Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1018/13.9TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 256.º DO CP; ART. 311.º DO CPP
Sumário: I - A acusação é manifestamente infundada quando é notória a sua improcedência, quando da respectiva leitura resulta evidente que o arguido não poderá ser condenado com base nela. Em todo o caso, a lei define, taxativamente, as situações em que, para efeitos de rejeição, a acusação deve considerar-se manifestamente infundada.

II -Assim, excluída fica a rejeição da acusação fundada em manifesta insuficiência de prova indiciária, tendo caducado a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 4/93, de 17 de Fevereiro (DR, I-A, de 26 de Março de 1993).

III - O crime de falsificação ou contrafacção de documento é um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 680).

IV - A conduta que tem por objecto o requerimento para substituição de uma carta de condução francesa, inválida por saldo nulo de pontos, por uma carta de condução portuguesa, não pode ser qualificada como falsificação ou contrafacção de documento, em qualquer uma das formas que se deixaram referidas e que têm previsão típica nas seis alíneas do n.º 1 do art. 256.º do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No inquérito nº 1018/13.9TAGRD, que corria termos nos Serviços do Ministério Público – Guarda – Procuradoria da Instância Local – 2ª Secção de Inquéritos, junto do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Guarda – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido, A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de uso de documento falso, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), com referência ao art. 255º, a), ambos do C. Penal.

Remetidos os autos à distribuição, o Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho:

“ (…).

O Tribunal é o competente.

Autue como processo comum com intervenção do tribunal singular.


*

Vista a acusação deduzida pelo Ministério Público nos presentes autos a fls. 75 e 76 contra A... , verifica-se que aí se alega factualmente o seguinte: “No dia 8 de Novembro de 2013, o arguido deu entrada na Delegação Distrital de Viação da Guarda, do requerimento para troca da sua carta de condução Francesa, com o nº (...) , emitida pelas autoridades francesas de Strasbourg, em 9-6-2008, tendo obtido guia de condução portuguesa, tudo conforme se constata dos documentos de fls. 2-18 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais. Porém, a carta de condução estrangeira pretendida trocar pelo arguido, conforme se veio a apurar, está inválida, por saldo de pontos nulos, devido a infracções estradais cometidas em território francês, o que era do seu perfeito conhecimento. Agiu o arguido de forme deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo que obtinha carta de condução de veículos automóveis portuguesa através do uso de carta de condução francesa inválida, assim visando alcançar para si um benefício ilegítimo à custa do prejuízo do Estado. Bem sabia o arguido que a sua supra descrita conduta era proibida e punida criminalmente.”.

Com base em tais factos, imputa o Ministério Público ao arguido a prática de um crime de falsificação de documento, p. p., entre o mais, pelo artigo 256º, n.º 1, al. d), do Cód. Penal, ou seja, na modalidade que consiste em “fazer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante”, tudo com a subjacente intenção (neste caso) por parte do arguido em obter para si um benefício ilegítimo.

É certo que o Ministério Público refere um crime de “uso de documento falsificado”, mas não aponta para alínea e) do referido artigo 265º, n.º 1, do Cód. Penal (como assim seria mais de esperar), antes apontando, como se disse, para a respectiva alínea d). Pressupomos portanto que seria a modalidade constante desta última alínea aquela a que o Ministério Público se pretenderia referir, embora sem prejuízo de se poder ter tratado de qualquer eventual lapso e antes se pretender referir a alínea e).

Ora, a respeito da acima aludida alínea d), entende-se então que o preenchimento do respectivo tipo objectivo de crime se verifica com o fazer constar falsamente de um documento um facto que é juridicamente relevante. Não se trata de uma falsificação material do documento, mas sim de uma falsificação ideológica do mesmo, que tem igualmente cabimento no presente tipo de crime. Documento, para efeitos de direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano. Integra o referido tipo legal de crime não só a falsificação material, como também a falsificação ideológica.

Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração incorporada no documento cumpre distinguir as diversas formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é antes inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.

