Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
326/14.6TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
VENDA
Data do Acordão: 11/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, LEIRIA, INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI N.º 63/77, DE 25 DE AGOSTO; 12.º, N.ºS 1 E 2 2ª PARTE DO CC; ARTIGO 1117.º DO CÓDIGO CIVIL, NA REDACÇÃO VIGENTE EM 30 DE JULHO DE 1975
Sumário: 1. O direito de preferência a favor dos arrendatários habitacionais surge no nosso ordenamento jurídico com a Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, sendo mantido na legislação subsequente. Em todos os regimes legais seguintes, ficou salvaguardada a hipótese de aplicação a situações anteriores à das respectiva vigências, nos casos do arrendatário já ser titular do direito de preferência aquando da entrada em vigor da lei.

2. A lei reguladora do direito de preferência na compra e venda da fracção arrendada para habitação é a vigente na data em que se concretiza o acto de alienação.

3. A Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 4.º) e não estabeleceu quaisquer efeitos retroactivos, pelo que, nos termos do artigo 12.º, n.º 1 do CC, só dispôs para o futuro.

4. Dado que a transmissão da fracção locada se traduz num acto instantâneo e não duradouro, não configura uma situação jurídica já constituída e subsistente à data da entrada em vigor do novo regime, afastando-se a aplicação directa e imediata da lei nova mencionada no artigo 12.º, n.º 2 2ª parte do CC.

5. Configurando o direito de preferência, um carácter de excepção, o artigo 1117.º do Código Civil, na redacção vigente em 30 de Julho de 1975, que o previa apenas para os arrendamentos para comércio ou indústria, tendo natureza imperativa, não pode ser aplicado por analogia ao arrendamento para habitação.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... propôs contra B.. e mulher C... , D... e E... , já todos identificados nos autos, a presente ação de processo comum, pedindo que seja a mesma julgada procedente por provada e consequentemente:

a) Devem os Réus ser condenados a reconhecer que o Autor tem o direito de preferência sobre a venda da fração autónoma designada pela letra Z, correspondente ao sexto andar, lado esquerdo / nascente do prédio urbano sito na Rua (...) , em Leiria, freguesia e concelho de Leiria, inscrito na matriz predial urbana da mencionada freguesia sob o artigo (...) e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Comercial de Leiria com o número (...) , que os 1.ºs Réus efetuaram à 2.ª Ré por escritura pública de compra e venda celebrada em 30 de julho de mil novecentos e setenta e cinco, no Cartório Notarial de Lagoa.

b) Devem os Réus ser condenados a reconhecer que o Autor tem o direito a haver para si a fração autónoma referida, que os 1.ºs Réus venderam à 2ª Ré, e esta vendeu à 3ª Ré, declarando-se que a 2ª Ré fica substituída, ex-tunc, pelo Autor na posição de comprador.

Alegou, para tanto, e em síntese que:

- em 1/04/1974 celebrou com o 1.º réu um contrato de arrendamento habitacional, tendo desde então sempre habitado a fração e pago as rendas devidas;

- em 01/10/2013 teve conhecimento que a fração estava inscrita em nome da 3.ª ré, que a havia comprado à 2.ª ré;

- e depois ficou a saber que a 2.ª ré, por sua vez, havia comprado a fração aos 1.ºs réus, por compra em 30/07/1975, pelo preço de 220.000$00;

- os negócios de compra e venda referidos foram ocultados ao autor, tendo o mesmo direito de preferência, pretendendo adquirir a fração nas mesmas condições em que foi vendida à 2.ª ré, ou seja, pelo preço de € 1.097,36.

Os réus contestaram a ação, pugnando pela sua improcedência, invocando a prescrição do direito à ação, por já terem decorrido mais de 20 anos, contados desde a venda, não se podendo ultrapassar o prazo máximo de prescrição previsto no artigo 309.º do CC; a caducidade do direito de preferência, com o fundamento em o autor ter tido conhecimento de ambas as escrituras em Maio de 2013; que o autor actua em abuso do direito, por agir passados que são 38 anos decorridos desde a compra e venda, por um preço simulado e como “vingança” pela comunicação do aumento da renda; a simulação dos negócios de compra e venda, com o fundamento em que com as compra e vendas em causa apenas se procurou salvaguardar o património dos réus, atento o período “revolucionário” então em curso, sem que houvesse quaisquer pagamentos e com o compromisso, de ambas as partes, no futuro, “desfazerem” os negócios em causa e apresentaram defesa por impugnação e deduziram reconvenção pedindo a condenação do autor a reconhecer que a 3.ª ré adquiriu o imóvel por usucapião e, para a improcedência deste pedido e na procedência da ação, a condenação do autor a pagar o preço real da fração no valor de € 85.000,00.

