Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
749/08.0TMAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ALIMENTOS
FILHO MAIOR
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA /JUIZO FAMÍLIA E MENORES DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1874º, 1878º, 1879º, 1880º, 2003º, 2013º CC
Sumário: I – O filho maior continua com direito a ser alimentado pelos pais enquanto não tiver completado a sua formação profissional, na medida em que seja razoável exigir o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que essa formação se complete.

II - O dever de recíproco respeito a que alude o artigo 1874º, n.º 1, do Código Civil, reporta-se à consideração pela vida, integridade física e moral, e o conceito de violação grave pelo credor de alimentos dos seus deveres para com o obrigado, a que alude o artigo 2013º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código, deve ser densificado e aferido atendendo às particularidades de cada caso, ao sentido mais restritivo do seu antecedente histórico e às actuais circunstâncias da vida familiar.

III - Tendo a credora de alimentos, que acabara de completar 18 anos de idade e há mais de 10 anos deixara de ter qualquer relacionamento com o obrigado, seu pai, decidido cursar Medicina em Espanha (por não haver logrado vaga em Portugal para o mesmo curso) sem que tivesse contactado previamente o obrigado, tal facto, por si só, não assume a gravidade legalmente exigível para excluir a obrigação do último de lhe prestar alimentos, dada a necessidade dela para concluir a sua formação profissional e a possibilidade económica dele, e, inclusive, a intenção, por ambos manifestada, de reparar e reestruturar a relação familiar.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. 1. Em 23.9.2008, A (…) intentou, na Conservatória do Registo Civil de Ílhavo, contra o seu pai, B (…), a presente acção de alimentos (devidos a filho maior), nos termos dos art.ºs 1880º e 2003º e seguintes do CC em conjugação com o disposto nos art.ºs 5º, n.º 1, alínea a) e 7º, n.º 1 do DL n.º 272/2001, de 13.10, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a prestação alimentar de € 750 mensais - para a ajudar a suportar as despesas com a sua formação académica, em Espanha, para onde foi obrigada a ir para cursar Medicina -, durante o período normal para a conclusão do dito curso e a actualizar anualmente em função da taxa de inflação.
Contestou o requerido, alegando, em síntese, que foi ignorado naquela decisão da filha e que os encargos que já tem não lhe permitem pagar mais do que o montante da pensão fixada na regulação do poder paternal, ainda na menoridade da requerente, no valor mensal de € 189. Face à posição do requerido e à impossibilidade de acordo (a requerente faltou e não se fez representar na audiência conciliatória), apresentada a alegação de fls. 63, foram os autos remetidos ao Tribunal da Comarca do Baixo Vouga – Juízo de Família e Menores de Aveiro.
2. Realizada a audiência de julgamento, em 05.6.2009, depois de um adiamento, o tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
a) A requerente é filha do requerido e de (…), tendo nascido a 31.8. 1990.
b) Desde a separação dos pais, há cerca de 18 anos, que a requerente vive com a sua mãe.
c) No respectivo processo de regulação do poder paternal, o requerido foi obrigado a pagar uma pensão de alimentos à filha, que se encontra hoje no valor mensal de € 189. Entretanto, nestes anos anteriores, nunca foi pedida qualquer alteração ao valor da pensão originária, beneficiando apenas da previsão das actualizações anuais.
d) A requerente concluiu no ano lectivo 2007/2008 o 12° ano, com média final de 17,4 valores.
e) Pretendendo cursar Medicina, porque a sua média não lhe permitia ingressar em Faculdade portuguesa, optou por ir estudar para Madrid.
f) A requerente vive a expensas da sua mãe e beneficia apenas da pensão referida, do seu pai.
g) A requerente arrendou um quarto em Madrid, pelo qual paga € 600 mensais.
h) A requerente pagou uma taxa de € 35 e uma matrícula de € 1 292.
i) Em livros e material didáctico gasta valor não apurado.
j) Em alimentação, vestuário, transporte e outros gasta valor não concretizado.
k) A mãe da requerente aufere um salário líquido mensal de € 1 515.
l) A mesma paga prestação bancária mensal de € 703, com seguro de vida associado.
m) E tem despesas várias com o seu agregado, de valor não apurado.
n) O requerido não foi ouvido sobre o ingresso ou projecto de ingresso da requerente na Faculdade de Medicina de Madrid, por esta ou pela sua mãe.
O requerido desconhecia a morada da filha em Madrid.
A relação pai/filha é quase inexistente.
o) A requerente teve colocação na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, uma das suas opções, depois afastada.
p) O requerido aufere um vencimento líquido mensal de € 1 440.
q) O requerido é casado.
r) O requerido, dividindo despesas com a sua mulher, suportou em Outubro de 2008, com telefone, água, gás, combustível, luz, prestação bancária, renda, almoços, telemóvel, seguros, supermercado, quota, bombeiros, condomínio, medicamentos, roupas, livros e outros, um total de € 3 014,45. Em Novembro de 2008, tais despesas ascenderam a € 3 895.
s) Um tempo antes de conhecer a pretensão da filha, o requerido tinha comprado um “Audi A6”.
t) O requerido aceita aumentar a pensão alimentar da filha até ao limite de € 300 mensais.
3. Ante a descrita factualidade, o tribunal recorrido decidiu julgar a acção parcialmente procedente e condenar o requerido a pagar à requerente, a título de pensão de alimentos, a quantia mensal de € 300 (trezentos euros), actualizada anualmente, em Janeiro de cada ano, de acordo com o coeficiente da inflação dado a conhecer pelo Instituto Nacional de Estatística, até ao dia 8 de cada mês, por qualquer meio documentado de pagamento.
4. Desta sentença recorreu a requerente que, mantendo o peticionado, formulou as seguintes conclusões:
1ª - O ponto 3 da Sentença recorrida considera provado que a pensão fixada no processo de regulação do poder paternal, “beneficiou da previsão das actualizações anuais”.
Ao fazê-lo, julgou mal o Tribunal, pois no artigo 4º da petição inicial foi alegado que o requerido nunca actualizou a pensão, facto que não foi impugnado pelo requerido, que alega depositar 189,55€ mensais, não correspondendo obviamente, a diferença entre estes valores (4,55€) a uma actualização da pensão de alimentos ao longo de 10 anos (desde os 8 anos até aos 18 anos da requerente).
2ª - Também o ponto 18 da Sentença recorrida, dá como provado que o requerido suporta despesas com prestação bancária. Fê-lo com base em documentos por ele apresentados (doc. n° 15 das despesas referentes aos meses de Outubro e Novembro de 2008). Tal facto foi impugnado pela requerente no artigo 27 do seu requerimento nos seguintes termos: “Impugna-se o doc. n° 15, porque encontrando-se parte do seu teor apagado pelo requerido trata-se de um simples talão de depósito emitido por caixa Multibanco, de conta que não se sabe a quem pertence, completamente inapto para prova de qualquer empréstimo que o possa responsabilizar”.