Revertendo ao nosso caso concreto, e nomeadamente aos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público nos autos, verifica-se que nela não se descreve nem se alega sequer que o arguido tenha tido qualquer tipo de intervenção sobre qualquer espécie de documento, ou que nele tenha escrito, assinado ou feito constar o que quer que seja. Apenas se alega, em suma, que o arguido entregou uma carta de condução francesa num determinado serviço público português com vista a que a mesma fosse trocada por uma carta de condução portuguesa, assim obteve uma guia que lhe permitia conduzir em Portugal, e mais tarde veio a apurar-se que a carta de condução francesa entregue pelo arguido não se encontrava válida, por motivos relacionados com o excesso de infracções estradais.

Neste quadro, e perante tal singela imputação factual e objectiva, salvo o devido respeito, não se vê como se possa daí concluir no sentido de que o arguido tenha cometido o crime que lhe veio imputado, ou seja, não se vê como se possa concluir que o arguido tenha feito constar falsamente de qualquer documento ou de qualquer dos seus componentes qualquer facto, quer ele fosse juridicamente relevante quer não.

Por seu turno, mesmo ressalvando o eventual lapso em que o Ministério Público poderá ter incorrido como acima se referiu, mesmo que se pretendesse apontar para a modalidade típica constante da alínea e) do mesmo artigo 256º do Cód. Penal (ao invés da alínea d)), igualmente não vemos que a conduta do arguido pudesse integrar um qualquer uso de um documento falsificado, na medida em que o arguido teria apenas alegadamente “usado” uma carta de condução francesa, a qual não se alega que fosse falsa, mas sim e apenas que se encontraria inválida por motivos relacionados com o excesso de infracções estradais.

Finalmente, igualmente não vemos, sequer, que os factos alegados pelo Ministério Público na acusação possam integrar a prática por parte do arguido de qualquer outro tipo de crime diverso daquele pelo qual vem acusado.

Isto posto, aqui chegados e em face do que acaba de ser dito, entendemos que os factos alegados pelo Ministério Público na acusação não constituem a prática de qualquer crime, razão pela qual se decide desde já rejeitar tal acusação, por a mesma se mostrar manifestamente infundada, tudo ao abrigo do estabelecido no artigo 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Cód. de Proc. Penal.

Sem custas.

Notifique.

Oportunamente, e após trânsito, arquivem-se os autos.

(…)”.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1ª A acusação não poderá ser havida por manifestamente infundada;

2ª Pois contem todos os elementos constantes do nº 3 do artº 311º: identificação do arguido, a narração dos factos; a indicação das disposições legais aplicáveis (ainda que se dê de barato que a al. da incriminação seja a al. d) e não a e) como consta do libelo acusatório) e as provas que a fundamentam, constituindo, ainda, os factos, o crime imputado ao arguido;

3ª No caso vertente, os elementos indispensáveis, nesta fase, para a acusação prosseguir, estão lá;

4ª E poderão ser precisados em sede de julgamento o lugar próprio para tal;

5ª O juiz ao rejeitar a acusação está a apreciar o mérito da causa, o fundo da questão;

6ª O que só poderá ser efectuado em sede de julgamento;

7ª Ao agir da forma sobredita, o juiz recorrido violou o princípio do acusatório;

8ª Por outro lado, o arguido, notificado da acusação, conformou-se com a mesma, não a pondo em causa;

9ª Foi violado o disposto no artº 311º nºs 2 e 3-d).

Termos em que,

Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, revogando-se o despacho recorrido, devendo ser ordenada a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida nos autos, como é de Justiça e Direito.


*

            Respondeu ao recurso o arguido, alegando que a acusação apenas foi rejeitada porque os factos que dela constam não constituem a prática de qualquer crime, não se traduzindo por isso tal rejeição, na apreciação do mérito da causa mas na apreciação do mérito da acusação, que não foi violado o princípio do acusatório, que a ausência de pedido de abertura da instrução não transforma uma acusação infundada em acusação susceptível de ser enviada para julgamento, e conclui pela manutenção do despacho recorrido.

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando que a acusação rejeitada contém todos os elementos exigíveis, que o arguido, mediante uma falsidade que invocou por escrito, obteve um título de condução a que sabia não ter direito, que o despacho recorrido se preocupou em julgar desde logo o mérito da causa, e concluiu pela procedência do recurso.

*

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido o arguido, reiterando o teor da contramotivação.


*

  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a acusação deduzida é, ou não, manifestamente infundada, por não constituírem crime os factos nela narrados.


*

            Para a resolução desta questão, importa ter presente o teor da acusação pública, que é o seguinte:

            “ (…).

