Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
377/19.4T9CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CRIME CONTINUADO
ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDENAÇÃO ANTERIOR
TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
FACTOS POSTERIORES
Data do Acordão: 03/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 30.º, N.º 2, DO CP; ART. 105.º E 107.º DO RGIT
Sumário: I – A diminuição considerável da culpa exigida pelo artigo 30.º, n.º 2, do CP, pressupõe uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente.

II – Tal não ocorre caso o agente tenha sido advertido, durante a repetição dos factos, por algum órgão do Estado, porquanto essa advertência, revelando que aquele não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica, antes evidencia um factor agravante na culpa relativa às condutas posteriores ao referido acto de censura.

III – Perante uma sentença condenatória anterior do agente pela prática de um crime continuado – em concreto, um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social –, o momento temporal a considerar para a inversão do sentido de culpa do agente, de uma diminuição considerável para a sua agravação, só pode ser o do trânsito em julgado daquela decisão.

IV – Desta forma, integram a continuação criminosa anteriormente julgada as condutas praticadas pelo agente até à data do trânsito em julgado da respectiva decisão condenatória; a partir desse marco temporal, ocorrendo uma quebra na verificação do requisito “diminuição considerável da culpa”, surge autonomizado um novo crime continuado.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

1. Por sentença datada de 12 de fevereiro de 2020, proferido pelo Juízo Local Criminal da Covilhã, Comarca de Castelo Branco, no processo comum singular n.º 377/19.4T9CVL, foi decidido:

- Manter a pena aplicada no processo n.º 459/15.1T9CVL que correu termos por esta Comarca de Castelo Branco e este Juízo Local Criminal da Covilhã, ao arguido J, pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30.º, n.º 2 do CP e 107.º e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 do RGIT, na pena de um ano de prisão substituída por 365 dias de multa, à taxa diária de 7 euros.

Condenar a arguida “V., LDA.”, como responsável penal por um crime de abuso de confiança, sob a forma continuada, p. e p. pelo arts. 7.º, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.º 1 do RGIT e pelo art. 30.º, n.º 2 do CP, na pena de 500 dias de multa, à taxa diária de €20,00, o que perfaz a quantia global de €10.000,00.

2. Inconformados com a decisão, dela recorrera o Ministério Público e a arguida “V., Lda”, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte relevante):

- O Ministério Público:

I. (…)

II. O Ministério Público discorda do entendimento propugnado pelo Tribunal a quo relativamente ao facto de terem sido englobados na noção de crime continuado, nos termos dos artigos 30.º, n.º 2, e 79.º, n.º 2, ambos do Código Penal, os factos praticados após o trânsito em julgado da primeira decisão condenatória.

III. Nos presentes autos encontram-se em apreciação factos ocorridos de janeiro a maio de 2014, novembro de 2014 a maio de 2015, julho de 2015, novembro de 2015, janeiro de 2016 a abril de 2016 e agosto de 2016 a outubro de 2018, enquanto que no processo 459/15.1T9CVL foram julgados factos praticados entre maio de 2011 a dezembro de 2013.

IV. São requisitos da noção de crime continuado: a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico; que essa realização seja executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

V. Não é o facto de terem decorrido mais de sete anos desde o início da conduta até ao respetivo fim que constitui um óbice à aplicação do disposto no artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal.

VI. No entanto, como se pode afirmar que a situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente, e que in casu se considerou que residia no facto de o mesmo não ter sido detetado, se verifica e se mantém após o trânsito em julgado da primeira sentença condenatória?

VII. O disposto nos artigos 30.º, n.º 2, e 79.º, n.º 2, ambos do Código Penal, só abrange as condutas conhecidas supervenientemente em relação ao trânsito em julgado de decisão condenatória, mas ocorridas até tal data, e já não todas as condutas ocorridas após o trânsito em julgado.

VIII. Estando ciente da condenação de que fora alvo, o arguido, de forma livre, deliberada e consciente, optou por prevaricar novamente, provocando uma rutura no seu desígnio criminoso inicial e demonstrando, de forma nítida e clara, não ter interiorizado o desvalor objetivo da sua conduta, persistindo na prática delituosa.

IX. Nesse sentido, o Tribunal a quo violou as disposições constantes nos artigos 30.º, n.º 2, e 79.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

X. O arguido deve, assim, ser condenado pela prática de um crime de um novo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, do Código Penal, e 107.º e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 do RGIT, relativamente aos factos ocorridos entre janeiro de 2017 e outubro de 2018.

- A arguida “V., Lda.”:

(…)

2ª – Na determinação da medida concreta da pena deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente o grau de ilicitude, bem como outros fatores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, e, ainda, à sua conduta anterior e posterior ao crime, nunca olvidando, contudo, que a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

3ª – In casu, o tribunal “a quo” valorou preferencialmente e de forma elevadíssima as exigências de prevenção geral, em detrimento das necessidades de prevenção especial, pelo que se entende que, no que à operação de determinação da medida concreta da pena concerne, a pena de multa aplicada à arguida é manifestamente excessiva e desproporcionada, face à moldura penal em questão, ultrapassando claramente os limites definidos por lei, nomeadamente a medida da culpa.

4ª – Pese embora não olvidemos que a pena aplicada tenha de ser capaz de garantir a revalidação da norma junto dos cidadãos (prevenção geral), já no que se refere às exigências de prevenção especiais estas não se mostram em nada acentuadas no caso dos autos, quer em função da confissão livre, integral e sem reservas dos factos feita em audiência de julgamento pelo arguido J., gerente e representante legal da recorrente, quer, sobretudo, pelo facto de esta não ter quaisquer antecedentes criminais pela prática deste tipo de ilícito, pelo que, tendo ainda em conta a natureza da responsabilidade da sociedade arguida, entende-se que a pena decretada é desajustada, por excessiva, ultrapassando a medida da culpa, não cumprindo, por isso, deste modo, os critérios e finalidades da punição.

5ª - Considerando que, no caso concreto, o limite mínimo da pena aplicável às pessoas coletivas é de 20 dias e o limite máximo é de 720 dias, parece-nos patente que o tribunal “a quo”, no seu doseamento, ao aplicar uma pena de 500 dias de multa à aqui recorrente, ponderou indevidamente as circunstâncias apuradas e as aludidas finalidades das penas, porquanto se é certo que a prevenção geral impõe um relevante distanciamento do limite mínimo previsto da lei, este distanciamento, à luz das exigências de prevenção especial, mostra-se, in casu, manifestamente excessivo.

6ª - Sendo médio o grau de ilicitude e não sendo acentuadas as exigências de prevenção especial, atendendo, nomeadamente, à ausência de antecedentes criminais da arguida, entende-se adequado fixar-se a pena de multa abaixo do ponto médio da moldura penal abstrata.

