Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
16/19.3PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES
CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 09/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 292.º, N.º 1; 348.º, N.º 2 E 77.º DO CÓDIGO PENAL; ART.º 29.º, N.º 5 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
Sumário: I – A jurisprudência corrente não é a que considera que comete apenas um crime de condução de veículo automóvel o condutor que depois de fiscalizado e detido pela prática deste crime e advertido de que não pode conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, vem a fazê-lo durante este período ainda com uma TAS superior a 1,20 g/l.

II – Tal posição assenta na consideração de que nestas situações (como é a presente), havendo uma pluralidade de resoluções criminosas e sendo diversa a natureza jurídica dos bens protegidos, são cometidos dois crimes de condução em estado de embriaguez, o segundo deles em concurso efetivo com o crime de desobediência.

III – Existindo um conjunto de factos provados, que integram uma primeira resolução do arguido em conduzir um veículo com motor em estado de embriaguez, que preenchem o tipo do crime de condução em estado de embriaguez, e um outro conjunto de factos provados que respeitam uma nova resolução do arguido de conduzir em estado de embriaguez, como efetivamente conduziu, depois de ter sido notificado do impedimento de conduzir previsto no artigo 154.º do Código da Estrada, e que preenche os elementos do tipo de um outro crime de condução em estado de embriaguez, sendo diversos os factos e dois os crimes de condução em estado de embriaguez, o arguido não é julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto e, consequentemente, a sua condenação por dois crimes de condução em estado de embriaguez, não viola o princípio da proibição da dupla valoração ou non bis in idem, ínsito no art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

           

     Relatório

            Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal de Coimbra - Juiz 1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo sumário, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AT, (...), com residência (...),

imputando-se-lhe a prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, previstos e punidos pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 26.º, e 348.º, n.º 2 do Código Penal e 154.º, n.º 2 do Código da Estrada.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 24 de janeiro de 2019, decidiu julgar procedente a acusação e condenar o arguido AT:

- pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão; 

- pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 7 meses de prisão;

- pela prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; 

- operar o cúmulo jurídico destas penas e condenar o arguido AT na pena única de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com a condição de efetuar o pagamento da quantia de € 600,00 à Associação Acreditar (Coimbra - Rua Camilo Pessanha 2, 3000-600 Coimbra), no prazo de 6 meses após o trânsito em julgado da sentença, devendo comprovar nos autos tal pagamento, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, al. c) do Código Penal;

- descontar um dia de detenção ao arguido, nos termos do artigo 80º do Código Penal; e

- condenar o arguido AT nas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, previsto pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, pelo período de 9 meses e 10 meses, e, em cúmulo jurídico de penas, na pena acessória única de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 15 meses.

           Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido AT, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

(...)

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

1. No dia 05 de Janeiro de 2019, cerca das 09h00m, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula (...), na Rua (...), quando foi interceptado pela PSP em serviço de fiscalização.

2. Efectuado o exame de pesquisa de álcool no sangue pelo método do ar expirado no equipamento "DRAGER" modelo 7110 MKIIIP, aprovado pelo I.P.Q., o arguido acusou uma taxa de alcoolemia no valor registado de 2,57G/L, a que corresponde uma taxa de alcoolemia no valor apurado de 2,441 g/l, após a dedução do erro máximo admissível.

3. Com efeito, antes de iniciar o exercício daquela condução, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas.

4. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a quantidade de bebidas alcoólicas que havia ingerido nesse dia, até momentos antes do exercício da condução do referido veículo, lhe determinava uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20 g/l e, não obstante, não se absteve de conduzir a referida viatura, como efectivamente quis fazer e fez.

5. Na sequência dessa fiscalização para detecção da presença de álcool no sangue, cerca das 10h30m daquele dia, o arguido foi notificado que desde aquele momento ficava impedido de conduzir pelo período de 12 horas e advertido que caso exercesse a condução nesse prazo incorreria na prática de um crime de desobediência qualificada.

6. Nesse mesmo dia, cerca das 11h35m, o arguido foi interceptado pela PSP em serviço de fiscalização, a conduzir o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula (...), na Rua (...).