            O Ministério Público acusa em processo comum e perante Tribunal Singular:

            - A... , solteiro, nascido a 23-12-1977, em França, filho de (...) e de (...) , titular do BI nº (...) , com última residência conhecida na Avª (...) , em Vilar Formoso, porquanto indiciam suficientemente os autos que,

No dia 8 de Novembro de 2013, o arguido deu entrada na Delegação Distrital de Viação da Guarda, do requerimento para troca da sua carta de condução francesa, com o nº (...) , emitida pelas autoridades francesas de Strasbourg, em 9-6-2008, tendo obtido guia de condução portuguesa, tudo conforme se constata dos documentos de fls. 2-18 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

            Porém, a carta de condução estrangeira pretendida trocar pelo arguido, conforme se veio a apurar, está inválida, por saldo de pontos nulos, devido a infracções estradais cometidas em território francês, o que era do seu perfeito conhecimento.

Agiu o arguido de forme deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo que obtinha carta de condução de veículos automóveis portuguesa através do uso de carta de condução francesa inválida, assim visando alcançar para si um benefício ilegítimo à custa do prejuízo do Estado.

Bem sabia o arguido que a sua supra descrita conduta era proibida e punida criminalmente.

Cometeu, pelo exposto, em autoria material, um crime de uso de documento falsificado, p. e p. no artº 256º nº 1- d), com referência ao artº 255º -a), todos do C. Penal.

PROVA:

Documental:

Doc. de fls. 2-18 e demais doc. dos autos.

(…)”.

                                                                             *         

            Da manifesta falta de fundamento da acusação por atipicidade dos factos narrados     

1. Como se deixou já enunciado, a questão a decidir no presente recurso é apenas a de saber se a acusação deduzida nos autos pelo Ministério Público é manifestamente infundada, por não constituírem crime os factos que nela são imputados ao arguido, qualificados de crime de uso de documento falso. Vejamos.

O art. 311º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Saneamento do processo», estabelece no seu nº 2, a) que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

A acusação é manifestamente infundada quando é notória a sua improcedência, quando da respectiva leitura resulta evidente que o arguido não poderá ser condenado com base nela. Em todo o caso, a lei define, taxativamente, as situações em que, para efeitos de rejeição, a acusação deve considerar-se manifestamente infundada. Assim, nos termos das quatro alíneas do nº 3 do art. 311º do C. Processo Penal [nº 3 este, introduzido pelo Dec. Lei nº 59/98, de 25 de Agosto], é manifestamente infundada a acusação que não contenha a identificação do arguido, que não contenha a narração dos factos, que não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam e cujos factos narrados não constituam crime.

Deste modo, excluída fica a rejeição da acusação fundada em manifesta insuficiência de prova indiciária, tendo caducado a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 4/93, de 17 de Fevereiro (DR, I-A, de 26 de Março de 1993). Com efeito, a lei do processo não prevê e por isso, não permite a apreciação crítica dos indícios probatórios colhidos no inquérito.

2. O crime de falsificação ou contrafacção de documento é um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 680). São elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 256º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade; e,

- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

As modalidades da acção previstas no tipo objectivo permitem distinguir várias formas que a falsificação de documento pode assumir.

Desde logo, a falsificação material, que ocorre quando o agente altera, total ou parcialmente, um documento já existente. Aqui, o documento não é genuíno, não é autêntico pois a sua integridade material foi sujeita a alteração.

Depois, temos a falsidade ideológica, que ocorre quando o documento integra uma declaração escrita distinta da prestada pelo declarante [v.g., quando o funcionário notarial faz constar da escritura facto contrário ao afirmado pelo ou pelos outorgantes], falando-se então de falsificação intelectual, e quando o agente presta no documento uma declaração de facto falsa juridicamente relevante [v.g., o outorgante de escritura de justificação que aí faz declarações que sabia não serem verdadeiras quanto à aquisição de direito de propriedade, para depois, registar o imóvel em seu nome], falando-se, neste caso, em falsidade (cfr. Helena Moniz, ob. cit., pág. 676). Aqui o documento é inverídico isto é, não tendo sofrido qualquer alteração na sua materialidade, incorpora declarações originárias que não têm correspondência com a verdade.

Finalmente, temos o que podemos designar por uso de documento, e detenção e cedência de documento, material ou ideologicamente falsificado.