7ª – Em relação ao segundo momento para a determinação da medida concreta da pena de multa, isto é, à fixação do quantitativo diário entende-se igualmente que a quantia de € 20,00 determinada pela 1ª instância é injusta e desadequada, em conformidade com o disposto no artigo 15º, nº 1, do RGIT, que estabelece que o montante diário da multa deve ser fixado entre € 5,00 e € 500,00 para as pessoas coletivas ou entidades equiparadas em função da situação socioeconómica do condenado e dos seus encargos.

8ª – Atendendo aos factos provados respeitantes à situação financeira da recorrente, isto é, aos rendimentos mensais auferidos (€ 8.000,00) e deduzidos os respetivos custos de funcionamento, não restam dúvidas que uma pena de multa fixada no valor global de € 10.000,00, por mais esforços que se canalizem, não é passível de cumprimento, e, de todo o modo, retirará à recorrente total capacidade financeira para fazer face ao cumprimento das suas obrigações e compromissos assumidos.

9ª – A situação económica da arguida retratada na sentença recorrida impõe que seja reduzido o montante diário ali fixado, o qual, para além de já constituir um sacrifício real para aquela – como assim a lei o exige – repercute-se, no entanto, de forma descomedida e intolerável, na sua capacidade financeira, retirando-lhe, assim, as disponibilidades indispensáveis à sua atividade.

10ª – Deste modo, tem-se por injusto e desadequado o montante diário de multa fixado pela Mmª Juiz do tribunal “a quo” e aplicado à sociedade V., Lda., devendo o mesmo situar-se no mínimo, em virtude da situação financeira difícil que a mesma atravessa e que se encontra provada nos autos.

11ª - Feita uma avaliação global da medida da pena aplicada nos autos à recorrente de 500 dias de multa, à taxa diária de € 20,00, perfazendo a quantia global de € 10.000,00, deverá a mesma ser alterada, por afrontar os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas, e, ainda, por não se afigurar adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e, acima de tudo, por ultrapassar, de forma clara, a medida da culpa da recorrente.

12ª – A douta sentença recorrida viola, designadamente, o disposto nos artigos 12º, nºs 2 e 3, 15º, 105º, nº 1, e 107º, nº 1, todos do RGIT, e os artigos 40º, nº 2, 71º, nº 2, e 72º, nº 1, do Código Penal, pelo que deve ser revogada no que concerne à determinação da medida da pena aplicada à recorrente, não devendo a mesma ultrapassar 300 dias de multa à taxa diária de €5,00, como é, aliás, de inteira JUSTIÇA!     

3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao recurso da arguida “V., Lda.”, pugnando pelo seu não provimento.

O arguido J. não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso da arguida, e da procedência do recurso instaurado pelo Ministério Público.  

II. SENTENÇA RECORRIDA

(transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso)

«(…) 2.1. FACTOS PROVADOS:

Da matéria relevante para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida “V., Lda.” encontra-se registada na Conservatória de Registo Comercial da Covilhã, tendo como objeto social a terraplanagem, construção civil e obras públicas.
2. Desde a constituição da firma arguida, em 26.04.1994, foi o arguido J. quem assumiu e assume até hoje, a gerência de facto e de direito da sociedade arguida.
3. O arguido era, pois, o único responsável pela administração dessa empresa e gestão dos pagamentos aos credores, designadamente, pela entrega das contribuições devidas à Segurança Social.
4. Enquanto gerente dessa unidade empresarial, no período contributivo compreendido entre os meses de janeiro a maio de 2014, novembro de 2014 a maio de 2015, julho de 2015, novembro de 2015, janeiro de 2016 a abril de 2016 e agosto de 2016 a outubro de 2018, o arguido procedeu, mensalmente, ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores, entregando as respetivas folhas de remuneração mensal na Segurança Social.
5. Para além disso, o arguido, como gerente, também recebia salário, logo também constava das folhas de remunerações mensais.
6. No desenvolvimento da sua atividade de gerente da referida empresa, o arguido procedeu nos salários pagos ao desconto das quantias legalmente devidas à Segurança Social. 
7. Estava o arguido obrigado a entregar mensalmente nos Cofres da Segurança Social os valores retidos nos salários efetivamente pagos no âmbito dessa empresa até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que as contribuições dissessem respeito.
8. Porém, o arguido, em nome próprio e na qualidade de gerente da supra identificada empresa, não entregou as contribuições devidas à Segurança Social relativas aos períodos contributivos referidos em 4. e que totalizam o montante global de € 62.107,66 (sessenta e dois mil cento e sete euros e sessenta e seis cêntimos).
9. O arguido mais formulou, no início do ano de 2014, o propósito de se apoderar das contribuições que viesse a reter, fazendo-o, desde logo, no mês de janeiro de 2014.
10. E como tal situação não foi logo detetada pelos serviços competentes passou em cada um dos meses seguintes, de forma contínua e interpolada - até ao mês de outubro de 2018 – a formular idêntico propósito, movido pela facilidade com que lograva concretizar os seus intentos, sendo certo que a sua atuação foi facilitada pelo facto de não ser fiscalizado pela Segurança Social.
11. Nos meses indicados infra, a sociedade arguida e o arguido retiveram nos salários pagos os montantes ora indicados e que deveriam ter sido entregues ao Instituto da Segurança Social: (…).
12. O arguido e a arguida foram notificados em 22.04.2019 para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento do valor acima indicado correspondente às contribuições retidas e não entregues acrescida dos respetivos juros de mora, conforme previsto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, tendo ainda sido advertidos que o referido pagamento no aludido prazo determinaria a extinção do procedimento criminal.
13. Não obstante tal notificação, não procederam ao pagamento de qualquer montante do aludido valor nos 30 dias seguintes à mesma, nem até à presente data.
14. O arguido, ao não entregar as cotizações devidas à Segurança Social, locupletou-se, em proveito próprio com a referida importância, à custa da Segurança Social, integrando-a no giro económico normal da empresa de que era e é gerente.
15. O arguido tinha perfeito conhecimento que a importância acima indicada não lhe pertencia e que, não procedendo às respetivas entregas na Segurança Social, nos prazos legais, estava a apropriar-se das contribuições retidas nas remunerações pagas aos trabalhadores, fazendo-as suas, no período temporal acima indicado, o que quis.
16. Com efeito, diluíram-se nos meios financeiros da referida empresa quantias que, por força do pagamento dos salários, pertenciam à Segurança Social, quantias essas que nunca pertenceram ao arguido e que, por tal facto, delas não podia dispor como suas.
17. Consigna-se que a tais montantes devidos à Segurança Social e retidos acrescem juros de mora, juros estes que também não se encontram pagos.
18. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a entrega das contribuições à Segurança Social configura uma obrigação legal que nasce no ato do pagamento das remunerações, sendo o desconto uma mera operação contabilística que visa, tão só, determinar o montante que as entidades patronais terão de entregar no mês seguinte à Segurança Social.
19. Porém, e não obstante isso, nos períodos temporais mencionados, reteve e apoderou-se das aludidas contribuições.
20. Ao agir conforme descrito, o arguido fê-lo em nome e no interesse da firma arguida, na qualidade de gerente e representante legal, e com perfeito conhecimento que causava, como causou, prejuízos ao Estado Português – Segurança Social, no valor global de €62.107,66 (sessenta e dois mil cento e sete euros e sessenta e seis cêntimos).
21. O arguido sabia que essa conduta era proibida e penalmente punida, circunstância que não o inibiu de agir como referido, o que quis e logrou realizar.
22. Correu termos pelo Juízo local Criminal da Covilhã o processo n.º 459/15.1T9CVL, no qual o arguido estava também acusado da prática dum crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, por não ter entregue à Segurança Social as cotizações referentes aos vencimentos dos trabalhadores da empresa referentes aos meses de maio de 2011 a dezembro de 2013.
23. Nesse processo foi proferida sentença, já transitada em julgado, pela qual foi o arguido condenado pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, na pena de um ano de prisão substituída por 365 dias de multa, à taxa diária de 7 euros.
24. A sociedade "V., Lda." debateu-se nos últimos anos com dificuldades financeiras decorrentes da crise que se instalou na generalidade dos sectores da economia, que se traduziram numa diminuição do volume de negócios, redução das margens de lucro, dificuldades financeiras e de tesouraria.
25. Tentou a arguida recorrer ao Plano Especial de Revitalização, tendo o respetivo processo corrido termos pelo tribunal de comércio da Comarca de Castelo Branco sob o n.º 253/14.7TBCVL.
26. O plano de revitalização apresentado pela empresa arguida no âmbito do mencionado PER não logrou aprovação dos seus credores.
27. A sociedade arguida foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 277/14.4T8FND do Tribunal de Comércio da Comarca de Castelo Branco por sentença proferida em 23.12.2014.
28. Nesse processo, a sociedade arguida apresentou um plano de insolvência, com vista à recuperação, que obteve a aprovação dos seus credores.
29. Os factos pelos quais o arguido J. foi condenado no processo comum singular n.º 459/15.1 T9CVL e aqueles por que está acusado nestes autos, inserem-se no mesmo quadro de solicitação exterior – não ter sido detetado pela Segurança Social -, consubstanciando, assim, uma reiteração de condutas, persistente e homogénea.
30. O arguido, além de gerente da sociedade arguida, é, há 2/3 anos, motorista noutra empresa, auferindo o salário mínimo nacional.
31. A sociedade arguida, apesar de estar insolvente, tendo, como vimos, um plano de insolvência, consegue auferir cerca de 8.000,00€ por mês.
32. O arguido vive com a esposa em casa arrendada, sendo a renda de 300,00€ mensais.
33. A esposa do arguido é funcionária na sociedade arguida, auferindo o salário mínimo nacional.
34. A sociedade arguida tem cerca de 8 trabalhadores que auferem, cada um, entre 800,00€ a 1.000,00€.
35. O arguido tem o 4.º ano de escolaridade.
36. O arguido já foi condenado no processo n.º 459/15.1T9CVL, que correu termos pelo Juízo Local Criminal da Covilhã, por sentença proferida em 26.10.2016 e transitada em julgado em 07.12.2016, pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, entre maio de 2011 a dezembro de 2013, na pena de um ano de prisão substituída por 365 dias de multa, à taxa diária de 7 euros.
37. A sociedade arguida não tem antecedentes criminais registados.

