Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69/14.0T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO- ESTRADA
CONCESSIONÁRIA
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1, 4 Nº1 G) E I) ETAF, 211, 212 CRP, LEI Nº 67/2007 DE 31/12.
Sumário: 1.- Para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito privado, há que verificar se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, nos termos do art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, de 31.12.

2.- Nos termos do citado art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, tais entidades privadas ficam submetidas a um regime de responsabilidade administrativa, com a consequente sujeição à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº 1, i), do ETAF, sempre que esta responsabilidade seja emergente do exercício de uma actividade administrativa, constituindo factores indicativos duma actividade desta natureza o uso de prerrogativas de poder público e a sujeição dessa actividade a disposições ou princípios de direito administrativo;

3.- Cabe ao Tribunal Administrativo a competência para conhecer da acção proposta contra a Brisa e a sua seguradora, com vista a obter a sua condenação no pagamento de indemnização emergente de acidente de viação em consequência de suposta omissão por ela praticada como concessionária de obra pública – exploração da A1 – , nos termos das disposições conjugadas dos mencionados arts. 4º, nº 1, i), do ETAF e 1º, nº 5, da Lei 67/2007.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

 

1. S (…), residente em Ponte de Lima, instaurou a presente acção declarativa contra Brisa Auto-Estradas de Portugal, SA e C... – Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação destas a pagarem-lhe uma indemnização no montante de 24.610,22 €, acrescida de juros de mora desde citação, e da parte ainda ilíquida referente ao dano da privação do seu veículo. Alega, em síntese, que no dia 22.10.2013 o condutor do seu veículo automóvel de matrícula 61-57-ZO, quando circulava na auto-estrada nº 1 no sentido norte-sul, em troço da área de Cantanhede, foi surpreendido por um cadeirão almofadado, em estrutura de madeira, tipo poltrona, que se encontrava prostrado e assente no solo, totalmente sobre a zona média da faixa de rodagem do corredor de tráfego situado mais à direita da pista de tráfego por onde seguia, tendo-se, em consequência, despistado indo embater no rails de protecção metálica. Desse acidente resultaram danos para si, da responsabilidade da ré Brisa, porquanto sendo concessionária da auto-estrada não tomou as precauções necessárias para prevenir o acidente, e da ré seguradora na medida em que assumiu a responsabilidade civil daquela por danos sofridos por terceiros, utentes das auto-estradas objecto do contrato de concessão.

Ambas as rés apresentaram contestação impugnando a factualidade alegada pela autora, excepcionando ainda a 1ª ré a sua ilegitimidade.

Foi, depois, ordenada a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem quanto à eventual incompetência, em razão da matéria, dos tribunais comuns, apenas a autora se tendo pronunciado, defendendo que os tribunais comuns são materialmente competentes para dirimir o presente litigio.

*

Foi, depois, proferido saneador-sentença que declarou a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria por tal competência pertencer aos tribunais administrativos e, consequentemente, absolveu as RR da instância.

*

2. A A. interpôs recurso, tendo concluído como segue:
(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

  

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Competência material do tribunal.

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são assim os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 1º, nº 1 do ETAF).

“A doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas as relações interpessoais e inter-administrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo .... “ (Jonatas E. M. Machado, “Breves Considerações em torno do âmbito da justiça administrativa. Reforma da Justiça Administrativa”, Boletim da Faculdade de Direito/Universidade de Coimbra, Studia Juridica 86, Colloquia 15, 2005, pág. 93).

Nas palavras de J. C. Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa” (Lições), 6ª ed., pág. 57 e 58, são aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.

“Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (…). Por outro lado, não está excluída a ocorrência de litígios interprivados, não só por efeito do apontado alargamento da competência dos tribunais administrativos no âmbito da impugnação de actos pré-contratuais e da acção de contratos e da acção de responsabilidade civil extracontratual (artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e i), do ETAF)” [Fernandes Cadilha, in Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, pgs. 117-118, citado no acórdão do STJ de 14/01/2013, supra referenciado]. – Cfr. Ac. RP de 10.03.15, proc. 528/10.4TBVPA.P1.

O art. 4º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos, definindo, através de enumerações exemplificativas, quer os litígios nela incluídos quer os que dela estão excluídos.