7. Efectuado o exame de pesquisa de álcool no sangue através do equipamento “DRAGER” modelo 7110 MKIIIP, aprovado pelo I.P.Q, o arguido acusou uma taxa de alcoolemia no valor registado de l,84 g/l, a que corresponde uma taxa de alcoolemia no valor apurado de 1,748 g/l, após a dedução do erro máximo admissível.

8. O arguido ao conduzir o veículo nestas descritas circunstâncias agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que estava impedido de o fazer por via da ordem determinada de proibição de conduzir o veículo automóvel pelo período de 12 horas, sabendo que tal ordem era formal e substancialmente legal, que dimanava de autoridade competente e que lhe devia obediência, e que, ao não acatá-la, a desrespeitou, o que quis e logrou alcançar.

9. Mais agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a quantidade de bebidas alcoólicas que havia ingerido nesse dia, até momentos antes do exercício da condução do referido veículo, lhe determinava uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20 g/l e, não obstante, não se absteve de conduzir a referida viatura, como efectivamente quis fazer e fez.

10. O arguido, em todas as relatadas circunstâncias actuou sempre bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

(...)


*

*


            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º 3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente/arguido A (...) são duas as questões a decidir:

1.ª - se o arguido praticou apenas um crime de condução em estado de embriaguez;

2.ª – (...).


-

            1.ª Questão: do(s) crime(s) de condução em estado de embriaguez

O arguido AT defende o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento porquanto o ora recorrente praticou apenas um crime de condução em estado de embriaguez e, assim, ao ser condenado pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez violou a decisão recorrida o disposto no art.77.º, do Código Penal.

Alega neste sentido que existiu apenas um único propósito, que o levou a praticar os factos, que é o querer voltar/chegar a casa, pelo que a decisão criminosa é uma só e o dolo do arguido abrange todos os atos que ele se dispôs a praticar até ao final.

O único propósito só pode ser objeto de um só juízo de desvalor social, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração (non bis in idem).

A decisão recorrida, ao interpretar o art.º 77.º do Código Penal no sentido de permitir a condenação do arguido em dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez quando os factos inerentes apenas demonstram uma única motivação criminosa e/ou dolo do arguido, permitindo a aplicação de dois juízos de desvalor social a uma conduta que é una, incorre em inconstitucionalidade material por violação do princípio da proibição da dupla valoração (non bis in idem), ínsito no art.º 29.º, n.º 5 da CRP.

Invoca a favor desta sua posição, como “jurisprudência corrente”, o acórdão da Relação do Porto, de 3/6/2016, proferido no proc. n.º 810/15.4PFPRT.P1 e o Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-05-2018, proferido no proc. n.º 122/17.9GCSEI.C1.

Vejamos.

Cremos que a jurisprudência corrente não é a que considera que comete apenas um crime de condução de veículo automóvel o condutor que depois de fiscalizado e detido pela prática deste crime e advertido de que não pode conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, vem a fazê-lo durante este período ainda com uma TAS superior a 1,20 g/l.

O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-05-2018, de que o ora relator foi adjunto,[4] citado pelo recorrente AP, não se insere também no entendimento jurisprudencial de que, na situação em causa, o condutor pratica apenas um crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na situação ora em causa.

Como se menciona no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-05-2018, que o Tribunal a quo seguiu, a questão ora em causa tem merecido decisões opostas na jurisprudência, designadamente, por parte dos Tribunais da Relação.

A propósito desta questão - numa situação em que o arguido havia sido condenado, num primeiro processo, pela prática de um crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez e, no segundo processo, se questiona a existência de um concurso efetivo um crime de desobediência e um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez praticado no período de 12 horas em que não podia conduzir -, escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-05-2018, designadamente:

«… o entendimento de que apenas é cometido o crime de desobediência foi seguido, por exemplo, nos Acs. TRP, de 3 de Junho de 2016 e de 11 de Novembro de 2009 e do TRE, de 28 de Junho de 2011 [proferidos, os dois primeiros, nos processos, respetivamente 810/15.4PFPRT.P1 e 516/03.3PTPRT.P1, disponíveis em http://www.dgsi.pt, e o último publicado na Coletânea de Jurisprudência, n.º 231, Tomo III, págs. 263-264], com base na argumentação, que é perfilhada pelo recorrente (na remissão que na peça recursiva faz expressamente para o primeiro deles), de que o ato gerador da responsabilidade criminal é a ingestão de bebidas alcoólicas e, portanto, nas 12 horas abrangidas pela proibição, em que os efeitos do álcool perduram, a condução automóvel num segundo momento insere-se ainda na mesma unidade criminosa, não havendo lugar a outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez. (…).