(…)

3.1. DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DA CONDUTA DOS ARGUIDOS:

(…)

Em face da factualidade dada por provada, afigura-se-nos que estão preenchidos, no caso em apreço, todos os elementos típicos objetivos do ilícito criminal em causa, tanto em relação ao arguido pessoa singular, como à sociedade pessoa coletiva.

Com efeito, provado ficou que o arguido, enquanto gerente de facto e de direito da sociedade arguida, procedeu, mensalmente, ao pagamento dos salários dos trabalhadores, entre os meses de janeiro a maio de 2014, novembro de 2014 a maio de 2015, julho de 2015, novembro de 2015, janeiro de 2016 a abril de 2016 e agosto de 2016 a outubro de 2018, entregando as respetivas folhas de remuneração mensal na Segurança Social, com retenção das contribuições devidas à mesma, que foram deduzidas do valor das remunerações pagas aos trabalhadores, in casu, no total de €62.107,66 (sessenta e dois mil cento e sete euros e sessenta e seis cêntimos).

Também se provou que todos estes montantes referentes a contribuições à SS foram retidos e recebidos pelo arguido nos períodos supra referidos em que foi gerente da sociedade arguida e que o arguido, em nome próprio e na qualidade de gerente da supra identificada empresa, não deu a esses montantes o destino devido.

Com efeito, o arguido não entregou tais montantes no Instituto de SS de Castelo Branco, como podia e deveria, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que as contribuições respeitavam, não regularizando tal pagamento nem nos noventa dias volvidos sobre essas datas, nem trinta dias após a notificação de 22.04.2019, nem em qualquer outro momento até ao presente.

Assim, objetivamente, resulta provado o crime em apreço, tanto em relação ao arguido, como à arguida.

Saliente-se que a lei, para o crime em apreço, não exige que exista uma apropriação em proveito próprio por parte do arguido, mas sim que exista uma apropriação de tais montantes, de molde a dar-lhes um destino diferente daquele a que se destinam.

De facto, para o preenchimento do tipo, é indiferente o fim a que as entidades empregadoras ou os gerentes dão aos respetivos montantes.

Quanto ao elemento subjetivo, resultou provado que, no período supra referido (durante quatro anos), o arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, em nome e no interesse da sociedade arguida, na qualidade de gerente e representante legal, lesando patrimonialmente o Instituto da SS no montante supra referido, apropriando-se dos valores mencionados e integrando-os no giro económico da sociedade arguida, como era seu propósito, quando sabia que tais montantes não lhe pertenciam e que agiu sempre da mesma forma e foi repetindo a sua conduta enquanto foi conseguindo, sem obstáculos, apoderar-se das quantias pertencentes à Segurança Social, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, pelo que se mostra também preenchido tal elemento subjetivo, na modalidade de dolo direto – cfr. art. 14.º, n.º 1 do CP. (…).

Resultou também provado que, no dia 22.04.2019, o arguido e a sociedade arguida foram notificados para proceder ao pagamento, no prazo de trinta dias, do montante em dívida referente às contribuições para a Segurança Social retidas e não entregues, bem como dos respetivos juros de mora que entretanto se venceram até integral pagamento, sendo advertidos de que esse pagamento extinguiria o procedimento criminal e conduziria ao arquivamento deste processo e não procederam os arguidos ao pagamento de nenhum dos montantes acima referidos, nem dentro dos 30 dias subsequentes à notificação, nem posteriormente, pelo que se encontram preenchidas as condições de punibilidade previstas no art. 105.º, n.º 4, als. a) e b) do RGIT.