“Com a reforma do contencioso administrativo, a pedra de toque para a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais passou a ser o conceito de relação jurídica administrativa, considerado um conceito-quadro muito mais amplo do que o de gestão pública. Todavia, como assinala Mário Aroso de Almeida, em termos metodológicos, o ponto de referência a ser adoptado para determinar perante um caso concreto, se um determinado litígio deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais ou dos tribunais judiciais não reside, em primeira linha, no artigo 1.º, n.º 1, do ETAF nem no critério constitucional da relação jurídica administrativa ou fiscal [9]. O art. 212.º, n.º 3 da CRP ao assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, não estabelece uma reserva material absoluta, admitindo derrogações pontuais, desde que não descaracterizem o modelo típico da dualidade de jurisdições[10].

Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, que determine a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, valem os critérios contidos nos artigos 1.°, n.° 1 e 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Da conjugação destes normativos conclui Mário Aroso de Almeida, que «pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa ou fiscal, são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição - sendo que encontramos no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais algumas disposições especiais com este alcance» - cfr. Ac. STJ 14.01.14, proc. 871/05.4TBMFRE.L1.S1.

O seu nº 1, al. i) dispõe o art. 4º do ETAF que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” – al. i).

Isto é, o art. 4º nº 1 al. i) do ETAF atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados em relação aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. A competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados, está portanto dependente de a estes dever ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. “Considerou-se aqui, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas”. (cfr. Ac. STJ de 16.10.12, proc. 950/10.6TBFAF-A.G1.S1).

Preceitua o art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Quer tal norma significar, concretizando o princípio previsto no art. 4º, nº 1, al. i) do ETAF, que mesmo em relação às entidades de direito privado, é lhes aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo “no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

“Resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as acções ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas colectivas de direito privado actuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado” – Cfr. o já mencionado Ac. STJ de 14.01.14.

Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal de Conflitos de 30/5/2013, proc. 017/13 “as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), têm a sua atividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.

Na verdade, a construção de uma autoestrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. A concessão dessa obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respetivas atividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade. Antes a outorga, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, estas também regulamentadas pelo Estado), mas regulando-a e fiscalizando-a, ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão”.

Ora, no caso concreto, verificam-se os dois factores determinantes do conceito de actividade administrativa exigidos pelo nº 5 do art. 1º da Lei nº 67/2007. Com efeito, a 1ª ré é demandada enquanto concessionária da exploração e conservação da estrada onde ocorreu o acidente por não ter observado as suas atribuições legais, designadamente no que respeita à manutenção da segurança da circulação na via, originando o acidente. Não obstante ser uma pessoa colectiva de direito privado, enquanto concessionária de bens públicos, actua como se fosse uma entidade pública, em substituição do Estado, em execução de actividade pública, regulada pelos princípios e normas de direito administrativo constantes do respectivo contrato de concessão.

As obrigações de manutenção da auto-estrada e da segurança rodoviária, por referência à data e ao troço onde ocorreu o acidente, constam do anexo ao DL nº 247-C/2008 de 30.12. Nele se estipula, além do mais, que “a concessão tem por objecto a construção, conservação e exploração, em regime de portagem, das seguintes auto-estradas:” (Base I), “a concessão para construção, conservação e exploração das auto-estradas referidas na base i é de obras públicas” (Base II, nº 1), “a zona da auto-estrada fica a pertencer ao domínio público do Estado a partir da data em que for aberta ao tráfego” (Base IV, nº 2), “a concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, na devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e perfeitamente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente” (Base XXXIII, nº 1), “a concessionária será obrigada a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem” (Base XXXVI, nº 2), “serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão” (Base XLIX, nº 2).

Ora, resulta destas e demais cláusulas do contrato de concessão que a actividade da concessionária se desenvolve num quadro de ambiência pública. Assim, à sua eventual responsabilização pelos danos decorrentes por actos ou omissões dessa actividade é aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais empresas públicas e, consequentemente, são os tribunais administrativos ou competentes, em razão da matéria para conhecer do litígio, nos termos da al. i) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

Tem sido este, de resto, o entendimento preponderante na jurisprudência recente. Veja-se a título exemplificativo, e para além dos já referenciados, os Acs. da RC de 08.04.14, proc. 1158/13.4TBLRA.C1, da RP de 30.06.14, proc. 140/14.9YRPRT, da RG de 02.12.14 808/14.0TBFAF.G1, e do Trib. Dos Conflitos de 25.03.15, proc. 053/14.