Por outro lado, em dissonância com tal entendimento, a posição segundo a qual a condução com taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20 g/l dentro daquele período das 12 horas de impedimento de conduzir integra a prática do crime de desobediência qualificada e também, em concurso efetivo, um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, foi adotada, nomeadamente, nos Acs. do TRE, de 20 de Dezembro de 2011 e 21 de Junho de 2011; do TRP, de 28 de Setembro de 2016; de 20 de Abril de 2016; de 9 de Setembro de 2015; de 17 de Junho de 2015 e 26 de Outubro de 2016, bem como do TRG, de 20 de Fevereiro de 2018 [os cinco primeiros proferidos nos processos, respetivamente, 237/09.7GBPSR.E1, 441/10.5GTABF.E1, 95/16.5PFPRT.P1, 794/15.0PFPRT.P1 e 73/15. 1GDAND.P1, bem como o último, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt; o sexto publicado na Coletânea de Jurisprudência, Ano XL, Tomo III, pág. 237/239 e o sétimo, disponível na Coletânea de Jurisprudência online].

Esta segunda posição, que cremos ser claramente maioritária, assenta na consideração de que em situações como a em apreço nos autos, havendo uma pluralidade de resoluções criminosas e sendo diversa a natureza jurídica dos bens protegidos, são cometidos dois crimes de condução em estado de embriaguez, o segundo deles em concurso efetivo com o crime de desobediência.

 (…) Perante esta factualidade é inequívoco que as condutas do arguido integram dois episódios absolutamente distintos no tempo e no espaço, ambos violadores do mesmo bem jurídico - a segurança rodoviária - que por duas vezes foi posto em causa, sendo que, na segunda situação, foi ainda violado um outro bem jurídico - o interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas.

Não obstante, o recorrente sustenta que, para além do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art.º 348º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao art.º 154º, n.º 2, do Código da Estrada, apenas incorreu num único crime de condução de veículo em estado de embriaguez, ancorando-se na argumentação expendida no referido Ac. TRP, de 3 de Março de 2016, onde se afirma: (…).

Pese embora o labor argumentativo utilizado, sucede, porém, tal como é posto em evidência nos citados acórdãos que se pronunciaram no sentido oposto, que o facto penalmente punido pelo art.º292º é a condução de veículo automóvel, em via pública ou equiparada, apresentando o agente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l. Assim, a fonte geradora de responsabilidade criminal é a condução automóvel por parte do agente que ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e não unicamente a ingestão dessas bebidas, que por si só não é criminalmente punida.

Significa isto que, no caso vertente, o primeiro crime de condução de veículo em estado de embriaguez e a respetiva resolução criminosa cessaram quando o arguido foi, pela primeira vez, às 00 horas e 44 minutos, fiscalizado pela autoridade policial.

Após essa fiscalização, com a submissão do arguido ao teste de pesquisa de álcool no sangue e a todo um conjunto de procedimentos legais, nomeadamente a sua detenção, constituição de arguido, notificação para comparência em tribunal, libertação e notificação de que não poderia conduzir no prazo de 12 horas, sob pena de cometer um crime de desobediência, afigura-se-nos inequívoco que o mesmo teve necessariamente de formular um novo desígnio para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado temporalmente. Isto porque o resultado positivo daquela fiscalização, as respetivas consequências e o conjunto dos procedimentos legais a ela inerentes interromperam forçosamente a resolução inicialmente tomada de conduzir em estado de embriaguez.

Perante a afirmação da existência de duas resoluções criminosas, consumadas em actos independentes e distintos no espaço e no tempo, sem que o segundo tenha sido favorecido pelo primeiro, no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (caso em que haveria um único crime continuado), impõe-se concluir pela verificação de dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal.».

