Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
118/18.3JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: IMPUTABILIDADE
INIMPUTABILIDADE
IMPUTABILIDADE DIMINUÍDA
CULPA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Data do Acordão: 09/18/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 20.º, N.ºS 2 E 3, DO CP
Sumário: I – Com o n.º 2 do artigo 20.º do CP, o legislador põe à disposição do juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos muito graves e não acidentais – portanto, em situações em que a prática do facto se revela já uma espécie de forma adquirida do existir psiquicamente anómalo –, considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objectivas de sentido do facto do agente se revele ou não ainda possível relativamente ao essencial do facto.

II – Do ponto de vista de puro legalismo, a opção entre imputabilidade e inimputabilidade será lograda quando se decide sobre se o agente pode ou não ser censurado por não dominar (falta de controlo) os efeitos da anomalia psíquica.

III – Por reporte ao caso evidenciado nos autos, não obstante o arguido padecer de uma perturbação depressiva permanente/F33 – no contexto de um quadro afectivo ancorado em circunstâncias de marcada disfunção familiar –, a dinâmica dos factos, conjugada com a patologia referida, e dos antecedentes do crime (homicídio), não permite considerar que a dita doença tenha afectado de algum modo a capacidade de decisão (autodeterminação) do arguido, no momento da prática daquele ilícito penal, susceptível de fundamentar juízo de inferência no sentido de o mesmo não ter conseguido dominar o desenrolar da acção e a ocorrência do resultado verificado.

IV – À imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode determinar uma culpa agravada, como uma culpa atenuada, tudo dependendo dos traços de personalidade do agente reflectidos no facto.

V – Na situação concreta em avaliação, sendo a imagem global dos factos muito grave e revelando o arguido qualidades altamente desvaliosas face ao direito, de todo não se justifica a atenuação especial da pena. A imputabilidade diminuída de que o arguido era portador só deverá ser ponderada para mitigar o (elevado) grau de culpa em sede de determinação da pena concreta.

Decisão Texto Integral:










Apresentado projeto pela primitiva relatora, o mesmo não mereceu a concordância da maioria que se formou, motivo pelo qual foi determinada a mudança de relator, e a elaboração do presente acórdão.


*

Acordam em Conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Acórdão recorrido:

Em 9 de Abril de 2019, os juízes que compuseram o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Leiria, após realização da audiência de julgamento do arguido A., proferiram a decisão que a seguir se transcreve:

«i) Julgar a acusação improcedente e não provada quanto aos imputados:

i-a) Crime de homicídio qualificado na consumada, agravado pelo uso de arma, p. e p. nos art°s. 132º nº 2 al. j) do Cod. Penal e 86º nº 3 da Lei nº 5/296, de 23/02 e, consequentemente, absolvem o arguido da prática desse crime.

i-b) Crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos art°s 143° n°1 e 145° n°s 1 e 2 al. a) e 132° nos 2 al. b) e h) do Cod. Penal, e, consequentemente absolvem o arguido da prática do mesmo crime.

Sem embargo, nesta parte operando as respectivas convolações,

ii) Julgar a acusação — com a alteração não substancial dos factos e alteração da qualificação jurídica comunicadas no decurso da audiência – parcialmente procedente e provada e, consequentemente, condenam o arguido pela prática em autoria material e concurso efectivo de:

ii-a) Um crime de homicídio simples, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 131º do Cod. Penal, e 86º nº 1 al. c), e nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23/02, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.

ii-b) Um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no artº 143º nº 1 do Cod. Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão.

ii-c) Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art.º 86º nº 1 al. c) e d), por referência aos artºs. 2º nº 1 als. c), p), q), ad) e aad) e nº 3 al. p), e 3º nº 4 al. b), todos da Lei nº 5/2006, de 23/02, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

ii-d) Operando o respectivo cúmulo jurídico das penas parcelares supra aplicadas, condenam o arguido na PENA ÚNICA de 18 (dezoito) de prisão.

(…)

iii) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar de Y (...), EPE totalmente procedente e provado e, consequentemente, condenam o demandado A. a pagar àquele a quantia de E 171,82, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento.

(..)

iv) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelas demandantes (…) parcialmente procedente e provado e, consequentemente, condenam o demandado a pagar àquelas demandantes as seguintes quantias:

§ Às demandantes (…):

1. A quantia de € 50.000,00, a título de indemnização pelo dano morte sofrido por (…), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento;

2. A quantia de € 4.128,45, a título de indemnização pelos danos patrimoniais (danos emergentes) sofridos em consequência do decesso de (…), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento.

§§ À demandante (…), a quantia de € 30.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por ela sofridos em consequência do decesso de seu companheiro (…), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento.

§§§ A cada uma das demandantes (…), a quantia de € 15.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por cada uma delas sofridos em consequência do decesso de seu pai (…), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento.

§§§§ À demandante (…), a quantia de € 3.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por ela sofridos em consequência da conduta de que foi vítima por parte do demandado / arguido, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento.

(…)».

2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem integralmente):

Inconformado com esta condenação, dela recorre o arguido, formulando as seguintes Conclusões:

«1.Face à prova produzida em julgamento e aos documentos juntos aos autos, não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos n.ºs a.4), a.5), a.15) (no que se refere à assistente (…), a.17), a.21), a.46), a.47) e a.49), conforme retro referimos.

2. Deveria ter sido dado como provado que o (…) tinha uma arma de fogo que dizia ser para matar o arguido, conforme afirmou a seu neto, filho do arguido.

3. Deveria ter sido dado como provado que o arguido estava de costas para a entrada da escola, não tendo possibilidade de se aperceber da aproximação do (…).

4. Deveria ter sido dado como provado que, após disparar o arguido ficou com olhar estático, não reagindo a perguntas e observações que lhe foram feitas

5. Deveria ter sido dado como provado que o arguido, em data anterior à dos factos, se havia dirigido à escola para ver o seu filho e que tudo correu com a maior das correcções e educação

6. Deveria ter sido dado como provado no nº a.16) dos factos provados que o (…) tinha uma postura ameaçadora.

7. Deveria ter sido dado como provado que o arguido não se apercebeu de ter ferido a assistente, embora o admita como possível.

8. Deveria ter sido dado como provado que antes de o arguido ter empunhado a arma o (…) levou a mão ao bolso.

9. Deveria ter sido dado como provado que perante tal movimento o arguido se convenção que o (…) se propunha pegar na arma com que há anos o ameaçava e, por isso, temeu pela sua vida.

10. Deveria ter sido dado como provado que quando o arguido ia a casa do (…) buscar os seus filhos, aquele se colocava à entrada da porta, com ar ameaçador, e de arma de fogo à cintura, a exibi-la.

11. Que o arguido, conforma resulta da perícia de avaliação psicológica, não apresenta qualquer perigosidade.

12. A eliminação dos factos provados e o aditamento dos factos que deveriam ter sido dados como provados, justifica-se quer pela ausência de prova, quer por má interpretação da prova produzida, designadamente dos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação, cujos depoimentos se transcrevem retro, (…), e ainda das testemunhas de defesa (…), retro se identificando quer as datas quer o momento temporal dos respectivos depoimentos.

13. Também os relatórios das perícias efectuadas resultam os factos que devem ser dados como provados, e retro referidos.

14. Fazendo-se o ajuste dos factos à prova produzida, e às regras da experiência, temos de salientar o seguinte, que deveria, em súmula, ser dado como provado, permitindo uma correcta aplicação da lei e da sanção:

a) O arguido sempre foi cidadão exemplar, trabalhador, dedicado à família, com comportamento social adequado, não tendo antecedentes criminais.

b) Apesar da etnia a que pertence, sempre teve condutas adequadas à vida na nossa sociedade, respeitando as suas leis e regras, tendo mesmo, contrariamente ao que acontece com a grande maioria dos da sua etnia, contraído casamento.

c) Enquanto no EP, sempre procurou valorizar a sua formação, frequentando cursos e acções de formação.

d) O arguido era impedido pela assistente (…) de manter contactos com o seu filho mais novo, no que esta era apoiada por seu pai, o (…).

e) Ao longo dos anos, e após o seu divórcio da assistente (…), o arguido era frequentemente confrontado com ameaças, não só contra a sua integridade física, como também contra a sua vida, pelo (…) que, numa fase inicial em que o arguido ia a casa daquele buscar os seus filhos, lhe exibia uma arma de fogo com ar ameaçador.

f) O arguido, face à proibição de ver o filho mais novo, que lhe era imposto pela (…) e seu pai, (…), e perante as ameaças deste, passou a estar emocionalmente instável e perturbado, no contexto de um quadro afectivo depressivo, receando pela sua vida.

g) Como pai responsável e presente que pretendia ser, e face ao amor dedicado a seus filhos, o arguido traçou um plano para conseguir ver o seu filho mais novo, que passou, simplesmente, por ir vê-lo em ambiente escolar, durante o período lectivo, assim evitando encontrar-se com a assistente (…) e com o pai desta, o (…).

h) Pretendia o arguido assim, não só ver o filho, como salvaguardar as suas vida e integridade física, face às constantes ameaças de que era alvo.

i) Em momento anterior à data dos factos em apreço, o arguido dirigiu-se à escola onde estava seu filho e teve comportamento adequado, abandonando o local sem qualquer problema apesar de ter sido impedido de contactar com o filho, já que na assistente (…) o havia proibido expressamente. O arguido foi educado no trato com todos com quem contactou.

j) No dia dos factos o arguido dirigiu-se à escola, mais uma vez em período lectivo, altura em que sabia que aí se não encontravam nem a assistente (…), nem o pai desta, o (…).

k) O horário escolhido pelo arguido foi-o de molde a evitar encontrar-se com eles.

l) Conforme resulta do depoimento da assistente (…), foi esta alertada para o facto de o arguido, seu ex-marido, se encontrar na X (...), o que a levou a chamar o seu pai, o (…) e a dirigir-se de imediato à escola para impedir que o arguido contactasse o seu filho.