Sobre tal assunto não indicou nem produziu o requerido qualquer prova, pelo que o Tribunal não poderia considerar provada nenhuma despesa com o pagamento de qualquer prestação bancária.
3ª - O Tribunal a quo deu como provado (ponto 19) “Um tempo antes de conhecer a pretensão da filha o requerido tinha comprado um Audi A6”.
Não poderia ter chegado a semelhante conclusão!
Porquanto, da certidão do Registo Automóvel junta aos autos, verifica-se que o requerido comprou a viatura em 12 de Setembro, e pelo alegado em 10º e 11º da oposição, e que a requerente não impugnou, o requerido ficou a saber, pelo menos em 8 de Setembro, da pretensão de alimentos da ora requerente.
4ª - A Sentença considera que não foi apurado que o valor dos gastos mensais da requerente não seja superior a 1.500€.
No entanto ficou provado que paga 600€ de quarto (ponto 7), pagou 35€ de taxa e 1.292€ de matrícula (ponto 8).
Assim, fazendo a soma destes gastos durante um ano, dá um valor mensal de 710€. Logo, dos 1.500€ calculados como despesas totais sobram 790€ mensais, para custear material didáctico, livros — que no curso de medicina todos sabemos serem de custo elevado — alimentação, vestuário, gastos pessoais, transporte, viagens.
Parece-nos — é do senso comum — que tal montante será imprescindível à requerente, não lhe permitindo aventurar-se em despesas supérfluas.
Para fazer um bom ajuizamento, o Tribunal recorrido deveria ter reconhecido que os 1.500€ pedidos pela requerente eram o montante necessário para suportar os seus gastos imprescindíveis;
5ª - O Tribunal não considerou provados os gastos de 120€ alegados em 26 da Petição Inicial. Porém foram juntas facturas das entidades fornecedoras da água, gás e comunicações cujos valores somados atingem 127,13€. Tais documentos não foram impugnados, pelo que o Tribunal deveria considerar tais factos provados;
6ª - Quanto ao alegado no artigo 28 da Petição Inicial, e que o Tribunal não considerou provado, juntou a requerente os documentos n°s 10 e 11 e que o requerido não impugnou, donde resulta que os menores são também filhos da mãe da requerente e em Maio de 2008 foi pago, no Colégio D. José 1 que frequentam, a quantia de 508,26€. Também neste caso o Tribunal a quo julgou incorrectamente, pois deveria ter considerado provados os factos documentados.
7ª - O Tribunal não deu como provado, os factos constantes do artigo 30 da Petição Inicial, isto é, “a desafogada situação económica do requerido e a possibilidade de assegurar o pagamento de metade das despesas mensais da requerente (750,00€) sem excessivo esforço!”.
Contudo os elementos probatórios constantes dos autos — certidões das Conservatórias do Registo Predial e Automóvel e documentos das despesas e de contas bancárias — demonstram que o requerido, possui um elevado padrão de vida;
8ª - A Sentença não entendeu provados os factos alegados em 10 a 13 da Oposição.
Ora, tais factos não foram impugnados pela requerente, pelo que o Tribunal em obediência ao disposto nos artigos 505° e 490° n°2 do C.P.C., deveria tê-los considerado admitidos por acordo. Aliás, o facto alegado em 13° na Oposição é indesmentível, face à entrada desta acção na Conservatória do Registo Civil de Ílhavo;
9ª - A resposta positiva a esta questão — que se impunha — implicava que o Tribunal teria de responder, também de forma positiva, ao ponto 19 dos factos provados. Ou seja: quando o requerido compra o seu Audi A6 (em 12 de Setembro de 2008) já sabia que a filha pretendia pensão de alimentos para continuar os estudos, facto dele conhecido, pelo menos desde 8 de Setembro, conforme resulta do que vem alegado em 10º, 11º e 12° da Oposição;
10ª - A Sentença recorrida, na análise jurídica, refere “ é discutível que a filha possa, violando o dever de respeito que deve ter para com o pai (...) vir reclamar depois o contributo acrescido deste”!
No entendimento do julgador, a requerente violou o dever de respeito para com o pai o que até justificaria não ser ele obrigado a pagar-lhe alimentos!...
11ª - Parece-nos que o Tribunal, no caso em apreço, manifestou uma errada concepção do dever de respeito entre pais e filhos.
Nada, nestes autos existe, donde possa extrair-se conclusão de que a requerente desrespeitou o pai. Na verdade, o requerido não provou, nem sequer alegou (e ele lá sabe porquê) qualquer violação do dever de respeito da filha para consigo. O que diz, artigos 5° e 6° da Oposição que não mereceram impugnação é “que foi impedido pela mãe de ter qualquer contacto pessoal com a filha, desconhecendo a sua actual morada”.
Considerando que o requerido deixou de viver com a requerente desde que ela contava 1 mês de idade, e desde os 8 anos dela (durante 10 anos), nunca mais a contactou, visitou, telefonou, escreveu postal de aniversário ou de Natal (art.° 8 das Alegações da requerente) que o requerido não impugnou, parece-nos que não pode entender-se haver violação do dever de respeito da requerente para com o seu pai;
12ª - Cremos que a atitude do requerido, manifesta absoluta indiferença e abandono da requerente, pois não promoveu, lutando se fosse preciso, um relacionamento efectivo com a filha, para que pudesse entre ambos constituir-se verdadeiro e são sentimento filial. O requerido remeteu-se à cómoda posição de depositar os Alimentos fixados pelo Tribunal, a isso resumindo a sua condição de pai. Revelando com esta conduta uma situação de indiferença para com a sua única filha e uma concepção da paternidade profundamente pobre e redutora, violando os artigos 1878° e 1885° do Código Civil;
13ª - Diz-se na Sentença que “os encargos do requerido são elevados” - só pode chegar a esta conclusão através dos documentos por ele juntos, e respeitantes às suas despesas de Novembro e Dezembro de 2008. Tais documentos são objectivamente reveladores de que o requerido desfruta de um alto padrão de vida, perfeitamente compatível e conciliável com o dispêndio de uma pensão de Alimentos de 750€ pedida pela requerente que é sua única filha.
