Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9320/16.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CONFISSÃO DA DÍVIDA
ACTOS INCOMPATÍVEIS
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
Data do Acordão: 10/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 313, 314, 317 B) CC
Sumário: I - Não cabe ao tribunal da Relação conhecer da impugnação da decisão relativa à matéria de facto quando a matéria em causa não tiver influência na decisão do recurso.

II - O efeito jurídico da confissão da dívida prevista no artigo 314.º do Código Civil não é o reconhecimento da dívida pelo devedor ou o reconhecimento dos factos constitutivos do direito invocado pelo credor. O efeito é o previsto no n.º 1 do artigo 313.º do Código Civil: considera-se ilidida a presunção de cumprimento pelo decurso do prazo. Deste modo, o artigo 314.º deve ser lido no seguinte sentido: “A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo é ilidida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

J (…), Limitada, com sede (…) propôs a presente acção declarativa com processo comum contra D (…), residente na (…), pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 8 159,64 euros, acrescida de juros de mora desde a data da propositura da acção até ao efectivo e integral pagamento.

A ré contestou. Na sua defesa alegou em síntese:
1. Que as partes (autora e ré) eram partes ilegítimas, pelo que devia ela, ré, ser absolvida da instância;
2. Que o crédito da autora presumia-se pago, nos termos da prescrição presuntiva prevista na alínea b) do artigo 317.º do Código Civil;
3. Se assim se não entendesse, que a acção devia ser julgada improcedente.

Na contestação requereu a intervenção na causa, como associado dela, de R (…).

A intervenção foi admitida. Citado, o chamado contestou a acção. Na sua defesa alegou em síntese:
1. Que a autora era parte ilegítima;
2. Que o crédito da autora estava extinto por prescrição;
3. Que o chamado e a ré pagaram o preço dos serviços que lhes foram prestados.

A autora respondeu, pedindo se julgassem improcedentes as excepções.

No despacho saneador, o tribunal a quo julgou improcedente a alegação de que as partes eram ilegítimas. 

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:
1. Condenar solidariamente a ré D (…) e o chamado R (…) a pagar à autora, J (…) Lda, a quantia de 5 000,00 € (cinco mil euros), acrescida de juros de mora civis, à taxa de 4%, contados desde o dia 30.06.2015 até ao efectivo e integral pagamento;
2. Absolver a ré e o chamado do demais contra si peticionado na acção.    

O chamado e a ré não se conformaram com a decisão condenatória e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição dela por decisão que os absolvesse do pedido.

Os fundamentos do recurso interposto pelo chamado consistiram em síntese:
1. Na impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2. Na alegação de que a sentença aplicou incorrectamente o disposto no artigo 317.º, alínea b) e no artigo 323.º, n.º 1, ambos do Código Civil.

Por sua vez, os fundamentos do recurso interposto pela ré consistiram em resumo:
1. Na impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2. Na alegação de que a decisão violou os artigos 341.º e 342.º, ambos do Código Civil, e os artigos 413.º e 607.º, ambos do CPC.

A autora respondeu, pedindo se mantivesse a condenação da ré e do chamado no pagamento do capital em dívida, acrescido de IVA.


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Questões suscitadas pelos recursos

Os recursos suscitam questões de facto e de direito. Considerando que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, começaremos o julgamento do recurso pelo conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.


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Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

O chamado e a ré impugnaram a decisão de julgar não provadas as seguintes alegações:
1. Que por conta dos trabalhos descritos em 2, e para além dos cheques aludidos em 4) e 5), a ré e o chamado entregaram ao Sr. José Brito a quantia de € 5 000,00, em numerário [alínea G) dos factos julgados não provados];
2. Que o autor terminou a execução da totalidade dos trabalhos descritos no ponto n.º 2 dos factos julgados provados no dia 28 de Junho de 2013 [alínea H) dos factos julgados não provados].

A ré pediu ainda se julgassem provados os seguintes factos:
1. Que consta do livro de obras particulares que os trabalhos da rede eléctrica foram concluídos no dia 28 de Junho de 2013;
2. Que consta do livro de obras particulares que a obra encontra-se concluída e em conformidade com os projectos desde o dia 5 de Julho de 2013;
3. Que no dia 28 de Agosto de 2013 foi emitido pela C(…) o certificado de exploração referente à moradia sita na rua (...) ;
4. Que o alvará de utilização n.º (...) /2014 foi emitido pela Câmara Municipal de Coimbra a 3 de Fevereiro de 2014.