Este Tribunal da Relação de Coimbra subscreve os argumentos do acórdão ora transcrito, não sendo a circunstância de ter sido dado como provado no ponto n.º 16 da sentença que «o arguido seguia sozinho no veículo automóvel e ia para casa quando foi abordado as duas vezes pela entidade policial» que altera a existência de duas resoluções criminosas, consubstanciadas nos diferentes momentos em que o arguido foi fiscalizado a conduzir um veículo automóvel, a que correspondem dois juízos de desvalor social. 

A primeira resolução ou processo volitivo que determinou o arguido AP a conduzir na via pública sabendo que o fazia com excesso de álcool no sangue, para chegar a casa, cessou com a sua submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue e todo um conjunto de procedimentos legais subsequentes à sua detenção, como a constituição de arguido, notificação para comparência em tribunal, libertação e notificação de que não poderia conduzir no prazo de 12 horas, sob pena de cometer um crime de desobediência.

O risco protegido pela norma, proibindo o arguido de conduzir sob o efeito do álcool, terminou com aquelas diligências, pelo que quando após a sua libertação, decide que voltaria a conduzir o veículo automóvel, para chegar a casa, durante o período de 12 horas, sabendo que era portador de uma TAS superior a 1,20 g/l, teve necessariamente de proceder a um novo processo de ponderação dos prós e contra de o fazer.    

A posição sustentada pelo recorrente de que existiu uma só resolução, que se confunde com o propósito de querer voltar/chegar a casa e, assim, a decisão criminosa abrange todos os atos que ele se dispôs a praticar até ao final, poderia levar a situações completamente chocantes.

Basta supor que o arguido demora um mês até voltar a casa; nesse caso durante esse período poderia sempre conduzir embriagado na via pública e, independentemente do número de vezes que fosse detido, só praticava um crime, que se consumava quando chegasse a casa. Se o arguido tomasse a resolução de conduzir sempre veículos na via pública em estado de embriaguez, então poderia continuar a conduzir indefinidamente no âmbito dessa resolução, que só praticaria um crime, quando terminasse essa resolução. 

Perante o exposto, não se sufraga, também, o entendimento do recorrente de que a decisão recorrida interpretou o art.º 77.º do Código Penal no sentido de permitir a condenação do arguido em dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez quando os factos inerentes apenas demonstram uma única motivação criminosa e/ou dolo do arguido, permitindo a aplicação de dois juízos de desvalor social a uma conduta que é una, incorre em inconstitucionalidade material por violação do princípio da proibição da dupla valoração (non bis in idem), ínsito no art.º 29.º, n.º 5 da CRP.

O princípio ne bis in idem, previsto no art.º 29.º n.º 5, da nossa Constituição, proíbe que alguém seja condenado duas vezes pelo mesmo facto.

No caso, tal não ocorre.

Existe um conjunto de factos provados, descritos nos pontos n.ºs 1 a 4 da sentença recorrida, que integram uma primeira resolução do arguido AP de conduzir um veículo com motor em estado de embriaguez, que preenchem o tipo do crime de condução em estado de embriaguez, e um conjunto de factos provados descritos nos pontos n.ºs 5 a 10 da sentença recorrida, que respeitam uma nova resolução do arguido de conduzir em estado de embriaguez, como efetivamente conduziu, depois de ter sido notificado do impedimento de conduzir previsto no artigo 154.º do Código da Estrada, e que preenche os elementos do tipo de um outro crime de condução em estado de embriaguez.

Sendo diversos os factos e dois os crimes de condução em estado de embriaguez, o ora recorrente não é julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto e, consequentemente, a sua condenação por dois crimes de condução em estado de embriaguez, não viola o princípio da proibição da dupla valoração ou non bis in idem, ínsito no art.29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Improcede, deste modo, a primeira questão.

            (...)

       Decisão

       Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A (...) e manter a douta sentença recorrida.

(...)

                                                                    *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                     *

Coimbra, 25 de Setembro de 2019

Orlando Gonçalves (relator)

Alice Santos (adjunta)

 


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º, pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4] Proc. n.º 122/17.9GCSEI.C1, Relator: Desemb. Brizida Martins, in www.dgsi.pt