Entender o contrário, revela que não houve da parte do julgador uma criteriosa análise dos documentos juntos ao processo, nem a interpretação correcta das normas jurídicas que devem presidir à fixação do valor de uma pensão de Alimentos, pelo que foi violado o artigo 653°, n.° 2 do C.P.C. e deficientemente aplicado o regime previsto no artigo 2004 do C.C.,
14ª - Já que, dos documentos juntos pelo requerido resulta que, num mês gastou 725€ em almoços (dos quais 591,75€ foram gastos em dois Sábados e dois Domingos);
Paga de condomínio 109,01€ mensais, que pelo valor só pode tratar-se de um condomínio de luxo ou muito próximo disso;
Em estadia de hotel de luxo nos Açores despendeu 400€;
15ª - Gastou em dois meses (Outubro e Novembro de 2008) 6.909,45€, embora o Tribunal dê como provado que o salário líquido é de 1.440€ e comprou, sem recurso a crédito um automóvel cujo preço ronda os 50.000€.
Ainda em 1999 comprou sem recorrer a empréstimo bancário um valioso imóvel na Praia da Vagueira, conforme provam certidões registrais juntas.
Aceita aumentar a pensão à requerida para 300€ como resulta do que vem dito na Sentença.
16ª- O Tribunal analisou deficientemente os documentos juntos aos autos, - os únicos elementos de prova que podem sustentar uma decisão, já que as testemunhas ouvidas sobre a situação económica do requerido nada sabiam - se os tivesse apreciado correctamente, facilmente concluía entre outras coisas que o requerido não paga os 500€ de renda da casa que habita, na Rua .....
Isto porque, resulta de informação das finanças que aquela casa, com o artigo matricial 5282, tem como proprietário o pai do requerido, que declarou ter recebido no ano de 2007 rendas correspondentes a 7.800€ superiores aos 6.000€ (500,00€ x 12) que lhe terá pago o filho “arrendatário”.
Ora tal incongruência, deveria ter sido avaliada pelo julgador, que à luz das regras de experiência comum, o deveria ter levado a concluir de “inverdade” do conteúdo do recibo apresentado;
17ª - Para a decisão do Tribunal recorrido, além da vontade e disponibilidade do requerido, pesou um facto curioso e passamos a citar o que é dito “Nada pedindo ao longo destes anos, deixou-se criar a ideia ao requerido da inalterabilidade da sua obrigação alimentar, deixando-o livre para prosseguir um certo padrão de vida”.
Com este entendimento, atribui o Tribunal a quo um prémio ao requerido — que nem sequer cumpriu com as actualizações da pensão, mantendo-a nos valores de há 10 anos atrás — e foi conduzindo a sua vida totalmente à margem da vida da sua filha, completamente alheio e indiferente à sua sorte e ao seu destino!
18ª - O estatuto sócio-económico do requerido, mostrado pelos documentos juntos aos autos, permite concluir com segurança que pode pagar, sem grande esforço, os alimentos pedidos no valor de 750€ mensais, para que a requerente possa completar a sua formação profissional, e mostram-se até adequados à condição da filha, com um pai de posses manifestas.
19ª - Ao decidir como decidiu, em plena concordância com a vontade do requerido - pois só aumentou para 300€ os alimentos a pagar porque ele o quis e aceitou - o Tribunal a quo, desprezou todos os elementos documentais juntos aos autos que, se criteriosamente analisados e correctamente apreciados, à luz dos artigos 1878° n.°s 1 e 2, 1885°, 1888°, 2004° do C.C e 505°, 490°, 653°, n.° 2 do C.P.C. impunham decisão favorável à pretensão da requerente. A Sentença proferida pelo Tribunal recorrido viola clara e inequivocamente as normas e princípios consagrados por aquelas disposições legais.
O requerido contra-alegou defendendo o acerto da decisão recorrida.
Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil [1] , com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8, aplicável ao caso vertente), colocam-se-nos três questões fundamentais: por um lado, se os documentos juntos aos autos permitem diversa decisão de facto; depois, se o requerido é devedor de alimentos e, por último, sendo devedor, qual a medida adequada e razoável da correspondente prestação.
*
II. 1. No caso vertente estamos perante um processo de jurisdição voluntária, dominado por regras e princípios de instrução e julgamento diversos dos aplicáveis à generalidade dos processos cíveis, destacando-se o princípio segundo o qual o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas e recolher as informações convenientes e o de que, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna - o que está em causa é o bom senso e a razoabilidade do julgador. Porém, salvaguardados os efeitos já produzidos, será sempre possível a alteração de tais resoluções com fundamento em circunstâncias supervenientes [2] (cf. art.ºs 1409º, n.º 2; 1410º; 1411º, n.º 1, 1ª parte e 1412º).
As questões colocadas no presente recurso devem ser analisadas atento o mencionado enquadramento adjectivo.
2. A recorrente insurge-se contra a decisão de facto.
Sabendo-se a diminuta relevância dada à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento e que fora indicada pela requerente (fls. 179 e 183 e seguinte) e, assim, a importância acrescida dos demais meios probatórios (maxime, os documentos que ambas as partes juntaram aos autos), afigura-se-nos, sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário, que o tribunal recorrido não deu a devida relevância a alguns documentos juntos pela requerente e à posição por ela assumida, inclusive, ao impugnar determinados documentos oferecidos pela parte contrária.
Daí que haja que proceder a alterações à matéria de facto relevante para a decisão, tendo em atenção todo o acervo documental e o mais que decorre dos autos, por forma a melhor caracterizar a situação patrimonial dos progenitores da requerente e a evidenciar, pelo menos, alguns indícios sobre o relacionamento das partes, tanto mais que esta última problemática, apesar de insuficientemente tratada e clarificada nos autos, veio depois a merecer um relativo desenvolvimento em sede de sentença e na contra-alegação de recurso.
Como se afirma na alegação, verifica-se existirem nos autos documentos relativos a aquisições feitas pelo requerido e que não podem deixar de ser considerados com o conteúdo que deles dimana [v.g., cópia de uma certidão do Registo Predial da Conservatória de Vagos, emitida em 14.01.2009, que documenta a aquisição de um imóvel a favor do recorrido/fls. 147; certidão do Registo de Automóvel emitida em 15.01.2009 e que documenta o registo, em 12.9.2008, da propriedade de um automóvel a favor do recorrido/fls. 161]; certidões de teor matricial dos imóveis com os art.ºs 5282, 2951, 115 e 2556, todos urbanos, inscritos a favor dos pais do recorrido/fls. 164 e seguintes, sendo que é num desses imóveis que tem residido o requerido; os elementos probatórios trazidos aos autos pelo recorrido são dois “lotes de documentos” com os quais se pretendeu demonstrar os gastos do respectivo agregado familiar (que será constituído pelo requerente e esposa, desconhecendo-se se integra outros elementos) nos meses de Outubro e Novembro de 2008, tendo o mesmo ainda junto cópia da “nota de liquidação” de IRS referente ao rendimento declarado pelo seu casal no ano de 2007.
Assim, importa desde já tomar posição sobre os pontos da matéria de facto (provados e não provados) que vêm questionados sob o enquadramento “impugnação da matéria de facto”.