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Questão prévia:

Pelas razões a seguir expostas, este tribunal não irá conhecer da questão de saber se a autora terminou a execução dos trabalhos no dia 28 de Junho de 2013. Vejamos.

A ré e o chamado pedem se julgue provado este facto para sustentarem, com base nele e no disposto na alínea b) do artigo 317.º do Código Civil, que o crédito proveniente da execução dos trabalhos está em condições de beneficiar do prazo de prescrição previsto na citada norma.

É isento de dúvida que o devedor que queira beneficiar da mencionada prescrição presuntiva tem o ónus de alegar e provar que decorreram dois anos ou mais sobre a execução dos trabalhos, o que pressupõe a prova da data em que os trabalhos foram realizados.   

Sucede que a questão que está em causa no presente recurso a propósito da prescrição de que trata a alínea b) do artigo 317.º não é a de saber se os trabalhos, cujo preço foi reclamado na presente acção, foram executados há mais de 2 anos aquando da citação dos ora recorrentes para a acção. A questão que está em causa é a de saber se os réus praticaram em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento em que se funda a prescrição prevista na alínea b) do artigo 317.º do Código Civil. Com efeito, foi apenas por ter entendido que a ré e o chamado praticaram em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento que a sentença concluiu que os mesmos não estavam em condições de beneficiar da prescrição de dois anos. Segue-se do exposto que para este tribunal sindicar a legalidade da decisão recorrida é irrelevante a resposta questão de saber se os trabalhos foram concluídos em 28 de Junho de 2013.

Apesar de não haver norma no Código de Processo Civil, designadamente na parte relativa à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, que afirme expressamente que é requisito do conhecimento da mencionada impugnação que a decisão em causa respeite a facto com relevância para a decisão do recurso, esta norma resulta, por um lado, da natureza instrumental da decisão de facto e, por outro, do princípio da limitação dos actos enunciado no artigo 130.º do CPC, segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis. Com efeito, se o resultado da impugnação da decisão de facto não tiver nenhuma influência na decisão de direito, o conhecimento da impugnação revelar-se-ia um acto inútil.

Pelo exposto, não se conhece da impugnação da decisão de julgar não provado que o autor terminou a execução dos trabalhos em 28 de Junho de 2013. 

Por os factos acima enunciados sob 1) a 4) não terem relevo para a decisão do recurso, este tribunal também não irá conhecer da pretensão da ré no sentido de os julgar provados. Com efeito, nenhum deles tem relevância para a questão de saber se a sentença decidiu correctamente quando afirmou que a ré e o chamado praticaram em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento em que se funda a prescrição prevista na alínea b) do artigo 317.º do Código Civil. De resto, a recorrente não extraiu nenhum efeito jurídico deles.

 Se bem se interpreta a alegação da recorrente, os factos em causa seriam relevantes por estarem em oposição com a alegação da autora de que os trabalhos cujo preço é reclamado na presente acção foram concluídos em Abril de 2014 (artigo 10.º da resposta à contestação). Sucede, como já se escreveu acima, que a questão da data em que os trabalhos foram concluídos não é relevante para a decisão do recurso. Por outro lado, o tribunal a quo não julgou provado que os trabalhos cujo preço está a ser pedido na presente acção foram concluídos em Abril de 2014. O mais que julgou provado – sem impugnação da ré – foi que em Abril de 2014, a autora deslocou-se à moradia com o objectivo de realizar os trabalhos reclamados pela ré e pelo chamado.    

Diga-se, por fim, que um dos factos em causa – a emissão pela C (…) do certificado de exploração no dia 28 de Agosto de 2013 – já figura entre os factos provados, concretamente sob o n.º 6.

Deste modo, a questão de facto suscitada pelo recurso é de saber se o tribunal a quo errou ao julgar não provado que “que por conta dos trabalhos descritos em 2, para além dos cheques aludidos em 4) e 5), a ré e o chamado entregaram ao Sr. (…) a quantia de € 5 000,00, em numerário [alínea G) dos factos julgados não provados].

Segundo os recorrentes, o facto em causa deve ser julgado provado. Invocam, para tanto, os depoimentos que prestaram em audiência.     

Ouvidos na íntegra os depoimentos prestados, a convicção deste tribunal não diverge da do tribunal a quo. Vejamos.

