, C..., enquanto avalista da subscritora das livranças.

Não se vislumbra, pois, qualquer razão para suspender a execução no que toca ao aludido Executado, por força da pendência de um processo especial de revitalização onde não figura como devedor e do qual não irá decorrer qualquer alteração do seu débito para com o Exequente.

Tal suspensão não tem qualquer apoio legal, sendo que, como referimos, a suspensão determinada por lei como decorrência da pendência daquele processo apenas se reporta à pessoa que nele figura como devedora e não aos seus avalistas ou condevedores.

Procede, portanto, o presente recurso.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

A suspensão das acções para cobrança de dívidas durante o decurso das negociações em processo especial de revitalização – determinada pelo art. 17º-E, nº 1, do CIRE – apenas se reporta à pessoa que figura nesse processo como devedora, não abrangendo as acções que se encontrem pendentes contra os seus condevedores e terceiros garantes das suas obrigações e, designadamente, contra os seus avalistas.


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IV.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, na parte em que determinou a suspensão do processo de execução relativamente ao Executado, C..., ordenando-se o normal prosseguimento dos autos no que se refere a tal executado.
Custas a cargo do Apelado.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Proc. nº 597/11.0TBSSB-A.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.