3. a) Relativamente ao facto aludido em I. 2. c), supra, pensamos que importa apenas concretizar o valor inicial da pensão (€ 185) e o montante pago por último (€ 189,55), sendo assim manifesto que não se verificaram quaisquer “actualizações” não inicialmente previstas e que o acréscimo verificado de € 4,55 traduzirá porventura uma actualização de 2,46 % segundo a taxa de inflação [3] , pelo que, aparentemente, apenas não será correcto o valor actual indicado (€ 189).
b) Quanto aos factos referido em I. 2. r), afigura-se-nos que a leitura que deles poderá resultar envolverá sempre alguma ambivalência, quer se considere que o requerido e esposa despenderam então (Outubro e Novembro de 2008) os montantes de € 3 014,45 e € 3 895 e é esse o normal dispêndio nos demais meses do ano, quer se duvide da bondade de tais números mormente como base para a dita extrapolação.
Porém - independentemente daquele juízo e do que se dirá infra -, e pese embora o (limitado) âmbito da impugnação da requerente/recorrente, verifica-se que o tribunal recorrido referiu que “os factos sob o n.º 18 (…) apoiam-se nos documentos não impugnados de fls. 84 a 152[4] e a requerente pronunciou-se tempestivamente sobre tais documentos e impugnou a “prestação bancária” mensal de € 129,49 referente ao alegado empréstimo do requerido e por este considerado no “documento n.° 15 das despesas” (cf. fls. 84, 94 e 184 e item 27º do requerimento de fls. 155).
Assim, atendendo à fundamentação de fls. 183 e seguinte, o tribunal recorrido não deveria considerar, pelo menos, aquela pretensa despesa.
Em todo o caso, pelo que se dirá infra, constituirá manifesto excesso e é incorrecto considerar que o requerido (e esposa) “suportou” ou despendeu efectivamente todas as importâncias discriminadas a fls. 84 e seguintes…
c) No que concerne aos factos aludidos em I. 2. s), dúvidas não restam de que o requerido adquiriu um veículo com a matrícula 45-(...), marca “Audi”, modelo “A6”, aquisição da propriedade levada ao registo automóvel, em 12.9.2008 (6ª feira), livre de quaisquer ónus ou encargos (cf. doc. de fls. 162).
Ademais, decorre do afirmado pelo requerido, sob os itens 10º a 13º da “oposição” de fls. 41, que, no dia 08.9.2008 (2ª feira) ou nos dias imediatos, o mesmo teve conhecimento da pretensão da requerente em obter uma pensão de alimentos para custear os seus estudos em Madrid.
Assim, desconhecendo-se se a data da aquisição coincidiu com a do registo, parece-nos, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que o facto constante do aludido ponto -independentemente da sua relevância para a decisão, quer na forma como se acha consignado quer espelhando apenas o supra referido – não deveria porventura encontrar redacção e fundamentação baseadas tão-somente no “esclarecimento do requerido” (fls. 184), na medida em que os elementos disponíveis (o articulado nos autos e o teor dos documentos juntos) permitem considerar hipótese diversa…
d) - No art.º 26º da petição inicial a requerente alegou que a sua mãe gastava em média 120,00€ em água, gás, electricidade e comunicações, juntando cópia das facturas/recibo e venda a dinheiro das entidades fornecedoras (docs. de 21 a 23).
Tais documentos não foram impugnados pelo requerido.
Consequentemente, face à demais prova produzida e não se vendo razão para “menosprezar” a prova documental oferecida pela requerente, que deverá ser valorada e apreciada de forma idêntica à do requerido, parece-nos que a recorrente tem razão ao pretender ver assente a materialidade em causa, incluindo-se esse valor no elenco das despesas ordinárias do orçamento familiar de sua mãe.
e) Já em relação ao alegado sob o item 28º da petição inicial, pensamos que apenas terá interesse considerar que a requerente tem dois irmãos (uterinos) menores (nascidos a 13.11.1999 e 21.8.2003), sendo certo que, não estando em causa o estabelecimento da filiação, as cópias dos documentos emitidos pela Conservatória do Registo Civil (se necessário, conjugadas com os demais documentos relativos a esses menores) são suficientes para a pretendida comprovação.
Ignorando-se a composição do agregado familiar da mãe da requerente e suportando o pai dos menores as respectivas despesas escolares e de educação, a restante matéria aí invocada nenhuma importância tem para os presentes autos.
f) O aduzido no item 30º da petição inicial [“O requerido tem uma desafogada situação económica, o que lhe permite assegurar o pagamento de metade das despesas da requerente, (750,00€) sem excessivo esforço”] é uma conclusão que apenas poderá/deverá ser extraída dos factos, pelo que, e bem, o tribunal recorrido não o refere na decisão de facto – cf. fls. 183 e 184.
g) Finalmente, quanto à circunstância de o tribunal recorrido ter dado como não provado o aduzido sob os itens 10º a 13º da oposição, não obstante a sua não impugnação e os documentos emitidos pela Conservatória do Registo Civil de Ílhavo (v.g., a fls. 4, 5 e 37 a 40), pensamos que, ao invés do decidido[5] , para além do já afirmado na precedente alínea c), haverá que considerar também a seguinte factualidade:
- Volvidos oito dias da data de aniversário da requerente, o requerido recepcionou uma carta de um advogado, que não a sua actual mandatária, solicitando a sua comparência no escritório do mesmo para tratar de assunto do seu interesse.
- O requerido entrou em contacto telefónico com o referido advogado, que lhe transmitiu a pretensão da requerente em obter uma pensão de alimentos, para custear seus estudos em Madrid, ao que o requerido comunicou que pretendia falar pessoalmente com a requerente.
- No dia seguinte, o referido causídico informou o requerido que tinha abandonado o caso, uma vez que a mãe da requerente lhe transmitiu, gritando, que a requerente não iria nunca falar com o pai de forma alguma, e se encontrava já em Madrid.
- A presente acção de alimentos foi instaurada a 23.9.2008, data em que foi ordenada a citação do requerido expedindo-se de imediato a respectiva carta registada com A/R, sendo oferecida a oposição em 15.10.2008.
4. Por conseguinte, na sequência da dita impugnação de facto, entende esta Relação que a factualidade descrita em I. 2. deverá ser esclarecida, alterada e completada conforme se indica em II. 3..
Ademais, conjugados os documentos juntos aos autos, entre outros factos, há que considerar ainda:
- Reportando-se ao ano de 2007, a mãe da requerente e o requerido declararam rendimentos globais (ilíquidos), para efeitos de IRS, de € 24 481,32 e € 25 430,58, respectivamente, provenientes da prestação de trabalho subordinado. O requerido e esposa declararam então o valor global de € 53 296,52, desconhecendo-se outros elementos quanto à proveniência dessa importância.