Em primeiro lugar, o sentido das declarações prestadas pela ré e pelo chamado não foi o de que, por conta dos trabalhos descritos em 2, para além dos cheques aludidos em 4) e 5), a ré e o chamado entregaram ao Sr. (…) a quantia de € 5 000,00.

Em relação ao cheque referido em 5 (cheque datado de 3 de Junho de 2014), quer a ré quer o chamado afirmaram que o mesmo não serviu para pagar os trabalhos em causa nos autos. Segundo eles, tal cheque foi emitido para pagar o preço de equipamentos de ar condicionado instalados na moradia que primeiramente haviam sido oferecidos ao ex-marido da ré por parte do gerente da autora.

A ré e o chamado também não afirmaram que a quantia em dinheiro entregue ao gerente da autora foi a de 5 000,00 euros.

A ré afirmou que parte do preço (2500 euros) fora paga através do cheque mencionado no ponto n.º 4 dos factos provados (cheque emitido em 12 de Junho de 2013) e que a parte restante (7 500 euros) fora paga através da entrega de dinheiro pelo seu ex-marido e através de “acertos” entre o seu ex-marido e o gerente da autora, relativos a ajudas de custo devidas ao seu ex-marido enquanto jogador de futebol de uma associação da qual era presidente o sócio gerente da autora.

Por sua vez, o chamado afirmou que parte do preço (2500 euros) fora paga através do cheque mencionado no ponto n.º 4 dos factos provados (cheque emitido em 12 de Junho de 2013) e que a parte restante (7 500 euros) fora paga através de entregas de dinheiro.

Como se vê, a ré e o chamado convergem na afirmação de que apenas um dos cheques serviu para pagar o preço dos trabalhos, mas divergem quanto à forma de pagamento da parte restante do preço.

Esta divergência não abona a favor da credibilidade do que disseram sobre o pagamento do preço.

Como não abona a favor da veracidade da alegação sobre o pagamento do preço através de entregas de dinheiro, a resposta dada pela ré ao pedido de pagamento da factura no montante de 7 300 euros [resposta que consta da carta junta a fls. 85]. Se na realidade, a ré ou o chamado tivessem pago o preço em numerário, o que seria normal à luz das regras da experiência comum é que a ré recusasse o pagamento da factura com a alegação de que o preço dos serviços discriminados nela já sido havia pago em numerário. Sucede que a ré devolveu a factura com a alegação de que ela não correspondia a serviços ou mercadorias que tenham sido prestados ou vendidos, que nos últimos contactos as contas haviam sido dada por certas e que a autora nunca acabou os serviços que se comprometeu a efectuar.

Por seu turno, dizendo o chamado que foi ele quem fez as entregas do dinheiro ao gerente da autora, seria de esperar, se na realidade tais entregas tivessem sido feitas, que o depoente conhecesse e indicasse, ainda que de modo aproximado, o tempo, o lugar e o montante das entregas. Sucede que omitiu estas circunstâncias.

Por fim, a veracidade dos depoimentos não pode deixar de ser apreciada com sérias reservas dado o interesse directo da ré e do chamado na decisão da causa. As reservas são acrescidas em relação ao depoimento da ré, dada que a mesma afirmou que não presenciou nenhuma entrega de dinheiro nem nenhum dos alegados acertos de contas. 

Por todo o exposto, entende este tribunal que a alegação da ré e do chamado sobre os pagamentos em dinheiro não são credíveis.

Em consequência, julga-se improcedente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.