O autor não respondeu à reconvenção.

A reconvenção foi admitida.

Após convite, o autor exerceu o contraditório quanto às exceções deduzidas pelos réus de prescrição, caducidade, abuso de direito e simulação dos negócios, pugnando pelo seu indeferimento.

Entendendo-se ser possível conhecer do mérito da causa no despacho saneador, foram as partes notificadas do despacho que consta a fls. 154 e 155 – em que se defende que, ao tempo da compra e venda realizada em 1975, o artigo 1117.º do CC, na redacção então vigente, não concedia ao arrendatário habitacional, o direito de preferência na venda do locado – para, em 10 dias, se pronunciarem de facto e de direito quanto à decisão a proferir.

 O autor não se pronunciou.

 Os réus pronunciaram-se entendendo que o réu não tem direito de preferência.

Após o que foi proferida a sentença de fl.s 162 a 168, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Nesta conformidade e por tudo o exposto, decide-se:

1.- Julgar os pedidos deduzidos pelo autor totalmente improcedentes, deles absolvendo os réus;

2.- Julgar totalmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenar o autor a reconhecer que a 3.ª ré é dona e legítima possuidora da fração autónoma designada pela letra “Z”, correspondente ao sexto andar B do prédio urbano sito na Rua (...) , n.º 19, em Leiria, freguesia e concelho de Leiria, inscrito na matriz predial urbana da mencionada freguesia sob o artigo (...) e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Comercial de Leiria com o número (...) , por a ter adquirido por usucapião.

3.- Custas a cargo do autor que decaiu totalmente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso o autor A... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 197), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1. A douta sentença viola as regras do direito referentes à interpretação, designadamente do artigo 9.º do CC, segundo o qual, na interpretação da lei há que atender a vários elementos, a saber: literal ou gramatical; sistemático; racional ou teleológico; e, histórico, que não foram considerados pelo julgador.

2. O direito de preferência existe in casu e foi válida e tempestivamente exercido pelo Apelante;

3. A douta sentença fez uma interpretação incorrecta ao artigo 1117.º do Código Civil vigente à data dos factos e aplicável in casu.

4. No caso em apreço, devia ter considerado o artigo 1117.º do CC de 1966 - o que não fez - e fazer do mesmo uma interpretação extensiva, aplicando-o aos arrendamentos para habitação.

5. Podemos ainda entender que o facto do Código Civil de 1966 apenas conter uma norma (o artigo 1117.º) para o direito de preferência e de o circunscrever aos arrendamentos para comercio e industria, consubstancia uma lacuna na lei no que respeita ao arrendamento para habitação.

6. Pelo que se impunha o recurso à analogia, tal como permite o artigo 10.º do CC, sendo certo que se verifica a hipótese legal prevista no n.º 2 de tal normativo.

7. O Tribunal, porquanto, devia ter aplicado o artigo 1117.º do CC de 1966, em vigor na altura da celebração do contrato, devendo este ter sido hodiernamente aplicado ao caso, por força da interpretação extensiva daquele artigo 9.º do actual CC e de uma interpretação analógica.

8. Não há qualquer fundamento para tratar de forma distinta os arrendamentos para comercio e indústria dos arrendamentos para habitação, no que respeita à existência do direito de preferência.

9. No caso em apreço, o Tribunal devia ter aplicado o artigo 1117.º do CC de 1966, em vigor na altura da celebração do contrato, atendendo ainda ao principio da igualdade, aos princípios da interpretação, vertidos no artigos 9.º do CC e ao disposto no artigo 10.º do CC;

10. A douta sentença viola ainda os princípios basilares do direito, previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 12.º, n.º 2, 236.º, 240.º, n.º 2, 1287.º e ss. do Código Civil, bem como os artigos 204.ºe 205.º da CRP;

11. A sentença viola ainda o disposto nos artigos 266.º e 574.º, ambos do CPC

12. Atendendo ao teor da Petição Inicial e ao teor do requerimento do Apelante através do qual respondeu às exceções suscitadas na contestação, conclui-se claramente que contrariam os factos deduzidos na oposição.