Importa também acrescentar que se imputa apenas aos arguidos a prática de um ilícito criminal na forma continuada já que, apesar de existir a reiteração do dolo inicial do arguido relativamente a cada uma das prestações retidas, a atuação do mesmo, enquanto gerente da sociedade arguida, pelo mencionado período que durou mais de 4 anos, foi homogénea, ou seja, praticada sempre do mesmo modo, violando o mesmo bem jurídico e inserindo-se no quadro de uma mesma solicitação exterior, que, no caso vertente, se reconduziu à ausência de fiscalização pela Segurança Social, o que, para este efeito da continuidade criminosa, diminui a sua culpabilidade - cfr. art. 30.º, n.º 2 do CP - sem que, no entanto, de forma alguma, exclua a culpa ou a ilicitude do arguido, da mesma forma que, evidentemente, “preferir pagar aos trabalhadores”, como disse o arguido, não constitui qualquer causa de exclusão de ilicitude ou da culpa, sendo, como se disse, para o preenchimento do tipo, indiferente o fim a que as entidades empregadoras ou os gerentes dão aos respetivos montantes pertencentes ao Estado.

(…).

Incorreu, pois, o arguido em responsabilidade jurídico-penal pela prática, na forma continuada, de um crime abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos arts. 30.º, n.º 2 do CP, 105.º, n.º 1 e 4, als. a) e b) e 107.º, n.º 1 do RGIT.

Ora, tendo resultado provado que o arguido agiu em nome e no interesse da sociedade arguida, na qualidade de gerente e seu representante legal, a sociedade arguida é responsável penal pelo crime praticado pelo arguido, nos termos dos arts. 7.º, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.º 1 do RGIT.


*

3.2. DA ESCOLHA E DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA A APLICAR AOS ARGUIDOS:

(…) Ora, em termos abstratos, o crime de abuso de confiança contra a SS, p. e p. pelo art. 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 1 e 4, als. a) e b), por referência ainda ao art. 30.º, n.º 2 do CP, é punido com pena de prisão de um mês (cfr. art. 41.º, n.º 1 do CP) até 3 anos ou com pena de multa de dez (cfr. art. 47.º, n.º 1 do CP) até 360 dias.

(…)

Contudo, in casu, antes de procedermos a este raciocínio, no que diz respeito ao arguido J., impõe-se apreciar a questão suscitada pela defesa em julgamento e referida no Relatório deste Sentença, ou seja, importa apurar se, em relação ao arguido J. os factos aqui em apreço são, ou não, uma continuação criminosa dos factos versados no processo n.º 459/15.1T9CVL que correu termos por esta Comarca de Castelo Branco e por este Juízo local Criminal da Covilhã, onde já foi proferida sentença, já transitada em julgado.

Quanto à sociedade arguida, nada cumpre, por ora, apreciar uma vez que, como é manifesto da mera leitura da acusação e da sentença juntas pela defesa concernentes ao processo n.º 459/15.1T9CVL, nesse processo, não existiu nem acusação, nem julgamento, nem sentença, nem pena em relação à sociedade arguida sendo a primeira vez que se suscitam factos quanto à mesma.

Vejamos então:

Conforme decorre do aludido processo n.º 459/15.1T9CVL, o arguido foi condenado, numa pena de um ano de prisão substituída por 365 dias de multa, à taxa diária de 7 euros, com referência a factos cometidos no período compreendido entre Maio de 2011 a Dezembro de 2013, estando os factos dos presentes autos, como alegou a defesa, em prosseguimento/continuação da conduta aí punida de abuso de confiança contra a Segurança Social, porquanto encontramo-nos a analisar os factos imediatamente posteriores a Dezembro de 2013, mais concretamente, de janeiro a maio de 2014, novembro de 2014 a maio de 2015, julho de 2015, novembro de 2015, janeiro de 2016 a abril de 2016 e agosto de 2016 a outubro de 2018.

Ademais, também como alegado pela defesa, resultou demonstrado que os factos pelos quais o arguido J. foi condenado no processo comum singular n.º 459/15.1T9CVL e aqueles por que está acusado nestes autos, inserem-se no mesmo quadro de solicitação exterior – não ter sido detetado pela Segurança Social -, consubstanciando, assim, uma reiteração de condutas, persistente e homogénea.

Dispõe o art. 30.º, n.º 2 do CP: “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.” – negritos nossos.

Assim, efetivamente, os factos pelos quais o arguido foi julgado e condenado no aludido processo e aqueles por que foi julgado nestes autos consubstanciam, pois, a prática de um único crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada.  Sobre a punição do crime continuado dispõe o art. 79.º do CP: “1 - O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta m mais grave que integra a continuação. 2 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior.” – negrito e sublinhado nosso.

Como afirma PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Código Penal, 2ª edição, p. 290: “A Lei n.º 59/07 visou consagrar a tese segundo a qual a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a pertença do facto novo à continuação criminosa anteriormente julgada. Isto é, sempre que se descubra novos factos que se possam encontrar em continuação criminosa com outros já julgados, deve proceder-se a novo julgamento, com vista a apurar se o facto novo integra efetivamente a continuação e se é mais grave ou menos grave do que os outros já julgados.” – negrito nosso.

Continua o mesmo autor: “Se o facto novo efetivamente integrar a continuação e for mais grave, o tribunal do segundo julgamento aplica a pena a este crime de acordo com a respetiva moldura penal, descontando-se na pena concreta a parte da pena já cumprida.  Se o facto novo for menos grave, o tribunal do segundo julgamento declara a acusação procedente, isto é, que o facto novo dado como provado integra a continuação criminosa, e, nos termos do artº 79º, nº 2, do Código Penal, a contrario, mantém a pena da sentença anterior. Se o facto novo não integrar a continuação criminosa, o tribunal do segundo julgamento fixa a pena que lhe for adequada, podendo considerar a anterior condenação apenas na medida concreta da pena."

A jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça tinha abandonado a posição de Eduardo Correia, nos termos da qual, nenhuma das condutas anteriores à condenação transitada em julgado, descobertas após esta, e integradas na continuação, poderiam ser tidas em conta (vide Acórdão do STJ, de 15/3/2006, in www.dgsi.pt).

(…).

Ao contrário da posição adotada por Eduardo Correia, a jurisprudência maioritária defendia ser possível a ultrapassagem do suposto limite derivado do caso julgado, o qual, no caso de crime continuado, se assumiria sob a condição rebus sic stantibus, vide Acórdão do STJ, de 08.03.2006, in www.dgsi.pt.

Quanto à questão constitucional, o art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, dispõe que “ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática do mesmo crime”, no entanto, quando se trata de crime continuado, atenta a sua natureza jurídica, poder-se-á considerar desfeita a identidade do objeto do processo, não só em face do acrescentamento de condutas que, isoladas, seriam, cada uma delas, um crime, bem como, se uma das novas condutas, considerada em si, representasse um crime punido mais severamente.