Refira-se, por fim, que à competência dos tribunais administrativos para o julgamento do presente litígio não obsta a circunstância de ser também demandada a companhia de seguros, 2ª ré, para a qual, segundo alega a autora, a 1ª ré terá transferido a responsabilidade civil pelos danos sofridos por terceiros utentes da auto-estrada objecto da concessão. É que a obrigação de pagamento da seguradora estará sempre dependente da verificação da responsabilidade civil da 1ª ré pelo evento danoso, sendo a responsabilidade desta, a sua actuação enquanto concessionária, que está em discussão na lide.

A incompetência do Tribunal em razão da matéria é uma excepção dilatória insanável, de conhecimento oficioso, determinando a absolvição do réu da instância (arts. 96º. al. a), 97º, nº 1, 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. a) e 578º, todos do Código de Processo Civil)”.

Este entendimento corresponde ao que foi defendido em acórdão de 17.4.2012, no Proc.1181/10.0TBCVL, em www.dgsi.pt (relatado pelo actual relator) e que vamos chamar à colação.

A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.

Como tem sido repetido, a competência do tribunal determina-se com referência ao momento da proposição da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto ou de direito que ocorram posteriormente, excepto se o órgão competente para conhecer da causa deixar de existir, ou caso lhe seja atribuída competência de que este inicialmente carecesse para o conhecimento da causa (art. 38º da Lei 62/2013 de 26.8 - Lei de Organização do Sistema Judiciário).

O art. 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, pois ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Novo Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1, da citada Lei 62/2013.

Nos termos do art. 212º, nº 3, da CRP, “compete aos tribunais administrativos (...) o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas (...)”.

E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF (Lei 13/2002, de 19.2), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

Por sua vez, estatui o art. 4º, nº 1, do mesmo diploma (vide a redacção emergente da Lei 107-D/2003, de 31.12), que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

“(…)
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

(…)

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

Constata-se, assim, ter o ETAF operado um alargamento da competência dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das pessoas colectivas através de duas diferentes vias.

Uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da actividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, sem atentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada -1ª parte da citada alínea g).

E passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado - citada alínea i).

Com a reforma do contencioso administrativo, alterou-se, assim, no âmbito da responsabilidade extracontratual, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger, por um lado, todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

E, por outro lado, passou a abarcar a responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Daqui decorre que, para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito privado, há que verificar, apenas e tão-só, se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, instituído pela Lei 67/2007, de 31.12. (em vigor desde 30.1.2008). 

A norma que, no plano do direito substantivo, dá concretização prática ao disposto no art. 4º, nº 1, i), do ETAF é a do art. 1º, nº 5, da referida Lei, a qual estabelece que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Explicita, assim, este preceito em que termos é que as entidades privadas podem ficar subordinadas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, quando poderão ser demandadas em acções de responsabilidade civil perante os tribunais administrativos, nos termos do citado art. 4º, nº 1, i), do ETAF, com a consequente sujeição ao contencioso administrativo.

E dele pode concluir-se, por um lado, que isso acontece sempre que tais entidades desenvolvam uma actividade administrativa, o que significa ter o legislador adoptado, no que se refere às acções de responsabilidade civil, um critério funcional de administração pública.

E, por outro lado, que são dois os factores indicativos do conceito de actividade administrativa.

Um constituído pelo exercício de prerrogativas de poder público, ou seja, quando, para a execução de tarefas públicas de que sejam incumbidas, lhes sejam outorgados poderes de autoridade.

Um outro, pela vinculação do exercício da actividade a um regime de direito administrativo, isto é, quando intervenham no exercício de tarefas que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Significa isto, no dizer de Carlos Cadilha (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 1ª Ed., págs. 29 a 32, 35, 48/49) que a submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da administração terá de ser definida casuisticamente em função da natureza jurídica dos poderes que tais entidades tenham exercitado em dada situação concreta ou da sua subordinação a um regime de direito administrativo.