13. Os factos deduzidos na reconvenção estão em nítida oposição com a defesa considerada no seu conjunto, designadamente com os factos sustentando na Petição Inicial (artigos 3.º a 8.º e 18.º) e, posteriormente, no requerimento de resposta às exceções (artigos 4.º, 5.º, 31.º, 32.º, 36.º a 45.º);

14. Pelo que todos os factos deduzidos na reconvenção não podem ser admitidos por acordo, sendo controvertidos.

15. Assim, teria sempre de ser realizada audiência de discussão e julgamento a fim dos Apelados, querendo, poderem provar os factos que alegam na reconvenção, atendendo que os mesmos não foram aceites pelo Apelante, pelo contrário.

16. O Apelante sempre alegou - juntando documentos que suportam tal alegação - que os proprietários da fracção que tomou de arrendamento são os 1.º s Apelados, obviamente que tal alegação contraria os factos que supostamente demonstram a posse da 3.ª Apelada e que justificariam a aquisição por usucapião.

17. A aquisição da propriedade por usucapião, pressupõe a posse mantida durante um certo lapso temporal, de forma pública, pacífica, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja. Requisitos esses que não se verificam in casu.

18. A posição defendida nestes autos pelo Apelante é totalmente contrária aos factos supra mencionados, que supostamente consubstanciam usucapião, ou seja, entre os quais a posse da 3.ª Apelada.

19. O Apelado sempre defendeu que a posse e a propriedade da fracção era dos 1.º s Apelados.

20. A leitura da Petição Inicial e do requerimento que posteriormente deu entrada em juízo não deixa margem para dúvidas a esse respeito.

21. Pelo que por força do artigo 574.º, n.º 2, do CPC, os factos referentes à aquisição por usucapião pela 3.ª Apelada deviam ser considerados controvertidos e, como tal, sujeitos a prova em sede de audiência de discussão e julgamento. O que significa que nunca podiam ser dados como provados, sem mais, como foram, os seguintes factos constantes na douta sentença sob os n.º s 5 a 8.

22. Pelo que não podia ser proferido despacho saneador sentença, devendo os presentes autor prosseguir para julgamento com vista à produção de prova testemunhal, designadamente acerca do pedido reconvencional.

23. Não se entende como pode o tribunal ter considerado como provados os factos constantes na douta sentença sob os n.ºs 2 e 3. Isto porque tais factos não podem ser analisados cegamente, sem terem em conta que os Apelados confessaram que todos os negócios em causa foram simulados.

24. Não esqueçamos que os Apelados confessam claramente na sua contestação que os negócios celebrados com a 2.ª e 3.ª Apeladas são simulados, não tendo havido, em nenhum deles o pagamento de preço.

25. Se os Réus confessam a simulação, conclui-se que, na sua versão, os negócios são nulos, nos termos do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do CC.

26. Sendo nulos, conclui-se que a fracção autónoma é propriedade dos 1.º s Apelados - de acordo, repita-se, com a sua versão dos factos.

27. Como tal, o alegado pelos Apelados acerca da simulação, que implica, como vimos, a nulidade dos negócios, é incompatível com a reconvenção por aqueles deduzida.

28. Os Apelados, ao mesmo tempo, que alegam a simulação dos negócios jurídicos - que implica a nulidade dos negócios - peticionam a aquisição da fracção, objeto dos negócios jurídicos simulados, a favor da 3.ª Apelada por usucapião.

29. Estamos perante uma contradição insanável, o que em bom rigor deveria ter levado à inadmissibilidade da reconvenção, atendendo ao disposto no artigo 266.º do CPC.

Termos em que deve ser revogada a douta sentença, sendo conferido ao Apelante o direito de preferência.

Caso assim não se entenda, deverão os autos prosseguir a fim de ser designada data de audiência de discussão e julgamento, a fim de julgar o pedido reconvencional.

Só assim se fazendo JUSTIÇA!