Pelo que, anteriormente à alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro, ao art. 79.º do Código Penal, passou a existir uma divergência jurisprudencial, entre a posição maioritária, que entendia que deviam ser consideradas as condutas novas, só se entre elas houvesse alguma que assumisse maior gravidade (neste sentido, Acórdãos do STJ, de 10.04.2002, de 03.03.2004, de 15.03.2006, e de 31.01.2008), e a outra que entendia que as condutas novas sempre deveriam ser tidas em conta, por o seu número acrescido dever ter reflexo na punição (neste sentido, Acórdãos do STJ, de 04.05.1983, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22.11.2004, e do Tribunal da Relação do Porto, de 03.05.2006).   Tal querela já se encontra dirimida atenta a posição jurisprudencial maioritária ter obtido consagração legislativa, porquanto o acrescentamento do n.º 2 do art. 79.º do Código Penal afastou as objeções que antes ainda se podiam levantar à consideração de toda e qualquer conduta nova, objeções que se baseariam no respeito pelo caso julgado ou pelo princípio ne bis in idem.

Com a nova introdução legislativa, ao determinar que “a pena que lhe for aplicável substitui a anterior”, a lei veio consagrar acolhimento de desrespeito pelo já julgado, mas apenas e tão só no caso de haver conduta mais grave punida que se tenha de novo descoberto de novo, bem como acautelar o não despojamento da justiça material, que ficaria desfalcada se não se tivesse em conta todos os atos praticados, pelo agente da mesma continuação.

Não podemos deixar de olvidar que a alteração introduzida ao art. 79.º do Código Penal, com o acrescentamento do n.º 2, alude especificamente para o repensar de uma nova pena que substitua a anterior, que apenas é possível “se (...) for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação”, desinteressando-se de agravar a responsabilidade do agente, apenas em virtude de uma reiteração.

Por condutas mais graves, temos de considerar que são aquelas que integrem um tipo legal semelhante ao da condenação transitada, e que proteja essencialmente o mesmo bem jurídico, mas com uma moldura penal mais grave.

“Na verdade, as condutas punidas pelo mesmo tipo legal, integrantes da continuação, que simplesmente revelem, no caso, um grau de ilicitude maior, ver-se-ão, nesta linha, consumidas pela condenação já julgada. É que a expressão "conduta mais grave", do nº 2, do art.º 79.º do Código Penal, é também empregue no nº 1 do preceito, e aí não oferece dúvida que a gravidade da conduta se afere pela pena aplicável, e portanto, pela moldura abstrata do crime” - vide Acórdão do STJ, de 18.02.2010, Relator Souto de Moura, in www.dgsi.p.

Ora, independentemente da questão de saber qual a conduta mais grave de todas as que integram a continuação criminosa, é, desde logo, manifesto que a conduta dos presentes não é punível com uma pena (moldura penal) mais grave do que aquela que foi aplicada na sentença anterior transitada em julgado por factos integrantes dessa continuação (processo n.º 459/15.1T9CVL que correu termos por esta Comarca de Castelo Branco e este Juízo Local Criminal), pois que, como supra referido, a conduta dos presentes integra a prática do mesmo crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos arts. 105.º, n.º 1 e 4, als. a) e b) e 107.º, n.º 1 do RGIT, pelo qual o arguido pessoa singular foi condenado, tendo, portanto, a mesma moldura penal.

Assim sendo, não há lugar à aplicação de nova pena, em relação ao arguido, mantendo-se a anteriormente aplicada no aludido processo.

Mesmo que se entendesse que a gravidade se afere pelo valor global das quantias em apreciação em cada um dos processos ou pela conduta mais grave que integra a continuação, se chegaria ao mesmo resultado, ou seja, à não substituição da pena anterior. Na verdade, no processo n.º 459/15.1T9CVL, o arguido descontou, recebeu e não entregou ao Estado as quotizações devidas pela sociedade arguida no valor total de 92.349,48€, enquanto que, nestes autos, o prejuízo do Estado foi de €62.107,66.

Atento a todo o supra exposto, nos presentes autos, eu, enquanto Juíza do Tribunal do segundo julgamento, necessariamente tenho de declarar a acusação procedente e que os factos novos dados como provados nos presentes autos integram a continuação criminosa pela prática do crime pelo qual o arguido foi condenado no processo n.º 459/15.1T9CVL que correu termos por esta Comarca de Castelo Branco e este Juízo Local Criminal da Covilhã e, em consequência, nos termos do art. 79.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, deve manter-se a pena da sentença proferida nesses autos, ou seja, de um ano de prisão substituída por 365 dias de multa, à taxa diária de 7 euros.


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Já relativamente à sociedade arguida, que, como vimos, até hoje, nunca foi julgada nem condenada, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 105.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, 12.º, n.ºs 2 e 3 e 15.º, n.º 1 do RGIT, a pena de multa abstratamente aplicável pelos factos que se deram como provados é de 20 dias a 720 dias, sendo o quantitativo diário entre cinco euros a cinco mil euros.

Ora, como decorre dos ensinamentos de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 127, para a determinação da medida concreta da pena de multa, em face do modelo instituído pelo legislador, dito “modelo escandinavo”, serão necessárias duas operações distintas e autonomizadas.

Num primeiro momento, procede-se, dentro dos limites legalmente definidos, à determinação da medida dos dias de multa, em função da culpa da arguida e das exigências de prevenção reclamadas pela sociedade, nos termos do art. 71.º, n.º 1 ex vi art. 47.º, n.º 1, primeira parte do CP ex vi art. 3.º n.º 1, al. a) do RGIT.

Acresce que de acordo com o disposto no art. 71.º, n.º 2 do CP, aplicável ex vi art. 3.º n.º 1, al. a) do RGIT, o Tribunal terá de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra a arguida.

Há ainda que ter em consideração o disposto no art. 79.º do CP, aplicável ex vi art. 3.º n.º 1, al. a) do RGIT, uma vez que está em causa um crime continuado que deve ser punido com a conduta mais grave que integra a continuação, o que, no caso, corresponde à não entrega à Segurança Social do valor de € 62.107,66 entre janeiro a maio de 2014, novembro de 2014 a maio de 2015, julho de 2015, novembro de 2015, janeiro de 2016 a abril de 2016 e agosto de 2016 a outubro de 2018.

 Assim, em relação aos factos praticados, há que ponderar os seguintes fatores:

Contra a arguida depõem:
- o grau de ilicitude dos factos que se afigura mediano, em face do modo de atuação do arguido, seu gerente e representante legal que agiu em seu nome e interesse, uma vez que temos de atender ao lapso temporal em que se reiterou a conduta criminosa (mais de quatro anos), assim como ao valor global do prejuízo causado (€ 62.107,66);
- a intensidade do dolo do arguido, seu gerente e representante legal que agiu em seu nome e interesse, que reveste a forma de dolo direto, constituindo o grau máximo de censura da conduta adotada.

