Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
618/14.4PBVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: MEDIDA DE SEGURANÇA
INTERNAMENTO DE INIMPUTÁVEL
COMPETÊNCIA MATERIAL/FUNCIONAL
TRIBUNAL SINGULAR/TRIBUNAL COLECTIVO
CONCURSO DE CRIMES
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CRIMINAL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ARTS. 132.º E 134.º DA LEI N.º 62/2013, DE 26-08 (LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO); ARTS. 14.º E 16.º DO CPP; ARTS. 77.º E 92.º, N.º 2 DO CP
Sumário: I - Reportado à medida de internamento de inimputável, o horizonte delimitativo da competência do tribunal singular e do tribunal colectivo deve encontrar-se num ponto de convergência determinado pela similitude entre a duração das penas e das medidas de segurança, donde resulta: no julgamento, intervirá o tribunal singular ou, ao invés, o tribunal colectivo, conforme à dita medida de segurança corresponda, em abstracto, duração inferior/igual ou superior a cinco anos.

II - No caso de cometimento de mais do que um facto ilícito pelo mesmo agente inimputável, com perigosidade declarada, deve ser aplicada apenas uma medida de segurança de internamento, cujo limite máximo corresponde ao limite superior da pena prevista para o crime mais grave.

Decisão Texto Integral:




I. Relatório:

O Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Viseu (J1) suscitou a resolução de conflito negativo de competência visando a determinação do tribunal materialmente competente – o tribunal colectivo ou, ao invés, o tribunal singular, no caso, o Juízo Local Criminal de Viseu (J2) – para a realização de julgamento no âmbito do processo 618/14.4PBVIS.

A Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação apenas sufragou “as considerações expendidas na promoção de fls. 318 e [no] despacho [judicial] de fls. 319” destes autos”.

Por sua vez, a Sr.ª Juíza do outro Tribunal [Juízo Local Criminal de Viseu (J2)] não apresentou resposta.


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II. Fundamentação:

1. Elementos, relevantes, a considerar:

A) No âmbito do processo comum, n.º 873/13.7PBVIS, o Ministério Público deduziu acusação, para julgamento por tribunal singular, contra António dos Santos Almeida, imputando ao arguido a prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal [serão deste diploma os demais normativos a seguir citados sem indicação de fonte legal];

B) Por sua vez, no domínio do processo, comum/singular, n.º 618/14.PBVIS, o Ministério Público acusou o mesmo arguido, António dos Santos Almeida, pelo cometimento, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, 348.º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al. a), do CP, e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. b), e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, e de uma contra-ordenação, p. e p. pelos artigos 25.º, n.º 1, al. a), 103.º, n.º 2, e 145.º, n.º 1, al. e), todos do CE, impetrando, a final, a declaração de inimputabilidade do arguido e, em razão da perigosidade por este revelada, a aplicação ao mesmo de uma medida de segurança de internamento, em estabelecimento adequado, ao abrigo do disposto no artigo 91.º do CP;

C) Após terem sido proferidos, em ambos os processos referenciados nas antecedentes alíneas, despachos designando datas para a realização de audiências de julgamento, foi determinada a apensação ao proc. n.º 618/14.PBVIS dos autos do proc. n.º 873/13.7PBVIS e, em seguida, em virtude da operada conexão processual, na consideração de a soma das penas máximas abstractamente aplicáveis a todos os crimes exceder cinco anos de prisão, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal [doravante apenas designado CPP], atribuída a competência para os posteriores termos processuais ao tribunal colectivo, rectius, à Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Viseu;

D) Neste tribunal, logo após a abertura da audiência de julgamento, o Sr. Juiz Presidente do tribunal colectivo, após deliberação, proferiu despacho do seguinte teor (transcrição parcial):

«Efectivamente e no máximo, o arguido enfrenta, perante as várias acusações aqui pendentes, uma medida de internamento que não poderá exceder a pena de 3 anos e uma pena de prisão que, a manter-se, não poderá exceder 2 anos.

Nestes termos, aderindo totalmente ao promovido pelo Digno Magistrado e o disposto no art. 16.º, n.ºs 1 e 2, do C. Processo Penal, excepciona-se a incompetência deste tribunal, em razão da matéria, e afirma-se a competência da Instância Local Criminal desta Comarca (…)».


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2. Apreciação:

O cerne do dissídio existente entre os dois tribunais conflitantes consiste em determinar quem detém competência material/funcional para o julgamento do processo aglutinador de toda a fenomenolia fáctica determinante da conexão verificada, acima individualizada: o tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de Viseu ou o tribunal singular da Secção Criminal da Instância Local de Viseu.

As normas reguladoras da competência material e funcional do tribunal singular e do tribunal colectivo estão inscritas nos artigos 132.º e 134.º da LSJ, e nos artigos 14.º e 16.º do CPP.