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Uma vez julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos:
1. A autora J(…), Lda tem como actividade registada a instalação de canalizações e de climatização, instalação eléctrica e instalação de gás.
2. No exercício dessa actividade, a autora, a solicitação da ré D (…) e do chamado R (…), procedeu ao fornecimento e aplicação da instalação eléctrica e de telecomunicações, de rede de águas e esgotos, rede de gás, pré instalação de ar condicionado e de dois painéis solares na moradia sita na Rua d (...) , que ambos destinariam à sua habitação, pelo preço global de 10.000,00€.
3. A autora J (…) Lda. emitiu em nome da ré D (…) a factura FA 2015/109, datada de 30.06.2015, com condição de pagamento a pronto pagamento, no valor total de 10.000,00€, acrescida de 2.300,00€ a título de IVA, num total de 12.300,00€, assim discriminada: Fornecimento e aplicação de instalação eléctrica e Ited, rede de águas e esgotos, rede de gás, pré instalação de ar condicionado, Kit solar (2 painéis e acumulador), 1 máquina de ar condicionado de conduta.
4. Para pagamento do referido em 2), a ré e o chamado entregaram à autora o cheque com o n.º (...) , datado de 12.07.2013, sacado sobre o Banco (...) , S. A., no valor de 2.500,00€, que teve bom pagamento.
5. E entregaram à autora o cheque com o n.º (...) , datado de 03.06.2014, sacado sobre o Banco (...) , S. A., no valor de 2.500,00€, que teve bom pagamento.
6. No dia 22.08.2013, foi emitida a certificação da C (…).
7. Na execução dos trabalhos referidos em 2), quanto à instalação da rede de gás nessa moradia, a autora apenas procedeu à realização dos respectivos trabalhos preparatórios, tendo colocado tubagem de cobre, tubagem PEAD e caixa no exterior na rede de gás, não tendo colocado aquela em funcionamento, em virtude da ré e do chamado terem optado posteriormente pela utilização exclusiva de aparelhos eléctricos.
8. Por isso, a autora, a ré e o chamado acordaram em manter o preço descrito em 2), com a compensação da autora proceder à colocação de projectores de iluminação e à instalação de mais um aparelho de ar condicionado no escritório, o que sucedeu.
9. Em Abril de 2014, a autora deslocou-se à moradia descrita em 2) com o objectivo de realizar os trabalhos reclamados pela ré e pelo chamado.
10. À data, o chamado era e é engenheiro civil, trabalhando por conta de outrem.
11. E a ré era e é enfermeira de profissão e trabalha no (...) , no serviço de (...) .

Factos julgados não provados:
a) Que A autora tem registada a actividade de comércio de equipamentos.
b) Que a Autora, ré e chamado acordaram que ao valor descrito em 2) acresceria a taxa de IVA em vigor de 23%, totalizando o montante de 12.300,00€.
c) Que pelo descrito, no ano de 2014, a autora procedeu ainda à colocação de louças, da campainha da porta de entrada, à instalação de ar condicionado, à colocação de cabos de alarmes e de sistema de alimentação eléctrica dos portões, à colocação de projectores de iluminação exterior.
d) Que em Abril de 2014, a autora efectuou ensaios finais e acabamentos de todas as especialidades.
e) Que a realização dos trabalhos descritos em 2) foi solicitada à autora pela sociedade O (…), Lda., a quem havia sido adjudicada a construção da moradia descrita em 2).
f) Que a realização dos trabalhos descritos em 2) foi acordados directamente entre o Sr. J (…), a ré e o chamado, que se comprometeu executá-los pessoalmente sem intervenção da autora, como forma de poder reduzir o preço acordado.
g) Que por conta dos trabalhos descritos em 2) e para além dos cheques aludido em 4) e 5), a ré e o chamado entregaram ao Sr. J (…) a quantia de 5.000,00€ em numerário.
h) Que no dia 28.06.2013, o autor terminou a execução da totalidade dos trabalhos descritos em 2).


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Descritos os factos, passemos à resolução das questões de direito suscitadas pelos recursos. 

Ambos os recursos visam o segmento da decisão que julgou improcedente a defesa dos réus consistente na alegação que o crédito invocado pela autora estava prescrito e que tal prescrição era a prevista na alínea b) do artigo 317.º do Código Civil.

A sentença sob recurso entendeu que a ré e o chamado não estavam em condições de beneficiar de tal prescrição, com a seguinte justificação:
1. A prescrição de que tratava a alínea b) do artigo 317.º do Código Civil assentava numa presunção de cumprimento;
2. Neste tipo de prescrição, o decurso do prazo legal não extingue a obrigação;
3. A prescrição em causa invertia o ónus da prova, no sentido de que o devedor ficava liberto do ónus de provar o cumprimento;
4. O credor podia ilidir a presunção em que ela assentava, provando o não cumprimento;
5. Que o Código Civil admitia apenas como meio de prova do não cumprimento a confissão judicial ou extrajudicial, (artigos 313.º e 314.º do Código Civil);
6. Que o devedor para beneficiar da prescrição presuntiva não podia negar a sua responsabilidade perante o demandante, negar a existência da dívida, impugnar o seu montante, pagar apenas parte da dívida reclamada, invocar a nulidade ou anulabilidade do negócio, a gratuitidade dos serviços;
7. Que os réus adoptaram comportamentos nos articulados e nas declarações de parte prestadas em audiência final incompatíveis com a presunção de cumprimento em virtude de terem invocado a excepção de ilegitimidade da autora; de terem afiançado que com ela não celebraram qualquer vínculo contratual; de terem impugnado parte do preço pedido pela autora.