A favor da arguida depõem:
- a conduta anterior ao facto: a arguida não regista antecedentes criminais;
- a conduta posterior ao facto: o arguido, seu representante legal. confessou livre, integralmente e sem reservas os factos.

Quanto às necessidades de prevenção geral positiva, as mesmas são elevadas em face da necessidade imperiosa de prevenir este tipo de condutas, cada vez mais frequentes e suscetíveis de defraudar o património do Estado, que a todos os cidadãos aproveita em última instância.

No que diz respeito às necessidades de prevenção especial, as mesmas são reduzidas atendendo à ausência de antecedentes criminais da arguida.

Em relação ao segundo momento para a determinação da medida concreta da pena de multa, isto é, à fixação do quantitativo diário, saliente-se que o mesmo é estabelecido entre 5,00€ e 5.000,00€, em função da situação socioeconómica da arguida e dos seus encargos, nos termos do disposto no art. 47.º, n.º 2 do CP e no art. 15.º, n.º 1 do RGIT.

Todavia, não se deve olvidar que o critério de determinação da taxa diária da multa não pode prescindir das finalidades que a pena visa prosseguir e alcançar (cfr. ac. TRC, de 02.03.99, proc. n.º 990/98).

Assim, a pena de multa tem de constituir um sacrifício real para a arguida sem, no entanto, lhe retirar as disponibilidades indispensáveis à sua atividade.

Com efeito, como afirma o TRC, em Ac. de 13.07.95, in CJ, XX, tomo 4, p. 48, a fixação do quantitativo diário da pena de multa, dentro dos limites legais, “não deve ser doseado por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade.”

Ora, tendo resultado provado que a sociedade arguida foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 277/14.4T8FND do Tribunal de Comércio da Comarca de Castelo Branco por sentença proferida em 23.12.2014, que a sociedade arguida apresentou um plano de insolvência, com vista à recuperação, que obteve a aprovação dos seus credores, que a sociedade arguida, apesar de estar insolvente, tendo, como vimos, um plano de insolvência, consegue auferir cerca de 8.000,00€ por mês e que tem cerca de 8 trabalhadores que auferem, cada um, entre 800,00€ a 1.000,00€, entende o Tribunal considerando os sobreditos fatores de prevenção geral, o facto do benefício ter revertido, em última análise, a seu favor, o montante em causa (€62.107,66), a circunstância da sociedade arguida estar insolvente mas ainda não estar encerrada e ter ainda cerca de 8 trabalhadores, entende-se por adequada e suficiente a pena de 500 dias de multa, à taxa diária de €20,00, o que perfaz a quantia global de €10.000,00. (…)»


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QUESTÕES A DECIDIR

O objeto dos recursos está limitado às conclusões apresentadas pelos recorrentes [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer  oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).

Assim, são as seguintes as questões a decidir:
a) Se os artigos 30.º, n.º 2, e 79.º, n.º 2, do Código Penal só abrangem as condutas conhecidas supervenientemente, exclusivamente até à data do trânsito em julgado de decisão condenatória, e já não todas as condutas ocorridas após essa data (recurso do Ministério Público);
b) Se a pena concreta aplicada à arguida sociedade é excessiva (recurso da arguida).


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IV. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS
1. Recurso do Ministério Público

Não coloca em causa a qualificação jurídica dos factos efetuada na sentença recorrida, nem a integração da conduta do arguido J. na continuação criminosa anteriormente conhecida e julgada no processo comum n.º 459/15.1T9CVL, que correu termos no Juízo local Criminal da Covilhã, no qual o arguido estava também acusado da prática dum crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, por não ter entregue à Segurança Social as cotizações referentes aos vencimentos dos trabalhadores da empresa referentes aos meses de maio de 2011 a dezembro de 2013.

O arguido foi julgado nesse processo (e não a sociedade arguida), tendo a sentença proferida transitado em julgado a 7.12.2016, conforme consta do facto provado em 36.

Na verdade, neste particular, concorda-se inteiramente com a doutrina expendida na sentença recorrida no tocante ao conhecimento superveniente de uma continuação criminosa: após larga discussão do tema e algumas decisões contraditórias, o legislador consagrou, na Lei n.º 59/2007, de 4.9, a tese que obteve vencimento no Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual “a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a pertença do facto novo à continuação criminosa anteriormente julgada. Isto é, sempre que se descubra novos factos que se possam encontrar em continuação criminosa com outros já julgados, deve proceder-se a novo julgamento, com vista a apurar se o facto novo integra efetivamente a continuação e se é mais grave ou menos grave que os outros já julgados” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Código Penal Anotado, 2ª ed., pág. 290).

Assim, a lei n.º 59/2007 procedeu à alteração do art. 79º do Código Penal, aditando o n.º 2 com a seguinte redação: “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior”, admitindo assim o conhecimento de uma conduta mais grave que integre a continuação criminosa, nos termos do art. 30º, n.º 2, do Código Penal, após o trânsito em julgado da sentença anterior (cf., p. ex, Ac. da Relação do Porto de 6.7.2011, proc. 5/04.2IDPRT, em www.dgsi,pt).

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, a alteração em causa é justificada da seguinte forma: “Ao nível sancionatório, prescreve-se que o conhecimento superveniente de novo crime que integre a continuação criminosa ou o concurso acarreta sempre a substituição da pena anterior, mesmo que já executada, depois de se ter procedido ao correspondente desconto, no caso de a nova pena única ser mais grave. Deste modo, assegura-se o máximo respeito pelo princípio ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29º da Constituição”.

Desta forma, uma vez descobertos novos factos que se possam integrar na situação de continuação criminosa anteriormente julgada, previamente impõe-se apurar se tais factos integram, efetivamente, tal continuação – ou seja, se se poderá efetuar o juízo de uma menor gravidade de culpa, que tornou menos exigível conduta distinta do agente, face à persistência de um idêntico quadro de solicitação externa e a realização de várias condutas essencialmente homogéneas que atinjam o mesmo bem jurídico (art. 30º, n.º 2, do Código Penal: “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”).

Em caso de resposta positiva a esta questão, terá de se aplicar a regra constante do n.º 2 do art. 79º do Código Penal, a saber, apurar se os factos conhecidos supervenientemente à condenação transitada em julgado são mais graves que os já julgados, e, em caso afirmativo, substituir a pena anterior por outra que lhe seja aplicada no novo julgamento

E foi precisamente este o caminho seguido na decisão recorrida, tendo concluído que não está em causa neste processo uma conduta do arguido mais grave que a julgada no processo 459/15.1T9CVL, razão pela qual manteve a pena anteriormente aplicada.

Nessa parte, o recorrente Ministério Público conforma-se com a decisão.

No entanto, defende que a continuação criminosa conhecida supervenientemente à sentença anterior se limita ao período temporal que decorreu até ao trânsito em julgado daquela decisão, e que os factos posteriores a tal data – a saber, 7.12.2016 – consubstanciam a prática de um novo crime continuado, quer pela renovação do desígnio criminoso, quer pela inexistência de uma situação exterior que diminua de forma considerável a culpa do arguido.