Contra-alegando, os réus, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos nesta, expostos.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se o autor goza do direito de preferência a que se arroga, com o fundamento em ser arrendatário habitacional, quando, em Julho de 1975, se outorgou a escritura de compra e venda referida nos autos e;

B. Se os autos já contêm todos os elementos de facto, que permitam julgar o pedido reconvencional deduzido pela 3.ª ré.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1.- Por contrato de arrendamento celebrado em 1 de abril de 1974, o 1.º Réu deu de arrendamento ao Autor, a fração autónoma designada pela letra “Z”, correspondente ao sexto andar B do prédio urbano sito na Rua (...) , n.º 19, em Leiria, freguesia e concelho de Leiria, inscrito na matriz predial urbana da mencionada freguesia sob o artigo (...) e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Comercial de Leiria com o número (...) , fração que desde então o Autor passou a habitar;

2.- No dia 30/07/1975, mediante outorga de escritura pública, os 1.º réus declararam vender à 2.ª ré, a qual por sua vez declarou comprar-lhes, pelo preço de 220.000$00, a fração referida em 1).

3.- No dia 24/11/1981, mediante outorga de escritura pública, a 2.ª ré declarou vender à 3.ª ré, a qual por sua vez declarou comprar-lhe, pelo preço de € 7.481,97, a fração referida em 1).

4.- Nem os 1.ºs Réus nem a 2.ª Ré deram conhecimento dos negócios de compra e venda referidos em 2) e 3) ao Autor, nem lhe disseram que pretendiam celebrar tais negócios e por que termos.

5.- A fração referida em 1) está registada na Conservatória do Registo Predial de Leiria em nome da 3.ª ré, pela ap. 6, de 1981/11/13.

6.- Desde 24/11/1981 que a 3.ª ré se encontra na posse da fração, ou seja, há 33 anos.

7.- A 3.ª ré, desde então, representada por seus pais, os 1.ºs réus, cuida do arrendamento, paga os impostos respetivos, faz-se representar nas reuniões de condomínio, paga as prestações do condomínio e comparticipa nas obras de manutenção e conservação.

8.- A referida ré pratica todos os atos de posse em relação à fração há mais de 30 anos, continuamente, à vista de toda a gente (publicamente), sem oposição de ninguém (pacificamente) e no convencimento de exercer um direito próprio (boa-fé).

9.- A fração referida em 1), corresponde ao 6.º andar lado esquerdo nascente, e é composto por sala comum, quatro quartos, uma cozinha, duas casas-de-banho, uma despensa e três terraços.

10.- O preço indicado na escritura referido em 2) não teve correspondência com o preço real do imóvel, tendo sido referido o montante de € 1.100,00, por ser próximo do valor matricial e ser obrigatória a sua menção no título.

11.- O seu valor real pode ser estabelecido a partir do preço pelo qual foram vendidas frações iguais no mesmo edifício.

12.- Assim, em 28/12/1974, foi celebrado contrato promessa de compra e venda, pelo preço de € 2750,00, integralmente pago, relativo à fração “DD”, correspondente ao 7.º andar esquerdo nascente, exatamente com a mesma composição da fração “Z”.

13.- Em 26/04/1988, foi celebrado outro contrato promessa de compra e venda, pelo preço de € 32.500,00, relativo à fração correspondente ao 7.º andar, lado esquerdo poente, exatamente com a mesma composição da fração “Z”.

14.- A Administração Tributária avaliou a fração no ano de 2012 em € 74.074,00.

15.- O valor atual de mercado da fração é de € 104.816,64, sendo esse valor à data de 30/07/1975 de € 3.575,00.

A. Se o autor goza do direito de preferência a que se arroga, com o fundamento em ser arrendatário habitacional, quando, em Julho de 1975, se outorgou a escritura de compra e venda referida nos autos.

O autor fundamenta o direito de preferência que aqui pretende exercer, com o argumento de que deve proceder-se a uma interpretação extensiva do que se dispunha no artigo 1117.º do Código Civil, na redacção vigente em 30 de Julho de 1975, que o previa apenas para os arrendamentos para comércio ou indústria, o que consubstancia uma lacuna na lei, no que respeita ao arrendamento para habitação, a suprir pelo recurso à analogia, tal como previsto no artigo 10.º do Código Civil, inexistindo, argumenta, qualquer razão para tratar de forma distinta, no que concerne ao direito de preferência em causa, o arrendamento para comércio ou indústria dos arrendamentos para habitação.

Na sentença recorrida julgou-se improcedente tal pedido, com a seguinte fundamentação:

“Como já supra enunciado, em primeiro lugar importa apreciar se assiste ao autor direito de preferência na compra da fração vendida em 30/07/1975 pelos 1.ºs réus à 2.ª ré.

Porquanto, importa considerar se, à data da compra e venda outorgada entre os 1.ºs e a 2.ª ré, estava consagrado a favor dos arrendatários habitacionais um direito legal de preferência na compra das frações que habitassem em virtude da celebração de um contrato de arrendamento.