Os recorrentes, apesar de discordarem da decisão quanto à questão da prescrição, não censuram todas as premissas em que ela assentou. Assim, não questionam a afirmação de que a prescrição funda-se na presunção de cumprimento; não censuram a afirmação que a presunção de cumprimento é afastada quando o devedor praticar em juízo actos incompatíveis com tal presunção, nem contestam que, quando negar em juízo existência da dívida, impugnar o montante dela, alegar o pagamento de parte dela, invocar a nulidade ou anulabilidade do negócio, ou invocar a gratuitidade dos serviços, o devedor praticar actos contrários à presunção de cumprimento.

O chamado opõe-se à decisão com a seguinte linha argumentativa:
1. Que o facto de questionar a legitimidade da autora não contende com a invocação da prescrição prevista na alínea b) do artigo 317.º do CC;
2. Que o recorrente, tanto no seu depoimento de parte como na contestação, face à confusão gerada pelo comportamento do gerente da autora, limitou-se a invocar a ilegitimidade activa desta última, não pondo em causa que a dívida se tenha constituído, não pondo em causa o cumprimento da prestação de serviços, apenas esclarecendo as circunstâncias em que a dívida se constituiu, e afirmando que, independentemente de quem fosse o titular do crédito, o mesmo tinha sido integralmente pago e que dos depoimentos de parte da ré e do chamado, único meio de prova que seria admissível para o efeito, não resultou confessada a dívida, antes foi reforçado o seu integral pagamento.

Por sua vez, a ré opôs-se à decisão com a seguinte alegação:
1. Que do seu articulado e do seu depoimento não resultava qualquer comportamento incompatível ou contrário à presunção de pagamento;
2. Que a presunção em que se fundava a prescrição apenas podia ser afastada pelo credor por confissão da ré e do chamado e que dos seus depoimentos de parte não resultou confessada a dívida, ambos tendo sido peremptórios na afirmação de que a dívida estava paga.

Como se vê pelo exposto, os recorrentes não concordam com o entendimento de que, ao arguirem a ilegitimidade da autora, praticaram em juízo acto incompatível com a presunção de cumprimento. Mais alegam, contra a decisão, que não confessaram a dívida, pois foram peremptórios na afirmação de que ela estava paga.

Estas alegações não procedem contra a sentença.

Vejamos, em primeiro lugar, a razão pela qual não procede a alegação de que a arguição de ilegitimidade da autora não configura acto incompatível com a presunção de cumprimento.

A ré e o chamado sustentaram a ilegitimidade da autora com base na alegação de que a execução dos trabalhos cujo preço estava a ser reclamado na presente acção não havia sido contratada com a autora. Com esta alegação, contradisseram expressamente os seguintes factos articulados pela autora na petição: 1.º) que no exercício da sua actividade comercial a autora celebrou com a ré contrato de empreitada; 2.º) que através daquele contrato foi adjudicado à ré o fornecimento e aplicação de instalação eléctrica e de telecomunicações, de rede de águas e esgotos, rede de gás, pré-instalação de ar condicionado e de painéis solares, na moradia da requerida, sita na rua d (...) .

Visto que é na execução deste contrato de empreitada que a autora fez radicar o direito ao pagamento do preço, é bom de ver que, ao negarem a celebração de tal contrato com a autora, a ré e o chamado impugnaram os factos constitutivos do direito invocado por aquela. Impugnação que é repetida noutro passo das suas defesas, concretamente: a ré repetiu a impugnação no artigo 35.º da contestação, ao dizer que impugnava o alegado pela autora nos artigos 1.º a 17.º (inclusive) e 19.º a 28.º (inclusive); o chamado repetiu a impugnação no artigo 28.º ao dizer que era falso o alegado nos artigos 4.º a 17.º, 27.º, 24.º (no que se referia ao chamado) e 28.º da petição.