m) O arguido, não tendo conseguido falar com o seu filho, pediu ao director da escola que o autorizasse a vê-lo, ao longe, quando este saísse para o recreio, no intervalo das aulas.

n) Assim, o arguido colocou-se no átrio da escola, de costas para a entrada, aguardando pela saída de seu filho.

o) Nessa posição foi abordado pelo (…) que, súbita e inesperadamente se lhe dirigiu e lhe perguntou o que ele estava ali a fazer, ao que o arguido respondeu que pretendia ver o seu filho.

p) Na sequência desta resposta do arguido, o (…), aproximou-se do arguido, lateralmente, e encostou-se ao seu pescoço, falando-lhe ao ouvido, ameaçando-o.

q) Na sequência desta atitude do (…), o arguido voltou-se e envolveu-se em empurrões recíprocos com ele.

r) Quer o arguido quer o (…) eram portadores de navalhas, descritas nos autos e, sem que se tenha determinado de que maneira, o arguido terá atingido o (…) com uma navalha.

s) A assistente (…) intrometeu-se entre o arguido e o (…), empurrando aquele que teve um movimento reflexo, ao ser empurrado, tendo, inadvertidamente, atingido a assistente (…) na face. Com a navalha que empunhava.

t) Apercebendo-se do movimento do (…), de levar a mão ao bolso, o arguido, com receio que ele fosse empunhar a arma de fogo com que já o havia ameaçado várias vezes, empunhou a arma de fogo que trazia consigo e, sem que conseguisse dominar a sua vontade, disparou contra o (…), por várias vezes, acabando por lhe provocar a morte.

u) Após os disparos, e interpelado pelo director da escola, o arguido apresentava olhar estático, não respondendo à interpelação.

v) No momento da prática dos factos, e conforme resulta de perícia psiquiátrica, embora estivesse capaz de avaliar a ilicitude da sua conduta, “a capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação, e de forma compreensível, encontrava-se sensivelmente diminuída” (sic) (Sublinhado nosso).

w) Para tal estado contribuiu decisivamente, conforme resulta do mesmo relatório pericial, a sensação de estar em risco se fosse ver o filho ou tentasse sequer fazê-lo.

x) De acordo com a perícia efectuada de avaliação psicológica, ignorada pelo tribunal, ao ponto de nem sequer a ela se referirem, apesar de ter sido junta com a perícia psiquiátrica, o arguido “não revelou nenhum traço de personalidade que leve a julgar que tenha tendência a ter comportamentos desajustados e de alguma perigosidade.

y) Nada de anormal teria acontecido se a assistente (…) não se tivesse deslocado à escola com o (…), com o propósito único de impedir o arguido de ver o filho, mesmo ao longe.

z) Nada teria acontecido se o (…) tivesse seguido caminho com a sua filha, para o gabinete da direcção da escola, e não se tivesse dirigido ao arguido, que nem sequer tinha dado pela sua presença, em tom ameaçador.

15. Perante os factos, indesmentíveis, que resultam não só dos depoimentos das testemunhas, mas também da prova pericial, lamentavelmente ignorada pelo tribunal, nada pode justificar a aplicação ao arguido da pena que lhe foi aplicada.

16. As perícias efectuadas, psiquiátrica e psicológica, têm de ser validadas pelo tribunal e têm de produzir consequências favoráveis para o arguido.

17. Será que foi para evitar extrair as necessárias consequências do estado do arguido, que o tribunal ignorou a perícia psicológica?

18. A verdade é que o tribunal censurou o comportamento do arguido, como se este estivesse em estado normal e conseguisse determinar-se livremente.

19. Erradamente, o tribunal decidiu agravar a responsabilidade do arguido quando este, incapaz de se determinar de modo diferente, até porque, como o próprio declarou, nem sequer se lembra da conduta de disparar sobre o (…), disparou em dois momentos, assim tendo considerado muito mais censurável a sua conduta.

20. Ignorou, erradamente, o tribunal, que o arguido não se recorda do sucedido, o que é manifestamente aceitável, considerando, não só o relatório psiquiátrico, como o depoimento da testemunha (…), retro transcrito, e que afirma que, após os disparos, o arguido apresentava olhar estático, e não reagiu às perguntas e observações que lhe fez.

21. Ignorou o tribunal, lamentavelmente, a total ausência de perigosidade do arguido certificada pela perícia psicológica, a que nem sequer alude…

22. O arguido estava, no momento da prática dos factos, e inquestionavelmente, na situação a que se refere o nº 2 do artº 20º do Código Penal, ou seja, apesar de ter capacidade para avaliar a ilicitude do facto, tinha a sua capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

23. É o que resulta de forma clara do relatório pericial referido no acórdão recorrido e cujo resultado foi, aliás, pacificamente aceite pelo tribunal.

24. Acresce ainda a conclusão do outro relatório pericial, ignorado pelo tribunal, de que o arguido não apresenta vestígios de tendência para ter comportamentos desajustados e de alguma perigosidade.

25. Quer isto dizer que não é previsível que o arguido volte a delinquir, sem prejuízo de, nos termos do mesmo relatório pericial, dever haver atenção clinica para a sua ansiedade e sintomatologia depressiva.

26. Deveria, pelo exposto, o tribunal ter declarado o arguido inimputável.

27. Sem conceder, e para o caso de se entender não declarar o arguido inimputável, há que ter em atenção as circunstâncias do seu comportamento, e o seu estado emocional. Na verdade,

28. O arguido vivia permanentemente com o desgosto de não poder ver o seu filho, e com o receio do que o (…) lhe pudesse fazer, caso tentasse vê-lo.

29. No dia dos factos o arguido procurou ver o filho em momento em que este se encontrasse afastado do (…).

30. O arguido estava, tranquilamente à espera para, apenas, ver o seu filho ao longe, quando foi abordado em tom ameaçador pelo (…).

31. Tudo isto terá contribuído decisivamente para o agudizar dos seus medos, para o fazer sentir-se em risco sério, ou seja, foi o arguido colocado, pelas condutas, anteriores e no momento, do (…), num estado de particular comoção, receio e medo, mesmo desespero.

32. Assim se justificando plenamente que o crime a imputar ao arguido não seria nunca o de homicídio simples, mas o de homicídio privilegiado, p. e p. pelo artº 133º do CP.

33. E isto sem prejuízo de, conforme o arguido referiu, ter empunhado a sua arma por se ter convencido de que o movimento de levar a mão ao bolso por parte do (…), era para pegar na arma com que continuamente o ameaçava.

34. E se é certo que, afinal, não havia arma, também é certo que foi o que o arguido representou, ou seja, do ponto de vista subjectivo, o arguido agiu acreditando que se verificava um estado de coisas que, a existir realmente, justificaria a sua conduta, ou seja, excluiria a ilicitude do seu comportamento, ao abrigo do disposto nos art.º 31º e 32º do CP.

35. Tendo o arguido agido em erro, a consequência será a exclusão do dolo, nos termos do disposto no artº 16º nºs 1 e 2 do CP.

36. Porque, nos termos do nº 3 do mesmo artº 16º, fica ressalvada a negligência, nos termos gerais, então, e quando muito, o crime a imputar ao arguido deveria ser o de homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º do CP.

37. Ainda outra solução, e também esta, como as duas anteriores, mais adequada à situação em apreço, tendo em conta, designadamente, as exigências de prevenção especial, é, e seguindo Figueiredo Dias, considerar que, face ao disposto no artº 71º do CP, e considerando a substancial redução da capacidade de culpa, face ao estado em que se encontrava o arguido, e documentado em perícia, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa, designadamente nos casos do nº 2 do artº 20º do CP, se deverá aplicar uma atenuação especial da pena, nos termos do disposto nos artºs 72º e 73º do CP.

38. O arguido não apresenta quaisquer vestígios de perigosidade, como resulta do relatório de perícia psicológica efectuada.

39. Por todos os motivos retro expostos, e entendendo-se condenar o arguido, ao invés de o declarar inimputável não perigoso, como se espera, e tendo em conta todos os princípios enformadores do nosso ordenamento jurídico-penal, designadamente os da necessidade, proporcionalidade e adequação, sempre as pena concreta a aplicar ao arguido deverá ser inferior a 5 anos, e suspensa na sua execução já que, como resulta do acórdão recorrido, que transcreve o relatório social elaborado e junto aos autos e dos demais factos relevantes, se verificam todas as condições para que tal se imponha.

40. O tribunal decidiu ignorar o relatório da perícia psicológica que foi feita ao arguido, por ordem do mesmo tribunal. Assim,

41. Não cuidou a tribunal de apreciar a perigosidade do arguido, factor que deve sempre ser levado em linha de conta na determinação concreta da medida da pena.

42. A não ponderação sobre tal matéria, ou seja, a não fundamentação no que ao juízo de perigosidade do arguido se refere, consubstancia incumprimento do disposto no nº 2 do artº 374º do CPP o que, nos termos do disposto na al. a) do nº1 do artº 379º do mesmo CPP, constitui nulidade da sentença/acórdão.

43. É inconstitucional, por violação do artº 32º da CRP, a interpretação do disposto no nº 2 do artº 20º e no artº 71º do CP no sentido de que a quem agir com a sua capacidade de determinação sensivelmente diminuída, e existindo perícia que, além do mais, afirme a total falta de perigosidade do arguido, não deverá ser, caso se não opte pela inimputabilidade, punido com pena especialmente atenuada, nos termos do disposto nos artºs 72º e 73º do CP».

3. Em resposta ao recurso, o Ministério Público e a assistente defendem a manutenção da decisão recorrida.

4. Nesta Relação, a Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso (defendendo, além do mais, a convolação do crime de ofensas à integridade física para o crime de violência doméstica – matéria que extravasa o objeto do recurso).