Dispõe o n.º 2 do primeiro dos referidos artigos:

«Compete ao tribunal singular julgar os processos que não devam ser julgados pelo tribunal colectivo ou do júri».

E o segundo (segmento normativo que importa ter em conta):

«Compete ao tribunal colectivo julgar:

a) Em matéria penal, os processos a que se refere o artigo 14.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro».

Por sua vez, prescrevem os indicados artigos da lei adjectiva penal:

Artigo 14.º:

«1 – Compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos no título III e no capítulo I do título V do livro II do Código Penal e na Lei Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.

2 – Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes:

a) Dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa; ou

b) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime»

[A Lei n.º 1/2016, de 25-02, repôs a primitiva redacção das duas alíneas, as quais tinham sido interlocutoriamente alteradas pela Lei n.º 20/2013, de 21-02].

Artigo 16.º:

«1 – Compete ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie.

2 – Compete também ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que respeitarem a crimes:

a) Previstos no capítulo II do título V do livro II do Código Penal; ou

b) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão.

c) (…).

3 – (…).

4 – (…).»

O posicionamento jurídico do Sr. Juiz da Secção Criminal da Instância Local de Viseu está ancorado na previsão da supra citada alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º do CPP.

Contudo, indevidamente.

Essencial à dilucidação do caso concreto é também a previsão da alínea a) do artigo 1.º do CPP, a qual, para efeitos do disposto no dito corpo normativo, considera “crime” «o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais».

Se em análise estivesse apenas a prática de diversos crimes e, por força deles, a requerida imposição das correspondentes penas, incontestável seria a aplicação daquela norma.

Mas, diversamente, está solicitada, pelo Ministério Público, em relação a dois dos tipos a que os factos inscritos numa das duas acusações se subsumem – desobediência e condução perigosa de veículo rodoviário –, em razão da indiciada inimputabilidade, com fundado receio da prática, pelo arguido, de novos factos da mesma espécie, a imposição de uma medida de internamento, em estabelecimento adequado, nos termos do artigo 91.º do CP.

Ora, a lei apenas consagra, na regulação da competência material e funcional do tribunal colectivo/tribunal singular, as normas acima indicadas, donde não decorre a definição expressa do tribunal competente para a aplicação de uma medida de segurança.

Neste domínio, mais precisamente no preciso contexto dos autos, apenas duas soluções se afiguram viáveis.

Uma, entendendo que a aplicação de medidas de segurança privativas da liberdade se inscreve sempre na esfera de competência do tribunal singular.

Neste sentido parece rumar Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 4.ª edição, vol. I, págs. 173/4, ao escrever “A competência referida na al. a) – art. 16º, nº 1, do CPP – é fixada segundo um critério meramente residual. Cabem na competência do tribunal singular todos os crimes que não caibam na competência de tribunais de outra espécie. É assim que lhe cabe o julgamento de todos os crimes puníveis com pena diferente da pena de prisão ou a que seja aplicável medida de segurança”.

A outra, sufragando a posição de, em paralelismo com as regras estabelecidas nos artigos 14.º e 16.º do CPP, a competência, do tribunal colectivo ou do tribunal singular, para a fixação de medida de segurança de internamento a inimputável depender do limite máximo da moldura abstracta legalmente previsto.

Ideário defendido, no âmbito da nova lei, no Ac. da Relação do Porto de 06-12-2000 (proc. n.º 0040954), cujo sumário, publicado em www.dgsi.pt, se reproduz:

«I – A Lei não define expressamente qual o tribunal funcionalmente competente para a aplicação de uma medida de segurança.

II – Contudo, o Código de Processo Penal fixa um critério quantitativo para a delimitação da competência material e funcional dos tribunais, atendendo à gravidade da pena aplicável ao crime (artigo 15), sendo em regra a pena máxima abstractamente aplicável que serve de critério para delimitar tal competência (artigos 13, 14, e 16 do Código de Processo Penal).

III – Por outro lado, quer se trate de agente imputável ou inimputável, o tribunal tem de apreciar se houve ou não a prática de crime, e, posteriormente, emitir um juízo sobre a imputabilidade ou inimputabilidade do agente e respectiva perigosidade, decretando, se for caso disso, a adequada medida de segurança.

IV – De harmonia com o disposto no artigo 92, n.2, do Código Penal, existe alguma similitude entre a duração das penas e das medidas de segurança.

V – Da conjugação do que vem referido nos números anteriores, resulta que será da competência do tribunal colectivo proceder ao julgamento e à aplicação de uma medida de segurança de internamento, de um arguido inimputável, se da acusação constarem factos integradores da prática de um crime ou crimes a que corresponda, em abstracto, uma pena máxima superior a cinco anos de prisão».