E toda esta dicotomia está presente nas entidades concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo, que poderá ser um contrato de concessão de obras públicas ou de serviço público, tal como acontece com a ré Brisa, que tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação dos lanços de auto-estrada, nos termos do contrato de concessão celebrado com o Estado – conferir as Bases da concessão referidas na decisão recorrida - estando, por isso, esta sua actividade, em nexo funcional com a Administração Pública, pautada por execução de tarefas públicas, em que lhes são outorgados poderes de autoridade, e regulada por disposições e princípios de direito administrativo.

Ora porque, no caso em apreço, estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual deduzida contra a aludida ré Brisa, com vista a obter o pagamento de indemnização por danos emergentes de acidente de viação em consequência de suposta omissão por ela praticada como concessionária de obra pública – exploração da A1 – no troço de estrada indicado, por isso, regida pelo direito público, inquestionável se torna que a eventual responsabilização da ré, por actos ou omissões decorrentes desta actividade, insere-se no âmbito de aplicação do art. 1º, nº 5, do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.

Pelo mesmo diapasão segue o Ac. do T. Conflitos de 20.1.2010, Proc.025/09, em www.dgsi.pt, ao assinalar que “Como se viu, nos termos do art. 1° n° 5 da Lei 67/2007, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Segundo o acórdão recorrido é precisamente neste factor indicativo da actividade administrativa, que a acção da R., questionada no presente processo, deve ser integrada. As entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), devem ter a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.

Parece-nos ser certa esta posição. Com efeito (…) foi celebrado entre o Estado Português e a R., C…, o contrato de concessão de lanços de auto-estrada, designada por concessão SCUT (…). Nesse contrato ficou estabelecido, no que toca ao objecto e tipo de concessão, que esta tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração em regime de portagem SCUT, os lanços de auto-estrada (…) Na cláusula 6 do contrato ficou estabelecido que a concessão é de obra pública e é estabelecida em regime de exclusivo relativamente à auto-estrada que integra o seu objecto. Na cláusula 7.2 estabeleceu-se que a concessionária não pode, em qualquer circunstância, recusar o fornecimento do serviço público concessionado a qualquer pessoa ou entidade, nem discriminar ou estabelecer diferenças de tratamento entre utentes.

Por sua vez, o Dec-Lei (…) que aprovou as bases da concepção, projecto, construção, financiamento, conservação e exploração dos lanços de portagem acima indicados, na sua Base III e sobre a natureza da concessão, estabeleceu que a concessão é de obra pública.

Destas normas é possível inferir-se que a actividade a desenvolver pela R. no âmbito da concessão em causa, desenvolve-se num quadro de índole pública. A entidade privada concessionária da auto-estrada, é notoriamente chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública10 Aí se deve inscrever a tarefa de realização de vias de comunicação em Portugal. (…)

Assim sendo como, no caso vertente, os AA pretendem ser ressarcidos com vista a receberem uma indemnização, em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da R. (…), em consequência de uma actividade por ela desenvolvida na qualidade de concessionária da auto-estrada em questão, lícito é concluir que a sua eventual responsabilização, por actos e omissões decorrentes dessa sua actividade, se insere no âmbito de aplicação do art. 1° n° 5 da Lei 67/2007 e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes para conhecer do pleito (art. 4° n° 1 al. i) do ETAF)”.

Consequentemente, por tudo o exposto, terá a ré que ser demandada perante os tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº1, al. i) do ETAF. (vide, ainda, neste preciso sentido sobre concessionárias de estradas, os Acds. da Rel. Porto 3.11.2011, Proc.9806/09.4.TBVNG, da Rel. de Lisboa 30.6.2011, Proc.1394/10.5YXLSB, e da Rel. Guimarães, de 2.7.2009, Proc.2903/08TBVCT, bem como os demais pertinentemente referidos na decisão recorrida, e ainda da Rel. de Coimbra de 21.5.2013, Proc.2073/09.1TBCTB-K, e o recentíssimo Ac. do STJ de 8.10.2015, Proc.1085/14.8TBCTB-A - que revogou acórdão desta Relação, de 10.3.2015, de sentido contrário, relatado pela actual 2ª adjunta - todos em www.dgsi.pt).

E decidida que fica a competência material do tribunal administrativo para conhecer do pedido de indemnização por responsabilidade civil extracontratual da ré Brisa, impunha-se a sua absolvição da instância e da sua seguradora, nos termos das disposições conjugadas concretamente apontadas na decisão recorrida, todas do NCPC.

Não procedem, pois, as conclusões da A./apelante.

Uma nota mais. Embora a recorrente tenha requerido a remessa dos autos ao tribunal administrativo competente, caso se mantenha a decisão da 1ª instância, nos termos do art. 99º, nº 2, do NCPC, esta Relação não o pode fazer, já que decorre desta norma que tal só poderá acontecer após o trânsito em julgado da decisão, o que ainda não aconteceu (o presente acórdão pode ser objecto de recurso), podendo ainda os RR oportunamente oferecer oposição justificada, pelo que tal decisão a ocorrer está cometida à 1ª instância (e até sujeita a eventual recurso).  

Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito privado, há que verificar se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, nos termos do art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, de 31.12;

ii) Nos termos do citado art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, tais entidades privadas ficam submetidas a um regime de responsabilidade administrativa, com a consequente sujeição à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº 1, i), do ETAF, sempre que esta responsabilidade seja emergente do exercício de uma actividade administrativa, constituindo factores indicativos duma actividade desta natureza o uso de prerrogativas de poder público e a sujeição dessa actividade a disposições ou princípios de direito administrativo;

iii) Cabe ao Tribunal Administrativo a competência para conhecer da acção proposta contra a Brisa e a sua seguradora, com vista a obter a sua condenação no pagamento de indemnização emergente de acidente de viação em consequência de suposta omissão por ela praticada como concessionária de obra pública – exploração da A1 – , nos termos das disposições conjugadas dos mencionados arts. 4º, nº 1, i), do ETAF e 1º, nº 5, da Lei 67/2007.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

*

Custas a cargo da A.

*

   Coimbra, 3.11.2015

 Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias ( vencida )

Voto de vencido:

Mantenho a posição já por mim assumida no Acórdão proferido no processo nº 1085/14.8TbCTB.C1, de 10 de março de 2015 (disponível in www.dgsi.pt.), de que fui relatora, e apesar de o mesmo ter sido revogado pelo Acórdão do STJ de 08 de outubro de 2015.

Com efeito, convergindo a jurisprudência (quer os que defendem a atribuição da competência aos tribunais administrativos, quer os que a atribuem aos tribunal comuns) na asserção de que a competência do tribunal administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados estará dependente de lhes ser aplicável (ou não) o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, esta aplicabilidade às pessoas coletivas de direito privado depende da verificação de um dos dois requisitos previstos no nº5 do artigo 1º da Lei nº 6/2007), ou seja, que as ações ou omissões geradoras de responsabilidade sejam: a) levadas a cabo no exercício de prorrogativas de direito público, ou, b) reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Ora, apesar da jurisprudência que defende a atribuição de tal competência aos tribunais administrativos fazer assentar tal competência na aplicabilidade às Concessionárias do regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado contido na Lei nº 6/2007, constata-se que, na fase posterior da aplicação do direito substantivo, quer os tribunais comuns, quer os administrativos, acabam por apreciar a responsabilidade das Concessionárias das Autoestradas, por acidentes nela ocorridos por violação de regras de segurança, com base nas normas de direito privado relativas à responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente nos artigos 483º, 1 e 493º, nº1 do Código Civil, em articulação com o disposto na Base LXXI, e no nº1 da Base LXXII, do Contrato de Concessão, e com o regime contido na Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, que veio definir os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários secundários.

E, em meu entender, é este efetivamente o direito substantivo aplicável à situação em apreço, pelo que, será contraditório atribuir a competência aos tribunais administrativos com o argumento de que a responsabilidade da concessionária se encontra sujeita ao regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e, no momento seguinte, recusar a aplicação de tal regime em sede de direito substantivo.

Concluindo, no caso em apreço, revogaria a decisão recorrida, afirmando a competência do tribunal a quo.

  Maria João Areias