E, a resposta a tal questão é negativa.

De facto, em 30/07/1975, no sistema legal vigente em Portugal, não estava consagrado a favor dos arrendatários habitacionais qualquer direito legal de preferência em caso de venda da fração arrendada, uma vez que tal direito apenas estava previsto quanto aos arrendamentos para comércio e industria.

Explicitando-se esclarece-se que, o artigo 1117.º do CC, vigente em 1975, inserido na subsecção VII – Disposições especiais dos arrendamentos para comércio ou indústria, prescrevia, no seu n.º 1 que “Na venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio arrendado, os arrendatários que nele exerçam o comércio ou indústria há mais de 1 ano têm direito de preferência, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas”.

Ora, sendo o arrendamento celebrado entre o autor e o réu um arrendamento para habitação, a referida norma não permitiria ao autor poder preferir na compra e venda celebrada entre os 1.ºs réus e a 2.ª ré à data da sua celebração em 1975.

Saliente-se que, o direito de preferência a favor dos arrendatários habitacionais apenas veio a ser conferido pela Lei 63/77, de 25/08, revogado depois pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano, mas que conferiu igual direito no artigo 47.º. Esta lei entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 4.º) e não estabeleceu quaisquer efeitos retroativos, pelo que, nos termos do artigo 12.º, n.º 1 do CC, só dispôs para o futuro.

Assim, e em resposta à primeira questão que importa apreciar nestes autos, diz-se que não assiste ao autor direito de preferência na compra da fração vendida em 30/07/1975 pelos 1.ºs réus à 2.ª ré, pelo que, é a ação julgada improcedente, o que torna desnecessário a apreciação das exceções invocadas pelos réus de prescrição e caducidade do direito do autor, do abuso de direito, da existência de negócios simulados (os quais não seriam oponíveis ao autor – artigos 242.º e 243.º do CC) e de apuramento do valor pelo qual o autor poderia preferir na venda.

Concorda-se com a fundamentação aduzida em 1.ª instância e que ora se transcreveu.

Efectivamente, ao tempo em que foi outorgada a escritura de compra e venda em que o autor funda o seu direito de preferência – 30 de Julho de 1975 – este direito apenas se encontrava previsto, cf, artigo 1117.º, do Código Civil, na redacção então em vigor, para o caso de se tratar de arrendamento para “comércio ou indústria”, existentes “há mais de um ano”.

Com se refere no Acórdão do STJ, de 21/01/2016, Processo n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, “a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o acto de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que, só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo” e ali se citando, outros Arestos do mesmo Tribunal, em idêntico sentido.

Do que resulta que, ali se acrescenta, “a existência e os pressupostos do direito de preferência do autor serão aferidos no confronto da lei em vigor”, no momento em que se verificou a venda em que se pretende preferir.

Ora, como referido na sentença recorrida, na redacção que foi dada ao artigo 1117.º do Código Civil, o direito de preferência do arrendatário só era concedido no caso de se tratar de arrendamento para comércio ou indústria e não para os arrendamentos habitacionais; o que, como vimos, aqui assim não acontece.

O direito de preferência na compra e venda da fracção arrendada para habitação, apenas veio, pela primeira vez, a ter consagração legal, em 1977, cf. artigo 1.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto e daí em diante, foi mantido na legislação subsequente (DL 3211-B/90; NRAU, actual redacção do Código Civil, etc.).

Tem, pois de concluir-se que, em 30 de Julho de 1975, quando se outorgou a escritura de compra e venda em que o autor fundamenta o seu direito, não era concedido ao arrendatário habitacional, o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento do locado.

Direito, este, que, reitera-se, só surgiu no nosso ordenamento jurídico dois anos depois, em Agosto de 1977, sem que da Lei 63/77, constasse qualquer preceito que o fizesse retroagir a momento anterior ao da sua entrada em vigor, pelo que, nos termos gerais – artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil – apenas vale para o futuro.

Por outro lado, configurando o direito de preferência, um carácter de excepção, já que se traduz numa limitação à liberdade de contratar, na vertente relativa à escolha da contraparte e, de índole imperativa/injuntiva, pois que lhe subjazem razões de interesse público, o intérprete está obrigado a confiná-la imperativamente aos casos expressamente previstos na lei – no que se segue, de novo, o Aresto do STJ, acima já citado.