- No processo dito em I. 2. c) o acordo do exercício do poder paternal foi homologado por sentença de 20.02.1991.
- Na candidatura ao ensino superior público a requerente apenas conseguiu colocação na “5ª opção”, sendo as anteriores opções para cursos de Medicina e Medicina Dentária nas Faculdades de Medicina de Lisboa, Coimbra e Porto.
- Relativamente às “despesas” referidas em I. 2. r), verifica-se que no mês de Outubro foi indicado um gasto em combustível de € 297,74 enquanto no mês seguinte tal gasto ascendeu a € 75,35; no mês de Outubro indica-se um gasto em supermercado de € 399,19 enquanto no mês seguinte tal gasto ascendeu a € 1 089,16; com a discriminação de gastos de fls. 84/Outubro 2008 não foi junto qualquer documento quanto à verba “renda da casa”; no que concerne às verbas “almoços”, que nos meses de Outubro e Novembro foram de € 725,31 e € 460,71, respectivamente, verificou-se um gasto global em fins-de-semana de aproximadamente € 750; é indicada uma despesa mensal de condomínio de € 109,01; no mês de Novembro de 2008 o requerido declarou uma despesa de “Hotel” de € 399,20, realizada nos Açores, nos dias 16 a 19 e 24 a 26.
- O requerido reside em casas de habitação cuja propriedade se encontra inscrita em nome dos seus pais, destinando-se parte desses imóveis ao comércio.
- O requerido e mulher são donos de um apartamento (“1º andar esquerdo, destinado a habitação”), adquirido em 15.12.1999, sito na freguesia de...., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos.
5. Assim, são os seguintes os factos a considerar:
a) A requerente é filha do requerido e de (…), tendo nascido a 31.8. 1990.
b) Desde a separação dos pais, há cerca de 18 anos, que a requerente vive com a sua mãe.
c) No respectivo processo de regulação do poder paternal, o requerido foi obrigado a pagar uma pensão de alimentos à filha no montante de € 185, que se encontra hoje no valor mensal de € 189,55. Nunca foi pedida qualquer alteração ao valor da pensão originária, prevendo-se a respectiva actualização anual.
d) A requerente concluiu no ano lectivo 2007/2008 o 12° ano, com média final de 17,4 valores.
e) Pretendendo cursar Medicina, porque a sua média não lhe permitia ingressar em Faculdade portuguesa, optou por ir estudar para Madrid - na candidatura ao ensino superior público apenas conseguiu colocação na “5ª opção” [na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra], sendo as anteriores opções para cursos de Medicina e Medicina Dentária nas Faculdades de Medicina de Lisboa, Coimbra e Porto.
f) A requerente vive a expensas da sua mãe e beneficia apenas da pensão referida, do seu pai.
g) A requerente arrendou um quarto em Madrid, pelo qual paga € 600 mensais.
h) A requerente pagou uma taxa de € 35 e uma matrícula de € 1 292.
i) Em livros e material didáctico gasta valor não apurado.
j) Em alimentação, vestuário, transporte e outros gasta valor não concretizado.
k) A mãe da requerente aufere um salário líquido mensal de € 1 515.
l) A mesma paga prestação bancária mensal de € 703, com seguro de vida associado.
m) E tem despesas várias com o seu agregado, gastando mensalmente cerca de € 120 em água, gás, electricidade e comunicações, não se tendo apurado o montante das restantes despesas.
n) A requerente tem dois irmãos (uterinos), nascidos a 13.11.1999 e 21.8.2003.
o) O requerido não foi ouvido sobre o ingresso ou projecto de ingresso da requerente na Faculdade de Medicina de Madrid, por esta ou pela sua mãe.
O requerido desconhecia a morada da filha em Madrid.
A relação pai/filha é quase inexistente.
p) O requerido aufere um vencimento líquido mensal de € 1 440.
q) O requerido é casado.
r) O requerido, que divide as despesas com a sua mulher, juntou aos autos diversos documentos para comprovar haver suportado, em Outubro de 2008, com telefone, água, gás, combustível, luz, prestação bancária, renda, almoços, telemóvel, seguros, supermercado, quota, bombeiros, condomínio, medicamentos, roupas, livros e outros, um total de € 2 884,96 e que, em Novembro de 2008, as despesas do casal ascenderam a € 3 765,51.
s) O requerido adquiriu um veículo com a matrícula 45(...), marca “Audi”, modelo “A6”, aquisição da propriedade levada ao registo automóvel, em 12.9.2008, livre de quaisquer ónus ou encargos.
t) No dia 08.9.2008 ou nos dias imediatos, o mesmo teve conhecimento da pretensão da requerente em obter uma pensão de alimentos para custear os seus estudos em Madrid.
u) O requerido declarou aceitar aumentar a pensão alimentar da filha até ao limite de € 300 mensais.
v) Volvidos oito dias da data de aniversário da requerente, o requerido recepcionou uma carta de um advogado, que não a sua actual mandatária, solicitando a sua comparência no escritório do mesmo para tratar de assunto do seu interesse.
w) O requerido entrou em contacto telefónico com o referido advogado, que lhe transmitiu a pretensão da requerente em obter uma pensão de alimentos, para custear seus estudos em Madrid, ao que o requerido comunicou que pretendia falar pessoalmente com a requerente.
x) No dia seguinte, o referido causídico informou o requerido que tinha abandonado o caso, uma vez que a mãe da requerente lhe transmitiu, gritando, que a requerente não iria nunca falar com o pai de forma alguma, e se encontrava já em Madrid.
y) A presente acção de alimentos foi instaurada a 23.9.2008, data em que foi ordenada a citação do requerido expedindo-se de imediato a respectiva carta registada com A/R, sendo oferecida a oposição em 15.10.2008.
z) Reportando-se ao ano de 2007, a mãe da requerente e o requerido declararam rendimentos globais (ilíquidos), para efeitos de IRS, de € 24 481,32 e € 25 430,58, respectivamente, provenientes da prestação de trabalho subordinado. O requerido e esposa declararam então o valor global de € 53 296,52, desconhecendo-se outros elementos quanto à proveniência dessa importância.
aa) No processo dito em II. 5. c) o acordo do exercício do poder paternal foi homologado por sentença de 20.02.1991.
bb) Relativamente às “despesas” referidas em II. 5. r), verifica-se que no mês de Outubro foi indicado um gasto em combustível de € 297,74 enquanto no mês seguinte tal gasto ascendeu a € 75,35; no mês de Outubro indica-se um gasto em supermercado de € 399,19 enquanto no mês seguinte tal gasto ascendeu a € 1 089,16; com a discriminação de gastos de fls. 84/Outubro 2008 não foi junto qualquer documento quanto à verba “renda da casa”; no que concerne às verbas “almoços”, que nos meses de Outubro e Novembro foram de € 725,31 e € 460,71, respectivamente, verificou-se um gasto global em fins-de-semana de aproximadamente € 750; é indicada uma despesa mensal de condomínio de € 109,01; no mês de Novembro de 2008 o requerido declarou uma despesa de “Hotel” de € 399,20, realizada nos Açores, nos dias 16 a 19 e 24 a 26.
cc) O requerido reside em casas de habitação cuja propriedade se encontra inscrita em nome dos seus pais, destinando-se parte desses imóveis ao comércio.
dd) O requerido e mulher são donos de um apartamento (“1º andar esquerdo, destinado a habitação”), adquirido em 15.12.1999, sito na freguesia de ...., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos.
