Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
189/17.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PROCESSO DE SUPRIMENTO
CONSENTIMENTO
PROPRIEDADE
PASSAGEM FORÇADA
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1000 CPC, 1349 CC
Sumário:
O processo de suprimento de consentimento, previsto no art. 1000.º do Código de Processo Civil, é aplicável à situação em que o dono do prédio não consente a entrada do dono do prédio vizinho, para este ali passar, a fim de colocar um contador de água na parede deste último prédio.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

M (…) intentou processo especial de suprimento de consentimento contra ML (…), pedindo que “seja suprido o consentimento” da Requerida, “por forma a que o Requerente e os técnicos dos SMAS possam entrar no imóvel propriedade daquela, para a realização das obras necessárias à instalação do contador de água.”
Alega, em síntese:
É dono do prédio urbano composto de casa para habitação de rés-do-chão, 1º andar e logradouro, sito na …, imóvel que não é dotado do serviço público de abastecimento de água.
Ao requerer, junto dos SMAS, a instalação do contador, os técnicos constataram que a parede mais indicada para a sua instalação é a parede lateral nascente, a que confina com o prédio urbano propriedade da Ré.
Para que os técnicos procedam à referida instalação, eles necessitam de entrar no espaço que é propriedade da Ré.
A Ré vem recusando essa entrada, o que impede a instalação do contador de água, condição essencial para que a casa do Autor seja dotada de rede pública de abastecimento de água, impedindo o Autor de fruir convenientemente e com todas as condições, de higiene e salubridade, da sua casa de habitação.
O Autor invoca o direito previsto no art. 1349º do Código Civil.
A Requerida contestou, dizendo, além do mais, que o Autor pretende a colocação do contador da água em parede da propriedade da Requerida.
De seguida, depois da audição prévia das partes, foi proferida decisão a julgar improcedente a ação, absolvendo-se a Requerida do pedido.
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Inconformado, o Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões:
1ª.- Decidiu a Mma juiz a quo a improcedência da presente acção, absolvendo a Ré do pedido, por entender que a acção de suprimento de consentimento instaurada não é a própria, porquanto o disposto no artº 1349º do C. Civil, normativo em que o Recorrente funda a sua causa de pedir, não prevê o suprimento judicial do consentimento (sic).
2ª.- Decisão de que o Autor discorda porquanto dispondo o artº 1000º do C.P.C que o fundamento para a acção do suprimento do consentimento reside na recusa de um terceiro em consentir algo, a mesma se cinja tão só aos casos em que a lei o admita de uma forma concreta e especifica.
3ª.- Na verdade crê-se que o legislador também tenha tido a pretensão de abranger os casos, que podem ser vários, em que alguém se vê impedido de concretizar uma acção (obra) por mera teimosia, obstinação do vizinho, a mais das vezes desprovida de qualquer fundamento.
4ª.- Entendemos que o facto de o artº 1349º do C.C. não dispor especificamente, em caso de recusa, que se lance mão da acção de suprimento do consentimento, não impede que se faça uma interpretação abrangente do artº 1 000º do C.P.C., porquanto os pressupostos para a sua instauração estão preenchidos: a lei, artº 1349º nº 1 do C. Civil diz que o “dono do prédio é obrigado a consentir nesses actos.”; in casu existe uma recusa nesse consentimento pelo que o meio adequado é o seu suprimento, nos termos do artº 1000º do C.P.C..
5ª.- E na esteira do que acabámos de dizer vide Acr. do Tribunal da Relação de Guimarães, disponível em www.dgsi.pt, Pr. 87/15.1T8EPS.G1, que reza o seguinte: I – O processo de suprimento de consentimento no caso de recusa previsto no artigo 1000º do C.P. Civil é aplicável às situações em que o dono do prédio não consente a entrada do dono do prédio vizinho para este ali colocar andaimes e outros objectos necessários à realização de obras; II – Apesar de a lei (v. artº 1349º do C.C) não se referir expressamente à possibilidade de suprimento judicial de consentimento em caso de recusa, a interpretação do segmento normativo de que o dono do prédio está onerado com uma obrigação ex lege de consentir nesses actos (levantar andaime, colocar objectos, passar por ele materiais ou outros análogos) significa que, caso não seja cumprida, o interessado em aceder ao prédio para poder reparar o seu edifício ou construção, pode e deve recorrer ao processo especial de suprimento do consentimento previsto no artº 1000º do C.P. Civil.