     

II. QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).

Ora, na conclusão 43 do recurso interposto, o arguido insere matéria que não consta da motivação do recurso, a saber: “É inconstitucional, por violação do artº 32º da CRP, a interpretação do disposto no nº 2 do artº 20º e no artº 71º do CP no sentido de que a quem agir com a sua capacidade de determinação sensivelmente diminuída, e existindo perícia que, além do mais, afirme a total falta de perigosidade do arguido, não deverá ser, caso se não opte pela inimputabilidade, punido com pena especialmente atenuada, nos termos do disposto nos artºs 72º e 73º do CP”. Na verdade, percorrida toda a motivação do recurso interposto, em lado algum o arguido invoca a referida inconstitucionalidade, que apenas refere nas conclusões – cabendo assim no caso em que as conclusões vão além da motivação. E uma conclusão que não é motivada não pode ser conhecida.

Por esta razão, não será considerada a transcrita conclusão 43 do recurso do arguido.

O recorrente impugna a deliberação sobre a matéria de facto e a deliberação sobre a matéria de direito, nos seguintes vetores:

a) Modificação da decisão sobre a matéria de facto;

b) Inimputabilidade do arguido;

c) Nulidade do Acórdão

d) Qualificação jurídico-penal dos factos;

e) Legitima defesa

f) Erro sobre as circunstâncias;

g) Atenuação especial da pena.

III. FUNDAMENTAÇÃO

1. Transcrição do acórdão da primeira instância (parte relevante):

«a) Factos provados

a.1) O arguido A. e a assistente (…) casaram em 19 de Julho de 2006 e divorciaram-se por sentença de 9 de Abril de 2014, transitada em julgado em 19 de Maio de 2014, proferida pelo Tribunal Judicial da Nazaré (Secção Única).

a.2) Fruto desse casamento nasceram (…), a 27 de Maio de 2003, e (…), a 4 de Fevereiro de 2006.

a.3) O menor (…) encontra-se à guarda e cuidados da assistente (…).

a.4) A relação entre o arguido e a assistente é muito conflituosa, sendo que o arguido nunca aceitou o divórcio, nem aceitou o início pela assistente de novo relacionamento amoroso com (…).

a.5) Do mesmo modo, e desde a separação, o arguido encontrava-se desavindo com (…), pai da assistente, pelo qual sentia raiva, por este ter apoiado a assistente no processo de divórcio e a ter acolhido em sua casa.

a.6) No dia 29 de Janeiro de 2018, ao início da manhã, o arguido, transportando-se no veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Citroen, modelo Xara, de cor cinzenta, com a matrícula (…), de que era possuidor, dirigiu-se ao estabelecimento de ensino básico do 2° e 3° ciclos, Escola (…), sita na (…), a fim de visitar o seu filho (…), aluno naquela escola.

a.7) Ali chegado, o arguido estacionou o referido veículo num parque de estacionamento sito nas traseiras da escola, junto ao Pavilhão Municipal da (…).

a.8) Após, deslocou-se à portaria da escola e aí informou a porteira da escola, (…), de que pretendia visitar o seu filho (…) e pediu-lhe para falar com o director da escola.

a.9) Face à ausência do director da escola, (…) pediu ao arguido que aguardasse até que algum elemento da direcção estivesse disponível para o receber.

a.10) Acto contínuo, o arguido abandonou aquele local, regressando cerca de 10 minutos depois.

a.11) (…) informou o Director da escola acerca da presença do arguido e acompanhou o arguido para o interior do estabelecimento, onde, cerca das 09h45m, este foi recebido pelo director da escola, (…).

a.12) Quando regressou à portaria, (…) verificou que ali se encontrava a assistente (…), acompanhada do seu pai, (…).

a.13) De seguida, (…) informou o Director da escola sobre a presença da assistente, tendo recebido a indicação para a acompanhar à sala da direcção.

a.14) Nesta sequência, (…) e (…), deslocaram-se para o interior da escola, na companhia da porteira (…).

a.15) No caminho, encontraram o arguido, no hall do edifício, ocorrendo uma breve troca de palavras entre este, (…) e (…).

a.16) Seguiram caminho a porteira e a assistente, quando (…) se dirigiu ao arguido, com o dedo da mão espetado e apontado na direcção da cara do arguido, dizendo "o que estás aqui a fazer?! ".

a.17) De imediato, gerou-se uma discussão entre ambos, empurrando-se um ao outro e envolvendo-se em confronto físico.

a.18) Nessa ocasião, e por ordem não concretamente apurada, o arguido retirou do bolso uma navalha da marca Palaçoulo, com lâmina de um gume e 6 cm de comprimento, cabo em madeira com 7 cm de comprimento, com anilha em metal amarelo na zona de articulação da lâmina, sem quaisquer marcas ou inscrições, perfazendo o seu comprimento total 13cm.

a.19) E (…) retirou do bolso uma navalha da marca Albainox com lâmina de um gume e 8,5 cm de comprimento, cabo em madeira com 10 cm de comprimento, com reforço metálico na zona de articulação da lâmina, apresentando uma âncora em metal branco incrustada no cabo, sem quaisquer marcas ou inscrições, perfazendo o comprimento total de 18,5 cm.

a.20) Nisto, a assistente (…), que se havia colocado entre o arguido e (…), de modo a pôr termo à contenda, a dado momento empurrou o arguido, na tentativa de o separar do seu pai, momento em que o arguido, empunhando a referida navalha que havia retirado do bolso, desferiu com a mesma um golpe na face esquerda daquela.

a.21) De imediato, (…) agarrou o arguido, para o afastar da assistente, altura em que este último lhe desferiu um golpe com a aludida navalha, que o atingiu no abdómen.

a.22) No desenrolar da contenda, o arguido, encontrando-se a cerca de dois metros de distância de (…), empunhou um revólver, que trazia consigo, da marca Amadeo Rossi, de acção simples e dupla, tambor basculante com 6 câmaras e cano com 53mm de comprimento, punho com platinas de madeira castanha, calibre.32 Smith & Wesson Long (equivalente a 7,65 mm no sistema métrico), com o n.º de série C224427, em bom estado de conservação e funcionamento, municiada com munições de calibre.32 Smith & Wesson Long.

a.23) Acto contínuo, o arguido efectuou dois disparos que atingiram (…) no antebraço esquerdo e mão esquerda.

a.24) De seguida, o arguido voltou-se na direcção de (…), empunhando a arma.

a.25) Nessa circunstância, o arguido disparou a aludida arma de fogo em direcção a (…), tendo um dos tiros atingido de raspão a sua cabeça e o segundo tiro atingido a zona dorsal.

a.26) Nessa sequência, (…) cambaleou um pouco em direcção à porta de saída do edifício, vindo a cair no chão, de barriga para baixo e cabeça voltada para o lado esquerdo.

a.27) Nisto, o arguido encaminhou-se para junto de (…), que permanecia prostrado no chão.

a.28) Aí, não obstante as súplicas de (…) para que não fizesse mais nenhum mal ao seu pai, o arguido disparou mais dois tiros a cerca de 50 cm de distância de (…), que o atingiram na zona da cabeça.

a.29) A assistente gritou então para o arguido "mataste o meu pai...mataste o meu pai"", ao que o arguido retorquiu, rindo-se e dizendo "Já o matei! Há doze anos que gozavas comigo!", ao mesmo tempo que se deslocava para o exterior do edifício.

a.30) Entretanto iniciou-se o período de recreio, os alunos saíram das salas de aulas e o átrio da escola encheu-se de crianças.

a.31) Nessa ocasião, (…), agente da PSP, que se encontrava em serviço de policiamento junto à escola (…), alertado pelo som dos disparos, correu para o interior da escola, tendo encontrado o arguido a caminhar na sua direcção, com os braços à frente do corpo, e dizendo "Fui eu, fui eu, prendam-me".

a.32) O arguido foi detido pelas 10h00m, pelo aludido agente da PSP, enquanto os alunos corriam para fora do edifício da escola, aos gritos, em pânico.

a.33) Nessa ocasião, o arguido levava consigo no bolso direito das calças, a navalha e o revólver referidos.

a.34) Mais levava, nesse mesmo bolso, 15 (quinze) munições, de calibre.32 Smith & Wesson Long (equivalente a 7,65mm no sistema métrico), das seguintes marcas e origens:

- 4 (quatro) da marca HIRTENBERGER, de origem austríaca;

- 4 (quatro) da marca PRVI PARTIZAN (nny), de origem sérvia;

- 3 (três) da marca LAPUA, de origem finlandesa;

- 2 (duas) da marca CBC, de origem brasileira;

- 1 (uma) da marca WINCHESTER (W-W), de origem norte-americana;

- 1 (uma) da marca REMINGTON-PETERES (R-P), de origem norte-americana.

a.35) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido tinha ainda, no interior do veículo de matrícula 00-30-VB, junto ao tapete atrás do banco do condutor, 1 (uma) munição de calibre.32 Smith & Wesson Long (equivalente a 7,65mm no sistema métrico), da marca WINCHESTER (W-W), de origem norte-americana.

a.36) (…) foi assistido no local, por uma equipa do INEM e transportado para o serviço de urgência do Centro Hospitalar de Y (...), onde deu entrada pelas 1 1h16m, vindo a falecer pelas 11h20m.

a.37) Também a assistente (…) foi transportada para o serviço de urgência do Centro Hospitalar de Y (...), onde recebeu tratamento médico.

a.38) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, (…) sofreu as lesões analisadas e descritas a fls. 303 a 310, designadamente:

a) Na zona da cabeça e face:

- Ferida contusa, orientada obliquamente para trás e para a esquerda, na região parietal esquerda, medindo 4cm de comprimento, com 0,5 cm de afastamento dos bordos, apresentando uma orla equimótica arroxeada medindo 7x1,3 cm.

- Ferida contusa orientada transversalmente, na cauda do supracílio, medindo 3 cm de comprimento, lateralmente à qual se visualizava área equimótica arroxeada medindo 3x0,5cm, posteriormente à qual se observava escoriação medindo 0,5 cm de diâmetro.

- Na região mentoniana, orifício com 0,5 cm de diâmetro, apresentando este uma orla negra de fumo, excêntrica medindo lx0,6 cm (orifício de entrada de projéctil de arma de fogo), sendo que o projéctil da arma de fogo encontrava-se alojado no tecido celular subcutâneo facial, em nível correspondente ao lado direito da mandíbula.