6. Incumbe aos pais, no interesse dos filhos, além do mais, velar pela sua segurança e saúde e prover ao seu sustento e, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos, proporcionando-lhes adequada instrução geral e profissional, correspondente, na medida do possível, às aptidões e inclinações de cada um (art.ºs 1878º, n.º 1 e 1885º, n.ºs 1 e 2, do CC). Mas os pais ficam, em regra, desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação logo que eles atinjam a maioridade (art.ºs 1877º e 1878º, n.º 1, do CC).
Excepcionalmente, porém, se, no momento em que atingir a maioridade, o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação prevista no art.º 1879º [despesas com o sustento, segurança, saúde e educação dos filhos] na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação profissional se complete (art.º 1880º do CC).
Os pressupostos de aplicação deste último artigo, conexionado com o disposto no art.º anterior, são a maioridade do filho e a sua necessidade de auxílio e assistência dos pais até completar a sua formação profissional - o que está na base deste normativo é a incapacidade económica do filho maior para prover ao seu sustento e educação, quando as circunstâncias impõem aos pais, não obstante a maioridade do filho, a obrigação de, em nome do bem-estar e do futuro deste, continuar a suportar tais despesas.
A obrigação excepcional prevista neste normativo tem um carácter temporário, balizado pelo “tempo necessário” ao completar da formação profissional do filho, e obedece a um critério de razoabilidadeé necessário que, nas concretas circunstâncias do caso, seja justo e sensato, exigir dos pais a continuação da contribuição a favor do filho agora de maioridade.[6] .
Todavia, para o efeito, no caso de litígio entre os filhos que carecem do referido auxílio dos pais e estes que têm a obrigação legal de o prestar, importa que o requeiram judicialmente, justificando a sua necessidade e a possibilidade dos progenitores.
Assim, a regra é no sentido de que o direito a alimentos do filho menor no confronto dos respectivos progenitores cessa com a respectiva maioridade. Ele tem, porém, direito à manutenção da referida obrigação alimentar, no mesmo ou em diferente montante, conforme as circunstâncias, para completar a sua formação profissional [7] - importa que o peça em juízo, articulando e provando os factos integrantes da causa de pedir concernente ao direito substantivo previsto no art.º 1880º do CC, isto é, demonstrando que o seu direito a alimentos se mantém [8].
7. Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência (art.º 1874º, n.º 1, do CC).
Não se trata, com é natural, do dever recíproco de obediência mas de dever recíproco de consideração pela vida, integridade física e moral de cada um.
Não obstante o teor do referido normativo e atendendo à realidade social dos dias de hoje, antolham-se-nos correctas algumas das críticas formuladas por Antunes Varela, nomeadamente, quando refere “o manifesto desacerto da colocação em pé de igualdade ou de reciprocidade da obrigação do filho para com a mãe ou o pai e da obrigação dos pais para com o filho” quando confrontado com a subordinação ou sujeição própria da relação filial que continua expressamente prevista nalgumas codificações europeias [9] e a realidade das sociedades actuais, inclusive a sociedade portuguesa, diferença ou discrepância, entre a “law in books” e a” law in action”, porventura bem mais acentuada à data da reforma de 1977…
A obrigação de prestar alimentos cessa, além do mais, quando o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado (art.º 2013º, n.º 1, alínea c), do CC).
O referido normativo, introduzido pelo DL n.º 496/77, de 25.11, sucedeu ao primitivo, segundo o qual a obrigação de alimentos cessava quando se verificasse algum dos factos que legitimava a deserdação. Os factos que então, tal como hoje, justificam a deserdação são a condenação por algum crime doloso a que corresponda pena superior a seis meses de prisão contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão ou do seu cônjuge ou de algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, ou a condenação por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mencionadas pessoas (art.º 2166º, n.º 1, alíneas a) e b), do CC).
O legislador visou com a referida alteração normativa alargar/ampliar o âmbito da referida causa de cessação da obrigação de alimentos, embora através da vacuidade do conceito de grave violação pelo credor dos seus deveres para com o devedor. [10]
Neste quadro, cabe ao intérprete integrar o referido conceito normativo prudencialmente, tendo em conta, além do mais, as circunstâncias da vida familiar actual [11].
8. Vista a oposição de fls. 41, verifica-se que o requerido entende não ser “razoável” a exigência do pagamento de metade das despesas estimadas para frequentar o curso de medicina em Madrid, sem cuidar de saber qual a sua situação económica (art.º 3º da oposição) e afirma, designadamente, que “sempre foi impedido pela mãe [da requerente] de ter qualquer contacto pessoal e afectivo com a filha” (art.º 5º, ibidem) e que “aguardava ansiosamente que a requerente atingisse a maioridade para a contactar de forma pessoal, na esperança de perante esta nova situação, e agora livre da influência da mãe, que considera nefasta, iniciar uma forma de aproximação afectiva, como desejaria e seria normal entre pai e filha” (art.º 9º, ibidem) [12] ; diz, ainda, que “não põe em causa a escolha da requerente em esta pretender cursar medicina, até sente orgulho e satisfação em tal pretensão” (art.º 14º, ibidem), insurgindo-se, especialmente, quanto à circunstância de a requerente “decidir apenas com a mãe a sua deslocação para ir estudar para um país estrangeiro, com os elevados custos que tal deslocação importa” (art.º 19º, ibidem) e pretender que o requerido “passe repentinamente a ver-se na contingência de pagar uma prestação de alimentos no valor de 750,00 euros” (art.º 20º, ibidem), porquanto, além do mais, “desde que começou a suportar a pensão de alimentos com a requerente, os seus rendimentos não aumentaram desmesuradamente” (art.º 25º, ibidem).
Na alegação de fls. 63 e seguintes, a requerente veio dizer, nomeadamente, que “ao longo de 10 anos nunca [o requerido] lhe fez uma visita, um telefonema, um postal de aniversário ou de Natal”, “tem todo o interesse em relacionar-se com o pai, no pressuposto que também ele manifeste tal interesse, naturalmente traduzido em actos” e que “custa a perceber à requerente que o seu pai não se disponha a encontrar-se consigo, onde reside em Espanha, no endereço que conhece” (cf. art.ºs 8º, 9º e 10º da dita alegação).