Do que decorre que, cf. artigos 9.º a 11.º do Código Civil, não se pode estender a solução encontrada para a concessão do direito de preferência concedida ao arrendatário comercial ou industrial para o habitacional, não se podendo concluir que o legislador disse menos do que queria ao estabelecê-lo apenas para os arrendamentos abarcados no artigo 1117.º do CC e estando afastada a aplicação analógica.

O legislador previu a concessão de tal direito, mas entendeu, naquela altura, concede-lo apenas a uma classe de arrendatários.

Por outro lado, como acima se referiu, após a entrada em vigor da lei 63/77, de 25 de Agosto, em todos os subsequentes e sucessivos regimes legais, ficou salvaguardada a hipótese de aplicação a situações anteriores à das respectiva vigências, mas, como se salienta, no Acórdão do STJ, de 21/01/2014, Processo n.º 363/04.9TBAMT.P2.S1, disponível no mesmo sítio do anterior, “desde que o arrendatário dele (direito de preferência) seja titular aquando da entrada em vigor da lei”.

Ora, a questão está em que, no caso em apreço, o arrendatário, aquando da celebração da escritura em que funda o seu direito, não era titular de nenhum direito de preferência relativamente à venda da fracção de que era arrendatário, direito, este, que só veio a surgir no nosso ordenamento jurídico em momento posterior e, por isso, cf. artigo 12.º, n.º 1, do CC, só pode valer para futuro.

Contrapõe o autor ser de aplicar o disposto na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil por se tratar de “relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”, reportando-se ao facto de se manter o arrendamento quando entrou em vigor a referida Lei n.º 63/77.

Conforme artigo 12,º, n.º 1, do CC, como regra, a lei só vale para o futuro e ainda que lhe seja atribuída eficácia rectroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

Todavia, no seu n.º 2, acrescenta-se que:

“Quando a lei … dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”.

Como o refere João Baptista Machado, in Introdução Ao Direito E Ao Discurso Legitimador, 13.ª Reimpressão, Almedina, Outubro de 2002, a pág. 232, consagra-se neste preceito a doutrina do facto passado, na formulação de Nipperdey, segundo a qual, na sua versão original, seria retroactiva toda a lei que se aplicasse a factos passados antes do seu início de vigência, pelo que só se aplicaria a factos futuros, sendo que esta teoria, mais uma vez seguindo o autor e obra ora citados, veio a ser complementada pelo princípio da aplicação imediata da lei nova às situações em curso no momento do seu início de vigência.

Efectivamente, ali se acrescenta, a pág. 233 que a lei nova que dispõe sobre certas situações jurídicas e as modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem, tem aplicação imediata, sempre que se trate de situações jurídicas constituídas antes da lei nova mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência, isto é, ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data do início de vigência da lei nova, aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus efeitos.

Mais ali se referindo que os regimes jurídicos gerais das pessoas e dos bens (“estatuto pessoal” e “estatuto real” – incluindo certos princípios fundamentais de direito económico e social) estariam sujeitos ao princípio da aplicação imediata da LN” – ob. cit., a pág. 234.

Complementada esta ideia, com a aplicação da lei nova a factos passados, que pela mesma são assumidos como pressupostos, negativos ou positivos, relativamente à questão da validade ou admissibilidade da constituição da situação jurídica, os designados “factos-pressupostos”, importa averiguar, para efeitos de aplicação da lei nova, a factos passados, se existe ou não existe uma situação jurídica constituída quando da entrada em vigor da lei nova, podendo esta aplicar-se a factos anteriores se os mesmos se destinarem apenas a servir como pontos de referência para a definição do regime de direito material da situação jurídica criada ou a criar na sua vigência – autor e ob. cit, pág.s 235 e 236.

Assim, daqui tem de extrair-se a conclusão de que a lei nova se pode aplicar a factos passados, por referência ao seu início de vigência, desde que se trate de uma relação (situação) jurídica constituída e subsistente à data da entrada em vigor de uma lei nova, tal como decorre do artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil.

Conclusão, esta, que se reforça se considerarmos o estudo mais aprofundado que o autor acima já citado efectuou acerca da aplicação das leis no tempo.

Referimo-nos à sua obra “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, Almedina, 1968, no qual o Prof. Batista Machado analisou exaustivamente a problemática ora em questão.