Remete, a propósito, para a fundamentação constante do Acórdão desta Relação de Coimbra de 27.9.2017 (rel. Des. Maria José Nogueira, proc. 1432/16.8T9PBL-C1, em www.dgsi.pt), onde consta o seguinte: “(…) A tese defendida pelo tribunal a quo no que ao limite temporal do conhecimento dos factos novos concerne não encontra sustentação na lei [quer à luz do n.º 2 do artigo 30º, quer do artigo 79º, n.º 2, do Código Penal], da qual apenas se infere, como não podia deixar de ser em face da menor exigibilidade e da consequente diminuição da culpa que caraterizam o crime continuado, que aqueles têm de ter ocorrido em data anterior à do trânsito em julgado da primeira condenação.

Com efeito, parece evidente que a sentença constitui uma interrupção necessária, provocando a quebra do primitivo desígnio criminoso, assistindo-se a partir da mesma à formulação de uma nova vontade, originária, portanto, incompatível com a afirmação de um nexo entre todos os crimes (…)”

Vejamos:

Neste processo está em causa o período contributivo compreendido entre os meses de janeiro a maio de 2014, novembro de 2014 a maio de 2015, julho de 2015, novembro de 2015, janeiro de 2016 a abril de 2016 e agosto de 2016 a outubro de 2018. Como se disse, o arguido foi condenado pela prática do mesmo crime de que aqui se encontra acusado pela prática de factos no período compreendido entre maio de 2011 e dezembro de 2013 (facto provado em 22).

Ou seja, à data do trânsito em julgado da sentença anterior (dezembro de 2016), o arguido continuava a cometer mensalmente o mesmo tipo legal de crime, deixando de entregar à Segurança Social os montantes descontados nos salários dos trabalhadores entre agosto de 2016 e outubro de 2018. Pressupondo o crime continuado a realização plúrima do tipo legal de crime, significa que a decisão criminosa foi sendo renovada em cada mês; assim, questão não se coloca ao nível da renovação do desígnio (decisão) criminoso, que constitui já um pressuposto da subsunção daquela multiplicidade de condutas, integrantes de outros tantos crimes, à figura jurídica do crime continuado, nos termos enunciados no n.º 2 do art. 30º do Código Penal.

A propósito, o facto provado sob o n.º 29 afirma o seguinte: “Os factos pelos quais o arguido J. foi condenado no processo comum singular n.º 459/15.1T9CVL e aqueles por que está acusado nestes autos, inserem-se no mesmo quadro de solicitação exterior – não ter sido detetado pela Segurança Social -, consubstanciando, assim, uma reiteração de condutas, persistente e homogénea”.

No entanto, para além de uma execução essencialmente homogénea dos distintos factos, no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior – o que se extrai da factualidade provada -, exige este normativo legal que se conclua por uma diminuição considerável da culpa do agente.

A diminuição considerável da culpa exigida pela norma pressupõe uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente, perante o circunstancialismo concreto do caso. Tal não sucederá caso o agente tenha sido advertido por algum órgão do Estado durante a repetição dos factos, pois significa que não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica que lhe foram lembrados, o que não pode deixar de ser considerado antes como fator agravante da culpa do agente relativamente às condutas posteriores a tal advertência, a que foi totalmente indiferente (v. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 224, e o Ac. do STJ de 5.6.2013, CJ do STJ, ano XXI, tomo 2, pág. 210, aí referido).

O momento temporal a considerar para a inversão do sentido da culpa do agente, de uma sua diminuição considerável para a sua agravação, só pode ser a do trânsito em julgado da decisão condenatória anterior, em obediência estrita ao princípio constitucional da presunção de inocência.

Desta forma, confrontando os factos provados sob os pontos 22, 23 e 29, teremos de concluir que a partir da data em que transitou em julgado a anterior condenação deixou de se verificar o pressuposto de diminuição considerável da culpa para os efeitos do n.º 2 do art. 30º do Código Penal, diminuição essa que, perante o facto de a conduta criminosa do arguido continuar a não ser detetada mesmo após a solene advertência, reiterou por cerca de mais 20 meses, até ser de novo descoberto – verificando-se os requisitos do crime continuado relativamente às decisões e condutas criminosas do arguido após janeiro de 2017, e até agosto de 2018, tese a que o recorrente Ministério Público adere.

Pelas razões expostas, impõe-se considerar inclusas na continuação criminosa anteriormente julgada no processo comum n.º 459/15.1T9CVL as condutas praticadas pelo arguido J. até dezembro de 2016, ocorrendo nessa data uma quebra na verificação do requisito “diminuição considerável da culpa” em virtude da solene advertência efetuada através da sentença transitada em julgado.

A partir de janeiro de 2017, o arguido retoma a sua conduta criminosa, e, não sendo de novo detetada pela Segurança Social, continuou a praticar o crime, de forma persistente e homogénea, no quadro da mesma solicitação exterior, conforme provado em 29.

Uma última nota para referir não ocorrer, in casu, qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, para os efeitos do art. 358º, nº 3, do Código de Processo Penal: acusado que se encontrava da prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, é apenas um crime continuado o cometido nos autos, porquanto parte dos factos (até dezembro de 2016, inclusive) foram já julgados, por se enquadrarem em continuação criminosa anteriormente conhecida, havendo relativamente a tais factos que atuar da forma prevista no n.º 2 do art. 79º do Código Penal, o que foi cumprido na sentença recorrida.

Assim, o arguido J. será condenado pela prática do crime de que vinha acusado – por se verificarem os respetivos pressupostos, nos exatos termos da qualificação jurídica efetuada na sentença de 1ª instância.

Em suma, resulta do exposto que o arguido cometeu o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos arts. 107º, 105º, n.ºs 1, 4 e 7, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais, no que respeita aos factos ocorridos entre janeiro de 2017 e outubro de 2018.

- Medida da pena:

Contém a sentença proferida todos os elementos de facto necessários à determinação da medida da pena a aplicar ao arguido J., pelo que nada obsta a que seja fixada nesta instância.

A moldura abstrata a considerar, atendendo a que o valor de cada prestação em falta é inferior a € 5.000,00, é de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias – arts. 107º, n.º 1, e 105º, n.º 1, do Regime Jurídico das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5.6.

Como é sabido, quando é aplicável, em alternativa, uma medida privativa e uma medida não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta proteja de forma adequada os bens jurídicos, e permita a reintegração do agente na sociedade (art. 70º do Código Penal).

No caso dos autos, o arguido foi anteriormente condenado em pena de prisão, substituída por multa, pela prática de idêntico crime continuado, a reafirmação da norma incriminadora apenas se poderá efetuar através da aplicação de pena privativa da liberdade, única que será adequada e suficiente para realizar as finalidades das penas.