Tendo em atenção os factos apurados e o referido no presente ponto, e propendendo-se para o entendimento de que a averiguação do relacionamento entre a requerente e o requerido poderá interessar à ponderação da exigibilidade da obrigação segundo a apontada cláusula de razoabilidade (art.º 1880º do CC) [13] , parece-nos, no entanto, não restarem dúvidas de que na situação em análise não se poderá afirmar qualquer “indignidade” da requerente para com o seu progenitor.
De resto, o requerido também não o afirmou claramente na sua “oposição” e, salvo o devido respeito, apenas decidiu “aproveitar-se”, na contra-alegação de recurso, do que a este propósito é referido na sentença recorrida quando se conclui que a recorrente, por não ter contactado previamente o requerente acerca do projecto em causa, por si mesma e/ou através de sua mãe, violou de forma relevante o dever de respeito para com o pai...
Pensamos, contudo, que os elementos considerados na sentença sob censura eram insuficientes para, sem margem para dúvida, se poder concluir pela existência de um comportamento da requerente enquadrável na previsão do artigo 2013º, n.º 1, alínea c), do CC [14] .
Na verdade, resulta dos autos que a requerente acabara de completar os 18 anos de idade [havendo certamente decorrido o(s) processo(s) de candidatura numa altura em que ainda era menor…], inexistiram contactos com o requerido ao longo dos últimos 10 anos [15] e verificou-se uma natural e de certo modo compreensível influência (e ascendente) de sua mãe, sendo que mãe e pai, ao que tudo indica, revelaram-se absolutamente incapazes de se relacionarem entre si [olvidando o interesse da requerente…] [16] , pelo que não será razoável imputar, agora, à requerente, o que quer que seja que a possa prejudicar no prosseguimento da sua formação profissional; acresce que o próprio requerido vê com “bons olhos” a sua necessária contribuição para que tal desiderato se afirme e não ignorará as dificuldades do tempo presente em cursar medicina no território nacional e o cada vez maior “contingente” de alunos portugueses que demanda terras estrangeiras, principalmente, a vizinha Espanha [problema que os nossos governantes dizem finalmente querer resolver a bem dos alunos portugueses e do interesse nacional…].
Por tudo quanto fica exposto e ao contrário da posição que vemos sufragada na decisão recorrida, pensamos, sem quebra do respeito devido, que não devemos sequer considerar existirem indícios de a requerente ter violado gravemente os seus deveres para com o requerido, e está sobretudo ao alcance deste contribuir decisivamente para a reparação dos danos (eventualmente) derivados da aludida falta de relacionamento no tempo pretérito (e presente) [apontando os elementos disponíveis no sentido de que a requerente e o requerido desejam reparar e reestruturar a relação pai/filha] e que de algum modo explicará por que não foi a requerente “capaz” de procurar o pai antes da decisão de ingressar no curso de medicina em Madrid [17] , bem sabendo que necessitava do seu contributo para prosseguir os almejados estudos, propósito e realidade que, tal como se referiu, não deixam de constituir forte motivo de orgulho e satisfação para o próprio requerente/pai.
Assim e não tendo a família perdido ainda a sua natureza de centro de afecto e de entreajuda [18](vide também, por exemplo, o disposto no art.º 2009º do CC), são razões éticas, sociais e jurídicas que sustentam a obrigação do requerido aqui em análise.
9. Resta determinar a medida da prestação alimentar, atento o disposto nos art.ºs 2003º e 2004º do CC, subsidiariamente aplicáveis, e o descrito factualismo, cientes de que o requerente terá porventura outras fontes de rendimento que lhe permitem dispor de quantias superiores ao rendimento líquido proveniente da sua prestação de trabalho subordinado [19] .
Pressupondo que a prestação inicialmente fixada no processo de regulação do poder paternal foi de € 185 e que a pensão deveria ser actualizada anualmente segundo os índices de inflação publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, pela simples aplicação cumulativa das sucessivas taxas de inflação dos anos de 1992 a 2008 encontrar-se-ia um valor actualizado de € 339,34; considerando apenas as taxas dos últimos 10 anos (para a hipótese de a pensão ter sido fixada depois de 1991 e por volta de 1997/1998, o que se desconhece…) esse valor seria aproximadamente € 254.
Por outro lado, salvo o devido respeito por diferente entendimento, afigura-se-nos que as despesas indicadas a fls. 84 e 119 e em II. 5. alíneas r) e bb), atendendo, designadamente, à sua imputação e correspondentes montantes (globais e parcelares), não foram devidamente justificadas [20] e não poderão ser consideradas como “encargos regulares do requerido” (cf. fls. 153), concluindo-se, tão-somente, que o mesmo quis apresentar despesas de forma a exaurir o “rendimento disponível” segundo a respectiva declaração para efeito de IRS…
Acresce que o requerido não terá outros filhos além da requerente (cf. item 26º do requerimento de fls. 155) e, como se diz na sentença, tem um padrão de vida acima da média [por exemplo, não são muitos os que, sem recorrer a financiamento, adquirem veículos cujo preço ascende a € 45 000/€ 50 000; não é nada comum que uma família decida gastar centenas de euros por mês em almoços de fins-de-semana; poucos pagam mensalmente € 109,01 de condomínio, etc.].
Assim, relembrando os princípios da jurisdição voluntária legalmente consagrados [21] . e devendo orientar-se o julgamento do caso em apreço por um critério de equidade, proferindo-se a decisão que pareça mais equitativa (mais conveniente e oportuna), a que melhor serve os interesses em causa[22], tudo visto e ponderado, e sabendo-se que a prestação de alimentos deve ser proporcionada aos meios daquele(s) que tiver(em) de prestá-los e à necessidade daquele que houver de os receber (art.º 2004º, n.º 1, do CC) - a medida dos alimentos deve, pois, ser fixada tendo em conta o nível razoavelmente exigido de satisfação das necessidades essenciais da pessoa carecida, in casu, em particular, as despesas inerentes à frequência do referido curso (por exemplo, além dos gastos considerados provados, é do conhecimento geral o custo relativamente elevado dos manuais de medicina e que os gastos com a alimentação e o vestuário implicam o dispêndio de algumas centenas de euros/mês), naturalmente com o limite das condições económicas das pessoas que os devam prestar, à luz de juízos de proporcionalidade e de bom senso[23] -, temos por razoável, equitativo e ajustado fixar a pensão de alimentos devida pelo requerente em € 550 (quinhentos e cinquenta euros), importância que se nos apresenta razoavelmente proporcionada aos meios económicos do prestador e proporcional às necessidades do alimentado, possibilitando uma justa composição entre as possibilidades de quem presta e as necessidades de quem recebe[24] .