Pois bem.

Na rejeitada acusação, ao arguido é atribuída a prática de um crime de ‘uso de documento’ falso, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), com referência ao art. 255º, a), ambos do C. Penal. Na alínea d) referida, a conduta típica consiste, em síntese, em o agente fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante. Já a modalidade da conduta típica que podemos sintetizar por uso de documento falso ou contrafeito, encontra-se prevista na alínea e) do nº 1 do artigo citado.

Daí que se preste a equívocos, a denominação do crime imputado como uso de documento falso e a subsunção da respectiva conduta à previsão da alínea d), que nada tem a ver com aquele uso, já que o mesmo se encontra previsto na alínea e). Não obstante, ainda que a redacção usada não seja, ressalvado sempre o devido respeito, completamente esclarecedora, parece afirmar-se na conclusão 2ª que sempre se pretendeu fazer a incriminação pela alínea d).

Posto isto.

A acusação imputa ao arguido, sinteticamente, a seguinte conduta:

[Tipo objectivo]

- No dia 8 de Novembro de 2013, na Delegação Distrital de Viação da Guarda, o arguido apresentou um requerimento para troca da sua carta de condução nº (...) , emitida pelas autoridades francesas de Estrasburgo em 9 de Junho de 2008, tendo então obtido uma guia de condução portuguesa;      

- A carta de condução francesa que o arguido pretendia trocar encontrava-se inválida, por saldo de pontos nulo, devido a infracções estradais cometidas em território francês, o que sabia;

[Tipo subjectivo]

- O arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo que obtinha carta de condução portuguesa através do uso de carta de condução francesa inválida, visando alcançar para si um benefício ilegítimo, à custa do prejuízo do Estado.

Como se vê, o que na acusação se imputa ao arguido é, brevitatis causa, ter requerido a troca da sua carta francesa, por carta portuguesa, e obtido de imediato uma licença provisória de condução portuguesa, quando a carta francesa se encontrava inválida por saldo de pontos nulo, o que bem sabia.

Evidentemente que a conduta imputada é censurável uma vez que, através dela, foi pretendido obter um título habilitante da condução automóvel, sem que ao mesmo se tivesse direito. Mas não vemos que compita ao Direito Penal tal censura, por intermédio do crime de falsificação ou contrafacção de documento. Explicando

 

3. Não carece de demonstração a afirmação de que a intervenção penal está subordinada ao princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se mostra reflectido nos brocardos, nullum crimen sine lege e, nula poena sine lege.

A este respeito, ensina Figueiredo Dias que, o princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior que como tal preveja uma certa conduta significa que, por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Por isso, quaisquer lacunas e deficiências de regulamentação ou de redacção que possam existir, devem funcionar sempre contra o legislador e a favor da liberdade (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 168).

A conduta que tem por objecto o requerimento para substituição de uma carta de condução francesa, inválida por saldo nulo de pontos, por uma carta de condução portuguesa, não pode ser qualificada como falsificação ou contrafacção de documento, em qualquer uma das formas que se deixaram referidas e que têm previsão típica nas seis alíneas do nº 1 do art. 256º do C. Penal.

Com efeito, tal conduta não consubstancia uma falsificação material, seja da carta a substituir, seja da carta substituída [esta, aliás, nem chegou a ser emitida], seja da licença de condução provisória emitida pelas autoridades portuguesas, uma vez que nenhum destes documentos, nos termos da acusação, foi alterado, depois de emitido.

E também nenhum dos três documentos referidos se encontra afectado de falsificação ideológica. Na verdade, sendo liminarmente de afastar a possibilidade de verificação de falsificação intelectual, em lado algum da acusação se diz que o arguido, de qualquer deles, fez constar falsamente facto juridicamente relevante, pelo que de afastar é também a possibilidade de verificação de falsidade.

Aliás, da leitura do corpo da motivação do recurso resulta explicado o equívoco em que lavrou a acusação rejeitada, já que torna claro que afinal, a falsificação estará antes e apenas, no próprio requerimento de substituição da carta, apresentado pelo arguido à autoridade rodoviária nacional. Sucede que, na acusação, a única referência a este documento resume-se a, «(…) o arguido deu entrada (…) do requerimento para troca da sua carta de condução francesa (…)», não se concretizando, factualmente, como e onde se encontrava o falsificado o documento, nem, tão-pouco, afirmando a sua falsificação.