De acordo com os quadros normativos relativos às finalidades das penas (a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade), a pena concreta jamais poderá ultrapassar a medida da culpa, e deverá situar-se em medida consentânea com a proteção do mínimo ético-jurídico capaz de cumprir o seu especial dever de prevenção (geral e especial) – arts. 40º e 71º do CP.

Entre o limite mínimo de garantia da prevenção, e o limite máximo da culpa do agente, a pena terá de ser determinada em concreto tendo em consideração todos os fatores do caso, nomeadamente os previstos no n.º 2 do art. 71º do Código Penal.

Assim sendo, terá de se atender, no apuramento da medida concreta da pena, a três exigências:
a) A culpa (pressuposto-fundamento da pena, que constitui o princípio ético-retributivo);
b) A prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização); e
c) A prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação, e que apresenta também uma dimensão negativa, de dissuasão individual).

Tendo em consideração todas as circunstâncias previstas no art. 71º do Código Penal, importa considerar o número de condutas integradas na continuação, o valor total da parte dos salários retidos e que deveriam ter sido entregues à Segurança Social, no período agora em causa, que ascende a € 24.556,89 (valor resultante da soma das parcelas correspondentes identificadas na tabela transcrita para o facto provado em 11 da sentença de 1ª instância), que tem de ser atendido em especial nos termos do art. 13º da Lei n.º 15/2001, as modestas condições de vida do arguido, e não contar com outras condenações para além da que se referiu.

Denota, assim, a conduta do arguido um nível médio de ilicitude, face ao montante envolvido, uma culpa que se tem de considerar elevada, atendendo nomeadamente à persistência demonstrada na prática dos crimes em causa nos autos, médias necessidades de prevenção geral e mais baixas de prevenção especial, face às suas condições pessoais.

Considerando as circunstâncias mencionadas, entende-se adequada a fixação da pena em 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.

Estabelece o art. 46º do Código Penal, sob a epígrafe “Proibição do exercício de profissão, função ou atividade”:

“1- A pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos é substituída por pena de proibição, por um período de dois a cinco anos, do exercício de profissão, função ou atividade, públicas ou privadas, quando o crime tenha sido cometido pelo arguido no respetivo exercício, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2- No caso previsto no número anterior é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos n.ºs 3 e 5 do artigo 66º e no artigo 68º. (…)”

No caso, o arguido cometeu o crime “em nome e no interesse da firma arguida, na qualidade de gerente e representante legal” (facto provado em 20), qualidade em que cometeu ainda o crime por cuja prática foi anteriormente condenado. Por outro lado, a pena de prisão aplicada é inferior a 3 anos de prisão.

Deste modo, encontrando-se preenchidos os pressupostos objetivos para que lhe possa ser aplicada esta pena substitutiva.

Atentas as circunstâncias em que o crime foi cometido, e os valores parcelares de cada uma das condutas, sendo o mais elevado de € 1.609,49 (referente a janeiro de 2017), entende-se que o estabelecimento da proibição de o arguido exercer funções de representação legal (gerente ou administrador) de uma qualquer sociedade comercial de direito privado será suficiente para o afastar da prática de futuros crimes, realizando-se desta forma as finalidades da punição.

Tendo em consideração o prolongamento no tempo das condutas criminosas do arguido, julga-se adequada a fixação do período de proibição do exercício de funções de representação legal de sociedades comerciais em 2 anos.

2. Recurso da arguida “V, Lda.

A recorrente foi condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107º, n.º 1, e 105º, n.º 1, do RGIT, e 30º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 500 dias de multa, à taxa diária de € 20,00.

Defende que a pena de multa é excessiva, pugnando pela sua fixação em 300 dias, devendo a taxa diária ser fixada em € 5,00.

Ora, nos termos dos arts. 105º, n.º 1, 7º, n.º 1, 12º, n.ºs 2 e 3, e 15º, n.º 1, do RGIT, a pena de multa aplicável deve ser fixada entre 20 e 720 dias, e o quantitativo diário entre € 5 e € 5.000,00.

Para aplicar aquela pena em concreto, o tribunal a quo considerou uma mediana ilicitude dos factos (no que atendeu ao período temporal da prática do crime, de mais de 4 anos, e o valor do prejuízo causado, de € 62.107,66), a culpa do representante legal, na forma mais elevada (dolo direto), e, a favor da arguida, a ausência de antecedentes criminais, e a confissão integral do seu representante legal em julgamento.

Considerou ainda serem elevadas as exigências de prevenção geral, e as reduzidas necessidades de prevenção especial.

Entendemos que os pressupostos em que se baseou o achamento da pena concreta são os corretos, bem como o facto, referido na decisão recorrida, de a pena de multa ter de representar um sacrifício para a arguida, sem, no entanto, lhe retirar a capacidade económica indispensável ao prosseguimento da sua atividade comercial.

É neste ponto que não podemos deixar de ponderar a motivação recursiva da arguida: na verdade, ficou provado que a recorrente foi declarada insolvente por sentença de 23.12.2014; que foi aprovado, no âmbito do processo de insolvência, um plano com vista à sua recuperação; que atualmente a recorrente consegue auferir cerca de € 8.000,00 por mês, e tem 8 trabalhadores, que recebem um salário mensal entre € 800,00 e € 1.000,00.

Significa, pois, que perante os custos só com pessoal a recorrente dispõe de uma quantia mensal muito baixa para suportar os restantes custos de produção da sua atividade comercial.

A multa fixada em 1ª instância, no valor total de € 10.000,00, poderá redundar na paralisação da atividade comercial da arguida, frustrando a recuperação em curso.

Nos termos do art. 79º, n.º 1, do Código Penal, “O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação”. No caso, a conduta mais grave ocorreu em janeiro de 2014, mês em que a recorrente não entregou à Segurança Social o valor de € 3.001,83 descontado nos salários dos seus trabalhadores.

Relativamente aos dias de multa, numa moldura entre 20 e 720 dias, entendemos adequada, face às circunstâncias do caso referidas, a sua fixação nos 300 dias.

No tocante ao montante diário da multa, atentas as condições financeiras da recorrente, o valor de € 20,00 mostra-se elevado, sendo adequada a sua fixação em € 10,00.

Procederá, nestes termos, parcialmente o recurso interposto.


*

A. DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se:

a) Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, condenando o arguido J., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107º e 105º, n.º 1, do RGIT, e 30º, n.º 2, do Código Penal, pelos factos praticados entre janeiro de 2017 e outubro de 2018, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, que se substitui pela proibição do exercício de cargos de representação legal (gerente ou administrador) de sociedades comerciais pelo prazo de dois anos, ao abrigo do art. 46º, n.º 1, do Código Penal.

b) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida “V., LDA.”, condenando-a, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107º, n.º 1, 105º, n.º 1, do RGIT, e 30º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 10 (dez euros).

Sem tributação – art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Coimbra, 10 de março de 2021

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora)

João Bernardo Peral Novais (adjunto)