Socorrendo-nos das palavras de Calvão da Silva, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 138, n.º 3956 (Maio-Junho de 2009), página 268 “… impugnar os factos constitutivos do direito do credor, negando a sua existência, …, é recusar a existência da correspondente obrigação de cumprir, em contradição com a presunção de cumprimento: esta pressupõe a existência do dever de pagamento de uma dívida, presumindo-se o seu pagamento pelo decurso do prazo, atenta a normalidade de dívidas cumpridas em prazo breve sem passagem e/ou guarda de recibo de quitação”.

Pelo exposto, tem amparo nos factos e na lei (artigo 314.º do Código Civil) a decisão de considerar que a arguição de ilegitimidade da autora, alicerçada na alegação de que nem a ré nem o chamado celebraram com a autora o contrato de empreitada que serve de fundamento à acção, constituiu acto praticado em juízo incompatível com a presunção de cumprimento em que se funda a prescrição de que trata a alínea b) do artigo 317.º do Código Civil.

Em segundo lugar, vejamos a razão pela qual não procede contra a sentença a alegação de que eles, recorrentes, não confessaram a dívida, uma vez que foram peremptórias na afirmação de que ela estava paga.

Antes de mais, deve dizer-se que é exacto que a ré e o chamado afirmaram, tanto nas respectivas defesas como nos depoimentos que prestaram em audiência, que pagaram o preço que, segundo eles, foi acordado para a execução dos trabalhos, e que é exacto que, quem se defende nestes termos, não reconhece a dívida que lhe está a ser exigida.

Sucede que, ao alegarem no sentido acima exposto, os recorrentes não só ignoram a razão que levou a sentença a entender que os mesmos não estavam em condições de beneficiar da prescrição prevista na alínea b) do artigo 317.º do CC [prática em juízo de actos incompatíveis com a presunção de cumprimento em que se funda a prescrição], como argumentam como se a presunção de cumprimento pudesse ser ilidida pelo credor apenas através de declaração do devedor a reconhecer que a dívida ainda não estava paga.

Este argumento não tem amparo na lei como o atesta o artigo 314.º do Código Civil, ao considerar confessada a dívida (confissão tácita) se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar actos incompatíveis com a presunção.

Observe-se que, apesar de o artigo 314.º falar em “considerar-se confessada a dívida”, o efeito jurídico da confissão nele prevista não é o reconhecimento da dívida pelo devedor ou o reconhecimento dos factos constitutivos do direito invocado pelo credor. O efeito é o previsto no n.º 1 do artigo 313.º do Código Civil: considera-se ilidida a presunção de cumprimento pelo decurso do prazo. Deste modo, o artigo 314.º deve ser lido no seguinte sentido: “A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo é ilidida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar actos incompatíveis com a presunção de cumprimento” [a favor desta interpretação do artigo 314.º do Código Civil cita-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3-12-2015 proferido no processo n.º 167409/14.1YIPRT, publicado em www.dgsi.pt].

Como se escreveu na sentença, ilidida a presunção de cumprimento, era à ré e à chamada que cabia o ónus de provar o cumprimento que alegaram como meio de defesa, visto o disposto no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, na parte em que dispõe que “a prova dos factos extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.

Uma vez que a ré e o chamado não cumpriram tal ónus, como o atesta a decisão de julgar não provado que, “por conta do preço dos trabalhos, a ré e o chamado entregaram ao gerente da autora a quantia de 5 000 em numerário”, cabia à sentença decidir, como decidiu, contra as partes oneradas com a prova do cumprimento (artigo 414.º do CPC).    

Cabe dizer, por fim, o seguinte sobre a pretensão da recorrida no sentido de a ré e o chamado serem condenados no pagamento da dívida, acrescida de IVA.

Dado que a sentença absolveu os réus do pagamento do IVA e que contra tal segmento da sentença não foi interposto recurso, o mesmo transitou em julgado (artigo 628.º do CPC). Considerando que, nos termos do n.º 5 do artigo 635.º do CPC, os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, está vedado a este tribunal deferir a pretensão da recorrida.      

Decisão:

Julgam-se improcedentes os recursos de apelação e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Considerando que os recorrentes decaíram nos recursos, condenam-se os mesmos no pagamento das custas (encargos e custas de parte), ao abrigo do n.º 1 e n.º 2 do artigo 527.º do CPC.

Coimbra,  23 de Outubro de 2018.

Emídio Santos ( Relator)

Catarina Gonçalves

António Magalhães