Por outro lado, ainda quanto a este aspecto, alega o Digno Magistrado do Ministério Público recorrente que só em julgamento pode aferir-se se a ajuizada ‘acusação defeituosa’ é ou não passível de configurar o crime imputado, quer porque aí poderão concretizar-se os elementos que se considerem relevantes para a verificação do tipo, sem que tal traduza uma alteração substancial dos factos, quer porque o arguido, que se conformou com a acusação, pode vir a confessar que pretendeu trocar um título de condução inválido, por um título de condução nacional, acrescendo que o que releva para o caso é o momento em que o arguido preencheu e assinou o formulário ou modelo, constituindo «documento» o que nele declarou pelo que, negar que a falsa declaração de extravio – troca de carta inválida – não é um facto juridicamente relevante é negar uma evidência e assim, a falsa declaração de extravio é não só uma declaração incorporada num escrito, como é também uma declaração de facto falso, juridicamente relevante.

Ora, contrariamente ao que parece pressupor o Digno Magistrado do Ministério Público, no despacho recorrido não foi efectuado um qualquer juízo de indiciação probatória e portanto, uma apreciação extemporânea do mérito da causa, até porque, como referimos já, é hoje ponto assente que a manifesta insuficiência de prova indiciária não constitui fundamento de rejeição da acusação. O que no despacho recorrido se fez foi a análise da aptidão da narração contida na acusação para suportar a imputação efectuada e aqui torna-se necessário deixar claro que, com a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 1/2015 (DR, I, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), em muito fica afectada a possibilidade de ‘reparação’ de acusações com recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do C. Processo Penal.

Depois, é evidente que, no contexto dos títulos habilitação para a condução automóvel, em tese, a falsa «declaração de extravio» constante de um modelo de requerimento é um documento afectado de falsificação ideológica, na medida em que tal declaração atesta um facto falso, juridicamente relevante. Mas não é esta a situação retratada na acusação, como já dissemos. Com efeito, em lado algum da acusação se imputa ao arguido a produção de uma falsa declaração de extravio da sua carta de condução francesa. E mesmo recorrendo aos documentos de fls. 2 a 18 [dados por integralmente reproduzidos na acusação, numa opção técnica que não perfilhamos, na medida em que os documentos não são factos mas meios de prova de factos, e por essa razão, como meios de prova foram ali indicados], verificamos então que o modelo de fls. 5 não se encontra preenchido na parte relativa à declaração do compromisso de honra, precisamente porque não houve qualquer extravio do título francês, nem o mesmo se encontrava apreendido por qualquer autoridade, já que o arguido o entregou quando requereu a troca, vindo o IMT a remeter «o original da carta de condução n.º (...) emitida em Strasbourg em 09-06-2008, ao condutor, A... .» ao Ministério do Interior Francês, tudo conforme fls. 17.   

Carece pois de fundamento, a alegação de que o arguido, quando preencheu e assinou o modelo de requerimento para a troca do título de condução, produziu uma falsa declaração de extravio. Como é igualmente carecido de fundamento o entendimento de que, in casu, a pretendida falsa declaração de extravio corresponde a uma falsa declaração de carta (in)válida. Na verdade, não encontramos também o modelo de fls. 5, que o arguido subscreveu, qualquer declaração deste no sentido de que a carta de condução francesa cuja troca pretendia se encontrava válida no país emitente [de notar que a declaração sob compromisso de honra, padrão, impressa no modelo, não prevê sequer esta possibilidade].   

Em qualquer dos casos, repetimos, nenhuma destas duas possibilidades consta, factualmente narrada, da acusação.

4. Em conclusão, ainda que se provem em julgamento todos os factos constantes da acusação, são os mesmos, de forma evidente, inequívoca e incontroversa, insusceptíveis de preencherem o tipo do crime nela imputado ao arguido, em qualquer uma das modalidades previstas nas alíneas a) a f), do nº 1 do art. 256º do C. Penal.

Não merece, pois, censura o despacho recorrido.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Recurso sem tributação (art. 522º, nº 1 do C. Processo Penal).

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Coimbra, 16 de Dezembro de 2015


(Vasques Osório – relator)


(Orlando Gonçalves – adjunto)