- Na região temporo — occipital esquerda, trajecto lesional guardando provável relação com trajecto descrito por projéctil de arma de fogo, com orifício de entrada na região occipital, à esquerda da linha média, medindo o orifício 0,7x0,5 cm, apresentando orla equimótica arroxeada, concêntrica, medindo 2x2cm e orla excêntrica; orifício de saída na transição temporo-occipital esquerda, medindo o orifício 1x0,4 cm, apresentando um formato elíptico, orientada transversalmente. O trajecto descrito orientava-se da direita para a esquerda e ligeiramente de baixo para cima.

b) Na região dorso-lombar: solução de continuidade sensivelmente circular, na transição dorso — lombar, à esquerda da linha média, medindo o orifício em si 0,5x0,2 cm, apresentando orla equimótica arroxeada medindo 1 cm de diâmetro (orifício de entrada do projéctil de arma de fogo).

c) Na zona do abdómen: ferida incisa no flanco esquerdo, orientada obliquamente para cima e para a direita, medindo a solução de continuidade em si, 1,6 cm de comprimento. Prolongando-se a partir da solução de continuidade descrita, escoriação sugestiva de corresponder a "cauda de saída", medindo 11,4 cm de comprimento. Presença de projéctil de arma de fogo alojado no tecido celular subcutâneo, na região do hipocôndrio direito, resultante do trajecto descrito por projéctil de arma de fogo, com ponto de entrada dorso-lombar, lesando no seu trajecto estruturas anatómicas como o mesentério, epiplon, colon transverso e estômago.

d) No membro superior direito: escoriação orientada transversalmente, na região deltoideia esquerda, medindo 0,6cm de comprimento.

e) No membro superior esquerdo: solução de continuidade sensivelmente circular, no terço médio da face posterior do antebraço, medindo 0,5x0,4 cm (orifício de entrada de projéctil), apresentando orla escoriada excêntrica, medindo 1,5x1 cm. Equimose arroxeada no terço inferior da face antero-lateral do antebraço, medindo 1,5 cm, correspondendo a projéctil de arma de fogo. Na palma da mão, trajecto lesional em relação com trajecto descrito por projéctil de arma de fogo, composto por: ferida contusa, oblíqua supero-medialmente, no nível correspondente ao 2.° metacárpico, medindo 2x0,4cm, medialmente à qual, na região hipotenar, se individualizava ferimento perfurante, com orifício de entrada, de localização lateral, medindo 0,7x0,3 cm, e orifício de saída, de bordos evertidos, no bordo medial da mão, medindo 1 x0,1 cm.

f) No membro inferior direito: escoriação no joelho medindo 1,5x0,5 cm.

a.39) A morte de (…) foi devida às lesões traumáticas abdominais descritas.

a.40) Com efeito, em consequência do trajecto descrito pelo projéctil de arma de fogo com ponto de entrada no dorso-lombar e terminus no tecido celular subcutâneo do hipocôndrio direito, resultou importante perda volémica (1600cc de sangue presente no interior do estômago e 220 cc de sangue dispersos pela cavidade peritoneal — hemoperitoneu) que esteve na origem do exitus letalis.

a.41) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, (…) sofreu as lesões analisadas e descritas a fls. 175, 176, 179, 180 e 303 a 310, designadamente:

- Face e pescoço: cicatriz rosada linear, oblíqua para baixo e para fora, cruzando a mandíbula até à face lateral esquerda do pescoço, medindo 9,5cm.

a.42) Tais lesões sofridas pela (…) demandaram um período de cura de 10 (dez) dias, todos com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

a.43) O arguido não possuía licença de uso e porte de arma.

a.44) A arma detida pelo arguido e com a qual efectuou os referidos disparos, não se encontrava manifestada, nem registada.

a.45) Sabia o arguido que a descrita actuação - desferir uma facada no abdómen de (…) e atingi-lo com vários disparos em várias zonas do corpo – era idónea a provocar a sua morte, como provocou, atendendo aos objectos utilizados (navalha e arma de fogo, tipo revólver) e às zonas do corpo atingidas, onde se alojam órgãos vitais.

a.46) Ao actuar do modo acima descrito, agiu o arguido com o propósito, concretizado de pôr termo à vida de (…), indiferente ao local onde se encontrava e às pessoas que presenciaram a sua actuação.

a.47) Mais actuou o arguido com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da assistente (…) e de lhe produzir as lesões verificadas, bem sabendo ser sua ex-cônjuge e mãe dos seus filhos e ainda que o instrumento utilizado era apto a criar lesões, resultado este que representou.

a.48) O arguido conhecia as características da arma de fogo e munições acima descritas que tinha na sua posse e a sua idoneidade para causar ferimentos profundos e mortais, sabendo igualmente que não lhe era permitida a sua detenção e utilização sem a respectiva licença, e, não obstante, agiu com a intenção alcançada de as deter e usar.

a.49) Agiu o arguido sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais se provou:

a.50) O custo dos episódios de urgência e cuidados médicos e hospitalares prestados aos ofendidos (…) e (…) no Centro Hospitalar de Y (...), EPE ascendeu à quantia global de E 171,82.

a.51) (…) são filhas de (…) e de (…).

a.52) À data do seu decesso (…) tinha 67 anos de idade, gozava de boa saúde, e residia há mais de 40 anos em comunhão de cama, mesa e habitação com a demandante (…).

a.53) À data do seu decesso (…) auferia uma pensão de reforma do montante de E 240 mensais, e auxiliava a (…) no comércio por esta desenvolvido no mercado municipal da (...).

a.54) As demandantes despenderam a quantia de E 1.409,36 com despesas do funeral do (…).

a.55) E despenderam a quantia de E 1.051,59 com o terreno da sepultura no cemitério.

a.56) E despenderam a quantia de E 130,00 em flores funerárias.

a.57) E a quantia de E 1.537,50 com a aquisição de campa colocada na sepultura do falecido (…).

a.58) (…) era dedicado à família, e mantinha uma relação harmoniosa, de muito amor, carinho, proximidade, respeito, compreensão e entreajuda com as ora demandantes: a sua companheira (…) e todas as suas filhas.

a.59) Em consequência da morte inesperada e violenta do (…), a (…) sofreu e sofre dor profunda e desesperada amargura e desgosto, sentindo-se deprimida e isolando-se em casa, apenas saindo para ir ao cemitério, e não tendo voltado a exercer a sua actividade comercial no mercado.

a.60) Em consequência da morte inesperada e violenta do (…), as demandantes (…) sofreram e sofrem dor profunda, amargura e desgosto, sofrendo de insónias, angústia e ansiedade, e sentindo saudades do pai.

a.61) Em consequência da conduta do arguido, ao desferir-lhe um golpe na face, a demandante (…) sentiu dor e medo.

a.62) Ao presenciar o arguido a agredir e disparar arma de fogo contra o seu pai a demandante (…) sentiu terror, desespero e impotência.

Mais se provou, ainda:

a.63) O arguido (…) apresenta antecedentes psiquiátricos compatíveis com um quadro de depressão, com componente ansiosa marcada, com início de sintomas provável em 2006, e com sucessivas recaídas depressivas, sem o necessário acompanhamento / tratamento.

a.64) Em 2014 o arguido (…) teve novo episódio depressivo, no contexto do divórcio e do processo de responsabilidades parentais, que vivenciou como traumático ao nível emocional.

a.65) À data da prática dos factos em apreço nos autos o arguido (…) encontrava-se emocionalmente instável e perturbado - Perturbação Depressiva Recorrente / F33, no contexto de um quadro afectivo depressivo, o qual surge enquadrado ( e por força destas ) nas circunstâncias de marcada disfunção familiar: difícil e longo processo de regulação das responsabilidade parentais, com desespero pela impossibilidade em ver o filho e a sensação de estar em risco caso o fizesse ou tentasse fazê-lo.

a.66) À data dos factos o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, todavia, a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída.

a.67) O arguido (…) é o mais novo dos três filhos do casal progenitor. Os pais eram feirantes de artigos de vestuário, o que lhes permitiu beneficiar de uma situação económica equilibrada. O arguido foi educado dentro dos costumes e tradições da etnia cigana a que pertence.

a.68) Quando o arguido (…) tinha cerca de oito anos de idade, os pais emigraram para o Brasil, tendo o arguido permanecido aos cuidados da sua tia materna — (…), mãe da ex-cônjuge (…) -, durante um curto período, tendo posteriormente ido juntar-se aos progenitores. Viveu no Brasil durante cerca de três anos, tendo regressado a Portugal.

a.69) O arguido nasceu em (…) e viveu em várias localidades do distrito de (…), nomeadamente (…).

a.70) Frequentou a escola em idade normativa, tendo concluído o sexto ano de escolaridade com cerca de treze anos. Não prosseguiu os estudos porque na altura não valorizava a escola e os progenitores não o incentivaram. Ainda durante a frequência escolar ajudava os pais nas feiras, nos períodos de férias e aos fins de semana. Após ter deixado a escola, passou a trabalhar com os pais de forma mais consistente, tendo-se mais tarde autonomizado e criado o seu próprio negócio.

a.71) Exerceu a actividade de feirante durante alguns anos, tendo conseguido obter uma situação económica que lhe permitiu adquirir alguns bens, nomeadamente um apartamento e carro próprio. Esta actividade deixou de ser rentável, tendo o arguido sido declarado insolvente.

a.72) Há alguns anos fez um curso de formação profissional de segurança privada, na Empresa (…), tendo posteriormente passado a trabalhar como segurança por conta da empresa (…), actividade que exerceu no (…), na (…).

a.73) Com cerca de 21 anos de idade, casou, de acordo com as tradições da etnia a que pertence, com (…), filha de uma irmã da progenitora [(…)]. Viveram em união de facto, sendo o relacionamento descrito como marcado por alguns conflitos que situa em períodos em que a família atravessava situações de maior fragilidade económica. O casal separou-se já após o nascimento do filho mais velho, ocorrido em 27/05/2003. Cerca de um ano depois reconciliaram-se, tendo, a 19/07/2006 contraído casamento civil. O nascimento do filho mais novo do casal ocorreu já durante este período de vida em comum (a 04/02/2006). O relacionamento do casal continuou a ser marcado por conflitos que levaram à separação definitiva. O divórcio ocorreu em 09/04/2014.