Considerando apenas o rendimento líquido do trabalho por conta de outrem e podendo-se afirmar que se destina à satisfação das necessidades do requerido, a quantia sobrante é ainda superior ao dobro da aludida prestação (anual) de alimentos [(€ 1 440 x 14) > (€ 550 x 12 x 2)], além de que o requerido sempre poderá efectuar a correspondente dedução fiscal diminuindo o encargo real da sua obrigação alimentícia.
Por conseguinte, não será sequer necessário alongarmo-nos com novas considerações apontando para a existência de (fortes) indícios de que o requerido terá outras fontes de rendimento além do que aufere da sua entidade patronal e suportará uma despesa média (mensal) corrente/ordinária certamente inferior aos montantes pretensamente despendidos nos meses de Outubro e Novembro de 2008…
Em nota final, dir-se-á que, a ser sério o propósito das partes de (re)iniciarem um relacionamento saudável e profícuo, o que esta Relação admite, tal facto, de per si, possibilitará muito provavelmente a resolução razoável das questões que nesta decisão, à míngua de melhores elementos, não tenham porventura obtido a resposta mais adequada - assim o desejem e queiram, requerente e requerido!
Conclui-se pela parcial procedência das “conclusões” de recurso.
*
III. Face ao exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação, e, em consequência, revoga-se em parte a sentença sob censura, condenando-se o requerido a pagar à requerente, a título de pensão de alimentos, a quantia mensal de € 550 (quinhentos e cinquenta euros), durante o período normal para a conclusão do mencionado curso, mantendo-se o demais decidido.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção de 1/4 e 3/4 pela requerente e pelo requerido, respectivamente.
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[1] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[2] Isto é, no dizer da lei, tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.º 1411º, n.º 2, 2ª parte).
[3] Cf., nomeadamente, itens 4º da petição inicial e 3º da alegação de fls. 63 e item 4º da oposição.
[4] Trata-se do material probatório trazido aos autos, pelo requerido, em 14.01.2009, data inicialmente agendada para a audiência de julgamento (fls. 153).
[5] Sem que se tivesse fundamentado a desconsideração de factos alegados pelo requerido que, relevando para a configuração do caso, não desfavorecem a requerente (cf., nomeadamente, art.ºs 352º do CC e 304º, n.º 5; 490º; 505º; 653º, n.º 2 e 1409º, n.º 1 do CPC).
[6] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, págs. 338 e seguinte e, de entre vários, o acórdão do STJ de 08.4.2008-processo 08A493, publicado no “site” da dgsi
[7] Cf., ainda, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 566, sublinhando que o dever de educação e manutenção dos filhos, além de um dever ético-social, é um dever jurídico, nos termos estabelecidos na lei civil e em convenções internacionais.
[8] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 31.5.2007-processo 07B1678, publicado no “site” da dgsi.
[9] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. citados, págs. 319 e 320
[10] Ibidem, pág. 604.
[11] Cf., nomeadamente, o acórdão do STJ de 15.12.2005-processo 05B4101, publicado no “site” da dgsi.
No mesmo sentido, Rodrigues Bastos (apud Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 604): “presentemente, o comando legal tornou-se vago e impreciso, ficando ao tribunal definir, em cada caso, se houve violação grave dos deveres do alimentando para com o obrigado”.

[12] Matéria esta, a do art.º 9º, que o tribunal deu como não provada (cf. fls. 183).
[13] Neste sentido, vide o acórdão da RP de 17.02.1994, in CJ, XIX, 1, 240.
[14] Veja-se que a própria sentença não nos elucida a respeito da origem/fonte e/ou da imputação dos factos potencialmente ofensivos, já que aí se afirma: “é a progenitora quem parece conduzir todo o processo e vontade da filha” (fls. 183).
[15] À data da supressão dos contactos, a requerente teria apenas oito anos de idade (assim foi dito nos autos e ninguém o contrariou…). A requerente, elo mais fraco na “relação familiar/triangular”, deixou de poder beneficiar do apoio e acompanhamento do pai, desconhecendo-se as razões do “corte” no relacionamento e do seu prolongamento no tempo - houve desinteresse ou conformismo (face à eventual “resistência” ou “oposição” da mãe da requerente) por parte do requerido/pai?
[16] No caso vertente, à semelhança de tantos outros, tem inteira razão de ser o que vemos afirmado no acórdão da RE de 17.6.1993 (in CJ, XVIII, 3, 289): “(…) os motivos de queixa de um dos progenitores, no fundo, dirigem-se mais contra o outro dos progenitores do que contra os filhos. Estes acabam por ser, melhor vista a situação, a face visível – se bem que muitas vezes falsa – de uma realidade que continua oculta, ou seja o malmequer dos pais um pelo outro”.
[17] Situação bem diversa - constituindo violação grave dos deveres de uma filha maior de idade para com sua mãe, para efeitos do disposto no artigo 2013°, n.° 1, alínea c, do Código Civil - é a que vemos tratada no acórdão do STJ de 20.11.2003/processo03B3425, publicado no “site” da dgsi, na qual existia recusa injustificada de qualquer contacto com a obrigada/mãe.
[18] Cf. Maria de Nazareth Lobato Guimarães, Alimentos, in Reforma do Código Civil, Lisboa, 1981, pág.175.
[19] Na sentença recorrida também se admite que o requerido possa ter “uma margem desconhecida de rendimentos” (fls. 185).
[20] Por exemplo, desconhece-se a razão de ser das despesas de “Hotel”, nos Açores, em semanas seguidas [o que não afasta a possibilidade de se tratar de gastos realizados em viagens de trabalho, suportados pela entidade patronal, não obstante a facturação em nome do requerido]; há sérias razões para duvidar quanto ao efectivo pagamento, pelo requerido, aos seus progenitores, de qualquer importância a título de renda de casa, sendo que, na informação prestada pelo Serviço de Finanças de S. João da Madeira, no ofício de fls. 172, afirma-se que “não foram encontrados quaisquer documentos que vincule o sujeito passivo (…) [requerido] como inquilino dos sujeitos passivos acima indicados” [(…)/pais do requerido/cf. doc. fls. 35]; seria porventura conveniente apurar a proveniência das importâncias mencionadas no aludido ofício [desconhecendo-se a razão de ser do indeferimento da pretensão formulada a fls. 174 e o teor da oposição deduzida pelo requerido (fls. 195)…].
[21] Cf. II. 1., supra
[22] Vide Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra, 1982, pág. 401.
[23] Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, págs. 580 e seguinte e 584.
[24] Cf. o acórdão do STJ de 23.9.1997, in BMJ, 469º, 563.