A pág. 95, refere este Autor que as normas que se referem a regulamentações de direitos, como regra, abrangem também as próprias situações jurídicas já existentes, podendo modificar o seu conteúdo ou até suprimi-lo, acrescentando, na pág. 100 que é especialmente às situações jurídicas duradoiras que constituídas ex lege, que vêem o seu conteúdo regulado pela lei que não pela vontade dos indivíduos, que vale a regra da aplicação imediata da lei nova.

Concluindo a fl.s 356 que “… o artigo 12.º permite abranger na aplicação futura da LN factos passados-presentes (factos pressupostos) e que a distinção entre normas reguladoras de factos e normas reguladoras de direitos (…) constitui o núcleo de sentido do n.º 2 daquele artigo”.

Descendo, agora, à análise em concreto da situação com que nos deparamos, tudo reside na questão de saber qual a situação jurídica a considerar, qual o facto que desencadeia a atribuição ou o reconhecimento do direito de preferência a que se arroga o ora autor.

E aqui é que reside o busílis da questão, pois de tal resposta depende a aplicação de um dos regimes legais em confronto.

Cumpre, também, referir que quer num quer noutro dos regimes em confronto, o que está em causa é o reconhecimento/atribuição de um diferente direito, que anteriormente não existia e não tão só a apreciação do mesmo direito, ainda que à luz de diferentes pressupostos.

Enquanto na lei antiga não se previa a concessão de tal direito, no subsequente regime veio a reconhecer-se a concessão desse direito, nos moldes em que o autor o veio exercer.

Ora, salvo o devido respeito por opinião em contrário, o factor que fundamenta o direito de preferência em causa, só pode ser a transmissão da fracção locada, que se traduz num acto instantâneo e não duradouro, pelo que não se pode concluir tratar-se de uma situação (jurídica) subsistente, aquando da entrada em vigor do novo regime.

Aquando da entrada em vigor da lei nova, não permanecia por resolver a questão da atribuição de tal direito, que não existia, anteriormente, nem estava dependente de qualquer facto que permitisse a sua concessão, pelo que, repete-se, não se trata, então, de uma situação jurídica já constituída e pré-existente aquando do início de vigência da lei nova e a que esta se aplica directa e imediatamente, nos moldes acima expostos.

Pelo que, também, por este prisma, é de manter a decisão recorrida.

Alega, ainda, o autor, que a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 204.º e 205.º da CRP, embora sem justificar/especificar em que assenta a invocada violação.

A sentença recorrida encontra-se fundamentada e a decisão tomada é o corolário lógico dos pressupostos em que assenta, em termos de que o recorrente discorda, mas sem que isso, constitua a violação dos mencionados preceitos constitucionais.

Consequentemente, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

 

B. Se os autos já contêm todos os elementos de facto, que permitam julgar o pedido reconvencional deduzido pela 3.ª ré.

Insurge-se o autor quanto ao facto de ser terem por confessados os factos em que assenta a reconvenção deduzida pela 3.ª ré, com o fundamento em os mesmos estarem em oposição com o alegado, quanto a tal, na petição inicial e no requerimento de resposta às excepções deduzidas.

Contrariamente, na sentença recorrida considerou-se estarem confessados os factos alegados pela ré, relativamente à reconvenção, com o fundamento em o autor não ter respondido à reconvenção.

Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 584.º, n.º 1, do CPC, a réplica serve para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, acrescentando-se no seu artigo 587.º, n.º 1, que a falta de apresentação da réplica tem o efeito previsto no artigo 574.º; ou seja, consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto.

Ora, na petição inicial – cf. seus artigos 6.º a 8.º - o autor apenas alega que sempre considerou o 1.º réu como dono da fracção, em face da conduta deste, comunicando aumentos de rendas e recebendo-as.

Na resposta que deduziu quanto às excepções (cf. artigo 31.º e seg.s, o autor apenas reitera a convicção de que “sempre julgou serem seus senhorios os 1.os Réus”, por ser o 1.o réu que recebia as rendas e procedia a todas as comunicações e negociações referentes ao arrendamento em causa.

Salvo o devido respeito, esta alegação, não constitui impugnação dos actos de posse que a 3.ª ré descreve na sua contestação e em que individualiza serem os mesmos respeitantes à reconvenção por si deduzida.

Nos termos expostos, o autor devia tomar posição definida perante estes factos, o que não se pode ter por verificado em face da descrita actuação do autor.

Pelo que, igualmente, quanto a esta questão, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Coimbra, 22 de Novembro de 2016.