Na vigência da lei antiga, o mesmo é dizer, a anterior à revisão de 1995 do CPP, em correspondente sentido, vejam-se os seguintes acórdãos: da Relação do Porto de 13-02-1991, proc. n.º 9150036, e de 03-07-1991, o primeiro, publicado apenas o sumário, em www.dgsi.pt; o último, em texto integral, in CJ, Ano XVI, 1991, tomo IV, pág. 272; ainda da mesma Relação, de 03-07-1991 (proc. n.º 9140535), 10-03-1993 (proc. n.º 9210949), e 05-01-1994 (proc. n.º 9350769), com sumários publicados em www.dgsi.pt.

Este entendimento foi também partilhado por José António Barreiros, in Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, vol. II, pág. 59.

Seja por uma ou por outra destas duas propostas de solução, no caso que se nos depara, o tribunal singular seria sempre o competente para a realização do julgamento.

Entre as duas teses em confronto, a segunda é, afigura-se-me, mais consentânea com a teleologia dos princípios jurídico-penais, devidamente adaptados às especificidades do caso concreto, norteadores da competência material/funcional do tribunal.

Consabidamente – assim decorre da previsão do artigo 91.º, n.º 1, do CP –, são pressupostos da aplicação de uma medida de segurança de internamento de inimputável a prática de um ou mais factos penalmente típicos e ilícitos, a declaração de inimputabilidade do agente e um juízo afirmativo sobre a perigosidade criminal do mesmo.

Com a reforma penal decorrente pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03, o n.º 3 do artigo 40.º do CP, ao determinar: “A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”, aproximou o critério determinativo das medidas de segurança ao das penas, existindo perfeita identidade nas finalidades visadas pela aplicação de penas e medidas de segurança (cfr. n.º 1 do mesmo artigo).

No que concerne à duração da medida de segurança, e quanto ao limite máximo (apenas este importa considerar), diz-nos o artigo 92.º, n.º 2, do CP (só este normativo se aplica à configuração do caso vertido no autos): “O internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável”, aflorando também aqui o mesmo princípio de aproximação entre a aplicação das penas e das medidas de segurança (cfr., v.g., Ac. do STJ de 16-10-2013, proc. n.º 300/1.GAMFR.L1.S1, in www.dgsi.pt).

Em síntese conclusiva, reportado à medida de internamento de inimputável, o horizonte delimitativo da competência do tribunal singular e do tribunal colectivo deve encontrar-se num ponto de convergência determinado pela similitude entre a duração das penas e das medidas de segurança, donde resulta: no julgamento, intervirá o tribunal singular ou, ao invés, o tribunal colectivo, conforme à dita medida de segurança corresponda, em abstracto, duração inferior/igual ou superior a cinco anos.

No caso de cometimento de mais do que um facto ilícito pelo mesmo agente inimputável, deve ser aplicada apenas uma medida de segurança de internamento, cujo limite máximo corresponde ao limite superior da pena prevista para o crime mais grave.

Prevendo o artigo 77.º do CP tão só o cúmulo jurídico de penas parcelares concretas, de prisão ou de multa, e na impossibilidade de recurso à analogia (cfr. n.º 3 do artigo 1.º daquele diploma legal), a única resposta compatível com o sistema há-de decorrer, precisamente, do já citado artigo 92.º, n.º 2, ainda do mesmo compêndio legislativo, concretizada deste modo: o limite máximo da medida de internamento, verificando-se concurso de factos típicos e ilícitos, é o correspondente à pena do crime mais grave [cfr., v.g., Acs. do STJ de 28-10-1998 (proc. n.º 894/98 – 3.ª Secção), 16-10-2013 (proc. n.º 300/10.1GAMFR.L1.S) e 12-01-2017 (proc. n.º 408/15.7JABRG.G1.S1), publicados, o primeiro, apenas o sumário, no Boletim Interno do STJ, e os outros dois, in www.dgsi.pt].

Perante o que fica dito, no caso em apreciação, correspondendo ao crime relativamente ao qual foi requerida a aplicação de uma pena – crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP – sancionamento dessa natureza até 2 anos ou pena de multa, e aos dois crimes a que se reporta o “pedido” de medida de segurança de internamento – desobediência e condução perigosa de veículo rodoviário – penas de prisão até 1 e 3 anos, respectivamente, a competência para o julgamento pertence ao tribunal singular porquanto, perante a pluralidade de crimes, a soma do limite máximo previsto para a pena do crime de ameaça (2 anos) e do limite legalmente estabelecido para a medida de segurança de internamento decorrente dos outros dois ilícitos não supera 5 anos.

Consequentemente, a competência é da Secção Criminal da Instância Local de Viseu.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, decidindo o presente conflito negativo, atribuo à Secção Criminal da Instância Local de Viseu – J2 a competência (material/funcional) para a realização do julgamento.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 21de Fevereiro de 2018

(Documento elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção - Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra)

(Alberto Mira)