a.74) Na altura, os filhos menores ficaram aos cuidados da progenitora, tendo o arguido continuado a conviver regularmente com eles. Segundo refere, os contactos entre os menores e o pai e elementos da família alargada paterna, decorriam de forma ajustada, embora não existissem contactos entre o arguido e a mãe das crianças.

a.75) A situação ter-se-á alterado pelo facto de o arguido ter estabelecido um novo relacionamento amoroso, depois do qual, o ex-cônjuge passou a obstaculizar o convívio entre ele e os filhos, situação com que o arguido não se conformou, tendo recorrido à intervenção das autoridades judiciárias.

a.76) Quando o filho mais velho atingiu os doze anos de idade, passou a residir com o progenitor e os avós paternos, por decisão judicial. (…) refere que, a partir dessa altura, a progenitora dos menores deixou de estabelecer contactos com o filho mais velho, tendo cessado também os contactos da família paterna com o filho mais novo do casal.

a.77) Anteriormente à prisão, o arguido integrava o agregado familiar dos progenitores, constituído por estes, ambos reformados, por ele e o filho mais velho de 14 anos de idade, estudante. A família residia na zona de (…).

a.78) Na altura, o arguido encontrava-se a trabalhar como segurança por conta da empresa (…), sediada em (…), situação que tinha iniciado há um curto período de tempo.

a.79) Anteriormente, trabalhara durante cerca de quatro anos como segurança, por conta da empresa (…), em (…).

a.80) O arguido mantinha um quotidiano estruturado, passando os seus tempos livres maioritariamente no convívio com os elementos da família e com a namorada, (…), de 35 anos de idade, com quem mantém uma relação afectiva já há algum tempo e que o visita regularmente no Estabelecimento Prisional.

a.81) O arguido encontra-se no Estabelecimento Prisional de (…) desde 30/01/2018. Tem mantido comportamento de acordo com as normas do E.P., sem registo de infracções disciplinares. A nível ocupacional, frequentou um Curso de Formação Profissional de curta duração de informática. Actualmente frequenta um Curso EFA B3 para obtenção do 9° ano de escolaridade.

a.82) Tem recebido visitas regulares dos progenitores, do filho mais velho e outros elementos da família alargada, que lhe manifestam apoio. Posteriormente aos factos que deram origem ao presente processo, os progenitores e o filho mais velho do arguido alteraram a sua residência, mantendo-se esta reservada para evitar eventuais conflitos com elementos da família da vítima.

a.83) Como projecto de futuro, o arguido manifesta a intenção de quando a sua situação jurídico-penal o permitir, fixar residência junto dos seus familiares de origem, pretendendo afastar-se desta zona do país.

a.84) O arguido constitui apoio/vinculação relativamente aos elementos da família de origem e aos descendentes, e não apresenta passado de consumos de drogas ou álcool.

a.85) Do CRC do arguido nada consta.

b) Factos não provados

Para além dos que ficaram descritos — e excluindo expressões conclusivas e/ou que não relevam para os respectivos tipo de ilícito e objecto dos presentes autos – não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente, não se provou:

i) Que ao chegar à escola o arguido tenha sido recebido por uma professora membro da direcção antes de ser recebido pelo director da escola;

ii) Que quando o arguido disparou a arma de fogo já se tivesse iniciado o período de recreio e os alunos da escola já tivessem saído das aulas;

iii) Que após o arguido ter efectuado os dois primeiros disparos, o (…) se tenha colocado entre o arguido e a (…), e tenha ficado de costas para o arguido;

iv) Que o arguido tenha disparado contra o (…) quando este estava de costas;

v) Que o arguido se tenha encaminhado para a porta de saída do edifício mas, de súbito, tenha regressado para junto do (…);

vi) Que o arguido tenha agido com frieza de ânimo e com reflexão dos meios empregues, na presença de crianças, e imperturbável quanto à relação familiar que teve com a vítima mortal;

vii) Que o arguido tenha provocado graves lesões à (…) e tenha cerceado a capacidade de defesa da mesma,

viii) Que o (…) tenha falecido no estado de casado com (…);

ix) Que em consequência da morte de (…) a demandante (…) tenha necessitado de recorrer a apoio psiquiátrico; e passe todos os dias no cemitério, lá permanecendo desde a abertura até ao fecho.

c) Fundamentação da Matéria de Facto

(…).

a.65) À data da prática dos factos em apreço nos autos o arguido (…) encontrava-se emocionalmente instável e perturbado __ Perturbação Depressiva Recorrente / F33 __ , no contexto de um quadro afetivo depressivo, o qual surge enquadrado ( e por força destas ) nas circunstâncias de marcada disfunção familiar: difícil e longo processo de regulação das responsabilidade parentais, com desespero pela impossibilidade em ver o filho e a sensação de estar em risco caso o fizesse ou tentasse fazê-lo.

a.66) À data dos factos o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, todavia, a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída.

Quid?

Nos termos do disposto no artº 163º nºs 1 e 2 do C.P.P., “juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”, podendo o juiz “divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”, mas com apelo aos conhecimentos materiais supostos na perícia.

No caso, inexistindo motivos para divergir do juízo pericial, aceita-se o mesmo: o arguido, aquando da prática dos factos, era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, todavia, a capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída.

Tradicionalmente, a imputabilidade diminuída era reconhecida como cobrindo as situações em que o agente está fortemente limitado na sua capacidade de avaliação da ilicitude do ato e de determinação de acordo com essa avaliação, sem que tal capacidade esteja completamente eliminada. A diminuição dessa capacidade determinaria a diminuição da culpa, o que por sua vez obrigaria à atenuação da pena.

Esta conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem, porém, correspondência na lei penal vigente.

É nos nºs 2 e 3 do art. 20º do CP que a lei trata das situações em que a capacidade de avaliação e autodeterminação do agente se encontra “sensivelmente diminuída”. Na verdade, o nº 2 prevê a extensão da inimputabilidade aos casos em que o agente, “por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.” E o nº 3 acrescenta que a comprovada insensibilidade do agente às sanções penais pode constituir índice da situação prevista no nº 2.

Estes dois preceitos preveem afinal casos em que, apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à de autêntica inimputabilidade (a do nº 1). Trata-se, pois, de situações de imputabilidade duvidosa.

Verdadeiramente, ao permitir a integração dessas situações na inimputabilidade, a lei admite uma inimputabilidade fictícia, uma vez que a situação não é de total carência de capacidade de avaliação e determinação. Entendeu, porém, o legislador que, nos casos mais graves, o tribunal deve poder optar (“pode ser declarado inimputável…”) entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (nº 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (nº 3).

Ou seja: os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos nºs 2 e 3 do art. 20º do CP.

No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos então perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa.

É que na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave.

Aliás, na determinação concreta da pena, intervirão necessariamente os critérios definidos no art. 71º do CP, que manda atender à culpa e às exigências preventivas.

Expostas estas considerações gerais, abordemos agora o caso dos autos.

Como vimos, da matéria de facto resultou provado que o arguido, aquando da prática dos factos, se encontrava emocionalmente instável e perturbado __ Perturbação Depressiva Recorrente / F33 __, no contexto de um quadro afetivo depressivo, o qual surge enquadrado (e por força destas) nas circunstâncias de marcada disfunção familiar: difícil e longo processo de regulação das responsabilidade parentais, com desespero pela impossibilidade em ver o filho e a sensação de estar em risco caso o fizesse ou tentasse fazê-lo.

Todavia, mais resultou apurado que à data dos factos o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, mas a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída; não obstante, não de tal forma diminuída que o impossibilitasse de agir livre e conscientemente – como agiu – bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

A Perturbação Depressiva Recorrente de que o arguido sofria, persistente na ocasião do crime, terá afetado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação. Poderemos aceitar, como refere o relatório pericial psiquiátrico, que estamos perante um caso de imputabilidade diminuída.

Contudo, daí não decorre que haja uma situação de diminuição de culpa, a determinar automática e necessariamente uma atenuação da pena, atenta a particular energia criminosa do arguido, ao esfaquear o ofendido no abdómen, e disparar diversas vezes à queima-roupa (curta distância) contra o mesmo dentro de um estabelecimento de ensino, e, encontrando-se o (…) já caído no chão, e não obstante as súplicas da assistente (…), o arguido aproximou-se do ofendido, e efetuou mais dois disparos, a muito curta distância do ofendido, e dirigidos à cabeça deste, num claro gesto de “execução sumária” do mesmo, como que a certificar-se que, de qualquer modo, o mesmo não sobreviveria a esse dia.

Conclui-se, pois, que o estado psíquico que afetava o arguido no momento da prática dos factos não era adequado, na compreensão conjugada com os restantes factos provados, a conformar uma imagem global do facto especialmente atenuada, motivo pelo qual é de arredar a atenuação especial da pena, nos termos do art. 72.º do CP.

__ Neste sentido cfr. Acs. STJ de 21/06/2012, proc. nº 525/11.2PBFAR.S1, e Ac. STJ de 03/07/2014, proc. nº 354/12.6 GASXL.L1, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido cfr. ainda Ac. VTR Porto de 08/01/2003, proc. nº 0240820, onde se refere: «I - A imputabilidade diminuída pressupõe a existência de uma anomalia ou alteração psíquica que afete o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

II - Se a frustração não é plena, mas antes diminuída, deve ser encarada ou nos termos do n.2 do artigo 20 do Código Penal, ou apenas no quadro da medida concreta da pena, porventura, por via dela, atenuada, ou, pelo contrário, agravada.

III - Podem haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não-atenuação ou mesmo à agravação da pena, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem particularmente desvaliosas e censuráveis, verbi gratia, em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos.

De qualquer modo, a consideração da imputabilidade diminuída só se justifica se puder ser afirmada uma base biopsicológica particularmente grave, permanente e incontrolável pelo agente nos seus efeitos.

IV - O elemento ou substrato biopsicológico (anomalia psíquica) é imprescindível à verificação, em concreto, de uma inimputabilidade ou de uma imputabilidade diminuída.»

No mesmo sentido cfr. Ac. Colendo STJ de 16-09-2005, proc. Proc. n.º 2644/05, onde se refere: «V - Com o disposto do art. 20.º, n.º 2, do CP, o legislador português propôs-se oferecer ao juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos graves e não acidentais - em casos, portanto, em que a prática do facto se revela já uma espécie de forma adquirida do existir psiquicamente anómalo -, considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objetivas de sentido do facto como facto do agente se revele ou não ainda possível relativamente ao essencial do facto».

VI - «De um ponto de vista de puro legalismo, a opção entre imputabilidade e inimputabilidade será lograda quando se decide sobre se o agente pode ou não “ser censurado” por não dominar (“falta de controle”) os efeitos da anomalia psíquica. E ainda em função de um outro elemento, a saber, o de o juiz considerar que para a socialização do agente será preferível que este cumpra uma pena, ou antes, eventualmente, uma medida de segurança (pensamento “a partir do resultado ou da consequência”)».

VII - «É neste preciso contexto que deve interpretar-se o disposto no art. 20.°, n.º 3. Não se trata nele de trazer para o CP um novo conceito de inimputabilidade; um novo conceito que, perante as dificuldades insuperáveis postas à sua compreensão pelo dogma da culpa da vontade e do poder de agir de outra maneira, faria coincidir a imputabilidade com a capacidade do agente para ser influenciado (no sentido da sua socialização, naturalmente) pelo cumprimento da pena. Trata-se, sim, de entrar com este facto (de resto importantíssimo, sobretudo quando ligado à capacidade do agente de “compreensão da pena”) em conta na decisão de considerar o agente imputável e aplicar-lhe uma pena: ou antes inimputável e aplicar-lhe eventualmente uma medida de segurança».

Em sentido idêntico cfr. ainda Ac. VTR Coimbra de 03/12/2014, proc. nº 858/12.0JACBR.S1.C1, onde se decidiu: « I - Para estarmos em face de uma imputabilidade diminuída não basta que a capacidade de avaliação ou de determinação estejam reduzidas: é necessário que atinjam um elevado grau de incapacidade, ou seja, que estejam manifestamente, notoriamente, claramente ou apreciavelmente diminuídas.

II - Se não atingir este grau de incapacidade, deverá a redução na capacidade de avaliação ser tomada em consideração em sede de operações para fixação da pena concreta.».

Do mesmo modo, não se tendo apurado da discussão da causa quem tirou primeiro a respetiva faca / canivete do bolso [e o arguido, se o ofendido (…)], nem é de colher a versão apontada pelo arguido, no sentido de que teria agido em legítima defesa / excesso de legítima defesa, ou sequer de putativa legítima defesa, com alegado erro desculpável / não censurável sobre a ilicitude.

Os factos dados como não provados resultaram da circunstância de da discussão em audiência se terem apurado os factos contrários / opostos, ou de não se ter produzido prova direta e bastante sobre os mesmos.

d) Qualificação jurídica dos factos

(…)

e ) Escolha e Determinação da Medida da Pena

(…)

2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

(…)

3. Inimputabilidade do arguido

Entende o arguido que o tribunal deveria tê-lo declarado inimputável, por aplicação do n.º 2 do art. 20º do Código Penal.

A imputabilidade é um pressuposto, uma condição sine qua non, da formulação do juízo de culpa do agente, pelo que a inimputabilidade constituirá um obstáculo à comprovação da culpa: “o juízo de culpa jurídico-penal não poderá efetivar-se quando a anomalia mental oculte a personalidade do agente, impedindo que ela se ofereça à contemplação compreensiva do juiz” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., p. 569). Assim, o n.º 1 do art. 20º do CP afirma ser inimputável “quem, por força de anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.”. Constituindo a causa da perturbação da personalidade, para o efeito, uma anomalia ou doença psíquico-mental, naturalmente que a competência para a caracterização médica da anomalia e dos seus efeitos caberá aos peritos, designadamente aos psiquiatras – cabendo ao juiz a decisão jurídico-penal de declarar ou não o arguido inimputável (Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral, 3ª ed., p. 472-473).

O arguido/recorrente foi sujeito a perícia psiquiátrica, que concluiu que o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas (facto provado em a.66), e pela sua imputabilidade – conclusão que o arguido, nesta parte, não coloca em crise.

Afirma ainda a perícia que a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída, sendo com fundamento neste trecho que o arguido defende, na peça recursiva, dever ser declarada a sua inimputabilidade.

Relevam para o efeito os seguintes factos definitivamente assentes:

a.63) O arguido (…) apresenta antecedentes psiquiátricos compatíveis com um quadro de depressão, com componente ansiosa marcada, com início de sintomas provável em 2006, e com sucessivas recaídas depressivas, sem o necessário acompanhamento / tratamento.

a.64) Em 2014 o arguido (…) teve novo episódio depressivo, no contexto do divórcio e do processo de responsabilidades parentais, que vivenciou como traumático ao nível emocional.

a.65) À data da prática dos factos em apreço nos autos o arguido (…) encontrava-se emocionalmente instável e perturbado - Perturbação Depressiva Recorrente / F33, no contexto de um quadro afetivo depressivo, o qual surge enquadrado (e por força destas) nas circunstâncias de marcada disfunção familiar: difícil e longo processo de regulação das responsabilidade parentais, com desespero pela impossibilidade em ver o filho e a sensação de estar em risco caso o fizesse ou tentasse fazê-lo.

a.66) À data dos factos o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, todavia, a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída.

Estabelece o n.º 2 do art. 20º do CP que “pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade de avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída”. Trata-se de uma extensão da inimputabilidade a casos em que o agente se não encontra destituído da capacidade de avaliação, mas em que a gravidade da situação em que o agente se encontrava na altura da prática dos factos é semelhante a uma autêntica inimputabilidade.

Na perícia considerou-se que o arguido tinha capacidade de avaliação (relativamente às consequências e punibilidade da sua conduta), mas que esta se encontrava sensivelmente diminuída. E o tribunal recorrido ponderou, no acórdão proferido, a aplicação do normativo em causa, da seguinte forma:

“Como vimos, da matéria de facto resultou provado que o arguido, aquando da prática dos factos, se encontrava emocionalmente instável e perturbado __ Perturbação Depressiva Recorrente / F33 __ , no contexto de um quadro afetivo depressivo, o qual surge enquadrado (e por força destas) nas circunstâncias de marcada disfunção familiar: difícil e longo processo de regulação das responsabilidade parentais, com desespero pela impossibilidade em ver o filho e a sensação de estar em risco caso o fizesse ou tentasse fazê-lo.

Todavia, mais resultou apurado que à data dos factos o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, mas a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída; não obstante, não de tal forma diminuída que o impossibilitasse de agir livre e conscientemente – como agiu – bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

A Perturbação Depressiva Recorrente de que o arguido sofria, persistente na ocasião do crime, terá afetado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação. Poderemos aceitar, como refere o relatório pericial psiquiátrico, que estamos perante um caso de imputabilidade diminuída.

Contudo, daí não decorre que haja uma situação de diminuição de culpa, a determinar automática e necessariamente uma atenuação da pena, atenta a particular energia criminosa do arguido, ao esfaquear o ofendido no abdómen, e disparar diversas vezes à queima-roupa (curta distância) contra o mesmo dentro de um estabelecimento de ensino, e, encontrando-se o (…) já caído no chão, e não obstante as súplicas da assistente (…), o arguido aproximou-se do ofendido, e efetuou mais dois disparos, a muito curta distância do ofendido, e dirigidos à cabeça deste, num claro gesto de “execução sumária” do mesmo, como que a certificar-se que, de qualquer modo, o mesmo não sobreviveria a esse dia.

Conclui-se, pois, que o estado psíquico que afetava o arguido no momento da prática dos factos não era adequado, na compreensão conjugada com os restantes factos provados, a conformar uma imagem global do facto especialmente atenuada, motivo pelo qual é de arredar a atenuação especial da pena, nos termos do art. 72.º do CP - neste sentido cfr. Acs. STJ de 21/06/2012, proc. nº 525/11.2PBFAR.S1, e Ac. STJ de 03/07/2014, proc. nº 354/12.6 GASXL.L1, in www.dgsi.pt. (…)”

Secundamos inteiramente os argumentos transcritos, ainda na vertente da faculdade concedida pelo n.º 2 do art. 20º do CP. Na verdade, “com o disposto no art. 20º-2 (o legislador) propôs-se oferecer ao juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos graves e não acidentais – em casos, portanto, em que a prática do facto se revela já uma espécie de forma adquirida do existir psiquicamente anómalo -, considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objetivas de sentido do facto como facto do agente se revele ou não ainda possível relativamente ao essencial do facto. De um ponto de vista de puro legalismo, a opção entre imputabilidade e inimputabilidade será lograda quando se decide sobre se o agente pode ou não “ser censurado” por não dominar (“falta de controlo”) os efeitos da anomalia psíquica” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., p. 587).

Na mesma esteira, tem o nosso STJ entendido que “A imputabilidade diminuída pressupõe a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato biopsicológico) que afete o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo)” (Acs. do STJ de 21.5.2008, proc. 08P577, de 21.1.2010, no proc. 401/07.3JELSB.L1.S1, e de 18.9.2014, proc. 35/13.3PASNT.S1, todos em www.dgsi.pt).

Regressando ao caso dos autos, não decorre da dinâmica dos factos, conjugada com o quadro depressivo de que o arguido era portador, e dos antecedentes do crime, vertidos nos factos a.64, a.65, a.73 a a.76, que se possa concluir, ou sequer considerar, que aquela doença tenha afetado de alguma forma a capacidade de decisão (autodeterminação) do arguido, no momento da prática do crime, suscetível de inferir não ter o arguido conseguido dominar os factos. É que o arguido, pese embora os antecedentes litigiosos com a assistente e seu pai (a vítima),

e os obstáculos criados às visitas do arguido aos seus filhos (o que determinou que se deslocasse à escola onde ocorreram os factos para ver o seu filho mais novo), estava ciente de que poderia encontrar a vítima e a assistente na visita que tentava efetuar ao filho, única razão porque, segundo a experiência comum, transportou consigo uma navalha, um revólver de calibre 7,65 mm, municiada com 6 munições, e ainda 15 munições no bolso.

Não ficou provado que o arguido tivesse receio da vítima, e que não se recorde da sua conduta, por não se encontrar em estado considerado normal, e incapaz de se determinar de forma diferente – fundamento fáctico utilizado pelo arguido para fundar o pretendido juízo de inimputabilidade. A própria atuação objetiva do arguido implica uma reiteração da decisão de matar dada como provada, não se tendo coibido de disparar sobre a vítima em 3 momentos distintos, após a ferir com a navalha de que era portador (não se ignorando que de igual forma a vítima tinha consigo idêntica arma): primeiro, disparou 2 tiros sobre a vítima a 2 metros de distância; depois, disparou mais dois tiros sobre a vítima a idêntica distância; seguidamente dirigiu-se para perto da vítima, já prostrada no solo, e, sob as súplicas da assistente para que não fizesse mais mal ao seu pai, disparou mais 2 tiros na direção da cabeça da vítima, a cerca de 50 cms da mesma. Todos os projéteis atingiram a vítima, acabando por lhe provocar a morte.

Conforme se refere no ac. do STJ de 3.7.2014 (proc. 354/12.6GASXL.L1.S1, em www.dgsi.pt), «os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do art. 20º CP. No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos então perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação especial da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa. É que na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave».

E no Ac. do STJ de 7.2.2018 (proc. 312/15.9POLSB.S1, em www.dgsi.pt), com total pertinência para o caso e apreço, afirma-se: “Desculpabilizar, ainda que parcialmente, o comportamento do arguido com fundamento no seu desequilíbrio emocional seria um enfraquecimento intolerável da proteção penal de bens jurídicos valiosos. Diga-se de passagem que a grande maioria dos crimes contra a humanidade cometidos no século passado foram praticados por indivíduos emocionalmente perturbados, mas tal circunstância nunca foi considerada desresponsabilizante ou sequer atenuante de tais comportamentos pelos tribunais que julgaram esses crimes.

Ainda que se considerasse que o arguido não conseguia dominar totalmente os “impulsos” da sua “doença emocional” (o que não resulta da matéria de facto, insiste-se), daí não se seguiria a atenuação da culpa.

Na verdade, segundo o disposto no nº 2 do art. 20º do CP, se o tribunal considerar que o agente, por força de uma anomalia psíquica grave, não domina os efeitos da mesma, sem por isso poder ser censurado, tendo porém a capacidade de avaliação e de determinação sensivelmente diminuída, o tribunal poderá declarar o agente inimputável.

Não diz porém o preceito qual a decisão a tomar se o agente for julgado imputável. É incontestável que à imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode conduzir a uma culpa agravada, como a uma culpa atenuada, tudo dependendo das características da personalidade do agente refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave”.

Improcede, pelas razões expostas, a pretendida declaração de inimputabilidade do arguido.

4. Nulidade do Acórdão

Aqui chegados, convocamos desde já as conclusões 41 e 42, nas quais invoca o arguido a nulidade do acórdão proferido, por incumprimento do art. 374º, n.º 2, do CPP, o que defende conduz à nulidade prevista no art. 379º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código. Vejamos:

Em causa, concretamente, o facto de o tribunal a quo não ter feito constar dos factos provados a referência constante do relatório psicológico efetuado ao arguido quanto à sua não perigosidade – que o arguido defende subsumir-se a ausência de fundamentação (princípio este de matriz constitucional – art. 205º, n.º 1, da CRP).

Como é sabido, o art. 374º, n.º 2, do CPP impõe a enumeração dos factos provados e dos não provados que foram alegados pela acusação e pela defesa, e ainda os que resultarem da discussão da causa e sejam relevantes para a sua decisão. Resulta daqui que a consideração de factos que não tenham sido expressamente alegados nas peças processuais (acusação e contestação) está dependente da sua pertinência e essencialidade para a decisão da causa – os denominados factos “não substanciais que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão” (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, p. 288). Só incorrerá na nulidade decorrente da falta de motivação [prevista no art. 379º, n.º 1, al. a)] a decisão que, neste particular, seja omissa quanto a factos alegados, ou decorrentes do julgamento, desde que sejam pertinentes e essenciais para a decisão final.

No caso dos autos, importa em primeiro lugar considerar que o relatório psicológico foi efetuado como complemento à perícia às faculdades mentais do arguido, destinada em primeira linha a aferir da imputabilidade do arguido – e tal relatório foi naturalmente considerado pelo Exmo. Perito no relatório de perícia psiquiátrica médico legal, que concluiu, repete-se, pela imputabilidade do arguido (fls. 1134-1143 dos autos).

Será que a não enunciação da ausência de perigosidade do arguido constitui omissão de fundamentação?

Entendemos claramente que não.

A consideração da perigosidade do arguido para determinação da medida da pena é essencial no caso previsto nos arts. 40º, n.º 3, e 91º, n.º 1, do CP, a saber, quando o arguido for declarado inimputável, e como pressuposto indispensável à decisão judicial de lhe ser aplicada, ou não, uma medida de segurança.

Tendo-se concluído pela imputabilidade do arguido, é totalmente irrelevante o juízo de perigosidade do agente (resultando antes da experiência comum que no tipo de criminalidade em causa nos autos o agente, me termos de normalidade, apenas focaliza a sua perigosidade para a vítima, e não para outras pessoas e/ou bens jurídicos).

Não enferma, pois, o acórdão recorrido de qualquer nulidade, nomeadamente a invocada pelo arguido.

5. Causas de exclusão da culpa: a legítima defesa e o erro sobre as circunstâncias de facto

A pretendida aplicabilidade dos institutos previstos nos arts. 16º e 32º do CP encontrava-se dependente, na própria alegação recursiva, da procedência da impugnação da matéria de facto efetuada – e que foi rejeitada.

De qualquer modo, refira-se sumariamente que o art. 16º, n.º 1, do CP estabelece que “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”, acrescentando o n.º 2 que “O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente”.

Relaciona o arguido este preceito com uma pretensa representação de uma situação de legítima defesa, enunciada no art. 32º do CP da seguinte forma: “Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”. É que o arguido invoca que empunhou a arma que transportava consigo convencido que (…) teria efetuado um movimento de “levar a mão ao bolso” para “pegar na arma com que continuamente o ameaçava” (conclusões 33 e 34).

Esta factualidade não se encontra provada, nem qualquer outra donde se possa extrair o preenchimento dos requisitos dos institutos em causa, o que inviabiliza de forma evidente a sua consideração no caso dos autos.

6. Qualificação jurídica do crime de homicídio

a) Homicídio privilegiado

Dispõe o art. 133º do CP que “Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.

Ao pugnar pela qualificação jurídica dos atos praticados como homicídio privilegiado, o arguido pressupôs a prévia alteração da matéria de facto provada, por si requerida – e que não foi atendida, como se viu.

De qualquer modo, sempre se dirá não resultar da factualidade provada que o crime de homicídio praticado pelo arguido tenha sido praticado num contexto excecional, que diminua de forma acentuada a sua culpa, não bastando para o efeito a prova da prévia existência de um mau relacionamento entre o arguido e a vítima. Na verdade, e sendo certo que o homicídio privilegiado recebe uma censura mais suaves em virtude dos motivos que o determinaram, sempre se dirá inexistir qualquer dos fundamentos que lhe estão na base, a saber: a compreensível emoção violenta, que consiste numa forte e transitória perturbação da afetividade, com descarga nervosa subitânea; a compaixão, que ocorre quando o agente provoca a morte de alguém por piedade; o desespero, de quem está sob a influência de um estado de cólera ou irritação, por aflição, desânimo, desalento, angústia ou ânsia; ou o motivo de relevante valor social ou moral, correspondente a interesses coletivos ou que é apoiado pela moralidade média (cf. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, II, 1996, p. 69 e ss.).

Concordamos integralmente com as acertadas considerações expendidas na decisão recorrida: “No decurso da audiência de discussão e julgamento, designadamente em sede de alegações finais, a defesa sustentou a integração da conduta do arguido no tipo de ilícito de homicídio privilegiado, p. e p. no artº 133º do Cod. Penal, por alegadamente ter sido dominado por compreensível emoção violenta e desespero.

Salvo o devido respeito, não procede tal pretensão de enquadramento jurídico.

Com efeito, a exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no art. 133.º, do CP e é comum a todas as situações aí previstas – “compreensível emoção violenta”, “compaixão”, “desespero” e “motivo de relevante valor social ou moral”.

A exigibilidade diminuída corresponde à “diminuição sensível da culpa” referida no art. 133.º, do CP. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no art. 133.º, do CP, este tem, previamente, que ser imputável (art. 20.º, do CP) e ter consciência da ilicitude (art. 17.º, do CP), a “diminuição sensível da culpa” tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afetou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.

A “diminuição sensível da culpa” tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objetivo para ser atendível.

A “diminuição sensível da culpa” distingue-se da “compreensibilidade” exigida para a “emoção violenta”: esta corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da “emoção violenta”; aquela corresponde à sensibilidade do mesmo homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afetou na sua decisão.

Em ambas as situações, isto é, tanto no que diz respeito à “compreensibilidade”, como no que diz respeito à “diminuição sensível da culpa”, é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas [neste sentido cfr. Ac. STJ de 28/06/2917, proc. nº 557/09.0GEVNG.P3.S1, loc. cit.].

Ora, no caso em apreço nos autos, não existe um suporte ou uma realidade externa e objetiva que torne uma eventual emoção violenta compreensível à luz do homem médio: os conflitos existentes entre o arguido e o seu ex-sogro na sequência do divórcio com a assistente (…) e a regulação das responsabilidades parentais dos seus filhos eram conflitos comuns (ainda que exacerbados pelas tradições e costumes da etnia cigana a que todos pertenciam), pelo que apenas para o arguido tal resolução criminosa terá sido compreensível, atento o seu quadro depressivo.

Sem embargo, tendo resultado provado que o arguido se encontrava perturbado psiquicamente e se encontrava em estado depressivo e de grande fragilidade emocional, considera-se existir um estado de desespero. Porém, o estado de desespero que dominou o arguido e que o levou a tomar a resolução criminosa que tomou não é de molde a diminuir sensivelmente a culpa, uma vez que inexiste uma situação exógena ao agente que torne atendível o estado de desespero do arguido.

Não obstante, o facto de se afastar a integração nos elementos constitutivos do crime de homicídio privilegiado não afasta a consideração de tais circunstâncias fácticas na determinação concreta da medida da pena.”.

Nenhum reparo ou alteração há a efetuar à acertada decisão da 1ª instância.

b) Homicídio Negligente

Encontra-se provado ter o arguido atuado com dolo direto, ou seja, que “Ao atuar do modo acima descrito, agiu o arguido com o propósito, concretizado, de por termo à vida de (…), indiferente ao local onde se encontrava e às pessoas que presenciaram a sua atuação” (facto provado em 1.46).

Este facto é claramente contrário à pretensão do arguido, e impede a pretendida qualificação: para se poder sequer considerar uma atuação negligente do arguido, teriam de constar da factualidade apurada os elementos relativos à sua vontade e decisão constantes do art. 15º do CP, pressuposto da posterior subsunção ao tipo legal de crime previsto no art. 137º do mesmo Código.

c) A qualificação jurídica efetuada no acórdão recorrido não merece qualquer censura: subsumiu corretamente os factos apurados ao direito, enquadrando-os nos tipos legais de crime apropriados, com uma fundamentação de direito meritória.

Nada há, em consonância, a alterar.

7. Atenuação especial da pena

Finalmente, e quanto à pena aplicada ao crime de homicídio (sendo exclusivamente esta a pena objeto do presente recurso), entende o arguido que o estado em que se encontrava quando praticou os factos, plasmado no relatório pericial psiquiátrico, justifica que a moldura abstrata do crime de homicídio simples agravado pelo uso da arma, p. e p. pelos arts. 131º do CP e 86º, n.º 1, al. c), n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.2 – a saber, pena de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses -, seja especialmente atenuada.

Convoca, como fundamento, o facto provado em a.66), que se transcreve novamente: “À data dos factos o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, todavia, a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída.”

A questão a decidir é apurar se aquela imputabilidade diminuída do arguido determina automaticamente a atenuação especial da pena, ou, em caso de resposta negativa, se no caso concreto será de aplicar aquela atenuação especial.

O problema foi já abordado, quando nos debruçámos sobre a questão da inimputabilidade do arguido. E constitui jurisprudência recorrente, incluindo desta Relação.

Terá inteira aplicação ao caso o que se escreveu no Ac. desta Relação de 15.10.2014 (no proc. 497/10.0GBOBR.C1, em www.dgsi.pt), que transcrevemos parcialmente: “Se é certo que, em caso de imputabilidade diminuída, em momento algum decorre, expressamente, da lei a imposição de aplicação do instituto em questão, também nos parece isento de dúvida perante os factos provados – e só estes relevam – que inexiste, na situação em apreço, espaço para afirmar uma diminuição acentuada da culpa, a qual só poderá ser considerada quando a imagem global do facto, resultante da atuação das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao crime [Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime “1993, pág. 306 e ss].

Especificamente a propósito da imputabilidade diminuída no sentido de não ter de conduzir à atenuação especial da pena, podendo mesmo, dependente das qualidades pessoais do agente refletidas no ato, levar à respetiva agravação, lê-se no acórdão do STJ de 03.07.2014 [proc. n.º 354/12.6GASXL.L1.S1] «Tradicionalmente (…) era reconhecida como cobrindo as situações em que o agente está fortemente limitado na sua capacidade de avaliação da ilicitude do ato e de determinação de acordo com essa avaliação, sem que tal capacidade esteja completamente eliminada. A diminuição dessa capacidade determinaria a diminuição da culpa, o que por sua vez obrigaria à atenuação da pena.

Esta conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem, porém, correspondência na lei penal vigente.

É nos n.ºs 2 e 3 do art. 20º do CP que a lei trata das situações em que a capacidade de avaliação e autodeterminação do agente se encontra “sensivelmente diminuída”. Na verdade, o n.º 2 prevê a extensão da inimputabilidade aos casos em que o agente, “por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída”. E o n.º 3 acrescenta que a comprovada insensibilidade do agente às sanções penais pode constituir índice da situação prevista no n.º 2.

Estes dois preceitos preveem afinal casos em que, apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à de autêntica inimputabilidade (a do n.º 1). Trata-se, pois, de situações de imputabilidade duvidosa (…) Verdadeiramente, ao permitir a integração dessas situações na inimputabilidade, a lei admite uma inimputabilidade fictícia, uma vez que a situação não é de total carência de capacidade de avaliação e de determinação. Entendeu, porém o legislador que, nos casos mais graves, o tribunal deve poder optar (“pode se declarado inimputável …”) entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (n.º 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (n.º 3).

Ou seja: os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do art. 20º do CP.

No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa.

É que na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave.

No mesmo sentido pronunciou-se o acórdão do STJ de 27.04.2011 [proc. n.º 693/09.3JABRG.P2.S1] quando realça: «A semi-imputabilidade não está diretamente prevista no art. 20º, n.º 2, como causa de atenuação da pena.

Mesmo em caso de comprovada imputabilidade diminuída, o agente que padece de anomalia psíquica, pode se não ver reconduzido a uma situação de atenuação da pena, se não mesmo incurso na sua agravação, nos casos em que as qualidades pessoais do agente, que fundamentam o facto, se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g., de brutalidade e crueldade que acompanham muitos factos».

Também assim o acórdão do STJ de 19.03.2009 [proc. n.º 09P0315], no qual se mostra consignado: «… como refere Figueiredo Dias (Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 77), «não diz a lei se a imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena atenuada. Não o dizendo, parece, porém, não querer obstar à doutrina – também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado, de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isto sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g. em caos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da

inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos», prosseguindo o aresto «…mesmo que se provasse a existência de imputabilidade diminuída esta não justificaria uma atenuação especial da pena, face à perigosidade do arguido (…) e à especial censurabilidade e perversidade».”

No caso dos autos, tendo em conta a dinâmica dos factos, impõe-se concluir ter o arguido agido com um grau muito elevado de ilicitude, transportando para o interior de uma escola, onde decorriam aulas, uma arma branca e uma arma de fogo, atentando contra a vida da vítima na presença da filha deste, imediatamente antes do intervalo escolar – altura em que, como sucedeu, muitas crianças se deslocaram para o átrio da escola, onde ocorreram os factos -, utilizando por várias vezes a arma de fogo que transportava. De igual forma a culpa do arguido é elevada: conforme se refere na decisão recorrida, importa considerar “a particular energia criminosa do arguido, ao esfaquear o ofendido no abdómen e disparar diversas vezes à queima-roupa (curta distância) contra o mesmo dentro de um estabelecimento de ensino, e, encontrando-se o (…) já caído no chão, e não obstante as súplicas da assistente (…), o arguido aproximou-se do ofendido, e efetuou mais dois disparos, a muito curta distância do ofendido, dirigidos à cabeça deste, num claro gesto de “execução sumária” do mesmo, como que a certificar-se que, de qualquer modo, o mesmo não sobreviveria a esse dia.”.

Acompanhando a decisão da 1ª instância, concluímos que a imagem global dos factos é muito grave, revelando o arguido qualidades altamente desvaliosas face ao direito, que não é consentâneo com um juízo de especial atenuação da pena. É inegável não existir no caso uma acentuada diminuição de culpa que justifique uma atenuação especial da pena. A imputabilidade diminuída de que o arguido era portador só deverá ser ponderada para mitigar o (elevado) grau de culpa em sede de achamento da pena concreta a aplicar ao arguido. Ponderação que foi devidamente efetuada no acórdão em análise.

Não resulta, assim, violado o artigo 72.º do C. Penal.

Quanto à pena concretamente encontrada, no seio da moldura penal abstrata cujos limites mínimo e máximo são, respetivamente, de dez anos e oito meses de prisão e de vinte e um anos e 4 meses de prisão, à luz das circunstâncias apuradas, das exigências de prevenção especial (pois, não obstante a ausência de antecedentes criminais, o foco do conflito relacional que determinou a ocorrência dos factos não desapareceu após a prática do crime), as elevadas exigências de prevenção geral, a culpa e a ilicitude demonstradas nos factos, conforme mencionado, e não tendo deixado de ter sido objeto de ponderação nesta sede [em benefício do arguido] a perturbação da sua personalidade, afigura-se necessária, adequada e proporcional a pena aplicada de 17 [dezassete] anos de prisão, que não ultrapassa a medida da culpa [artigos 40.º e 71.º do C. Penal].

É ajustada a pena aplicada em cúmulo jurídico, de 18 [dezoito] anos de prisão.

Conclui-se, assim, por também nesta parte falecer razão ao recorrente.

V. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC’s (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 18 de setembro de 2019

Ana Carolina Cardoso (relatora, por vencimento)

Alberto Mira (voto de desempate)

Alcina da Costa Ribeiro (sendo a primitiva relatora, em apertada, mas suficiente síntese, lavrou voto de vencido, no entendimento de o presente acórdão padecer: (i) de nulidade, por omissão de análise crítica da prova e omissão de pronúncia; (ii) de insuficiência para a decisão dos factos dados como provados, acrescendo ainda a circunstância de o acórdão não ter, como devia, tomado posição sobre a questão invocada pelo Sr.ª Procuradora Geral-Adjunta, traduzida em saber se deveria, ou não, haver lugar à convolação do crime de ofensa à integridade física em crime de violência doméstica).