6ª.- E em sentido idêntico decidiu, também o Tribunal da Relação de Guimarães, no Pr. 89/11.7TBVVD.G1, disponível em www.dgsi.pt; vide também a anotação ao artigo 1349º, in C.C Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. III, pág.185, 2ª Edição, pág. 185: “Parece, porém, que da simples afirmação feita no nº 1 de que o proprietário é obrigado a consentir, se devem deduzir todas as consequências, quer pelo que respeita à indemnização, quer pelo que concerne aos meios processuais (aqui reportando-se os Ilustres Professores ao facto de a autorização ter de ser suprida pelo juiz – comentário nosso) …”.
7ª.- Termos em que a Mma Juiza a quo violou e/ou fez incorrecta interpretação dos artºs 1 000 e ss do C.P.C e 1349º do Código Civil devendo a douta sentença ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos até final.
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A Requerida contra-alegou, defendendo a correção do decidido.
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A questão a decidir é a da aplicabilidade do processo previsto no art.1000º do Código de Processo Civil às situações previstas no art. 1349º do Código Civil.
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Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente.
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Dispõe o art. 1349º do Código Civil:
“1. Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objetos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros atos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses atos.”
“2. É igualmente permitido o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem; o proprietário pode impedir o acesso, entregando a coisa ao seu dono.”
“3. Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o proprietário tem direito a ser indemnizado do prejuízo sofrido.”
A norma é expressão de uma restrição ao direito de propriedade.
No âmbito de uma relação jurídica de vizinhança, a necessidade da obra justifica que se possa aceder ao prédio vizinho. Este está obrigado a consentir nos atos de acesso necessários.
O art. 1000º do Código de Processo Civil diz:
“1 - Se for pedido o suprimento do consentimento, nos casos em que a lei o admite, com o fundamento de recusa, é citado o recusante para contestar.”
“2 - Deduzindo o citado contestação, é designado dia para a audiência final, depois de concluídas as diligências que haja necessidade de realizar previamente.”
3- Na audiência são ouvidos os interessados e, produzidas as provas que forem admitidas, resolve-se, sendo a resolução transcrita na ata da audiência.”
“4 - Não havendo contestação, o juiz resolve, depois de obter as informações e esclarecimentos necessários.”
Na discussão sobre a aplicabilidade deste processo, todos estão de acordo que é necessário que a lei substantiva preveja o suprimento judicial do consentimento.
A decisão recorrida apoiou-se na jurisprudência do acórdão desta Relação, de 08.04.2008, proc. 285/07.1TBMIR.C1 (em www.dgsi.pt), para defender que “o processo de suprimento do consentimento não foi organizado para qualquer acto – mas apenas para o pedido de suprimento do consentimento, nos casos que a lei o admite (…). É portanto à lei substantiva e não à lei adjectiva que compete fixar os casos em que a recusa ou a fala de consentimento pode ser suprida. E o princípio geral não pode ser senão este: o consentimento só pode ser suprido judicialmente quando a lei reguladora do respectivo acto jurídico permitir o suprimento. Se a lei nada disser a tal respeito, tem de concluir-se que o suprimento é inadmissível.” “Do exposto resulta que, não prevendo o art. 1349º, nº1 do Cód. Civil o suprimento judicial do consentimento do proprietário do prédio vizinho, o Requerente não tem direito de fazer suprir, como peticiona, o consentimento da Requerida, sua vizinha.”
Em sentido diferente, a Recorrente apoia-se na jurisprudência dos acórdãos da Relação de Guimarães, de 13.03.2012 e de 12.11.2015, nos processos, respetivamente, nº 89/11.7TBVVD.G1 e 87/15.1T8EPS.G1, (em www.dgsi.pt).
Parece-nos correta esta última jurisprudência, pelas seguintes razões:
“A mera circunstância de a lei não dizer expressamente – como acontece noutras situações – que a recusa do consentimento pode ser judicialmente suprida não é bastante para afirmar que o consentimento não pode ser suprido, na medida em que ser “obrigado a consentir” (expressão utilizada pela norma em questão) tem um significado equivalente.”
Apelando à doutrina e às suas referências históricas (Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II - Reimpressão, Coimbra Editora, pág.461 e P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 185), um dos exemplos da possibilidade de suprimento judicial de consentimento é precisamente o da passagem forçada momentânea prevista no artigo 1349.º do Código Civil.
Em conclusão, sendo ajustável o processo ao pedido (suprimento do consentimento) e à causa de pedir (propriedade, a obra e a necessidade de acesso), a decisão recorrida não pode manter-se.
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Decisão.
Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que o processo siga os seus termos.
Custas pela Recorrida, vencida.
Coimbra, 2018-04.24


Fernando Monteiro ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira